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A festa de Ambrosina

Gaspar esperou em vão por alguma carta, algum recado, qualquer palavra que viesse da parte de Gabriel. Decididamente, Ambrosina havia triunfado; entre o padrasto e o amante, Gabriel escolhera a última.

E o que havia nisso de extraordinário?... considerava o Médico Misterioso. Agora, o que convinha fazer com urgência era livrar o pobre rapaz, fosse lá como fosse, das garras de Ambrosina, porque Gaspar muito se enganava, ou ali estava uma mulher com todos os elementos para levar aquele às últimas degradações.

Gabriel com efeito ia absorvendo, nos braços da amante, o vírus traiçoeiro da ociosidade. Um aborrecimento profundo começava a corromper-lhe o caráter e a dispensar-lhe a energia; às vezes se quedava ele longas horas a olhar abstratamente para o mesmo ponto, sem coragem para cousa alguma, e só um afago mais violento de Ambrosina o fazia então voltar a si.

Mas estes mesmos se iam relaxando, à proporção que a convivência estabelecia entre os dois a inevitável saciedade. Gabriel, na vida que levava, só conhecia ricos ignorantes ou homens indiferentes aos gozos do espírito. O mundo dos artistas, dos intelectuais, o meio em que cada um vive de uma idéia e caminha firmando-se em um nome, conquistado pelos esforços de todos os instantes; esse meio não o conhecia ele, e o frêmito das vitórias do trabalho só lhe chegava aos ouvidos, como a longínqua música de uma batalha de estrangeiros.

Ambrosina, não obstante, insistia na sua idéia de dar uma festa. O Rêgo e o Melo Rosa encarregaram-se de encomendar o jantar e tratar da decoração da casa. Ela escolheu um rico vestido de seda cor de creme, com o qual faria as honras da recepção; Gabriel distribuiu alguns convites, e, às cinco horas da tarde do dia marcado, principiaram a chegar os comensais.

Genoveva fora de véspera para ajudar nos arranjos da cozinha, e Alfredo apareceu logo que pôde largar o trabalho.

Exibiu o restaurado viúvo uma fatiota de brim branco, cujo apurado da goma dizia eloqüentemente os desvelos amorosos da sua nova companheira. Estava muito melhor de fisionomia e andava vivo e escorreito. De perfil, notava-se-lhe até um discreto princípio de abdômen.

O Melo chegou com um amigo, ao qual apresentou ao dono da casa, dizendo cousas mui agradáveis a seu respeito; e o Reguinho apareceu por último, de carro, e acompanhado por uma rapariga loura, de olhos pintados.

Esta circunstância não agradou muito a Gabriel, mas, como Ambrosina não via no fato intenção de maldade, e porque a rapariga tinha um todo acanhado e parecia portar-se com respeito, ele sacudiu os ombros e resignou-se. Além disso, não havia muito onde escolher, porque de onze convidados apenas aqueles se apresentaram. Um fiasco!

A filha do comendador, dissimulando o desapontamento, tocou antes da mesa o seu repertório de piano; e recitou uns versos, que lhe oferecera o Melo. Gabriel fazia servir os aperitivos e conversava vagamente com os convivas.

Às seis horas, acenderam-se os candeeiros de gás, e os convidados tomaram à mesa os seus componentes lugares. Principiou o jantar.

Notava-se constrangimento geral. Ambrosina, todavia, desfazia-se em obséquios e pedia que não tivessem cerimônia. Alfredo cercava Genoveva de solicitudes, falando-lhe de vez em quando ao ouvido. O Melo chamava-lhe a rir «Casal de pombinhos» e outras cousas que à matronaça não faziam bom cabelo, a julgar pelas suas olhadelas, repreensivas e cheias de conveniência, atiradas contra aquele.

Desenvolvia-se o jantar, e o acanhamento ia desaparecendo à proporção que as garrafas se esvaziavam. Ambrosina recuperava o bom humor e comia já com apetite. Alfredo elogiava o vinho e atochava-se de leitão assado.

-É o que se leva deste mundo! observou-lhe o Melo regaladamente.

E o tempo corria. Repetiam-se os pratos e os copos; iam-se animando as fisionomias, e o vinho dava afinal à reunião uma caráter ruidoso e alegre. A própria rapariga do Rêgo, a princípio tão esquerda, arriscava já uma ou outra frase com pretensões a pilhéria.

-O caso é ela enxugar um pouco! Explicava o Rêgo; e prometia que lá para o fim do jantar estaria soberba.

-O senhor confunde-me... respondeu a infeliz, abaixando maliciosamente os olhos e procurando ter graça.

Gabriel queixava-se de que faltava ali muita gente; dos seus convites só quatro vingaram.

Nestas ocasiões é que se conheciam amigos! Sentenciou o Melo.

Ambrosina pedia a Gabriel que se não mortificasse e, passando-lhe o braço na cintura, deu-lhe um beijo na orelha.

Veio a sobremesa. Estourou o champanha, e o jantar esquentou logo.

O Rêgo ergueu-se para um brinde.

-Meus senhores! disse ele; bebamos à saúde de um jovem que, por suas virtudes e por seu talento, muito merece de nosso respeito e de nossa consideração... Bebamos à saúde daquele que hoje nos reune nesta casa, ao som dos alegres estampidos da viúva Clicôt!

-Estampidos da viúva? Livra! bradou o Melo.

-Ao dr. Gabriel! Exclamaram muitas vozes.

Todos corresponderam, e Gabriel levantou-se de taça em punho, para agradecer o brinde e o comparecimento dos seus convidados.

Ouviu-se então uma infernal gritaria de «Hup! Hup! Hurra!» e os os copos se chocaram entre gargalhadas e exclamações de prazer. Já falavam todos ao mesmo tempo, e o tal companheiro do Melo, até aí silencioso, abriu a fazer discursos com tal fúria, que não havia meio de o conter.

Alfredo servia Genoveva de vinhos e oferecia-lhe várias guloseimas, que ela em geral recusava, abaixando os olhos, cheia de decoro, mas esfogueada.

Entretanto, ia-se fazendo por toda a mesa um rumor de desordem. Já ninguém se entendia. Interrompiam-uns aos outros, sem a menor cerimônia; ouvia-se no meio do barulho a voz excitada do Melo, a dirigir um brinde à Ambrosina, em que lhe chamava «Anjo de amor e proibido fruto do Paraíso».

Ambrosina ria-se muito, a pender a cabeça para trás; levantou-se e foi ter com o autor do brinde para lho agradecer. O Meio apertou-lhe o braço num arremesso de ternura.

Gabriel mandou abrir mais. champanha, e o companheiro do Melo continuava, terrível a fazer discursos. Brindou à Mocidade, ao Amor, à República e ao Prazer. A rapariga do Rêgo havia encostado no ombro deste a cabeça, e deixou-se afinal cair no colo do amante, desfazendo o penteado.

-Já ia ficando boa!... afirmava o Rêgo, a piscar o ôlho.

Alfredo e Genoveva conversavam intimamente, invernados na sua obscura ternura.

Ninguém prestava mais atenção ao que faziam os outros. Ambrosina declarava sentir-se bem. As garrafas substituíam-se quase sem intervalo, e as vozes recrudesciam de animação.

O amigo do Melo calara-se afinal, vencido por uma comoção que lhe arrancava lágrimas e soluços. Gabriel com a voz arrastada e os olhos mortos, oferecia charutos à sociedade.

Dissolveu-se a mesa. Serviu-se o café e vieram os licores. Os convidados espalharam-se pela casa. Ambrosina lembrou um passeio ao luar, no jardim; ninguém acedeu, ela, porém, deu o braço ao Melo, e com este ganhou alegremente a chácara.

Os dois, ao chegarem a um caramanchão, que havia ao fundo, estreitaram aos beijos, caindo sobre um banco, nos braços um do outro.

Ela, não obstante, negava-se, mas sem forças para se defender, e rindo.

O Melo arfava, a segurar as lunetas e tartamudeando palavras de amor. De repente ergueu-se, olhando para os lados. Sentira passos ali perto! Ia jurar que alguém. os espreitava!...

-Não é nada... dizia Ambrosina, com os olhos cerrados e os lábios soltos.

E puxava-o pelas abas do fraque.

O Melo tornou a cair sobre o banco.

Alguém com efeito os havia espreitado. Os passos ouvidos pelo rapaz eram do Médico Misterioso que, depois de espiar lá de fora por algum tempo a festa de Gabriel, seguira com a vista Ambrosina quando esta ganhou a chácara com o Melo; depois penetrara sorrateiramente no jardim, fora até ao caramanchão e, tendo observado o que aí se passava, dirigiu-se para a sala de jantar.

Entretanto, a festa degenerada em orgia, arrastava-se já entre bocejos. Gabriel, negligentemente estendido numa preguiçosa, fumava, a olhar abstrato para a rapariga do Rêgo, nesse momento muito empenhada em descolchetar o seu espartilho, depois de ter desfeito de um dos sapatos; enquanto o seu extraordinário amante, ainda na sala de jantar, preparava em uma saladeira um formidável ponche, e mortecia a luz dos bicos de gás para dar mais realce às lívidas chamas do álcool. Alfredo queixava-se à Genoveva de que havia comido demais, e estava às voltas com a sua dispepsia. A boa mulher dava-lhe a beber água de melissa. E ouvia-se a voz arrastada de Gabriel, chamando com insistência por Ambrosina.

Gaspar, de braços cruzados ao fundo da sala, olhava para todos eles, com um ar sombrio. Só Genoveva dera com a sua presença, e desde então lhe acompanhava o movimento dos olhos.

Gaspar atravessou a sala e foi bater no ombro do enteado. Gabriel voltou a si e o encarou atônito.

-Avia-te! Segredou o médico; temos que sair daqui imediatamente!

-Para onde?..

-Para o diabo, mas avia-te!

Gabriel levantou-se, cambaleando.

-Para onde me queres levar?...

-Em caminho conversaremos. Anda dai!

E Gaspar segurou-o pelos braços, na esperança de aproveitar o estado de quase inconsciência de Gabriel.

-E Ambrosina?.. perguntou este.

-Virá depois.

-Não! Eu só irei com ela!

-Ela não pode vir!

-Por quê?...

-Porque não!

-Então, larga-me!

-Gabriel, atende ao teu único amigo! Repara que estás cercado de vergonhas! Olha que é a perdição que se respira aqui!

-Se Ambrosina merecesse tal dedicação, vá! Porém, ela, desgraçado, zomba de ti! Engana-te com outro!

-Mentes, miserável!

-Não sei! Deixa-me!

-Nada de bulha, e ouve o que te digo... Prometes acompanhar-me, se eu te provar a infidelidade de Ambrosina?...

-Prometo!

-Pois vem cá. Não faças rumor com os pés... atravessemos este corredor... Bem! agora passemos por este lado do jardim... Espera; reprime um pouco a respiração e abafa os teus passos... Agora entremos nesta alameda... Aí! Olha por entre estes galhos... O que vês?

A propria embriaguez e a sombra das folhas não permitiram logo a Gabriel reconhecer a amante nos braços de Melo Rosa; mas, pela voz dos dois e pelo que diziam, certificou-se num relance de que era traído e precipitou-se com fúria sobre eles, exclamando como um louco:

-Infames! Infames!

Gaspar, porém, senhoreou-se vigorosamente do enteado, enquanto Ambrosina e o Melo corriam pelo jardim.

-Larga-me! bradava Gabriel, procurando escapar das mãos do padrasto; larga-me, ou enlouqueço!

-Não! Daqui sairemos juntos. Nem voltarás lá dentro; nada tens que fazer nesse covil de miseráveis! Saiamos pelo portão do jardim, amanhã mesmo partiremos para o Rio de Janeiro!

-Deixa-me! Deixa-me! insistia Gabriel.

Melo Rosa conseguiu ganhar a rua e fugir, justamente quando o amante iludido lograva escapar dos braços do amigo.

Esta cena levantou grande rumor, pondo em sobressalto os que estavam na casa. Mas na ocasião em que Gabriel se dispunha a perseguir o Melo Rosa, ouviu-se um bramido terrível e em seguida um grito de Ambrosina:

-O louco!

Com efeito, era Leonardo que surgia. Há dois dias fugira do hospital e vagava foragido pelas ruas do arrabalde, até que o acaso lhe fizera dar com a casa da mulher.

Genoveva tivera tempo de fechar a porta da sala, mas o doido, com um empurrão, metera-se dentro, produzindo formidável estrondo.

O amigo do Melo, que dormia num canapé, acordou sobressaltado e corria à toa pelos quartos. Alfredo, tiritando de susto, ganhou um canto da sala de jantar e escondeu-se. A sujeita do Rego, a suster as saias, gritava que a tirassem daquele inferno, e Genoveva, tratando de fugir, puxara do seio um rosário e rezava atrapalhadamente as orações que lhe vinham à boca.

Ambrosina, entretanto, ao reconhecer a figura terrível do marido, correra para o jardim, mas, dando aí com Gaspar e Gabriel, voltara estonteada, exclamando, a abraçar-se com a mãe:

-Salve-me! Salve-me! Todos eles me querem matar! Salve-me, por amor de Deus!

Leonardo havia parado no meio da casa, imóvel, tinha na mão o trinchante que apanhara da mesa.

A figura, o gesto, a voz, tudo nele era horrível. Cobria-lhe a cabeça e a cara uma porção emaranhada de cabelos secos e negros. O olhar luzia-lhe com cintilações vermelhas, e as suas narinas pareciam procurar a carniça pelo faro.

A casa converteu-se em um inferno de exclamações. De todos os lados gritos, pragas e ameaças.

Entretanto, o doido percebeu Ambrosina na sala de jantar, e soltou uma gargalhada.

-Até que afinal te encontro! berrou ele.

A mísera olhou em torno de si e reparou, trêmula, que a sala estava fechada e quase às escuras.

O doido correu para ela, empunhando a faca.

Ambrosina ia perder os sentidos, mas notou que a porta da dispensa, que dava para a sala de jantar, estava aberta, e a esperança de alcançá-la reanimou-a, porque seria fácil embastilhar-se lá dentro, deslocando uma prateleira volante que aí existia logo à entrada.

Leonardo avançava, brandindo a faca; entre ele e a mulher havia, porém, a mesa de jantar, e os dois começaram a correr em torno desta como fazem as crianças, quando brincam o «Tempo será».

Leonardo galgara a mesa aos saltos, lançando por terra cadeiras e garrafas. Aterrava vê-lo pular daquele modo, grunhindo como um torturado. Mas, se ele tinha a agilidade do tigre tinha a perseguida a destreza da camurça e, a um pulo de Leonardo, Ambrosina opunha uma pirueta, que a tirava do seu alcance.

Assim levaram algum tempo. Todavia, a desgraçada não podia resistir por muito mais: o suor corria-lhe de todo o corpo; as pernas vergavam-se-lhe de cansaço; a vertiginosa gravitação em torno da mesa fazia-lhe redemoinhar a cabeça num delírio apoplético. Sentia ânsias enormes, e ofegante, trêmula, miserável, toda ferida nos cacos de vidro espalhados pelo chão, ia lançar-se suplicante e vencida aos pés do doido, quando se abriu de repente uma das portas da sala, e Gaspar, junto com Gabriel, apareceram de relance.

-Olá! He! gritou o médico.

Leonardo voltou-se para eles, e Ambrosina teve ensejo de galgar a entrada da dispensa.

Já era tempo!

Os dois, vendo-a livre do perigo, tornaram a fechar logo a porta, com intenção de deixar o doido preso. Só então o Médico Misterioso reparou que os convidados haviam todos desaparecido, e, como para ele se tratava unicamente de fugir com o enteado, a este arrastou consigo pelo jardim e levou-o para o carro que o esperava ao portão da chácara.

Toca pra casa! disse ao cocheiro.

Gabriel, pelo caminho, protestava na impotência do seu estado:

-Mas, repara, Gaspar, que Ambrosina pode morrer na situação em que a deixamos... E um assassinato o que vamos cometer!...

-A dispensa não tem saída?

-Tem uma janela, mas a desgraçada talvez não chegue até lá!... Eu já não a amo e nenhum interesse tenho de possuí-la mas é de meu dever não consentir que ela morra em minha casa!

-Jorge, apeia-te; dá-me o teu capote, o teu chapéu, e o teu chicote.

-É.

O cocheiro obedeceu, e Gaspar, aproximando mais a boca ao ouvido dele, acrescentou ainda algumas palavras.

-É só o que manda, patrão? perguntou Jorge depois de ouvir o que lhe segredara o médico.

-Sim, mas desejo que te saias desta vez tão bem como das outras...

-Podes ficar descansado.

-Estás armado?

-Sim senhor, e tenho a minha lanterna.

-Então, vai.

E o cocheiro tornou a pé pelo caminho feito.

Gaspar atirou o capote nos ombros, enterrou o chapéu na cabeça, empunhou o chicote e galgou a boléia.

O carro desapareceu na estrada.

Deixemo-lo seguir para a casa do Médico Misterioso, e voltemos à sala de jantar de Gabriel.

Ambrosina, mal ganhou a dispensa, atravancou precipitadamente a porta e deixou-se cair prostrada no chão. Só depois de vomitar duas ou três vezes, é que de novo se viu senhora completa dos seus movimentos e do seu espírito.

A primeira idéia que então lhe acudiu foi a de fugir para a rua; não tinha confiança naquele abrigo. Trepou logo pelas prateleiras, e ganhou a pequena janela, que dava sobre o jardim.

A noite estava silenciosa e um tanto úmida. Ambrosina só ouvia o rumor produzido pelo marido na sala de jantar.

-Com certeza ele não sairá de lá, enquanto houver ao seu alcance um objeto inteiro... pensou, montando-se no parapeito da janela; depois, dependurou-se deste pelas mãos e deixou-se escorregar para fora.

Caiu assentada na relva, e só então reparou no deplorável estado em que se achava.

E foi suja, rota, ensangüentada, sem chapéu, que atravessou a chácara.

Ao passar pela frente da casa, pareceu-lhe ouvir gritos pedindo socorro.

Querem ver que ainda há alguém lá dentro às voltas com o doido?... considerou ela.

-Ora, adeus! disse de si para si; quem quer que seja, que se arranje, como eu me arranjei!

E seguiu para a rua.

O bairro estava deserto. Ambrosina não tinha dinheiro consigo e nem mesmo sabia para onde ir. A casa de sua mãe era tão longe!... Ficava no Engenho Novo, e ela achava-se ali em Laranjeiras!...

Além disso, sentia-se fatigadíssima; os pés ardiam-lhe, como se fossem calçados de sinapismos. E tão enxovalhada! Onde diabo iria ela abrigar-se! A quem se apresentaria naquele estado!

E coxeando, gemendo, a encostar-se pelas paredes, seguia tristemente para o lado da cidade.

Veremos depois o destino que teve a desgraçada.

Por enquanto, voltemos ainda uma vez à sala de jantar de Gabriel, porque, com efeito, alguém lá ficou abandonado em apuros.

Era o pobre do Alfredo; eram dele os gritos que pediam socorro.

Na terrível ocasião em que surgira Leonardo, o magro amante de Genoveva, aproveitando a exigüidade do seu corpo, conseguiu meter-se entre o guarda-louça e a parede, no canto de que falamos, certo de que ninguém daria com ele semelhante esconderijo.

Havia de ser, realmente, muito difícil em descobri-lo, aí; mas o louco, quando Ambrosina se encerrou na dispensa e Gaspar fechou de novo a porta da sala, foi surpreendido por certo ruído inominável que partia do canto do guarda-louça. Precipitou-se para lá e, aguçando os olhos, lobrigou ao fundo da toca a lívida figura de Alfredo, cujos queixos batiam como castanholas.

O louco soltou um rugido dos seus, acompanhado de uma feroz gargalhada de satisfação, e desistiu do intento de perseguir à mulher, para se atirar sobre a nova presa.

Alfredo não caiu por terra, fulminado de terror, só porque o guarda-louça e a parede o entalavam pelos ombros. Fechou os olhos e, cedendo a um rebate mais forte dos intestinos, resignou-se à morte, procurando conciliar uma idéia religiosa.

A alma do comendador

Médico Misterioso, ao chegar defronte de casa, apeou-se da boléia, abriu a porta, chamou o criado e recomendou-lhe que recolhesse o carro à cocheira.

Eram dez horas da noite, e o tempo, até aí de urna transparência admirável, começava a fazer-se cor de chumbo.

Gabriel, atirado nas almofadas do carro, dormia profundamente. O padrasto tomou-o nos ombros, e carregou com ele para o quarto.

O rapaz não dava acordo de si. Gaspar estendeu-o na cama, e ficou algum tempo a olhá-lo, com uma expressão de profunda tristeza. Depois, sacudiu a cabeça resignadamente, e deu-lhe um beijo na fronte.

-Pobre criança!... dizia consigo o médico; para que haverias tu de encontrar, logo na entrada do caminho, aquela mulher perversa e egoísta?... Antes fosses pobre e desprotegido!... Estarias trabalhando para ganhar a vida, e o suor que te corresse do rosto não seria este suor úmido e orgíaco, que agora te enregela. Antes fosses bem pobre! Compreenderias talvez a necessidade de cultivar a tua inteligênciaí, que esperdiças, como esperdiças o teu dinheiro... Amaldiçoada fortuna, que a ambos nos desgraçou!

E Gaspar, enxugando as lágrimas, principiou a mudar a roupa do enteado, com a solicitude de uma mãe extremosa. Descalçou-o, e procurou chamar-lhe o sangue a sola dos pés; arrumou-lhe na testa um lenço borrifado com algumas gotas de amoníaco, e, depois de agasalhá-lo bem, fechou a porta do quarto, passou ao escritório e assentou-se à sua mesa de trabalho com um livro defronte de si.

Gabriel, ao abrir os olhos no dia seguinte, o primeiro pensamento que formulou foi todo para Ambrosina. Os acontecimentos da véspera apareciam-lhe agora no espírito como reminiscências de fatos revistos através das camadas nebulosas do tempo.

Muitos lhe tinham fugido inteiramente da memória, de envolta com os vapores da embriaguez; outros permaneciam no momento de acordarmos. A sinistra figura de Leonardo desenhava-se de um modo fantástico; aquele espectro hirsuto e desvairado, lançando em torno de si olhares de fera e empunhando uma faca, parecia um produto de pesadelo. E Gabriel, com a imaginação, via Ambrosina crivada de feridas, a debater-se e a pedir socorro nas garras do louco, que a arrastava pelos cabelos e começava a devorar-lhe o corpo a dentadas, como havia tentado na horrível noite do casamento.

Gabriel, sacudido por essas idéias, sentia as fontes estalarem de febre.

Mas, entre todas as duvidosas reminiscências da véspera, se destacava um fato, gravado a fogo, era a cena do caramanchão. Esse não tinha sombras esfumadas, nem contornos duvidosos; estava ali, nu e cru, em toda a brutal nitidez da realidade.

Não havia para onde fugir! Era uma afronta verdadeira e positiva, que reclamava dos brios de Gabriel decisão pronta e enérgica.

Com que tristeza, com que dor, com que sacrifício d'alma, não teve o desgraçado de chegar a esta conclusão inevitável: -Abandonar por uma vez Ambrosina?!... Empurrar com o pé tudo o que ele até aí mais amara, mais loucamente estremecera! fugir daquilo que lhe enchera os sonhos de esperanças, destruir o castelo das suas ilusões, amaldiçoar o seu ídolo e calcar o próprio coração debaixo dos pés, como quem esmaga um imundo verme! Mas assim era preciso! Era inevitável! O que poderia ele esperar daquela mulher, no caso que lhe faltasse coragem para repeli-la? Não lhe teria já porventura consagrado toda a sua existência? não havia feito, por amor de semelhante ingrata, todos os sacrifícios de sentimento e de caráter, que se podem exigir de um homem? E qual fora a paga de tudo isso? -Uma vileza, uma infâmia, a mais torpe das traições -A traição do amor!

Oh! Era indispensável fugir-lhe para sempre! Nunca mais a ver! Nunca mais a amar!

E, com esta resolução, todo o seu ser se abalava num calafrio de morte.

Mas que diabólica fascinação exerce sobre mim aquela mulher, considerava o mísero; para que eu, mesmo no auge de meu desespero e do meu ódio, sinta por ela todo o arrebatamento do amor e toda a humilhante agonia do desejo? Que sobrenatural poder me obriga a querê-la sempre, mesmo com a consciência dolorosa da sua infâmia e com a convicção degradante da minha covardia? Inferno! Conhecer o mal, sem ânimo para fugir dele!... Mas não! Custe o que custar, doa o que doer, hei de esquecê-la! Hei de desprezá-la!

Mas dentro, em revolta, lhe bradava o sangue:

-Atende! atende, desgraçado! Não te lembras que, para deixares por uma vez Ambrosina, terás de abdicar de todos os deslumbramentos do seu amor? Deixá-la, quer dizer nunca mais sentir o doce contacto daqueles braços esculturais; deixá-la, é perder o gosto saboroso daqueles beijos quentes e vermelhos; é nunca mais adormecer ao calor daquela divina carne e ao aroma daquele cabelo negro! Queres deixá-la, miserável? Deixa-a, mas eugatilha ao mesmo tempo o teu revólver, porque não resistirás ao desespero de perdê-la! E, enquanto estiveres lá debaixo da terra, no pavoroso degredo do teu aniquilamento, ela, cá fora, feliz e radiante, será cortejada por uma aluvião desenfreada de apaixonados!

Gabriel estremeceu, sacudiu a cabeça, procurando enxotar os pensamentos, como quem enxota um bando de corvos, e saltou da cama.

Defronte dele ergueu-se o padrasto.

-Então?... disse este. Estás disposto a partir?

-Quando quiseres... respondeu Gabriel, abaixando os olhos.

-Iremos pelo primeiro paquete que sair para a Europa.

E Gaspar afastou-se, para tratar da viagem.

Entretanto, na véspera desse dia, enquanto aqueles dois fugiam pela noite a toda a disparada da casa de Ambrosina, esta, depois de alguns passos pela rua de Laranjeiras, encostara-se prostrada às grades de uma chácara.

Não sentia coragem para caminhar, tal era o seu estado. Tinha a cabeça oprimida por um estranho peso que a obrigava a fechar de vez em quando os olhos. As pernas negavam-se a sustentá-la e os seus pés sangravam; todo o corpo lhe pedia repouso, mas não se animava ela a sentar-se no batente de alguma porta, receosa de ceder ao cansaço e adormecer na rua. Olhava então aflitivamente para a estrada, e a desesperança de qualquer recurso, que tirasse daquela situação, arrancava-lhe lágrimas de desespero.

Quando passava alguém, a infeliz escondia o rosto, envergonhada.

Um trabalhador, que vinha a cantalorar com uma voz grossa de vinho, abeirou-se dela e quis abordá-la.

-Olha cá! disse, limpando as barbas nas costas da mão.

-Não me toque! bradou ela.

E ferrou no homem tão decisivo olhar, que ele abaixou a cabeça, com um gesto de cão batido, e arredou-se resmungando:

-Desculpe! Supunha que era uma barca...

Ambrosina rilhou os dentes, de raiva, e desatou a soluçar.

Que mal havia ela feito para sofrer tanto!... Por que a sorte, a fatalidade, ou lá o que fosse, a perseguia daquele modo?... Bem sombria devia ser a estrela que velou o berço!...

-No fim de contas, se não sou mais honesta, dizia consigo mesmo, só ao acaso devemos criminar, porque foi ele que me tirou dos braços de meu marido para me atirar aos do meu amante... E será culpa minha não poder eu amar a nenhum homem?... Acho-os ridículos a todos eles! E haverá, com efeito, cousa mais aborrecida do que ouvir protestos de amor de Gabriel, por exemplo? quem pode gostar daquilo? Um homem deve ser um homem e deve saber gozar!

E Ambrosina sonhava-se ao lado de um libertino milionário, que a embriagava com todas as transcendências da riqueza e do prazer; sentia sede das sensações fortes do jogo e das orgias monstruosas, em que há gosto de sangue no fundo das últimas taças. Queria gozos criminosos, lascívias perseguidas por lei; sentia necessidade de ruído, de desordem, de escândalo; queria que se falasse nela, que a apontassem, que os burgueses estalassem de raiva, ao vê-la passar, petulantemente linda, satânica, cruel, no seu carro puxado a quatro! Sentia vontade que a julgassem capaz de todos os crimes! E assim mesmo haveriam de ir depor a seus pés a fortuna, a honra, o talento, porque ela era bela e possuía todos os segredos do amor sensual. Os mancebos, ao abrir da puberdade, queimariam a carne em flor nas brasas do seu sangue; os homens lançariam às chamas dos seus punchs a fortuna dos filhos e as jóias da mulher; e os velhos, trêmulos e decrépitos, cheios de condecorações e flanelas, haveriam de arrastar-se até aonde ela estivesse para lhe suplicarem, por amor de Deus e em troca de tudo o que possuíssem alguns instantes de luxúria! E ela então orgulhosa e fria sob o diadema de seus vícios, escarneceria de todos eles e de todos os preceitos estabelecidos pela moral. E, enquanto as mães chorassem, os filhos se perdessem, e os homens se assassinassem na vergonha e no opróbrio, ela, mulher sem coração, a Vênus de gelo! beberia champanha e comeria morangos em calda de rum!

E por um natural fenômeno de atavismo, Ambrosina reproduzia, com as modificações correspondentes às suas circunstâncias individuais, todos os sonhos de ambição e todos os delírios de grandeza que encheram a vida inteira de seu pai.

Era o comendador Moscoso quem estava ali a sonhar, em plena mocidade, não como ambicioso caixeiro de taverna, mas como uma vaidosa rapariga de coração mal-educado.

Ela, porém foi interrompida nos seus incipientes devaneios por um fulminante berro, que lhe gelou nas veias o sangue e lhe sumiu a luz dos olhos.

Era o louco que vinha de novo ao seu encalço.

Ambrosina soltou um grito e, perdendo os sentidos, cambaleou um momento, e desabou afinal sobre a calçada.

A flor do Russell

Jorge, o cocheiro de Gaspar, era um homem membrudo e de fisionomia áspera, tipo mais puxado a espanhol que a brasileiro.

Cabelos negros e crespos, achatados na testa pelo uso constante de um grosseiro chapéu de feltro, olhos escuros, cor de tabaco, barba espessa, fartas sobrancelhas arrepiadas, nariz grosso, afogado em sangue, dentes grandes e quadrados.

Cobria-lhe a pequena parte do rosto que não fora conquistada pela invasão brutal dos cabelos, um moreno quente, listroso, cheio de vida e de força. Tinha as mãos largas e resguardadas de músculos possantes, peito amplo e pescoço vigoroso.

Entretanto, por detrás daquela estatura gigantesca e de energia de seu todo, estava um coração brando e flexível.

Jorge era um bom homem. Gaspar tomara-o ultimamente a seu serviço, mas já o conhecia de longa data. O Médico Misterioso exercia sobre ele grande influência moral e votava-lhe amizade.

Quando, na noite do infeliz jantar, Ambrosina fugia por um lado da chácara, procurando abafar os passos para não ser percebida pelo marido, Jorge entrava pelo outro, com a precaução de quem deseja surpreender alguém.

Não se viram.

A moça ganhou a rua, e ele, seguindo as recomendações do amo, foi ter à janela da dispensa. Estava aberta, Jorge galgou-a, acendeu aí a sua lanterna furta-luz e, estendendo o pescoço, espiou para a sala de jantar, por cima da porta, pela qual justamente pouco antes fugira aquela.

O cocheiro não podia, donde estava, ver com quem altercava o doido, mas segundo o que lhe havia dito Gaspar, devia ser com Ambrosina.

A sala continuava quase às escuras.

No momento em que Leonardo ia lançar-se sobre Alfredo, Jorge abriu de improviso a porta da dispensa e avançou resolutamente para ele, com um revólver em uma das mãos e a lanterna furta-luz na outra. O doido voltou-se assustado, escondendo a faca nas costas.

-Dá-me já desse ferro! bradou-lhe o cocheiro.

Leonardo atirou humildemente a faca ao chão, e retraiu-se. Jorge apanhou-a, e perguntou-lhe asperamente se ainda tinha alguma arma consigo.

O doido meneou afirmativamente a cabeça e, refilando os dentes, apontou para estes.

-Dessa arma não tenha eu medo! rosnou o cocheiro; mas revistemos sempre as algibeiras...

E começou a apalpar as roupas de Leonardo.

-Não me faças cócegas! gritou este, torcendo-se todo, a rir.

E fugiu-lhe das mãos.

-Tratemos agora da menina! disse aquele.

Alfredo saíra, afinal do seu esconderijo. Jorge chegou-lhe a lanterna ao rosto, e olhou-o com surpresa.

-O quê?! Pois era o senhor que cá estava, seu Alfredo? Como diabo me afirmou o patrão que era a D. Ambrosina?...

Alfredo engoliu a última saliva, que o medo lhe havia gelado na garganta, e explicou a situação com a voz ainda trêmula.

Um rumor lá fora chamou nesse momento a atenção de Jorge.

-Com os diabos, que lá se nos vai o doido!

Leonardo, com efeito, enquanto os dois conversavam, galgara a janela da dispensa e fugira pelo jardim.

Foi nessa ocasião que ele seguiu para onde estava Ambrosina.

Alfredo e o cocheiro, depois de certificados de que Leonardo não se havia escondido na chácara, apagaram o gás, fecharam a casa pelo melhor que puderam, e seguiram para a rua.

Por onde diabo teria tomado aquele maldito? dizia e repetia Jorge, a olhar para todos os lados; até que percebeu Leonardo na ocasião em que este surgia junto à mulher.

Jorge correu para lá, e Leonardo, mal o bispou, abriu num carreirão pela estrada, a fugir.

-Fique com ela! bradou o cocheiro a Alfredo; que eu vou na pista daquele danado!

E lançou-se a perseguir o doido.

Dez minutos depois, voltava, coberto de suor.

-Escapou-nos! O demônio! Mas deixa estar que não as perdes, patife! O lugar dos doidos é no hospício!

E, voltando-se para Ambrosina, que recuperava os sentidos:

-Ora, em que bonito estado deixou esta pobre criatura! Peste de um maluco!

E, praguejando cada vez mais, o cocheiro amparou Ambrosina nos braços.

-Pobre senhora! Tem os pés que são uma lástima!...

Resolveu-se que iriam pernoitar em casa de Jorge. Ambrosina, por ser este o sítio mais perto, e Alfredo porque jurara aos seus deuses não largar àquela noite a companhia do cocheiro.

-Nada! Que o doido podia encontrá-la ainda pela estrada!

Começou a chover.

Só meia hora depois, apareceu um carro e, depois de outra meia hora, chegavam os três à modesta habitação do cocheiro -uma casinha na Praia do Russell; porta e janela, pouca mobília, quartos acanhados.

Jorge era viúvo e tinha uma filha já moça, Laura, encanto da sua vida, e quem, nos arranjos da casa, ajudava a avozinha Benedita, mãe do cocheiro.

Apesar de pobre, a habitação era asseada e risonha. Tudo ali respirava paz.

A chegada do carro sobressaltou os tranqüilos moradores. Laura veio logo à porta saber o que havia. A casa não tinha corredor, e via-se, mesmo de fora, a salinha simples e guarnecida de velhos móveis.

-Ó Laura! gritou o cocheiro, apeando-se. Anda daí a ajudar D. Ambrosina, que aqui vem a cair de fadiga!

Ambrosina foi recolhida ao melhor lugar e à melhor cama que havia na casa.

Jorge rejubilava na satisfação de prestar aqueles socorros, e recomendava que nada faltasse aos hóspedes sem calcular o desgraçado o perigo que metia em casa, e desgraça que preparava para si e para os seus.

Alfredo, aborrecido com o estado das suas calças penetrou na sala do cocheiro.

Era uma salinha limpa e arejada pelo mar. Havia entre a porta e a janela uma velha cômoda, sobre a qual ao lado de um silencioso e caduco relógio de metal amarelo com redoma e peanha, se aprumava sombriamente um Napoleão de gesso, com o seu olhar de águia debaixo do chapéu à polichinelo, com as suas botas e o seu capote, com uma das mãos instaladas legendariamente no peito a outra segurando uma canudo, que queria dizer um óculo

Esse boneco de gesso, ali onde o viam, tivera uma agitadora influência sobre o obscuro destino de Laura. Aos domingos, quando Jorge reunia alguns amigos para jantar, era ele o objeto de calorosas discussões; havia sempre na roda algum cego entusiasta do famoso corso que sacudido um bocado pelo vinho Figueira do cocheiro divagava de orelha sobre as campanhas napoleônicas, comunicando o próprio entusiasmo aos companheiros, para os quais os fatos da vida de Bonaparte tomavam proporções sobrenaturais e divinas.

Laura cresceu e palpitou sob a influência dessas conversas e, sem conhecer a verdadeira história de Napoleão, deixou-se magnetizar pela cativante poesia da lenda.

Aos quinze anos, quando toda a donzela constrói o seu ideal de amor pelo que conhece de mais grandioso e de mais belo, ela formou o seu pela figura de gesso que ali, ao lado do inocente relógio, se deixara pintalgar pelas moscas desde o dia do casamento de Jorge.

A pobre sonhadora contava intimamente com a súbita aparição de um jovem militar, ardente e corajoso, que a tomasse da Praia do Russell e a sentasse no trono de França. Só depois de muito esperar em vão, foi que se desenganou e se decidiu aceitar, qualquer outro sujeito, que ao menos se parecesse fisicamente com o grande homem.

Quem mais estava no caso era o João Braga, por alcunha «O Vela de Sebo», em razão de sua farinhenta brancura e da sua figura grossa e curta. Um honesto padeiro, ainda moço, muito parecido efetivamente com o Napoleão de gesso.

Laura ficava horas esquecidas a olhar para o narigão aquilino do Vela de Sebo, para a sua testa desafrontada, para os seus olhos fundos e carrancudos, para a sua boca sem lábios, e para aquele enorme queixo, farto e redondo como um papo.

Ninguém atinava com a razão que levou a bela filha de Jorge, a «Flor do Russell», a gostar de semelhante criatura.

-Caprichos de mulher! Explicava um dos amigos do cocheiro, e citava proverbialmente que «A mulher só não se casa com o carrapato, por não saber qual é o macho!»

O fato é que então Laura gostava bem do seu padeiro. Um dia ofereceu-lhe uma cigarreira de missangas, que bordara durante um mês inteiro, e esse trabalho foi muito apreciado no bairro. Alguém profetizou logo que ali estava uma menina de grande futuro.

-Dêem-lhe asas! Dêem-lhe asas! resumia o da teoria do carrapato; e verão depois o que sairá dali! Mas não será amarrada ao Vela de Sebo, que a Laurita há de ser algum dia alguma cousa!

Laura conhecia vários livros; romances quase todos. O pai às vezes lhe ouvia falar de cousas estranhas para ele, com um sorriso cheio de respeito e iluminado de amor. Quando ela dava na aula o D. João de Castro e dizia depois em casa a sua lição em voz alta e corrida, o pobre cocheiro extasiava-se, acompanhando com a fisionomia os menores gestos e movimentos da filha. E se alguém da sua roda precisava de uma carta de mais circunstâncias, ou de um desenho para certo bordado, ou de molde para um vestido de festa, não ia a mais ninguém; procurava Laura, e ela sempre resolvia a dificuldade.

O pai sentia por tudo isso um grande orgulho.

-Não! Lá certeza de que dei à pequena uma educação de princesa, isso é que tenho! dizia ele e acrescentava: -A Laura até o francês sabe! Tragam-lhe aí qualquer livrinho em francês, e se ela não o destrinchar logo, aqui está quem dá as mãos à palmatória!

Do outro lado do relógio havia uma imagem de Nossa Senhora da Conceição, fundida em porcelana e pintada vistosamente de cores vivas.

Servia-lhe de peanha um globo representando o mundo, sobre o qual uma cobra se debatia debaixo de um dos pés da Virgem.

Nossa Senhora da Conceição era a padroeira daquela boa gente e, no dia que lhe conferiu o calendário cristão, nunca deixou ela de ter ali sua ladainha e a suas velas de cera. Vinha já de longe esse costume, a mãe de Jorge, em tempos de melhor fortuna, havia tido um rico oratório consagrado àquela Santa; esse oratório naufragou uma vez com o seu homem, que era embarcadiço, e desde então foi substituído pela modesta imagem de porcelana que, ao lado do sisudo relógio, fazia pendant com Bonaparte.

Já, na pequena sala de jantar fumegava lá dentro a ceia, que a avozinha acabava de retirar do fogo.

Jorge declarou que tinha o estômago no espinhaço e chamou os hóspedes para a mesa, mas Ambrosina pediu que a deixassem descansar, e Alfredo prometeu fazer-lhe companhia ao café, desde, porém, que tivesse tomado um banho que lhe arranjaram, e vestido um par de calças que lhe emprestara o serviçal dono da casa.

A narração que à sua família fez o cocheiro de tudo o que havia sucedido essa noite à desditosa Ambrosina, causou grande comoção. Laura, principalmente, se mostrou em extremo impressionada, e parecia disposta a proporcionar à interessante hóspede todos os serviços que dependessem do seu desvelo. O caso lhe fizera vibrar a fibra adormecida do seu temperamento romântico. A visionária sentiu-se empenhada na sorte dramática daquela mísera e formosa heroína de uns amores tão desgraçados.

Não se fartava de contemplá-la.

Ambrosina tinha febre. Haviam-na obrigado a mudar de roupa, friccionaram-lhe o corpo com aguardente envolveram-lhe os pés feridos em panos velhos de linho. E ela, de olhos fechados, com a respiração alterada, gemia de leve, no entorpecimento do seu estado.

A cama era larga, de casados; uma velha cama de madeira escura, alta do chão uns quatro palmos, e com imensa cabeceira guarnecida de maçanetas. A pálida enferma, meio envolvida nos lençóis, tinha uma postura dolente, a cabeça afogada na sombra macia dos cabelos, o colo oprimido e a garganta cheia de suspiros. Estava derreada sobre o lado do coração, o braço direito caía-lhe negligentemente ao comprido do corpo, e o outro se estendia para fora da cama, com a mão aberta na posição de pedir esmola.

Laura contemplava tudo isso, como se tivesse defronte dos olhos uma bela obra de arte Via atentamente a cor e a forma, parava, embevecida, a considerar os pequeninos detalhes, e teria ímpeto de reproduzir, na tela ou no barro, aquele modelo, se na sua pobre educação houvesse entrado a pintura ou a estatuária.

Depois de longo contemplar, não resistiu ao desejo de corrigir: Puxou mais para o ombro a cabeleira de Ambrosina, chamou-lhe o braço direito para o colo, endireitou as dobras da camisa e dos lençóis; e então afastou-se um pouco e mirou-a, cada vez mais embevecida, com os olhos apertados e a cabeça vergada, como uma artista que se revê na sua obra. Não se podia furtar à poética impressão que lhe causava a amante de Gabriel. Seu pai já lhe havia falado nela, mas da vida de Ambrosina, Laura só conhecia as exterioridades, que todavia nenhum valor teriam a seus olhos sem o concurso da paixão de Gabriel, que lhes dava um forte gosto de romance, ligeiramente apimentado pelo trágico elemento da sanha do marido louco. Ambrosina havia se imposto ao seu espírito e ao seu coração pelos mesmos processos que Bonaparte, com a diferença, porém, de que este tanto mais avultava quanto mais longe se perdia nas sombras do desconhecido, ao passo que a outra crescia agora de súbito com a sua aproximação.

Quantas vezes, depois de enervante leitura de algum livro sobre o legendário aventureiro, não ficava a pobre sonhadora tomada na sua obscuridade por um sentimento desconhecido e indefinível que a arrebatava para o mundo fantástico das glórias?... Nessas ocasiões, aproveitando o cair do sol, ia ela assentar-se à beira do mar, defronte da casa, com o livro esquecido entre os dedos.

Aí permanecia horas mortas, a olhar abstratamente para o segredo murmuroso das águas, alheia inteiramente a tudo que a cercava, e presa de um sofrimento ao mesmo tempo amargo e doce, que a fazia chorar.

Qual era a dor que se apoderava da mísera criança? Ela mesma não o sabia dizer. Sentia que o coração lhe soluçava, sentia que de dentro lhe partiam reclamos e aspirações desejava e queria, mas não podia dizer o quê! Em sua imaginação havia-se formado um mundo de quimeras, com uma existência de dores e prazeres ideais, mas tudo vaporoso, fugitivo, confuso como um sonho.

E Napoleão representava sempre o principal herói dos seus enlevos. Variavam as circunstâncias, variava o cenário, mas o vulto misterioso do Cativo de Santa Helena estava, embrulhado no seu capote de batalha, o ar profundamente frio, o gesto pavoroso, o olhar cheio de predestinações.

E, o que é mais estranho, Laura, no capricho dos seus arroubos, achava sempre meio de reunir e conciliar os personagens, os fatos e os lugares mais incongruentes e desencontrados.

Lera a «Graziela» de Lamartine, e o sentimento de tristeza que a arrebatou com semelhante leitura, bem longe de possuir a ingênua melancolia da procitana apaixonada, levou-a a edificar um dos castelos do seu mundo fantástico nos rochedos de Ischia. E aí mesmo, nesse castelo suspiroso e poético, o encapotado Cativo de Santa Helena penetrou despoticamente para tomar o melhor lugar.

Um dia, depois de reler aquela obra, Laura encostou-se à janela, olhando vagamente para as águas.

Um italiano, que para à rua com o seu realejo, principia a moer a «Marselhesa». A tarde precipitava-se no crepúsculo, e enchia a natureza de tons melancólicos e doloridos.

Laura conhecia algumas passagens da revolução francesa, narradas enfaticamente pelo autor de «Graziela», na «História dos Girondinhos». E aquela pobre música, arrancada de um realejo por um mendigo, foi o bastante para arrastá-la ao seu mundo fantástico. E então, sob o poderoso domínio do sentimentalismo retórico da Marselhesa, a infeliz caiu vítima de uma crise muito mais forte que as anteriores.

As lágrimas saltaram-lhe dos olhos e o coração lhe palpitou com veemência.

Teve uma terrível noite de febre e de ansiedade. O pai e a avó viram-se aflitos. O médico cobria-os de perguntas, e olhava atentamente para os olhos expressivos de Laura.

-Não é nada... dizia ele depois, em particular ao cocheiro.

E segredou-lhe alguma cousa ao ouvido.

-Não! Não! respondeu Jorge. Isso foi logo que ela entrou nos quatorze anos... Hoje está com dezesseis.

-Ela tem algum namoro?...

-Qual!... Teve um, mas foi tolice de criança; passou!

-Entretanto, aquilo pode converter-se em seria... É preciso casá-la.

Desde esse dia, Jorge vivia preocupado com a idéia de casar a. filha. Mas não achava jeito de tocar-lhe no assunto.

Além disso, coitada! Pensava o bom homem; a quem diabo iria ela escolher para marido?... A pobre rapariga só conhecia gente, que lhe podia encher as medidas!

Laura estava, com efeito, na crise fisiológica em que as aves cantam, e ter-se-ia dedicado exclusivamente a preparar o seu ninho, se, como dizia o pai no seu rude bom senso, houvesse por ali algum rapaz que lhe enchesse as medidas.

O vela de Sebo, apesar de toda a sua semelhança com Bonaparte, fora posto à margem, desde que ultimamente dera para emborrachar-se aos domingos. Laura, pois, não tinha a quem dedicar os gorjeios da sua puberdade. Seu canto de amor ficou sem resposta e transformou-se em gemidos, que foram cair aos pés de Ambrosina, como um tesouro sem dono.

Eis em que condições olhava, embevecida, a filha do cocheiro, para aquele formoso ser que permanecia prostrado sobre a cama.

No quarto reinava o silêncio triste das noites de chuva, só se ouvia a conversa monótona de Jorge, que na sala próxima tomava café com Alfredo, servidos pela velha Benedita.

Fez-se mais tarde, e Jorge, depois de cuidado o hóspede, disse aos seus que se recolhessem.

Teve-se de armar uma cama para Alfredo, na sala de visitas; Laura dormia ao lado de Ambrosina, no mesmo leito.

Daí a meia hora, estavam todos acomodados. Laura fechou as portas do quarto, soltou os cabelos e despiu-se. A amante de Gabriel continuava a dormir. A menina assentou-se perto dela, quedou-se a contemplá-la com um olhar profundamente meigo.

A espaços, leves suspiros entreabriam os lábios da adormecida.

Laura vergou-se sobre ela e deu-lhe um beijo.

O implacável alfinete

Foi uma noite de insônia e divagações para a filha do cocheiro.

Logo que ela se deitou ao lado de Ambrosina, sentiu um estremecimento nervoso encrespar-lhe a dourada penugem do corpo. Encolheu-se toda, como uma rola acariciada.

A luz frouxa de uma lamparina de azeite derramava-se no quarto, deixando perceber confusamente os objetos.

Laura, apoiada sobre o cotovelo esquerdo, amparando a cabeça com a mão, tinha, no gracioso abandono íntimo do leito, um profundo ar de enlevo e de melancolia. O colo, meio descoberto, aparecia-lhe através das modestas rendas da camisa, em toda a deliciosa frescura da sua virgindade. Os cabelos caíam-lhe em torno do pescoço, fazendo-lhe destacar a palidez do rosto. A boca, semi-aberta, deixava passar um sorriso amargo e ansioso. Viam-se-lhe os dentes brancos, mais brancos na meia sombra que lhe banhava as feições, e os olhos negros, mais negros no luzir daquele anseio.

Ambrosina, a princípio sossegada, começava a agitar-se, e a dizer palavras destacadas e sons inarticulados. Era o delírio da febre.

Laura tomou-lhe nas mãos a cabeça e pousou-a em seu colo. A enferma abriu os olhos e encarou-a surpreendida, mas o seu olhar era doce como o beijo de amor.

Laura sorriu, assentou-se melhor na cama e puxou de todo Ambrosina para o regaço. Esta, mole de fraqueza, deixou-se-lhe cair sobre as pernas, cingiu-lhe com um dos braços a cintura. Tinha os olhos fechados, a respiração convulsa; a outra lhe acarinhava os cabelos e lhe afagava o corpo, como enfermeira amorosa.

E a noite absorvia no seu negro silêncio aquele mistério de ternura. Ouvia-se a voz sibiliante dos ventos, que esfuziavam por entre as ripas do telhado, e o marulhar monótono da costa, cujas ondas morriam ali perto, à pequena distância da casa.

Ambrosina, afinal, serenou e adormeceu tranqüila, abraçada estreitamente à doce companheira.

No dia seguinte, estavam muito amigas e muito unidas. Aquela, entretanto, continuava prostrada pela febre. Jorge, por conta própria, resolveu chamar o patrão, o Médico Misterioso, para ver a enferma.

Alfredo retirou-se muito cedo para as suas obrigações desfazendo-se em agradecimentos e protestos de estima; a velha Benedita pôs-se em ação, para tratar do almoço e dos arranjos da casa, e Laura encarregou-se de prestar à enferma todos os cuidados que a moléstia exigia.

Era de ver a solicitude, o amor, com que a carinhosa enfermeira trazia o caldo à sua bela valida. Laura punha nesses pequeninos serviços todo o segredo da sua meiguice. Que mimo nas palavras! Que graça no repreender a doente por fazer cara feia ao remédio!

Ambrosina pagava esses desvelos com beijos. Laura fazia-se então vermelha e uma ligeira vertigem lhe entrecerrava as pálpebras.

Pela volta das quatro da tarde, apareceu Gaspar e receitou, a despeito dos protestos da doente.

Ficou de voltar.

Ao sair, notaram-lhe um olhar estranho. Gaspar ia preocupado. No dia seguinte, depois da segunda visita à casa do seu cocheiro, chamou a este de parte e disse-lhe:

-Jorge! Creio que tens bastante amor à tua filha.

-Está claro, patrão! Por quê?

-Porque vais perdê-la, se a deixares na companhia de Ambrosina.

Jorge abriu os olhos e ficou pasmado.

O pobre homem não compreendera.

Entretanto, duas semanas depois que Ambrosina se achava hospedada pelo pai de Laura, Gabriel vagava pelas ruas, a passo frouxo; mãos cruzadas atrás, o chapéu derreado para a nuca, o olhar caído, e por toda a fisionomia uma grande expressão de tédio.

Ao primeiro golpe de vista, percebia-se logo que alguma agonia profunda lhe pungia o coração, que uma idéia fixa se lhe havia agarrado ao cérebro e lhe chupava os miolos, como caranguejos aos dos cadáveres de náufragos, que o mar vomita à praia.

O caranguejo que lhe chupava os miolos era a lembrança de Ambrosina. O desventurado não conseguia furtar se à tensão dolorosa, que a linda malvada lhe impunha ao espírito com a sua ausência. Tudo lhe trazia a idéia dela. Um perfume, um trecho de música, uma frase, um modo de olhar, um tom de rir; tudo era pretexto para mil recordações, mil desejos, mil ânsias de amor despedaçado.

E Gabriel admirava-se até de que houvesse homens que tivessem conseguido viver até ali, sem nunca experimentarem a deliciosa intimidade do amor de Ambrosina. Como lograriam esses desgraçados não morrer de tédio, ficando sempre na ignorância dos mistérios daquela carne, do gosto daqueles lábios, do encanto daquele colo e da atração do abismo daqueles olhos, negros e profundos como a noite?...

E a pensar nestas cousas, esquecia-se de tudo e desabava num desânimo sombrio, em cujo fundo de charco estava a idéia do suicídio.

Morrer! É tão doce cuidar em morrer, quando se tem um duro desgosto ferrado ao coração!... É tão grato ao espírito, sobrecarregado da mais bela dor, pensar num imperturbável descanso.... É tão leve a morte, quando a existência nos pesa como grilhetas... E por que não haveria ele de morrer? Acaso deixaria na terra alguém que vivesse da sua vida!... Teria ele mãe, porventura, que ficasse com o coração para sempre rasgado de meio a meio? ou pelo menos alguma tímida irmã, cuja inocência caísse ao desamparo defronte do cadáver do irmão? A quem, pois, prejudicaria com a sua morte?... A ninguém! Gaspar, por muito seu amigo que fosse, haveria de conformar-se com ela, e de resto já tinha o sentimento petríficado pelas dores velhas! Sim, o seu suicídio era lógico e necessário; era, daquele seu indigno desespero, a única saída que não ia dar vergonhosamente aos pés de Ambrosina!

-Era preciso morrer!

E, caminhando pela rua, ia amadurecendo esta idéia, com que se propunha destornilhar a outra do seu pobre espírito cansado.

Sim! Pensava ele; era chegar à estação das barcas de Niterói, tomar a primeira destas que aparecesse, fazer-se ao largo e, quando tivesse a certeza de não o poderem salvar -Zás! Um mergulho na baía! E pronto!

Sim, porque no fim de contas, a morte, nas suas circunstâncias, era inevitável! Ele só poderia continuar a viver em companhia de Ambrosina; ora, Ambrosina era simplesmente uma mulher indigna, uma mulher infame!

E ele, apesar de saber disso, amava-a cada vez mais... Logo, ou Ambrosina tinha que regenerar-se, o que seria muito difícil; ou ele tinha de morrer, o que era facílimo! Por conseguinte, não havia refletir -Era aviar!

E Gabriel encaminhou-se para a ponte das barcas de Niterói.

Ia perfeitamente resolvido a morrer; mas, pelo caminho, à medida que se aproximava do seu triste destino, assistia-lhe um estranho interesse por tudo que o cercava. Ele, que naqueles últimos tempos não ligava importância a cousa alguma, sentia agora reviver no seu organismo, mais forte do que nunca, a sensação do mundo exterior. A gente que passava, homens, mulheres e crianças, todos lhe prendiam a atenção diretamente, como se de súbito em cada um deles descobrisse a seu respeito íntimas correlações na luta pela existência.

E quanto mais se avizinhava da morte, mais preso se sentia à vida, sem coragem todavia para arrostá-la de frente. E, cheio de inveja por todos aqueles destinos que pela última vez lhe passavam fugitivamente defronte dos olhos, comparava com eles a sua sorte e, sucumbindo por dentro à compaixão de si mesmo, julgava-se a mais desgraçada e desprezível das criaturas humanas.

Sim! Era preciso morrer!

-Além disso, considerava o mísero, afirmei a Gaspar, sob palavra de honra, que partiria com ele para a Europa dentro de poucos dias; jurei igualmente que nunca mais me aproximaria de Ambrosina, e não tenho ânimo de ir, nem de ficar aqui sem ela!

E caminhava resolutamente para o ponto das barcas.

-Sim, sim, disse-lhe então dentro uma voz assustada e débil, que vinha do fundo do coração; tudo isso é verdade, mas tu bem podias dizer adeus àquela infeliz, antes de partires para sempre... Ela, coitada, está muito mal, e talvez se reanimasse um pouco só com saber que o teu último pensamento lhe foi consagrado... Seria uma obra de caridade!

-Nada disso! intervinha por sua vez a Razão, com uma voz terrível. Nada de imprudência! Se lá fores, será capaz muito de perdoar tudo e... Adeus, dignidade! Adeus vergonha!

-Juro-te que não! replicava o Coração, sempre com a sua vozinha hipócrita; prometo que não havemos de demorar ao lado d'Ela! Aquilo é chegar, fazer as despedidas, e pedir as suas ordens para o outro mundo!

-Sim! Sim! bradava a Razão. Já te conheço as lábias, meu finório! Não é a mim que embaças! Está bem aviado quem se guiar por ti!

E o Coração protestou, jurou, suplicou, e afinal começou a soluçar.

A Razão reagiu ainda, apresentou seus melhores argumentos; mas o diabo do Coração, tanto fez, tanto chorou, tanto prometeu, que a tola da Razão teve de ceder, e Gabriel tomou o caminho da Praia do Russell.

E o rapaz, desde que se resolveu a ver pela última vez Ambrosina com pretexto de despedir-se dela, sentiu um grande alívio em todo o seu ser, e logo um suave contentamento a refrescar-lhe a alma; mas a Razão, que continuava de nariz torcido, aproveitou-se da distração dele e tirou sorrateiramente do seio um alfinete.

Gabriel não deu por isso e lá ia aos encontrões pela rua, procurando acompanhar a sua fantasia que, mal tomara o tímido aquela resolução, partira na frente, a galope, para junto de Ambrosina. E, donde estava, via-se ele já ao lado dela, sentindo-lhe o aroma e a doçura.

Imaginava então entre os dois um mudo encontro orvalhado de lágrimas. Ele afinal balbuciara o Adeus supremo, envolvendo-a num beijo de toda a alma, sombrio, imenso e silencioso como a própria morte que o esperava lá fora.

-Perdoa! exclamaria ela.

-Não! Eu te amo muito, para que te possa perdoar! Eu tudo sofreria, tudo resignado aceitaria de ti contanto que nunca foras senão minha!

-Perdoa! Perdoa!

-Não! Ouve! Ouve, porque nunca mais nos veremos! Hei de antes de partir atravessar esse coração de pedra com um centelha da minha dor! hei de levar uma gota de fel ao íntimo do mármore da tua indiferença! hei de verter dentro de tua alma a minha lágrima mais sentida, mais amarga e mais ardente! E essa lágrima há de envenenar-te a alegria, há de rasgar-te as entranhas, porque vai armada com todas as garras do ciúme! No meio das tuas orgias, na febre das tuas noites de devassidão, há de essa lágrima cruel queimar-te os olhos e afogar-te o riso na garganta!

-Perdoa, Gabriel!

-Não! Eu não sou Cristo, para te perdoar; nem tu és Madalena, para te arrependeres! Cristo perdoou sempre, porque nunca o trairam no seu amor! Amasse ele uma mulher como eu te amo, e, quando a tivesse junto ao peito, lhe cravasse ela o dente da perfídia, que ele a havia de esmagar com o pé, ou não seria homem! Tudo se perdoa, menos a traição do amor!

E Gabriel estugava cada vez mais o passo, enquanto seus doidos pensamentos prosseguiam na cena imaginária.

Ambrosina já não dava palavra, soluçava devorada de remorsos, ansiosa de perdão.

As lágrimas corriam-lhe quentes e apressadas dos olhos, como um desfiar de aljofar.

Gabriel gozava de imaginar aquela dor. Via-se altivo, e a ela sobranceira.

Depois, Ambrosina atirava-se-lhe aos pés, ofegante, pedindo-lhe por amor de Deus uma carícia. E o desgraçado, à vista daqueles olhos, daquela boca e daquele colo, reconstruía vertiginosamente toda a felicidade perdida, e rolava em delírio nos braços da perjura, exclamando entre beijos:

-Eu te amo -Eu te amo! Suma-se tudo que não seja nosso amor! Vivamos somente para nós! Esqueçamo-nos do resto do mundo, fechados um para o outro!

Mas Gabriel, ao chegar a esta conclusão do seu desvario, estremeceu e estacou em meio da rua, como se por dentro lhe picasse uma víbora.

Era a Razão, que continuava de alcatéia, e lhe ferrava na consciência a primeira alfinetada.

Ele passou a mão pelos olhos, corou, e disse entredentes:

-Não! Juro que serei forte! Juro que terei brio!

Havia chegado defronte da porta de Jorge.

Bateu na rótula.

O dente de coelho

Veio abrir a velha Benedita.

Gabriel arquejava.

A sua aparição, ali na casa do cocheiro, produziu alvoroço, tanto em Ambrosina, como em Laura. Esta, porém, retirou-se discretamente, deixando os amantes em completa independência, e a outra tratou de esconder a sua comoção.

Toda a retórica, que o rapaz tinha alinhado previamente em seu espírito, como quem prepara a artilharia para uma batalha, espalhou-se e voou desfeita ao primeiro olhar de Ambrosina. Ao tomar nas suas mãos a mãozinha branca e suave da formosa moça, nem mais se lembrava ele de uma única palavra de imprecação. Foi com o aspecto triste e combalido que a contemplou da cabeça aos pés.

Assentaram-se defronte um do outro silenciosamente.

-Então, sempre lhe mereci uma visita?... disse ela com frieza, para principiar a conversa.

-Venho despedir-me... respondeu Gabriel, quase em tom de quem pede desculpa.

Ali, parecia ser ele o delinquente, e ela a queixosa.

-Despedir-se?... perguntou Ambrosina, evidentemente surpreendida com as palavras da visita, mas dissimulando a sua surpresa.

-É! balbuciou ele; vou partir...

-Eu já o sabia... disse a ensoneira, com ar de pouco caso.

-Como já sabia!

-Tinha um pressentimento...

-Ah!

-E calaram-se.

-Vai para muito longe?.. perguntou ela depois, cerimoniosamente.

-Não sei... creio que sim

-Não tem destino então?

-Ignoro ainda aonde irei parar!

E Gabriel teve um olhar sinistro.

-Deixou isso naturalmente ao cuidado do padrasto, observou ela, chamando aos lábios um rizinho zombeteiro.

-Não! volveu Gabriel; eu vou só.

-Ambrosina estremeceu.

-Só! Então não vai em companhia do Médico misterioso?

-Não.

-Mas que significa essa viagem?...

Gabriel ergueu-se, foi até à cadeira de Ambrosina, tomou as mãos desta, e disse arrebatadamente:

-Significa que não posso viver ao teu lado, e não posso viver sem ti! Significa que sou o mais desgraçado dos homens, e tu a mais cruel das mulheres!

-Tudo isso é falso...

-Ah! Descansa, que, ainda mesmo se me fosse possível ligar-me de novo a ti, eu não o faria! É preciso que eu nunca mais te veja, é preciso que eu arranque do coração todo este vergonhoso amor que me devora! Acha-se nisso empenhada a minha dignidade! Irei, seja lá para onde for, contanto que me afaste de ti!...

-Eu irei contigo! disse Ambrosina..

-Cala-te! Não sabes para onde me destino!...

-E o que me importa a mim o destino? Acaso tenho tido na vida alguma generosa estrela que me conduzisse para o bem?... O que posso eu temer de uma viagem, seja qual for, ao lado do homem que amo, do único que até hoje amei?... Sim, meu Gabriel, nós iremos juntos, unidos, inseparáveis, como dois amantes malditos, como os dois primeiros pecadores de amor enxotados sobre a terra!

Gabriel ouvia, sem dar uma palavra.

Ambrosina prosseguiu, depois de uma pequena pausa:

-Quanto me alegra o que acabo de ouvir da tua boca. Se te acompanhasse teu padrasto, não pensaria eu em seguir-te; desde porém que vás só, serei tua companheira fiel, a tua doce amiga, a veladora da tuas noites de estudo, porque precisas trabalhar, trabalhar muito, e eu te animarei o esforço com todos os desvelos do meu amor. Oh! Quanto me sinto agora radiante de felicidade! Já não sofro! Já não choro! Raiou-me no coração a aurora de uma nova existência... Vou nos teus braços gozas, enfim, a paz com que eu nestes últimos dias sonhava, de um lar fecundo, abençoado e casto!

-Todavia, disse Gabriel, com um fundo suspiro; bem diversa da tua, é a paz por mim sonhada...

-Hein? Não te compreendo!

-Eu não devo continuar a existir... Adeus. Se algum dia...

Não pôde concluir. Ambrosina atirou-se-lhe nos braços.

-Vais morrer! Vais morrer, Gabriel? E é para isso que te despedes de mim!... Mas, ingrato! tens tu a coragem de abandonar-me, sabendo quanto eu te amo?! Egoísta! Vais morrer, vais descansar, enquanto eu cá fico para sofrer, para morrer todos os dias e a todos os instantes!

E desviando-se dele, acrescentou:

-Podes ir! Vai! Mata-te! Afinal nenhuma obrigação tens de ficar ao meu lado! Eu é que jamais devia ter contado com o teu amor! Quem me mandou ligar a ti a minha felicidade, a minha vida e todas as minhas esperanças? Vai! Vai! Cá me fica nas entranhas alguém que te represente!

-Que queres dizer?! exclamou Gabriel, segurando-lhe os pulsos, e ferrando-lhe um olhar alucinado.

-Sou mãe! resumiu Ambrosina.

Gabriel abraçou-a pela cintura, e deu-lhe um beijo na testa.

-Não! Já não morrerei! Serei o pai de meu filho!

-Mas... partiremos?

-Sim, nem podia ser de outro modo... Prometi a Gaspar não voltar a teus braços; confessar-lhe, frente a frente, que me faltou coragem para cumprir a promessa, seria impossível! Prefiro fugir.

-Então, sairemos do Brasil, não é verdade? Iremos por aí afora, numa peregrinação de boêmios felizes. Depois de percorrermos toda a Europa, armaremos em Paris a nossa tenda... Tu serás meu, exclusivamente meu! Tomaremos um modesto alojamento no Bairro Latino; tu te farás muito trabalhador e muito estudioso, e eu um modelo de economia e de simplicidade! Mas convém que o Gaspar não desconfie absolutamente desses nossos projetos e para isso, segredava Ambrosina, abaixando a voz; eu não voltarei à casa, e ele suporá que continuamos brigados... Entretanto, tu cuidarás o mais depressa possível do que pudermos precisar, e dentro de poucos dias, estaremos de viagem! Hem? que te parece?... E pensavas em morrer!

Gabriel olhava para ela com ar idiota. Sua consciência dizia-lhe de dentro que tudo aquilo era mau, era infame; afinal estava o ingrato a conspirar, de parceria com uma mulher sem dignidade, contra o único homem que até aí se mostrara deveras seu amigo e concentrara nele toda a sua família.

E tão seguramente reconheceu Gabriel a razão deste raciocínio, que não se animou desta vez a discutir com a ralhadora da consciência; e, para escapar à maldita voz que o acusava por dentro, pôs-se a pensar nas delícias que lhe oferecia o projeto de Ambrosina. As viagens e os prazeres em companhia dela passaram-lhe pelo espírito num turbilhão vertiginoso; e ele, sem idéia justa de tudo quanto tinha a gozar, via a projetada existência através de um nevoeiro espesso dentre o qual sobressaía sempre o vulto formoso da amante, esse perfeitamente nítido, a estender-lhe os braços nus. Paris, Londres, Madri, surgiam-lhe na mente, como vistas teatrais numa apoteose de seu amor.

-Então? perguntou Ambrosina, afagando-lhe os cabelos; pensas ainda em morrer?

-Não! respondeu Gabriel, acordando. Daqui mesmo vou tratar da nossa viagem...

-Pois bem, vai. Mas lembra-te que toda a cautela é pouca! Entendo até que não precisamos fazer provisão de cousa alguma, a não ser de dinheiro... Isso, sim, é que é necessário levar bastante. Meu falecido pai dizia que o dinheiro é a guerra do homem civilizado.

Gabriel fazia cálculos silenciosamente.

É verdade! -sugeriu Ambrosina. E como embolsarás uma quantia maior sem a intervenção de teu padrasto?...

-Isso é o menos! É só encher um cheque contra o banco e terei o dinheiro que quiser! Quanto será necessário?...

-Sei cá! Em todo caso filho, antes de mais que de menos... Não por mim, mas por ti mesmo. Além disso, pelo fato de estar o dinheiro em teu poder, não quer dizer que o gastaremos todo...

-Creio que, se eu levar vinte contos de réis, não precisaremos recorrer tão cedo ao Brasil...

-Decerto. Isso nos dará para passar uma existência inteira!

-Bem! rematou Gabriel, tomando o chapéu e despedindo-se da amante com um beijo. Estamos combinados! Vou tratar da viagem!

Ambrosina, da janela, acompanhou-o com a vista por algum tempo; depois passou ao quarto imediato, onde encontrou Laura atirada sobre a cama, desfeita em pranto.

Apoderou-se dela

-Então! disse sorrindo. Que asneira é essa?... A menina escondeu o rosto, e chorou mais forte.

A outra insistiu nas suas carícias. Tinha a voz meiga e suplicante, e afetava infantis pieguices.

-Então meu benzinho? Não queres responder à tua amiguinha? Vamos! Fala!...

-Tu te vais embora! balbuciou Laura entre soluços.

Ambrosina beijava-lhe as lágrimas.

-Tolinha! Sabes lá o que estou fazendo! Já não te disse que só a ti amo neste mundo?...

-Mas vais-te embora!

-E tu te sentirás muito com a minha ida?...

A outra respondeu beijando-a repetidas vezes. Ambrosina pensou um instante, e disse depois com firmeza:

-És tu capaz de fugir comigo?

-Sou! respondeu Laura, olhando-a de frente.

-Pois então, fica na certeza de que iremos juntas! Mas... (E fez sinal de silêncio) se deres a alguém uma palavra sobre este assunto, está tudo perdido!...

Laura batia palmas de contente. Uma viagem misteriosa era todo o seu ideal. Não era aquele precisamente o rapto com que ela sonhava, mas em todo caso era um rapto.

-Bom, disse Ambrosina. Temos ainda o que fazer para levarmos a efeito o nosso belo projeto... Dá-me papel e pena.

Laura obedeceu.

Ambrosina passou-se para uma mesinha ao canto do quarto. E aí sentada, na meditativa posição de quem se concentra numa complicada idéia, embebeu a pena na tinta, olhou atentamente para a brancura do papel e, afinal, escreveu o seguinte:

«Melo Rosa,

Já falei ao Gabriel, e ele está pela viagem; aparece-me para tratarmos do que tínhamos combinado. Se puderes vir hoje mesmo, será melhor. Eu estou na casa de Jorge, cocheiro do Gaspar. Já sabes onde é. Amo-te! Vem».

A assinatura era um rabisco.

-Mas o que queres fazer com essa carta?... perguntou Laura.

Aí é que a cousa tem dente de coelho! disse Ambrosina, piscando um olho.

Laura abriu muito os dela, e sacudiu os ombros.

-Descansa, que eu sei o que estou fazendo... acrescentou a outra, terminando o sobrescrito.

E tratou de remeter a carta ao seu destino.

Diabólica estratégia

As palavras do Médico Misterioso a respeito de Laura traziam ultimamente o pai desta em constante preocupação.

Por que seria que o Dr. Gaspar tanto receava da convivência de D. Ambrosina... matutava o bom homem. Está claro que ela não era nenhum favo de inocência, mas também não seria tão malvada, que só por gosto, lhe fosse agora perder a filha. Em todo o caso, convinha estar de alcatéia, porque lá dizia o outro: «Mais vale prevenido no mar, que desprevenido em terra!»

Ora, D. Ambrosina, considerava ainda o cocheiro; o defeito que tinha era ser um tanto doida; por mau coração não havia que lhe dizer, coitada! Que ele sabia de atos de caridade praticados por ela. Lá o fato de achar-se unida ao Gabriel, isso nada punha, porque a moça afinal precisava do auxílio de algum homem... E por que razão se achava ela hospedada ao lado de Laura? Seria por cálculo ou por maldade?... Não decerto; era puramente à força de circunstâncias.

E Jorge concluía com esta frase:

-Aquela, mais dia menos dia, é vítima do demônio do doido!

Quando lhe constou a visita de Gabriel, o homem ficou mais tranqüilo, na esperança de vê-los brevemente juntos e longe da pequena. Resolveu deixar que as cousas Corressem por si. Que pressa havia agora em afastar a pobre de Cristo, se o seu moço já se havia entendido com ela, e em breve a levaria consigo? Quanto à burla da gravidez, ele nada sabia.

A visita do Melo Rosa efetuou-se no mesmo dia em que Ambrosina lhe escrevera. Haviam os dois muito antes combinado o plano de larapiar de Gabriel uma boa quantia, fugindo ambos em seguida. O amante traído pagaria à sua custa os meios da traição.

Mas o cocheiro, que andava de orelha em pé, bispou de qualquer modo os projetos de Ambrosina e, revoltado na sua surpresa, tratou de destruí-los.

A sua primeira idéia foi de contar tudo a Gaspar, hesitou, porém. -Quem sabia lá se aquela revelação não iria dar motivo a qualquer fato lastimável?... Contudo, não lhe podia sofrer a paciência que o velhaco do Melo abusasse, assim sem mais nem menos, da boa-fé do pobre Gabriel, a quem Jorge deveras apreciava.

-Nada! concluiu ele. Quero que um raio me parta, se eu não desmanchar esta pouca vergonha!

E foi à procura do patrão, com o desassombro de quem vai resolvido a cumprir o seu dever.

Gaspar não estava em casa, e Jorge não queria entender-se diretamente com Gabriel; este, porém, com tal ansiedade lhe falou de Ambrosina, tão impaciente se mostrou pelas notícias delas, que o pobre do homem, depois de coçar a cabeça, torcer o chapéu entre as mãos e limpar o suor da testa, exclamou:

-Com todos os diabos! A verdade diz-se!

Gabriel assustou-se.

-É que não posso ver ninguém iludido! Despejou o cocheiro. Sei que vossemecê projeta uma viagem com D. Ambrosina, e sei também que o Melo Rosa anda a desencabeçar a moça para não ir!

-O Melo Rosa?... Mas que diabo pretende esse tipo?

-Ora, o que há de ser? Quer que a Sra. D. Ambrosina, em vez de acompanhar a vossemecê, fique na companhia dele! Aí está!

-E Ambrosina o que diz?...

-Isso lá é que não sei! Tola será ela, se largar um moço formado, bem parecido, bom e rico, como vossemecê, por um troca-tintas daquela força!

-Tu não sabes o que são as mulheres, Jorge!

-O que lhe afianço é que faz tudo, o tratante, para seduzi-la. Tenha a bondade de ler esta carta...

Gabriel leu no papel que lhe passou o cocheiro:

«D. Ambrosina.

Apesar de me haver a senhora proibido falar-lhe sobre qualquer assunto; apesar de ter confessado que me aborrece, eu não desisto das minhas esperanças, e venho ainda uma vez pedir-lhe, de joelhos, que não acompanhe o G*** e siga comigo para onde melhor lhe parecer em toda e qualquer parte do mundo. Os recursos pecuniários para a viagem não faltarão, porque, como saberá, acabo de ser largamente premiado pela loteria. E estará à sua disposição, desde que a senhora assim o decrete com uma simples palavra.

Espero a sua resposta até depois de amanhã. - Melo Rosa».

-Esse «depois de amanhã» é hoje, disse Jorge, porque esta carta chegou anteontem.

Gabriel ficou pensativo, mas no íntimo sentiu-se feliz com aquelas palavras; provavam-lhe elas que a requestada repelia o Melo.

Entretanto, tudo era arranjado pela própria Ambrosina; foi ela quem imaginou a carta, quem a escreveu e quem a pôs ao alcance do cocheiro, calculando que este desconfiado como andava, a iria mostrar logo ao patrão, e o patrão ao enteado.

Gabriel resolveu ir dali mesmo à Praia do Russell.

-Olhe, Doutor, disse-lhe Jorge; pode vossemecê contar comigo para o que der e vier! Se for preciso que o velhaco do tal Melo não importune, é só mo dizer porque eu me encarrego de tudo!...

-Como assim?

-Descanse, que lhe não tocarei num cabelo! Apenas o que faço é afastá-lo durante o tempo necessário para tratar vossemecê de seus interesses. Depois... ele que esbraveje à vontade! Siga viagem o Doutor com a sua Do.... e o resto fica por minha conta!

Gabriel aprovou a idéia, e conversou demoradamente sobre ela com o cocheiro. Em seguida, foi ter com Ambrosina.

-Estimo que chegasse! exclamou a bela rapariga, a envolver-lhe o corpo com os braços. Não imaginas o que vai por cá! Assenta-te, descansa um pouco, porque tenho cousas muito sérias a comunicar-te...

Gabriel assentou-se, em silêncio. Ambrosina chegou uma cadeira para junto da dele, e, com uma voz misteriosa e cheia de movimentos reservados, disse-lhe:

-Sabes que o Melo, desde aquele dia de loucuras lá em casa, persuadiu-se de que o amo?...

O rapaz meneou afirmativamente a cabeça.

-Pois bem; meteu-se-lhe em idéia que eu devia separar-me de ti para viver com ele!... Aquela peste não se enxerga! Ora, tenho pena de haver perdido uma carta que me remeteu o traste! Guardava-a justamente para te mostrar... Não sei onde a pus! Estou doida de procurá-la! Entre outras banalidades, diz o tolo haver tirado um prêmio na loteria. Querer seduzir-me com dinheiro!... A mim, que tu bem sabes quanto sou desinteressada! a mim, que te amaria da mesma forma, se fosses o mais pobre dos homens! Bem! Eu não dei um passo; nada quis resolver, sem falar contigo... Tu és o senhor de meus atos, e como tal, fica a teu arbítrio fazer o que entenderes!

-Não se fará cousa alguma. Já está tudo determinado. Precisamos é sair hoje mesmo daqui. Estamos com o aluguel de nossa casa pago até o fim do mês. Os trastes foram já vendidos, mas só serão arrecadados pelo dono depois da nossa partida.

-É verdade! lembrou a traiçoeira; na falta de outra casa, podemos ir para a de mamãe. Ela veio ontem visitar-me, e pediu-me que fosse para lá.

-Não, não convém; pois se temos casa própria, para que ir para a dos outros? Além disso, precisamos tratar em plena liberdade de nossa viagem. O Gaspar vai hoje para Nova Friburgo e demora-se alguns dias; amanhã já aí está o vapor, e nós partiremos.

-E se o Melo lembrar-se de perseguir-me lá em casa? Tu não sabes quem é aquele sujeito!

-Não te incomodes com o Melo! A respeito (dele estão tomadas todas as medidas.

-Lembra-me uma cousa nesse caso. Levo a Laura para me fazer companhia até o momento do embarque.

-Bem; mas o que preciso saber é se tu és capaz de escreveres duas palavras ao Melo, convidando-o para ir amanhã lá à casa. Não te assustes, ninguém lhe fará mal!

-Para que é? indagou Ambrosina, rindo, a prever alguma boa partida.

-Já agora te digo tudo com franqueza: O Melo se for amanhã, será delicadamente agarrado e conduzido a um lugar confortável, onde não lhe faltará absolutamente nada, mas do qual só será posto em liberdade depois que tenhamos partido...

-Bravo! Magnífico! Ah! Como o bobo não ficará furioso!

-Mas, escreve-lhe o bilhetinho, não?

-Meu Deus! Quantos quiseres! Tu não pedes, mandas! Podemos escrevê-lo imediatamente.

E, toda expedita e desembaraçada, foi buscar pena e papel.

-Estou às tuas ordens. Podes ditar... disse a finória, assentada já defronte do tinteiro.

-«Melo Rosa, ditou Gabriel. Está tudo arranjado. Amanhã às quatro horas da tarde, me encontrarás em casa, sozinha e pronta para fugir contigo. Fico à tua espera. Não faltes! - Ambrosina».

-Pronto! disse esta. Afianço-te que ele irá.

-Bem! agora dá-me esse bilhete.

-Aí o tens.

E Gabriel guardou-o no bolso.

-A que horas queres que te venha buscar? perguntou ele.

-Logo mais, a qualquer hora... Vem às quatro.

-Pois bem, até às quatro, disse o rapaz, beijando-a na testa.

E meteu-se no carro.

Ambrosina, logo que ele se retirou, correu ao quarto de Laura.

-Prepara-te para ires hoje mesmo comigo lá para casa. Teu pai consente. Mas agora desejo que me ajudes a vestir a toda pressa...

-Onde vais?

-Tenho muito que fazer. Só mais tarde saberás todos os passos que dou por tua causa...

Um pequeno, filho da vizinha, foi chamar um carro, e Ambrosina apareceu pronta na sala.

Rua da Misericórdia..., disse ela em voz baixa ao cocheiro.

O carro seguiu, e vinte minutos depois parava defronte de um grande sobrado antigo, cheio de janelas quadradas.

Era uma casa de alugar cômodos.

-Espere por mim, soprou a moça ao cocheiro, e subiu a longa escada do sobradão.

Atravessou, sem fazer caso, o primeiro e o segundo andar; chegou cansada ao último.

-Qual destas portas será!... pensou ela, hesitando em bater a qualquer das quatro que tinha defronte de si.

Nisto, abriu-se uma delas, e Melo Rosa, vestido de casimira clara, apareceu com um sorriso.

-Ah! pensei que já não viesses! É quase uma hora!

-Não me fales, homem! Uma visita de Gabriel.

-Sim, hem! Mas, vai entrando, filhinha. Não podemos perder tempo: temos muito que falar!

-Uf! fez Ambrosina, atirando-se sobre uma cadeira. Arre! Que esta casa mata uma criatura! Estou a botar os bofes pela boca! Aqui não me pilharias duas vezes!

-Sim! Mas toda cautela é pouca... Nós temos de tratar de negócios, que nos podem meter a ambos na cadeia!...

-Deixa-me descansar um pouco.

-Toma um grogue...

-Dá-me qualquer cousa. Uf!

Melo Rosa serviu-lhe o grogue e, depois de acender um charuto, foi colocar-se ao lado dela.

-Ora, vamos lá a saber em que pé se acham os nossos interesses!...

-Está tudo pronto. Logo mais receberás um bilhete meu, que te marco o nosso encontro definitivo lá em casa, amanhã às quatro horas da tarde...

-Em Laranjeiras?

-Sim.

-E daí?

-Daí é que se torna indispensável que não deixes de ir!

Ambrosina chamava a si a paternidade do bilhete ditado por Gabriel.

-Mas, continuou ela; para que Gabriel não nos embargue a fuga, é mister que, antes de me procurares, já tenhas providenciado sobre ele...

-Como assim?... perguntou Melo Rosa, seguindo com todo o interesse as palavras da rapariga.

-Diz-me uma cousa, Melo! Estás seriamente resolvido a fugir amanhã comigo, ocupando tu o lugar de Gabriel?!...

-Se estou resolvido? É boa! Achas então que eu chegaria a este ponto e recuaria agora defronte de qualquer dificuldade?... Nunca me arrependo do que faço; disse que ia contigo, e irei! Afinal para isso é preciso cometer um crime? Bem! Eu cometerei! O amor fez de mim um ladrão? Seja! Eu roubarei os vinte contos de réis de Gabriel para poder acompanhar-te! Estou resolvido a tudo!

-Ah! exclamou Ambrosina; acredito agora que me ames! Só nestas situações melindrosas, em que jogamos a vida e a honra, é que se pode reconhecer amor verdadeiro; esse que não aceita barreiras, nem conveniências de nenhuma ordem! Eu serei a tua cúmplice, e nunca me arrependerei disso. «Tudo que é inspirado pelo amor, disse George Sand, é sempre belo e sublime!» E foi só o amor que nos inspirou!

-E perguntas ainda se estou resolvido a fugir contigo!...

-Pois bem! assentou Ambrosina, segurando com veemência as mãos de Melo Rosa; para podermos fugir, é necessário que Gabriel amanhã as quatro horas da tarde esteja preso sem lugar seguro donde não possa sair antes de nossa partida... E esse o único meio que temos para não nos ser embargada a viagem!

Melo Rosa concentrou-se.

-E onde será ele encontrado por essa hora? perguntou afinal, depois de uma pausa.

-Onde eu quiser! respondeu friamente Ambrosina.

O que preciso saber ao certo é se te podes encarregar, com segurança, de dar as providências necessárias para que ele seja preso.

-Posso... disse Meio, depois de uma nova pausa.

-Mas, repara bem para o que prometes... observou-lhe a embusteira com um olhar sério. Se não conseguires retê-lo, não poderemos fugir, e tu serás preso como ladrão! Vê lá!

E fez por sua vez uma pausa, para estudar na fisionomia do rapaz a impressão causada por suas palavras.

-Gabriel, prosseguiu ela, conta partir amanhã, comigo pelo transporte da linha francesa. Eu me encarregarei das malas, e ele ganhará a rua logo depois do almoço. Hoje à noite já o dinheiro estará em meu poder. Tens por conseguinte de arranjar as cousas de modo que o bobo às quatro da tarde já esteja preso em lugar seguro, e nós perfeitamente senhores do campo, sem risco de que alguém nos possa tolher o vôo. Passaportes, licenças, bilhetes, tudo amanhã se achará em minhas mãos. Gabriel é muito pouco conhecido, tu facilmente passarás por ele... Se te falta, porém a coragem para tudo isto; se és homem medroso, um homem de meia resolução, melhor será que desde já desistas dos teus projetos. Sem uma boa dose de energia, nada se fará.

-Parece que zombas de mim, Ambrosina! Algum dia já me viste hesitar diante de qualquer embaraço? Juro-te por minha honra que Gabriel, amanhã às quatro horas da tarde, estará incomunicável!

E tu, por essa mesma ocasião, à minha procura lá em casa, não é verdade?

-Sim! Podes ter certeza. Mas ainda preciso do teu auxílio...

-Para quê?

-É preciso que deixes uma carta dirigida ao Gabriel, e que a faças chegar diretamente às mãos deste, amanhã pela volta das duas da tarde.

-Pois não, respondeu Ambrosina, sem conter um sorriso, que lhe provocava a consciência do fato. E assentou-se a uma mesa para escrever.

-Vamos lá! disse ela.

-«Gabriel» -ditou Melo Rosa.

-Nunca o trato, assim, observou Ambrosina; e escreveu, repetindo em voz alta:

-«Meu amor».

-Bem! concordou o Melo. Escreve agora:

«Hoje, às duas horas da tarde, é necessário que estejas presente à penhora que vai sofrer o nosso Jorge. Gaspar acha-se longe e não lhe pode valer. Fui tão protegida e obsequiada por aquela boa gente, que não tenho ânimo de ficar silenciosa em semelhante ocasião. Vai, pois, e socorre-os».

-Agora, assina.

-Espera, disse a rapariga. Preciso acrescentar alguma cousa por minha conta. E escreveu mais:

«Laura não assistirá à constrangedora ação da justiça, porque estará em minha companhia. É urgente que vás; precisamos, como sabes, dos serviços de Jorge para a nossa viagem...

«Escrevo-te, pela impaciência em que me vejo de comunicar-te esta desgraça. Agora mesmo foi que me chegou aos ouvidos tal notícia. Estimarei muito que esta carta seja completamente inútil, e que tu a estas horas tenhas restituído já a pobre família do cocheiro à sua primitiva tranqüilidade.

«Ao menos, em nossa viagem, levaremos ainda na alma o gosto de uma boa ação. Creio que melhor não nos poderíamos despedir da pátria.

«Tua - Ambrosina

-Agora, sim; disse ela, metendo a carta no envelope, depois de ler em voz alta o que escreveu. Pronto!

E subscritou-o com o nome de Gabriel.

Feito isto, a pérfida levantou-se declarando que não tinha tempo a perder. Havia muito ainda em que cuidar!

Melo Rosa queixava-se de que ela fosse assim, sem pagar ao amor os devidos tributos.

-Teremos depois muito tempo para isso, respondeu a visita já na porta do quarto. Coragem e energia, que será bem recompensado!

-Então, nem um beijo, Ambrosina?...

-Nada! Faze por merecê-lo... Adeus.

E, enquanto descia as longas escadas do sobradão, ia ela tecendo consigo as seguintes reflexões:

-Muito bem! Se os dois cumprirem com o que prometeram, amanhã estou eu completamente livre deles e senhora dos vinte contos de réis que me farão muito boa companhia! O Melo prenderá Gabriel, e Gabriel prenderá o Melo! E depois disso, ainda não estarão talvez bem convencidos de que são ambos uns grandíssimos tolos! Ah, homens! homens!

Dia da viagem

Às quatro horas da tarde, Gabriel, como prometera, fazia parar o seu carro defronte da porta do cocheiro Jorge.

Ambrosina esperava por ele já vestida, ao lado de Laura. O pai desta andava fora no trabalho, e a velha Benedita fazia as honras da casa.

Gabriel ajudou as duas raparigas a tomarem lugar na sege. E seguiram alegremente os três para Laranjeiras.

Estavam em princípio de janeiro, num dia quente, e a viração da tarde fazia pensar na sesta preguiçosa e doce.

O carro atravessou a praia e entrou no Catete. Ambrosina tinha entre as mãos uma das mãos de Laura, a quem envolvia toda com um olhar de profunda ternura.

Aproximava-se o carnaval, e as grandes máscaras de papelão, expostas nas vitrinas e às portadas dos armarinhos, davam, com as suas cores absurdas, um aspecto alegre à rua. Viam-se balançar, como bandeiras, as roupas multicores destinadas à mascarada. Mulheres do povo brincavam entrudo com grande algazarra, e um português gordo, em mangas de camisa, queimava bichas chinesas ao lado de um quiosque.

O bairro parecia em festa.

Gabriel, entretanto, ia preocupado. Agora, que se aproximava o momento de partir, caía a pensar constantemente no padrasto. O bom amigo ia ficar sentido com aquela viagem. Mas que fazer?... Estava porventura em suas mãos desmanchá-la?... Perdido por pouco, perdido por muito! Agora, não era possível voltar atrás!...

E, para explicar-se com a consciência, dizia covardemente de si para si:

-Ora! O que tem de ser, traz força!

Ambrosina interrogava-o vagamente sobre o que fizera ele durante o dia.

Gabriel declarou que se achava tudo pronto, mas que encontrara grande dificuldades para obter o passaporte, porque ele não queria anunciar a sua partida, nem queria ocupar tampouco alguma pessoa de confiança que o abonasse.

E, depois de circunstanciar esse e outros fatos, declarou que já se não podiam arrepender... Só faltava embarcar!

-Parece-me que tens pena de deixar o Rio de Janeiro!...

-Que me importa o Rio, contanto que eu te tenha a ti!

E olharam-se com amor.

Laura não dava uma palavra; tinha o olhar disperso. Não se animava de encarar com Gabriel.

Estava cativadora. Vestia linho pardo, debruado de cadarço branco. A flexibilidade do seu corpo desenhava-se bem com aquela roupa inteiriça. Não levava outra jóia além de uma pequenina cruz de ouro sobre o peito. O chapéu de palha de Itália dava-lhe à fisionomia uma doçura admirável. Seria difícil dizer em que ia pensando aquela cabecinha!

E assim chegaram os três à casa de Laranjeiras.

Gabriel havia cambiado sua notas do Tesouro por dinheiro em ouro e saques bancários ao portador. E o esterlino ruído do metal, que ele acondicionava em uma gavetinha de segredo da secretária, fazia estremecer Ambrosina, que ao seu lado o apoquentava com perguntas.

Laura, estendida num divã da sala de visitas, alheia a tudo que a cercava, embalava-se nos seus sonhos, a cabeça caída sobre a almofada, os braços em abandono, os olhos meio cerrados, o pensamento solto.

Gabriel conversava com a amante, a mostrar-lhe o passaporte, o bilhete de viagem; e pouco depois, chegava um homem carregado de objetos que ele havia comprado na cidade, quase tudo roupa branca, mantas, agasalhos e charutos.

Jantaram à noite o que veio do hotel!

A manhã do dia seguinte correu sem novidade. O vapor, por motivos de moléstia do comandante que fora à última hora substitui-lo, só sairia ao pôr do sol. Gabriel andava atarefado; não sabia para onde voltar-se! Tinha ainda tanto que fazer!

Mas Ambrosina o tranqüilizava: Que não se incomodasse ele absolutamente com as malas; ela se encarregaria de tudo. Gabriel que fosse tratar de saber se Jorge tomara as providências necessárias para prender Melo Rosa.

Isso é que mais urgia!

Gabriel, porém, onde poderia encontrar o cocheiro?... Em casa era inútil procurá-lo àquela hora; já passava das onze. Saiu. Foi à residência do padrasto nada obteve. A criada, todavia, disse-lhe que o cocheiro pouco antes ganhara a rua muito azafamado.

-Onde o poderei encontrar agora?...

Gabriel desceu preocupadamente a escada; levava o chapéu atirado para trás, a cara banhada de suor.

Ao chegar à porta, encontrou um portador de Ambrosina à sua espera.

-O que temos? perguntou surpreso.

-Esta carta, que a patroa mandou entregar a vossemecê com toda a pressa.

-Que novidade será?

Era a carta combinada entre Ambrosina e Melo Rosa no sobrado da rua da Misericórdia.

Gabriel sobressaltou-se ao lê-la. Ora, mais essa! O Jorge sofrer aquele dia uma penhora! Era só o que faltava!

-Mas, com os diabos! exclamou ele, consultando o relógio. Não há tempo a perder! Praia do Russell! A toda a força! gritou ao cocheiro, volvendo ao seu carro.

E o carro disparou como um raio.

Apeou-se defronte da casa do Jorge. Um velho de longas barbas, estava assentado ao limiar da porta, saiu-lhe ao encontro e perguntou com ar triste:

-O senhor naturalmente é o Dr. Gabriel?...

-Sim. Que é do Jorge?

-Não me pergunte por ele! Uma grande desgraça!

E o velho limpou os olhos.

Gabriel deu um passo para entrar na casa do cocheiro.

-Não entre! exclamou o outro, sempre comovido. Não está aí ninguém!... A justiça fez a sua visita e não se pode tocar no que lá está! O senhor bem sabe que o Jorge não pode apresentar o dinheiro e...

-Mas, que dinheiro? Que trapalhada é esta? O que tudo isto quer dizer? Explique-se por uma vez!

O velho fez um gesto de tolo, e falou confusamente em penhora, em dívida, em homens armados, mas sem explicar ao certo cousa alguma.

-Cada vez entendo menos! disse Gabriel, já impaciente.

E releu o bilhete de Ambrosina, que tirara da algibeira.

-Uma grande desgraça! respirava de vez em quando o velho, a sacudir tristemente a cabeça.

-No fim de contas, o que faz você aqui?...

-O Jorge disse-me que o esperasse..

-A quem, homem?!

-Ao senhor...

-E para quê?

-Para lhe dizer o que se passou e indicar-lhe o lugar em que ele está...

-Pois, se foi para você dizer-me o que se passou nesta casa que Jorge o deixou aqui, podem os dois limpar as mãos à parede, porque fiquei na mesma! Não haverá por aí alguém com quem me entenda!...

-Não há, não, senhor... Foram todos para a Ilha...

-Que ilha, criatura?

-A ilha dos Cães...

-Mas que diabo foram fazer lá? O que demônio aconteceu aqui?

-Para falar a verdade, não sei, meu rico senhor... Não entendo destas cousas! Sou amigo velho do Jorge... cá estava a cavaquear um pedaço com ele, quando chegam dois sujeitos, armados de tinteiro, pena e papel, e vão entrando, sem mais nem menos, pela casa, a tomarem nota de tudo que encontram... O Jorge pôs-se a chorar como um perdido... Quatro homens, que acompanhavam os do tinteiro, lançam-lhe a mão e o intimam a seguir para a ilha! Ora, aí está tudo o que se passou!

-E ele foi?...

-Foi, sim, senhor! E pediu-me, por tudo, que não saísse aqui da porta enquanto V. S. não chegasse e recebesse o recado...

-Que recado?...

-O recado é que ele pede à V. S. que faça o favor de dar um pulo até lá onde ele está. É questão de um instante! O Jorge deixou um escaler já preparado. Se V. S. quiser, eu o levo e trago num abrir e fechar de olhos!...

Gabriel hesitava perplexo; consultava o relógio e a carteira. Que siginificaria tudo aquilo... A carta de Ambrosina e as vagas palavras daquele velho idiota punham-lhe a cabeça a arder.

-Sabe se, antes da chegada do tais sujeitos, havia o Jorge recebido alguma intimação da justiça?... perguntou ele, depois de um silêncio de alguns segundos.

O velho respondeu que não sabia.

-Ora sebo! gritou o rapaz. Afinal, estou sempre na mesma!

-O Jorge é quem lhe poderá dizer tudo, patrão! Não vale a pena arreliar-se! Se quiser falar com ele, o escaler está às ordens.

Gabriel passeava de um para outro lado, procurando descobrir o fio da meada.

-Ah! exclamou ele de repente. Já sei!

E concluiu de si para si que o Melo Rosa fora prevenido das intenções do Jorge a seu respeito, e engendrara aquele meio de desfazer-se do cocheiro.

-Não é outra cousa... resmungou. Verão que não é outra cousa!...

E, convencido do que pensava, deu um novo curso ao seu raciocínio: Ainda não eram duas horas; o vapor só levantaria ferro às seis e meia... Às três podia ele estar de volta, já entendido com o cocheiro, e apto por conseguinte a tomar qualquer resolução enérgica contra o Melo. Se fosse preciso, podia até queixar-se à polícia... ali andava com certeza grande abuso! O que convinha era prevenir Ambrosina que se acautelasse contra alguma armadilha... O Melo Rosa pagaria caro aquela brincadeira! mas, por então, urgia que Gabriel se entendesse com Jorge...

-Onde está o escaler?! perguntou ao velho.

-Ali mesmo, patrão. É só descermos um pouco... Aqui é costa...

-Mas, preciso de um portador para as Laranjeiras, observou o rapaz, escrevendo um bilhete a lápis, no qual relatava à Ambrosina as suas desconfianças e lhe aconselhava toda a cautela com o Melo. É verdade! O carro em que vim pode servir. Chame o cocheiro.

O bilhete foi expedido, e Gabriel acompanhou o catraeiro até à entrada da praia do Flamengo.

-Aqui está o bote! disse o velho, apontando para um escaler preso ao cais. Isto é decidido! Corre que nem um carapau!

A embarcação, nova e garbosa, balouçava-se voluptuosamente na cadência da vaga.

Fazia um tempo abrasador e cheio de luz.

A baía reverberava ao sol. As montanhas erguiam-se cruamente do seio das águas, que as refletiam por inteiro.

Havia dois homens no escaler. O velho entrou nele agilmente e, depois de ajudar Gabriel a embarcar, assentou-se ao leme, e gritou para aqueles em voz de comando:

-Toca!

Abriram-se os remos, e o bote ganhou a baía arrancando um galão farto de cada vigorosa braceagem dos tripulantes.

Em breve distanciaram da terra, deixando atrás a fortaleza de Villegaignon.

O velho ergueu então a cabeça. O seu primitivo ar de ingenuidade desaparecera de todo, substituído por uma áspera catadura de lobo do mar.

-Ao largo! disse ele com autoridade.

-Para onde diabo vamos nós? perguntou Gabriel.

Não lhe responderam.

-Onde fica a tal ilha?

O mesmo silêncio.

-Mas, com todos os diabos! Você zombam de mim?!

O velho, sem desfranzir as sobrancelhas, tirou do peito uma carta e entregou-a ao seu interlocutor.

Era de Melo Rosa e dizia o seguinte:

«Caro Sr. Dr. Gabriel.

Ao ler esta, estará V. S. cheio de apreensões e receios. Dissolva-os - nada lhe sucederá, a não ser o malogro da partida com Ambrosina.

V. S. recuperará a sua liberdade somente à meia-noite, quando a referida senhora já se achará comigo em viagem para fora do Império. Os homens, que V. S. tem defronte de si e que o guardam à vista, são de confiança e estão pagos para não o deixarem fugir; escusa, por conseguinte, tentar qualquer meio que for de encontro ao que determinei.

Sinto que isto o faça ficar desapontado; mas o que quer? Tenho paixão por Ambrosina; ela consentiu em acompanhar-me, e eu lancei mão dos meios que pude para consegui-lo.

Adeus e perdoe-me, se não pude evitar o desgosto que lhe dou.

Seu amigo e criado. - M. R.».

Quando Gabriel acabou de ler a carta, os remadores haviam já recolhido os remos, e o escaler permanecia no mesmo ponto, a jogar suavemente à mercê das ondas.

O amante traído sentia-se estrangular pela raiva. Crescia-lhe na garganta um novelo áspero que sufocava.

Suas primeiras palavras foram para pedir água. O velho apresentou-lhe uma ancoreta cheia dágua e uma garrafa de conhaque.

Gabriel bebeu de ambos e ergueu-se.

-Querem você enriquecer hoje mesmo?! perguntou ele aos homens.

Estes voltaram apenas o rosto.

-Dou-lhes uma boa quantia, se me puserem já em terra!

O velho sorriu e meneou negativamente a cabeça.

-Raios os partam! Miseráveis! exclamou Gabriel a esmagar na mão fechada em soco o seu chapéu de feltro.

Consultou o relógio; marcava três e meia. Se aquele maldito velho quisesse, ainda havia tempo de alcançar Ambrosina!

Pense bem... disse-lhe em voz baixa. O Senhor está velho, precisa descansar... Eu sou rico... posso dar-lhe com que adoçar os seus últimos dias...

-Quanto?...

-Uns cinco contos de reis...

-É pouco!

-Dez!

-Deixe-me vê-los?

-Ah! Não os tenho aqui comigo, decerto, mas dou-lhos em terra...

-Já não como araras com penas!...

-Juro-lhe, sob palavra, que lhe dou o dinheiro

-Mais vale um pássaro na mão que dois a voar!...

-Afianço-lhe que os meus dez contos são mais seguros que outro qualquer pagamento!...

-Pois então assine um depósito da quantia...

-Assino! anuiu Gabriel, procurando o seu lápis.

-Não, ocorreu o outro; tenho cá com que pôr o preto no branco... e as competentes estampilhas.

E sacou da caixa de popa uma escrivaninha perfeitamente guarnecida, que passou às mãos do rapaz.

-Seu nome? perguntou este.

O velho respondeu firmemente:

-Antônio Leão Cerqueira, para o servir.

Gabriel lavrou o documento de dívida.

-Aí o tem... disse, entregando-o ao carteiro.

Este leu e releu o escrito, dobrou-o depois, meteu-o na algibeira das calças.

-Torce pra terra! rosnou aos tripulantes. E o escaler virou de bordo.

-Depressa! gritou Gabriel. Não temos tempo a perder! Depressa!

E logo a cidade parecia vir a seu encontro, tal era a rapidez com que o escaler deslargava para a praia.

Fulminação

Enquanto sucedia ao pobre Gabriel o que acabamos de ver, Melo Rosa tomava um carro de praça e mandava tocar à toda para Laranjeiras, correndo ao encontro de Ambrosina, que devia estar à sua espera, pronta a desferir o vôo, conforme entre si haviam combinado os dois velhacos.

E, estendido sobre as almofadas do carro, ia o Melo a pensar, sorrindo por entre as fumaças do seu charuto, na engenhosa estratégia que imaginara para livrar-se de Gabriel.

Àquelas horas estaria o toleirão a arrancar os cabelos, desesperado, a bordo de um escaler, em plena baía.

-Que tenha paciência! disse consigo o tratante. Piores cousas sofreram outros neste mundo!...

E passou a calcular o resultado do que havia urdido: Eram três horas. O vapor não levantaria ferro antes das seis... ele nada mais tinha que tomar Ambrosina e meter-se com ela a bordo. Gabriel seria posto em liberdade à meia-noite; e só então iria queixar-se à polícia; antes, porém, que esta se mexesse, já o Melo estaria longe!

E, de tão preocupado com estes raciocínios, não notou que o cocheiro do seu carro acabava, sem afrouxar na carreira, de ser substituído pelo nosso intrépido Jorge; como também que o carro já não levava a direção de Laranjeiras, porque no Largo da Lapa, em vez de subir para o Catete, tomou pela rua dos Arcos.

O Melo, completamente distraído, continuava de si para si:

-No fim de contas, tanto Ambrosina como o dinheiro do Gabriel, são duas fortunas bem ganhas, pois não se pode negar que muito arrisquei o pêlo para conquistá-las... Não fosse eu um sujeito esperto, que nenhuma dessas duas belas cousas me chegariam às mãos!...

Não devia, por conseguinte, preocupar-se em extremo com a fraudulência do caso, nem devia sentir remorsos: «Cada um puxa a brasa para sua sardinha!...» Gabriel que se queixasse da sorte, que havia feito de Melo um homem pobre... Além disso, o amor, o grande amor! tinha costas largas e era um pretexto magnífico para todas aquelas patifarias... Que diabo não se poderia explicar na vida pela «Paixão amorosa?...» Quantos exemplos não havia por aí de bons rapazes, que se deitavam a perder por causa de mulheres?... Todos perdoariam, desde que a sujeita fosse deveras bonita!... E muito mais que ele não precisava absolutamente de voltar ao Brasil... Para fazer o quê?... Paris! Paris o atraía como uma pátria desconhecida! Em Paris, o Melo encontraria decerto mil modos de exercer a sua inteligência e o seu espírito!... Quanto à Ambrosina, essa nunca seria um estorvo, porque ele não era nenhuma criança e sabia lidar com toda a sorte de gado mulheril, fosse este o mais cornígero e bravio.

-Mas é verdade! exclamou, despertando das suas cogitações. Não chegamos hoje, ó cocheiro? Há boa hora que andamos!

O cocheiro não se deu por achado, e Melo reparou que nesse instante acabava de passar pelo matadouro e entrava na rua de Mariz e Barros.

-Para onde diabo vamos nós?! berrou ele a puxar o paletó de Jorge. Olha que vamos errados, animal!

-Não lhe dê isso cuidado! retorquiu o cocheiro. E fustigou os cavalos com terrível gana.

-Pára! Pára! Pára! gritava o rapaz, vendo que o conduziam por uma picada. Se não páras, chamo a polícia!

-Chame, se for capaz! respondeu Jorge, fazendo afinal parar o carro defronte de uma casinha de porta e janela.

E depois de apear-se, acrescentou, perfilando-se defronte do Melo:

-O senhor vai entrar imediatamente nesta casa, ou será denunciado à polícia como ladrão!

-Mas isto é uma emboscada! exclamou o tolhido.

-Justamente, confirmou o cocheiro com ar calmo. Eu sou o Jorge, que o senhor bem conhece, e estou cá por ordem do Dr. Gabriel e de D. Ambrosina, aos quais tencionava o senhor engazupar! Faça barulho, e veremos quem ficará do pior partido! Aí tem essa carta; leia! É de D. Ambrosina...

E o cocheiro entregou ao Melo uma carta.

-Canalhas! disse este, abrindo-a. Entendam lá semelhante escória! São todos da mesma força!

A carta dizia o seguinte:

«Melo,

Sei de tudo o que sucedeu, não tenhas, porém, receio algum; tudo isso foi para salvar-te. Descobriram os nossos projetos, mas crê que os não sufocaram. Por ora, é necessário que te submetas ao que quer essa gente; julgam que eu parto hoje com Gabriel e te prenderão até à meia-noite. Gabriel não me acompanhará, todos suporão que eu fugi sozinha para a Europa; todos, à exceção de ti, que me irás procurar misteriosamente na avenida de Magalhães, chalé n. 5. Não te revoltes quando te prenderem e lança a culpa para mim.

Amanhã estarás livre, e depois de amanhã estaremos de partida. Se alguém te falar a meu respeito, finge que me supões longe, e, logo que te aches desembaraçado, corre a procurar-me onde já te indiquei.

Toda cautela é pouca! Pelo sim, pelo não, rasga a esta carta...

Tua sempre - Ambrosina

Miserável! disse afetadamente o Melo, depois da leitura; Enganou-me! fugiu!

E apeando-se por sua vez, acrescentou para Jorge:

-Estou à sua disposição...

O cocheiro fez soar a aldrava da porta, e entregou o carro a um negro que veio abrir; em seguida intimou com um gesto Melo Rosa a penetrar na casa, e entrou após dele, dando duas voltas à fechadura e recolhendo a chave.

Entretanto, vejamos o que por esse tempo fazia Ambrosina.

A ardilosa rapariga, logo que Gabriel saiu de casa e enquanto lá fora era o velhaco Melo Rosa rastrejado pelo pai de Laura, ficava com esta em completa independência na casinha de Laranjeiras.

-Não podemos agora perder um instante! disse ela à infeliz cúmplice, quando se acharam a sós.

-Mas, o que me cumpre fazer? perguntou Laura.

-Mudares de roupa e te dispores a partir imediatamente comigo...

-Partimos então hoje para a Europa?

-Tolinha! Isso seria o mesmo que nos metermos numa ratoeira, porque Gabriel, logo que se achasse livre, expediria um telegrama para o primeiro porto, e eu seria presa como criminosa. Talvez não o fosse... ele me adora a tal ponto, que não teria ânimo naturalmente de proceder contra mim; mas o mesmo não sucede a respeito do teu pai, que para se vingar por lhe haver eu roubado a filha, seria capaz de entregar-me à justiça! O que fazermos então?... Nada mais simples: Sairemos quanto antes desta casa, deixaremos aqui aquelas cartas que são -uma para teu pai, outra para Gabriel, outra para o Melo Rosa e outra para minha mãe, e tomaremos, não o paquete do Havre, mas sim um vapor brasileiro, que segue hoje mesmo para o norte. Com a leitura daquelas cartas e com a conclusão que provavelmente hão de tirar dos fatos, eles nos julgarão navegando para Europa e encaminharão para esse lado todas as suas pesquisas. Nós, entretanto, munidas de dinheiro como estamos, faremos simplesmente o seguinte: vamos daqui à agência, compramos duas passagens, metemo-nos a bordo, e às quatro horas estamos de partida. Para viajar dentro do Brasil, não precisamos de passaporte, porque somos brasileiras. Chegados, porém à Bahia, encerramo-nos em um hotel, até que tenhamos um paquete para a Europa. Então, o passaporte de Gabriel servir-nos-á admiravelmente... Tu te vestes de rapaz com essas roupas que levamos aí e ficarás sendo o Sr. Gabriel de Los Rios, meu marido, e continuarei a ser Ambrosina, tua esposa... Dessa forma, não seremos encontradas e, dentro de poucos dias, estaremos fora do alcance de qualquer perseguição.

Laura escutava tudo isto com um ar tímido e irresoluto. Batia-lhe o coração com ansiedade sob o peso de um terror indefinido.

Ambrosina compreendeu a comoção da pequena.

-Coitadinha! disse. Como és ainda ingênua!... Mas, não te assustes, não tenhas receio, que te não sucederá cousa alguma!... A culpa de tudo será lançada à minha conta!... Não tens de que te envergonhar, não foges com um homem, e sim comigo, que te conservarei pura!

E beijou-a.

-Porém, meu pai?!

-Mau! mau! Não entremos nessas considerações! Não há tempo para isso. Deita o chapéu, que o carro não tardará aí.

Com efeito, pouco depois, rodava um carro à porta da rua.

-Pronto! Podemos ir! disse Ambrosina, tomando a sua bolsa, enquanto a outra fechava as janelas da casa. Depois sairam pelo portão do jardim, cuja chave escondeu aquela em certo cantinho entre as grades de ferro, como costumava fazer quando aí vivia com Gabriel.

A bagagem das duas raparigas constava de uma simples mala. Ambrosina fez o cocheiro colocá-la no banco da frente do carro, e assentou-se no de trás com a companheira.

Eram duas e meia da tarde.

Pouco falaram durante a viagem. Ambrosina ia preocupada, e a outra sobressaltada. Todavia, nenhum obstáculo encontraram na agência para obter os respectivos bilhetes de passagem, e às três e meia achavam-se instaladas, no mesmo beliche, a bordo de um dos vapores da Companhia Brasileira.

Por este tempo, como vimos Gabriel oferecia dinheiro ao homem do escaler para o largar em terra.

Só às quatro horas já passadas conseguiu meter-se em um carro e disparar para Laranjeiras.

Chegou à casa pouco antes das cinco.

Ao não encontrar as portas abertas, sentiu logo uma pancada no coração.

Bateu repetidas vezes, e ninguém respondeu.

Aquela sinistra tarde lhe parecia apressada e impaciente por chamar a noite; e o silêncio, o abandono, as primeiras sombras faziam um doloroso conjunto de tristeza, que mais funda enterrava a agonia no peito do desgraçado.

Gabriel passeou em torno da casa, como um faminto que ronda o celeiro defeso. Afinal, deu com a chave da porta do jardim e penetrou na antecâmara do seu dormitório.

-Cheguei tarde! exclamou ele, atirando-se a soluçar numa cadeira. A ingrata fugiu com aquele canalha! (E sentiu uma vontade brutal de estrangular o Melo Rosa). Ah! Mas o vapor só sairá às seis e meia, e eu terei tempo de alcançá-los!

Dizendo isto, ergueu-se, disposto a sair de novo em perseguição dos criminosos.

Foi nessa ocasião que reparou para as quatro cartas, depostas sobre o toucador por Ambrosina.

Uma carta dirigida ao Melo Rosa?... pensou. É singular!

E, tomando a que a ele próprio era dirigida, avidamente a abriu, depois de acender um bico de gás, em vez de abrir as janelas.

Logo com ver as primeiras palavras, um estremecimento nervoso lhe percorreu o corpo.

Tornou a assentar-se, e concentrou-se na seguinte leitura:

«Gabriel,

Perdoa-me. Sou muito menos culpada do que é do teu direito acreditares.

Enquanto me foi possível consagrar-te todo o amor de mulher que em mim havia, dei-me inteira aos teus braços e à tua boca; fui tua nos teus longos dias de tédio, fui tua nas tuas ligeiras noites de gozo. Hoje, porém, que te amo mais talvez, tudo isso me é vedado por uma sinistra transformação que se apossou do meu ser, abalando-o até na sua própria essência. Este corpo que beijaste com tanto amor de homem, só tem hoje de mulher a forma primitiva, habita-o agora a alma de um demônio sexual e lúbrico, a quem desgostam as triviais carícias masculinas.

Ë minha carne rebelde repugna agora o rijo contacto da musculatura dos hércules, e sorri ao doce e curvilíneo afago da linha dos ganimedes. A estrela que me viu nascer foi Vênus, mas Amor não é para mim um nu e meigo infante de olhos vendados, é uma frívola boneca, cheia de rendas e fitas.

O Brasil, verde cru e úmido, sufoca-me; a sociedade em que nasci repele-me e eu rejeito a única que me abre o seio; o homem, qualquer que ele seja, enche-me de desprezo por mim e por ele. Todavia, entre esses duros e barbados dominadores da fêmea, eras tu, meu pobre amigo, o menos vaidoso, o menos covarde e o menos egoísta. Mas, nem por isso deixas de ser homem, e eu te fujo, para te não ultrajar com uma ternura que não pertencer ao teu sexo.

Será aberração moral? Será depravação física? Seja o que for, não poderia eu de hoje em diante ficar ao teu lado, sem te enganar a todos os momentos. Fujo para longe de nós dois, na esperança de viver entre desconhecidos e separada de mim mesma. Uma multidão de estrangeiros é o mais completo isolamento em que eu conheço andar entre eles é vagar entre sombras de estátuas. Terás ao menos no teu abandono a consolação de que nunca pertencerei a outro homem; este corpo que te arranco das mãos jamais cairá nas garras de outro dono. Ah! isso juro-te eu pelos olhos e pelos cabelos de minha Laura! E adeus.

O que aí vai escrito, é a expressão franca da verdade. Despejei o coração até ao fundo para ficar mais leve, e fugir-te mais ligeira; basta-me o preço que lá levo do teu dinheiro! Tens que me absolver com o teu perdão, ou me amaldiçoar com uma perseguição judicial. Não consultes para esse fim o teu coração, consulta só o teu espírito, e, conta, no primeiro dos casos, com o meu reconhecimento de bom camarada. - Ambrosina

Gabriel soluçava ao terminar a leitura. Só então erguendo o rosto, deu com Jorge, que havia entrado sem ser percebido.

-Caramba! disse este. O senhor ainda aqui?! Pois não partiu?!

Gabriel respondeu com um gesto desabrido, e apontou-lhe para o toucador onde se achavam as cartas.

-Pois o tal Melo está seguro até à meia-noite! acrescentou o cocheiro, tomando a carta que lhe era dirigida. Mas o senhor dessa forma não pilha o vapor!...

Gabriel não respondia, chorava encostado a um moóvel, com a cabeça escondida nos braços.

Jorge abriu à carta, sobressaltado por ter reconhecido a letra de Laura.

É proporção que lia, uma terrível palidez ganhava-lhe o semblante. Os olhos foram-se-lhe dilatando com uma expressão de espanto e desespero, os lábios se contraindo, as ventas se distendendo, até que da fronte lhe começou a porejar o frio suor das grandes agonias.

De repente, passando da palidez a uma vermelhidão apoplética, escancarou a boca com um bramido de dor, e caiu de borco sobre o soalho.

A casa tremeu, como se houvesse desabado ali no chão um colosso de bronze.

Destroços da tempestade

A carta que lançou por terra o cocheiro Jorge era uma despedida da filha, declarando a seu modo os motivos que a arrastavam naquela viagem clandestina. Educação, temperamento, insuficiência de meio social, tudo isso ressaltava das palavras que a infeliz dirigia ao pai; este porém, nada viu nem compreendeu senão que a filha abandonava a casa paterna, e tanto bastou para fulminá-lo.

Laura, todavia mostrava-se na carta muito comovida e fazia ardentes promessas de boa conduta. Nada serviu para suavizar o golpe.

O pobre homem permanecia de bruços no chão. Gabriel correu a socorrê-lo, arrastou-o até a cama, e conseguiu com dificuldade estendê-lo sobre ela. Jorge não dava acordo de si, e tinha o rosto congestionado.

A situação tornava-se cada vez mais penosa. Gabriel chamou várias vezes por ele, sacudiu-lhe vigorosamente os ombros. Nada! O homem continuava inanimado, a tirar da garganta uns grunhidos aterradores.

O rapaz correu então à sala, abriu as janelas. Estava aflito! Precisava de alguém que se encarregasse do cocheiro, porque ele não podia deixar de ir a bordo. Mas o silêncio da rua desesperou-o. A tarde fechava-se de todo, e os primeiros lampiões constelavam o arrabalde com a sua luz ainda vermelha.

Gabriel deu lume a outros bicos de gás, e resignou-se a aguardar os acontecimentos. A cabeça andava-lhe aí roda e estalava de febre. Entretanto urgia tomar qualquer resolução; aquele homem podia morrer ali, se lhe não ministrassem prontos socorros!... Era preciso descobrir um médico! Que falta fazia o Gaspar naquela ocasião!...

Gabriel havia já resolvido sair, a chamar algum vizinbo, quando ouviu tocar a campainha do jardim.

-Enfim! disse ele, como se esperasse por quem batia.

E, pouco depois, entrava na sala Genoveva, pelo braço de Alfredo.

A viúva do comendador Moscoso vinha sufocada de ansiedade.

-Estimo que chegassem! exclamou Gabriel, assim que os viu; precisava sair imediatamente, e não tinha ânimo de deixar aqui este pobre homem sozinho! Tenham a bondade de ficar com ele... Eu já volto...

-Não! Não! Faça favor! gritou Alfredo, segurando-lhe o braço. Nós também temos pressa! O patrão espera-me esta noite, e não posso faltar; é um caso grave de moléstia da filha... Por hoje estou farto de mistificações! Arre! Desde as duas da tarde que ando numa dobadoura! A Genoveva sonhou que a filha partia hoje, e quis vir cá; chegamos às três e meia, e encontramos a casa totalmente fechada. Daí fomos imediatamente à de seu padrasto, e ninguém lá nos pôde esclarecer patavina! Já tínhamos perdido as esperanças, quando, ao recolher-nos de volta, encontramos perto do matadouro o cocheiro Jorge, que se compadeceu do estado de ansiedade desta pobre mãe, e disse-lhe: «À senhora devo falar com franqueza! Se quiser encontrar sua filha, tome um bote e vá a bordo do paquete francês Mensageur, que parte hoje para a Europa; D. Ambrosina segue na companhia do Dr. Gabriel. Eles aqui não podiam continuar a viver juntos». Nós como o senhor pode calcular, não esperamos por mais nada e seguimos para o cais Pharoux. Gastamos um bom tempo na viagem, não apareceu um carro e tivemos de tomar um bonde da linha Vila Isabel, que é a pior das linhas de bondes! Quando chegamos à praia, passava das cinco; tomamos um escaler e dissemos ao catraeiro que nos levasse a bordo do tal paquete. O homem obedeceu, mas em viagem declarou-nos talvez não nos deixassem entrar, porque era natural que já tivessem levantado ferro. Foi justamente o que sucedeu! Não chegamos a tempo! O mar estava contrário, o escaler jogava mais do que andava... E ao tiro das seis, eu e D. Genoveva, vimos o Mensageur largar para fora da barra. Ela chorava que nem uma criança e, como não havia jantado, principiou a sentir ânsias e vágados. Contudo exigiu de mim que a acompanhasse imediatamente até cá. Não contávamos encontrar ninguém; ao senhor, pelo menos, já o fazíamos em caminho para o estrangeiro.

Gabriel, porém, cortou-lhe a palavra. A notícia da saída do paquete acabava de esmagar-lhe a última esperança.

-Mas, com todos os diabos! gritou ele, segurando a cabeça com ambas as mãos. Parece que há um gênio diabólico a tramar contra todos os meus atos!

Alfredo e Genoveva retraíram-se assustados com os gritos do rapaz.

Este continuava a praguejar, passeando muito agitado em todo o comprimento da sala.

-Eu pensei que o senhor estivesse a par de tudo, disse limidamente a mãe de Ambrosina.

-Não estou a par de cousa alguma, minha senhora! Olhe! leia essa carta de sua filha, ela talvez elucide a situação. Pode também ler a outra dirigida a mim, e afinal esta! acrescentou ele, ajuntando do chão a carta de Laura; esta foi a que pôs aquela mísera criatura no estado em que se acha!

Alfredo e Genoveva armaram os competentes óculos, e dispuseram a proceder à leitura das cartas de Ambrosina.

Jorge soltou um ronco mais forte e deu um estremeção com todo o corpo.

Só então foi que Genoveva reparou para a vigorosa figura do cocheiro estatelada sobre a cama.

-Valha-me Deus! Que têm este homem?!... exclamou ela, espavorida.

-Sua filha poderia responder-lhe muito melhor do que eu... disse Gabriel, possuindo-se agora de tristeza.

-Minha filha?! Mas o que fez ela a este homem?!

-Fez simplesmente todo o mal que lhe podia fazer, roubou-lhe a sua única esperança, a sua única consolação! Esse homem, que a senhora aí vê, era um homem feliz, um honesto cocheiro; vivia do seu trabalho, amassava o seu pão com o suor de todos os dias, não desconfiava de ninguém, porque a ninguém prejudicava, tinha a consciência limpa e o coração alegre. Mas um dia lembrou-se de proteger uma desgraçada que encontrou na rua, perseguida por um doido que a queria matar. A fadiga, o terror e a embriaguez haviam-na prostrado; ele não hesitou, carregou com ela para casa, deu-lhe um talher à mesa e um lugar na cama de sua filha.

Genoveva sentiu vontade de chorar. Alfredo havia já compreendido a situação, e saíra imediatamente em busca de médico.

-Pois bem! continuou Gabriel, sempre possuído de urna grande mágoa; a protegida do cocheiro, logo que se sentiu melhor, pagou todos os desvelos recebidos, seduzindo e arrastando consigo a filha do seu bemfeitor..

-O que me faltará saber?! exclamou Genoveva em sobressalto.

Gabriel continuou:

-A vítima de Ambrosina deixou ao pai essa carta, que a senhora tem às mãos... O desgraçado caiu fulminado ao lê-la, e creio que nunca mais se levantará... Sua filha o matou!

-Valha-me Deus! Valha-me Deus! repetia a desventurada mãe, achegando-se cheia de comoção para o corpo de Jorge.

E enquanto lhe desafrontava ela a garganta e o estômago, Gabriel monologava a um canto, com uma voz arrastada e confusa, como se estivesse delirando.

Não havia aquilo de ficar ali! Profetizava ele; outras vítimas seriam arrastadas à ignomínia e à morte por aquela malvada! E ela, triunfante e cínica, iria por diante, envenenando com seus lábios todas as bocas que a beijassem, secando no seu peito, insaciável de luxúria, a púbere flor de todos os vinte anos que encontrasse no caminho! Arcanjo maldito, suas asas só para baixo serviriam no vôo, e um dia afinal, quando lhe caísse a máscara formosa, o mesmo inferno haveria de repudiá-la com asco!

Jorge permanecia imóvel. Tinha os olhos muito abertos, fitos e raiados de sangue, a boca torcida, mostrando parte da dentadura, que se destacava do negrume das barbas e da roxidão da cara com um sorriso abominável.

Genoveva ajoelhara-se ao lado da cama, e dizia entredentes a oração dos moribundos. ii dentes a oração dos moribundos.

Ao fundo da alcova, Gabriel derramava sobre os dois um olhar dolorido e vago. Postura e gesto, tudo nele dizia grande desapego à vida e uma completa ausência de si próprio. Apoiava-se a um móvel com o cotovelo, e com a mão correspondente amparava a cabeça em desalinho. Havia mais indiferença do que mágoa na sua graciosa boca mal cerrada. A febre punha-lhe tons cor-de-rosa na palidez das faces, e a sombra transparente dos seus triguenhos cabelos banhavam-lhe a fisionomia num doce eflúvio levedado de ouro.

Quem o visse naquele instante, tomá-lo-ia por um prematuro asceta, cujo espírito apenas roçasse de leve pela terra, distraído e ligeiro repouso dos seus vôos místicos.

No silêncio da alcova palpitava monotonamente o balbuciar das orações de Genoveva.

De repente, Gabriel abriu a chorar numa explosão de soluços, e afastou-se para o jardim com o rosto escondido nas mãos.

Quando Alfredo voltou com o médico, Jorge havia já morrido.

E pouco depois o amante de Ambrosina vagava pelas ruas, sem consciência do tempo nem do lugar.

Como todo aquele que sente uma decepção de amor, comprazia-se ele em deixar levar à toa, arrastado pelos seus próprios desgostos. Enquanto errava pelas ruas, lhe patinavam no espírito, com os chapins em brasa todas as saudosas recordações da sua extinta ventura.

Duas horas. A noite enchia a natureza de mistérios. O arrabalde dormia; polícias dispersos cabeceavam encostados pelas esquinas ou ressonavam à soleira das portas fechadas. Por entre uma nuvem de pó, os varredores da rua desenhavam-se confusamente, como espectros; a noite envelhecia, e as primeiras névoas da madrugada iam galgando as serras, que cercam o Rio de Janeiro num círculo de granito. Uma mulher, vestida de branco e com os cabelos soltos, passeava de um para o outro lado da calçada.

Gabriel reparou que havia entrado na cidade.

Visita de Zangão

Ambrosina e Laura, chegadas à Bahia, hospedaram-se no hotel Figueiredo. Daí colheram informações sobre a cidade e seus costumes, e logo depois se achavam instaladas na Barra em uma casinha alugada com os móveis.

Levaram uma vida especial as duas belas fugitivas, à qual os sobressaltos e as apreensões emprestavam um capitoso encanto de aventura romanesca. Inteiramente desconhecidas, concentravam só em si toda a atividade dos seus instintos e toda a mórbida curiosidade dos seus sentidos. Laura deixava-se dominar em absoluto pela companheira, não tinha vontade própria, nunca fazia uma objeção aos reclamos de Ambrosina, que em compensação não desdenhava meios de proporcionar à amiga tudo que lhe pudesse trazer alegria, propondo-lhe divertimentos na cidade, excursões ao campo, e oferecendo-lhe jóias, modas e dinheiro.

Laura, porém, começava a enfraquecer. O seu lindo corpo delgado, e outrora tão roliço, principiava a denunciar sinistros ângulos. A pele ia se tornando mais transparente, descorada e seca, os lábios menos vermelhos, as mãos úmidas. De toda ela se desprendia um ar melancólico de sofrimento e resignação, tinha agora o andar vagaroso e os movimentos demorados. Ficava horas perdidas a olhar abstratamente para o espaço, boca ansiosa, respiração convulsa, braços esquecidos.

Dir-se-ia que toda a sua atividade nervosa se lhe havia refugiado nos olhos. Esses, sim, eram agora mais vivos e pareciam maiores na roxa moldura das pálpebras.

Ambrosina, às vezes, a surpreendia nesses êxtases.

-Que tens tu, minha vida?... perguntava-lhe com meiguice; por que ficas assim, a olhar a tôa, como quem deixou longe o coração?... Fala, meu amor! conta à tua amiguinha qual a mágoa que te oprime! O que te falta?

-Não era nada!... dizia a outra, entre sorrindo e suspirando. Nervoso...

Ambrosina ralhava.

-Não a queria ver assim triste!... Era preciso ter juizinho!

À mesa, que champanha! Laura torcia o nariz aos pratos e queixava-se de falta de apetite. A companheira fazia então milagres de ternura, afagava-lhe os cabelos! batia-lhe com o dedo na polpa do queixo, e começava a falar-lhe com voz de criança:

-Bebê não faz a vontadinha de Ambrosina?... Ambrosina fica triste!

E Laura, já a rir, tomava nos dentes o bocado que a outra lhe levava à boca.

Assim passaram quase um mês na Bahia. O paquete, que as devia levar para Europa, era esperado dai a quatro dias. As duas viviam a sonhar com Paris.

À tarde, depois do jantar, quando não davam uma volta pelo Passeio Público, ficavam a ler, estendidas no divã.

Estas leituras entravam pela noite Vinha a criada acender o lustre, e as duas amigas permaneciam juntinhas ao lado uma da outra, como duas rolas no mesmo ninho.

Era quase sempre Ambrosina quem lia em voz alta. Laura escutava religiosamente.

Uma tarde, o sol já se havia escondido e a dúbia claridade que precede o crespúsculo da noite entrava pela janela e derramava-se triste no amoroso silêncio da alcova; uma nesga do céu aparecia, lá ao longe, afogada nos últimos resplendores do dia, e um ar morno e pesado agitava preguiçosamente a renda das cortinas; as duas raparigas achavam-se, mais que nunca, empenhadas na leitura. Era um romance de Theophile Gautier, traduzido por Salvador de Mendonça, «Mademoiselle de Maupiu».

Estavam na cena do jardim, e a voz de Ambrosina, muito sonora e levemente comovida, dizia bem e com justeza as frases apaixonadas do grande boêmio fantasista. Mais parecia ela discursar que proceder a uma simples leitura; a expressão, o sentimento, o calor, que punha nas palavras, as faziam suas, ditas e pensadas, ali, na inspiração, voluptuosa e confidencial daquela intimidade.

Laura, de olhos fechados, lábios trementes, corpo abandonado sobre o divã, parecia enlevada num idílio místico. E a noite caía sobre elas como um véu protetor.

Em breve, já não podiam ler. O livro desabara sobre o tapete.

Laura estorceu-se então numa agonia mortal, abraçando-se à companheira, e abriu a soluçar histericamente.

Era um chorar louco, apaixonado, febril.

Ambrosina, sem compreender semelhante crise, procurava inutilmente estancar as lágrimas da pobre moça.

Entretanto, abriu-se a porta do interior da casa, e a criada apareceu, dizendo que um homem procurava por D. Ambrosina Moscoso.

-Um homem?! exclamou esta, erguendo-se espantada.

-Diz que da parte da justiça... explicou a criada, hesitante.

Ambrosina sentiu uma pontada no coração.

Laura correu para dentro, e a outra, logo que recuperou o sangue frio, perguntou à mucama que espécie de gente a procurava.

-É um moço magro, cara lisa, um sinal de bigode, bem vestido.

-Louro?!

-Não senhora.

-Ah! Respiro!

E, tomando uma resolução:

-Que entre, para a sala.

O sujeito era Melo Rosa, que se fez reconhecer desde o corredor com a sua alegria espalhafateira e artificial.

-Ora, finalmente! gritou ele com uma gargalhada, quando se achou defronte de Ambrosina. Não contavas com esta surpresa, hem, minha bela espertalhona?

-Confesso que não, e até mais, que ela depõe largamente contra o seu espírito!...

-Isso agora é que é de mau gosto, e não parece vir de ti. Concordo em que não estimes a minha visita, mas não em que o declares! E a primeira vez que te vejo denunciar pela fisionomia uma contrariedade...

E dizendo isto, o Meio se havia instalado comodamente em uma cadeira de braços. Ambrosina, assentada defronte dele, inspecionava-lhe a cor das meias, o feitio do casaco e a extravagância da gravata. -Onde teria aquele tipo arranjado dinheiro para embonecar-se daquele modo?... dizia ela consigo.

-Mas, enfim?... perguntou. Qual é o motivo da sua visita? o que o traz aqui?

-Pois não percebeste ainda?

-Juro que não.

-Estás a fazer-te esquerda, meu amor!

-É birra!

-Mas, que diabo! Não percebeste, filha, que fui logrado por ti e procuro chamar a mim o que me pertence de direito? Olha que sempre me obrigas a umas franquezas!...

-Pois ainda o não entendi... Explique-se!

-Mas, como não entendeste?.

-Decerto! Sei que o senhor quis defraudar em certa quantia o homem com quem eu estava, e eu não consenti... Aí tem o que sei!

-Perdão; não é isso o que tu sabes! O que tu sabes é que nós combinamos os dois passar a perna ao Gabriel em vinte contos de réis, e pôr-nos ao fresco, deixando o pato com cara de tolo! Queres franqueza, toma! Ora, tu sozinha não darias conta da marosca e solicitaste o meu concurso. Eu formei o plano do ataque, e os resultados foram excelentes; apenas, em vez de ser para nós ambos, foram unicamente para ti....

-E daí?...

-Daí é que não estou absolutamente disposto a deixar-me lograr! Quero a minha parte!

-Quem rouba a ladrão...

-Terá os anos de perdão que quiseres; mas, ou divides o bolo comigo, ou vou daqui mesmo denunciar-te à polícia, e corto-te todos os vôos... Escolhe!

-Ora, vá pentear monos! disse Ambrosina, erguendo-se e afetando serenidade.

-Ah! Não queres? Pois fica então sabendo que estás presa.

-Ora, moço, outro ofício!

-Zombas, hem? Pois já devias saber que sou empregado secreto da polícia!...

-Devia tê-lo desconfiado, isso é verdade!

-Mas, enfim? Ainda uma vez: Queres?!

-Não!

E Ambrosina acompanhou com surpresa os movimentos de Melo Rosa.

Ele ergueu-se, foi até à janela e fez sinal para a rua.

-O que significa isto?!

-Saberás depois... A autoridade competente te dirá!

-Olha que peste!

-Filha, é o mundo! Vais comparecer em presença do chefe de polícia!

Ambrosina, que correra à janela, viu espantada três praças lhe invadirem a casa.

-Mas, você é muito ordinário! exclamou ela com os dentes cerrados.

-Podes bramar à vontade!

-Um canalha! Um valdevinos! Um gatuno!

-Dize o que quiseres! Só me não podes chamar uma cousa, que é o que tu és!

E disse o nome.

Ambrosina estremeceu até à raiz dos cabelos. Olhou de frente para o Melo, e teve impetos de matá-lo; mas um rumor na escada a pôs em sobressalto. Os soldados iam penetrar na sala.

Com a subida dos praças, Laura acudiu de dentro e atirou-se aflita nos braços da amiga.

Ambas romperam em soluços.

-Ah! Ah! Já quebraram de força? Pois é aviar, que tenho mais que fazer!

-Mas, o que quer você que lhe faça, homem dos diabos?!

-Ora, filha! Quero que me entregues a metade do que nos pertence!

-É melhor! aconselhou Laura. Dá-lhe a metade

-Mas é que já não tenho senão metade!... Se a der, fico em completa miséria! Paguei dividas no Rio!...

Melo sorriu incredulamente.

-É um pouco dura a pílula! resmungou ele; mas, enfim, sujeito-me a um descontozinho...

-Dou-lhe cinco contos de réis!

-Ora, vê bem se tenho algum T na testa!

-Pois é se quiser! Dou cinco! Se não quiser, proceda como entender!

E chegou-se para a porta da sala.

-O camaradas! chamou ela.

-Os soldados mexeram-se no corredor, como uma ninhada de bichos.

-Entrem para cá!

-Você o que vai fazer? perguntou o Melo.

-Entregar-me... Já lhe disse que não posso dar mais de cinco contos de réis... Estou resolvida a deixar-me prender!

E gritou para o corredor:

-Esperem aí, camaradas!

Ambrosina entregou-lhe cinco contos de réis.

-Bem, dá-me as tuas ordens!...

-Adeus, disse ela.

-Pergunta-lhe por meu pai, recomendou Laura.

Melo parou na porta e disse hesitando:

-Seu pai... morreu... minha menina. Boa noite!

Pela estrada da Tijuca

Entretanto, Gabriel na Corte levava por esse tempo a vida mais estúpida e ociosa que se pode imaginar. O infeliz atirou-se à desordem dos prazeres brutais como um soldado perdido se lança ao fogo do inimigo.

Nessa inglória batalha o sangue que derramava era o dinheiro, derramava-o a jorros, indiferentemente, alheio às ávidas e obscuras bocas que o sugavam. E semelhante conduta encheu-o logo, está claro, de falsos amigos, que rebentaram em torno da sua dissipação, com a gulosa espontaneidade de fungões inúteis e venenosos.

Difícil seria precisar o perfil de todas essas sombras libertinas; eram indivíduos sem caráter próprio, e sem o mais ligeiro traço original por onde pudessem ser distinguidos. Todo o cabedal das suas habilitações consistia em saberem fumar, beber, jogar e femear como ninguém. Para se não se dizerem vagabundos e filantes, intitulavam-se boêmios, profanando esse poético nome, tão consagrado no meio artístico pela revolta do talento incompreendido ou ainda não vitorioso. Boêmios! como se fosse possível conceber a idéia de boemia, sem a idéia de sacrifício e de pungente esforço na conquista do ideal e do belo!

Gabriel, coitado, bastante repugnância sentia da nova lama em que se chafurdava agora, mas. não tinha ânimo de romper com ela, porque só nela conseguia atordoar-se um pouco contra os últimos desastres do seu maldito amor. Em menos de dois meses era já conhecido e tuteado em todos os restaurantes ruidosos, em todas as casa de jogo forte, clubes carnavalescos e caixas de teatro. Em torno do seu desperdício ardia em perene incensação esse risinho açucarado e servil, que o prestígio do dinheiro acende no rosto dos exploradores de todos os matizes, desde o grave e condecorado mercador comercial, até à delambida rameira de preço fixo e rótula franca.

As suas pândegas repetiam-se cada vez mais violentas e com mais estrondo. Depois de uma ceia no «Fréres Provençaux», em que ele se viu em estado de não poder ir para casa, tomou aposentos nesse hotel, guardando a seu lado por companheira de desregramento, a mulher que o acaso lhe deu àquela noite, a Rita Beijoca, uma loura vinte anos mais velha que a mesma devassidão; e daí, para o mísero Gabriel, essa deplorável existência cor de goivo e cheirando a morte, bem conhecida de alguns moços ricos do Rio de Janeiro -acordar à uma da tarde, fazer duas de toilette e outras tantas de Rua do Ouvidor, vermutear até ao momento de se abrir na távola predileta a primeira banca de roleta, jantar às horas da ceia, e cear depois da meia-noite.

A ausência de Gaspar favorecia toda essa desgraça. Pelo carnaval, ao domingo gordo, reuniram-se, entre outros, nos aposentos de Gabriel, dois legítimos espécimes daqueles cogumelos de que há pouco falamos -o Costa Mendonça e o Juca Paiva, dois belos rapagões, que ninguém sabia donde tiravam os cabritos que vendiam.

O Costa era bonito e perfumado, tresandando a mulheres; jóias caras, roupa bem feita. Tornara-se falado no seu meio por certas famosas surras que de vez em quando lhe arrumava; em crise de ciúme, a sujeita a quem ele de corpo e alma pertencia desde os seus primeiros passos na vida da pândega fluminense, uma tal Aninha Rabicho, célebre entre os libertinos dos dois sexos por ser proprietária de um prédio e cinco escravos, adquiridos com o produto das suas gloriosas economias.

O outro cogumelo, o Paiva, tinha o ar mais sério e a roupa menos apurada. Nascera de pais abastados, que lhe deixaram uma medíocre fortuna e uma rara ignorância. A fortuna comeu-a ele logo que se emancipou, a outra, porém, é que se não deixou tragar assim tão facilmente, e a cada nova aurora reflorescia mais grimpadora e viçosa. Diziam dele, entretanto, que, para embaricar um bom cágado num lasquenetezinho bancado, não havia no Rio de Janeiro mão mais limpa, nem mais lúcida cultura.

Depois do ardente desfilar das sociedades carnavalescas, seguiram os três e mais Rita Beijoca para o hotel dos Príncipes, onde a bela crápula fervia de portas adentro num inferno de guinchos e risadas em falsete.

O Barros, que era o gerente do hotel, mal os viu entrar, levantou-se a recebê-los com tal risinho açucarado, e mandou pela surrelfa chamar lá em cima, com urgência, a Rosa Cantagalense.

A Rosa Cantagalense, apesar de simples hóspede no hotel, podia a justo título dizer-se o braço direito do Barros, e tinha por isso, sobre as despesas extraordinárias a que obrigasse os fregueses de boa lá, certa percentagem que lhe era abatida nas próprias contas. Entre as muitas e variadíssimas tosquiadoras do principesco estabelecimento, era ela a única deveras perfeita naquele agronômico e astucioso trabalhinho, a única que sabia a primor tosar uma desgarrada ovelha, sem que desse por tal a paciente, enquanto não estivesse de todo tosquiada.

A Cantagalense não desceu ao chamado do gerente; mando dizer que: «Ainda estava ocupada a despachar o mineiro...»

O Barros subiu logo de carreira a ter com ela.

Veio a loureira falar-lhe à porta do quarto, em meias e roupão de alcova:

-É preciso esperar mais um pouco, segredou, a piscar o olho, no ardiloso tom que as regateironas põem nas suas palavras quando tratam de negócio. Agora é que ele está pegando no sono...

-Fizeste-o gastar mais alguma cousa no quarto?... perguntou o Barros com interesse.

-Fiz, respondeu a outra; creio que ele não deixará menos de uns duzentos mil-réis...

-Bem; mas, avia-te daí, que és necessária lá embaixo. O Gabriel chegou já, e vem de troça! Estão todos meios prontos.

-Eles que se vão servindo; eu já desço!

O mineiro, que se achava recolhido ao quarto do hotel dos Príncipes, havia chegado esse mesmo dia de Minas, com intenção de assistir pacificamente às festas do carnaval do Rio.

Às três e meia da tarde sentiu vontade de jantar, e a desgraça o levou ao hotel dos Príncipes.

O mineiro comeu com apetite e achou até muito bom o que lhe serviram. Mas, enquanto comia, reparou que, de certa mesa, uma mulher bonitona olhava para ele com meiga insistência.

Era a Cantagalense, que nessa ocasião acabava de almoçar.

O mineiro não se preocupou com isso, e continuou a atacar as vitualhas com uma considerável energia e um silêncio mais solene.

À sobremesa, porém, a tentadora já havia levantado, e viera assentar-se à mesa imediata à do nosso mineiro.

O bom homem fez-se da cor de uns marmelos em calda que nessa ocasião triturava, e só conseguiu levantar os olhos ao fim de alguns segundos.

-A senhora é servida?... perguntou ele no gracioso sotaque da sua província.

A loureira agradeceu e, com tal mimo lhe pediu que aceitasse um taça do seu vinho, que o amimado não resistiu ao convite.

Para não ficar atrás, fez vir chamapanha. A moça então por sua conta e risco pediu uma salada de ananás cozido em madeira, um pudim negro e borgonha para destemperar o cliquot. Depois vieram charutos, cigarrilhos café e licores.

Daí a nada, o mineiro recebia uma ardente declaração de amor e correspondia contando francamente a sua vida e os seus negócios.

É inútil dizer que em seguida a isso as cousas foram muito longe, e que a dourada mosca, uma vez prisioneira nas teias da ardilosa aranha, tinha de ser chuchadinha até a última gota de sangue.

O jantar de Gabriel, a que a sugadora do mineiro não faltou do meio para o fim, correu com todas as suas costumadas pândegas; pouco apetite, muita chalaça tola, muito riso forçado e grande variedade de vinhos. Às duas da madrugada, a Cantagalense deixou-se ficar no hotel, e os outros foram carnavalear um pouco aos «Tenentes do Diabo».

Às quatro meteram-se de novo no carro, e mandaram tocar para a Tijuca, no meio de uma terrível gritaria.

O Costa Mendonça, que ocupava o banco da frente com o Paiva, parecia ter pólvora no sangue e não ficava quieto um só instante.

A Rita Beijoca achava-lhe tanta graça, que chegava a chorar à força de gargalhadas.

Gabriel, meio deitado sobre ela, divertia-se em afagar-lhe o queixo.

-Olha que me sufocas! observou a folgazã, tomando respiração com mais força. Não é assim tão levezinho que se possa levar ao colo! Põe-te direito!

Mas Gabriel, prostrado de fadiga, fazia ouvidos de mercador. A Beijoca resgnou-se a procurar por si posição menos incômoda.

Mendonça calara-se afinal, e a viagem começava a tomar um caráter triste; agora só se ouvia de quando em quando a voz grossa do cocheiro, que arriscava a sua pilhéria para o carro.

Ia se tornando aquilo aborrecido.

-Champanha! gritou Juca, fazendo saltar a rolha de uma garrafa. Vem aí o dia! É preciso brindá-lo!

Encheram-se as taças. A Rita, com o Gabriel ao colo, derramava-lhe o vinho na boca como se desse de beber a um pássaro. Ele, todo derreado, sorvia o líquido, indiferentemente. Costa Mendonça, que se queixava de suores frios, vomitava nessa ocasião, amparado pelo cocheiro. A sujeita e o Juca fingiam beber. Parecia haver entre os dois qualquer tácito concerto.

-Ah! agora sou outro homem! exclamou Mendonça, erguendo-se, com o rosto sumamente lívido. Posso recomeçar... disse ele em tom sinistro.

E emborcou uma taça de vinho.

-Eu também sou filho de Deus! lembrou o cocheiro, vendo que lhe não ofereciam de beber.

Passaram-lhe uma garrafa.

Mendonça havia criado novo ânimo, mas foi por pouco tempo; dentro de meia hora caiu prostrado sobre as almofadas. A rapariga então, ajudada pelo Juca, pousou Gabriel sobre ele, deixando-os que dormissem à vontade, e em seguida, voltou-se para o outro e pegaram-se a beijos.

Entraram no campo. De todos os lados surgiam as árvores banhadas pelos primeiros raios de sol; os pássaros principiavam a cantar, e a natureza parecia ir pouco a pouco despertando de um sono grato e consolador.

Juca e a rapariga não trocavam palavra. Devorador pela insônia, entorpecidos pelo álcool, pareciam cumprir ali um destino de condenados.

Rasgou-se a aurora, inundando de luz os caminhos orvalhados pela noite.

-Gabriel! Mendonça! exclamou Juca, sacudindo os companheiros. Acordam! Aí está o dia!

Os dois apenas resmungaram.

-Agora o que sabia era um gole de café quente observou a Rita, vendo que o cocheiro abria uma nova garrafa.

-Pois descanse! Ali mais adiante teremos café, disse ele, apontando para uma casinha ao longe.

A rolha da garrafa saltou com estrondo.

Mendonça abriu os olhos.

-Acorda, homem! vamos brindar o sol!

Gabriel foi arrancado do sono à pura força. Distribuíram-se novamente as taças.

-Hurra! gritou Juca levantando o braço. E os outros três responderam clamorosamente, a prolongar os hurras com bocejos.

O repousado aspecto da natureza contrastava com a feição dissoluta daquela libertinagem ao ar livre.

O carro havia parado, e o cocheiro apeara-se para ir buscar o café. Estavam perto da raiz da serra, numa encosta em que velhas árvores tranqüilas pareciam reunidas em concílio para uma deliberação religiosa. Juca descera do carro e passeava pela relva; Mendonça, de taça em punho, cantava um copia de opereta bufa; a sujeita acompanhava-o com uma pobre voz de falsete, e Gabriel, sombrio, assentado ao fundo do carro, com a vista embaciada, entretinha-se a olhar fixamente para um grupo que a pouca distância havia parado no caminho.

A cabeça andava-lhe à roda.

Depois de pequena pausa, o grupo continuou a andar, subindo a estrada em tardio e pesado passo.

Gabriel pôde então distinguir melhor de que o grupo se compunha. Era sem dúvida algum enfermo acompanhado pela família, que demandava a serra da Tijuca em busca de ar puro. Vinha na frente uma cadeirinha carregada à moda antiga por dois negros, guardava-lhe a portinhola um homem idoso acabrunhado pela dor, e logo atrás uma velha carruagem de aluguel com a cúpula fechada.

O grupo parou de novo quase defronte do carros dos folgazões.

Mendonça e a loureira calaram-se instintivamente, Gabriel ergueu-se sobressaltado; através das sombras da sua embriaguez, lhe pareceu haver reconhecido aquele homem que guardava a porta do palanquim, e por ele podia calcular com segurança quem era a infeliz criatura que ia ali enferma ou talvez moribunda. O coração saltou-lhe por dentro, na medrosa previsão de remorsos e íntimas vergonhas.

Os negros depuseram no chão a cadeirinha; desviaram dos varais os ombros ratigados, e afastaram-se para descansar um instante.

Moveu-se então a cortina da portinhola; débil mãozinha arredou-a de dentro com dificuldade, e uma feminil cabeça loura surgiu à luz dourada da manhã. No seu rosto, mais pálido que o de uma santa de cera, fulguravam-lhe os olhos com estranho brilho.

E esses olhos deram com os olhos que a fitavam do outro grupo, cintilaram mais forte, num relâmpago seguido de um grito, que a cortina do palanquim abafou logo.

Era de Eugênia.

Gabriel caiu sobre as almofadas do carro, a soluçar, enquanto os companheiros davam vivas ao cocheiro que chegava com o café.

Eugênia, depois que Gabriel se ausentou totalmente da casa dela, ia contando os dias pelos progressos da mágoa que a devorava. A melindrosa suscetibilidade do seu frágil organismo exigia, para o milagre da vida o milagre do amor.

Como toda a moça casta, sem o brilhante prestígio do ouro ou da beleza, fora sempre concentrada e retraída. Não dividia com outros os seus tímidos desgostos de donzela e as suas humildes decepções de menina pobre. Um como íntimo recato de orgulhosa fraqueza, associado ao pudor da sua imaculada inferioridade e ao decoro da sua virtude inútil, a faziam reprimir os soluços diante da família e das amigas, recalcando em segredo as lágrimas vencidas, que lhe subiam do coração e para o coração voltavam, sem que ninguém as visse ou enxugasse.

Nunca lhe ouviram a sombra de uma queixa. Todavia, na sua angelical credulidade, chegara a crer houvesse, no círculo ginástico da vida, alguma cousa entre os homens que não fosse egoísmo só e vaidade; chegou, pobre inocente! a supor que o fato de ser meiga, dócil, virtuosa e pura, lhe valeria o amor do moço pelo seu coração eleito; e, uma vez desiludida, a sua feminilidade, em lugar de expandir em flor o aroma dos vinte anos, fechou-se em botão para nunca mais rescender, vencida, como foram vencidas as suas lágrimas.

E também nunca mais lhe voltavam às faces as rosas, que a natureza aí lhe tinha posto, para atrair as asas dos beijos amorosos; nem aos olhos tampouco lhe voltaram as alegrias, com que dantes esperavam sorrindo o «Amo-te» sagrado.

Enfermou de todo. Afinal, a sua existência era já um caminhar seguro para a morte. O pai estalava de desespero, sentindo fugir-lhe irremissivelmente aquela vida estremecida, pouco a pouco, como um perfume que se evapora. Ela sorria, resignada. Estava cada vez mais abati da, mais fraca; parecia alimentar-se só com a muda preocupação da sua mágoa sem consolo. O pai levou-a a princípio para Santa Teresa, depois para o caminho da Tijuca, o médico, porém, à proporção que a moléstia subia, ordenou que fossem também subindo sempre, em busca da ares mais puros.

E lá iam eles, como um bando de foragidos, a fugir da morte. Só a doente parecia conformada com a situação, os mais se maldiziam e choravam. Ela sorria sempre, sempre triste, com o rosto levemente inclinado sobre o ombro.

Já quase se não distinguiam as suas falas, e só pelos olhos verdadeiramente se exprimia, que esses, como a estrelas, cada vez mais se acendiam à proporção que as trevas se aproximavam.

Às vezes, nem que pretendesse desabituar-se de viver, fugia para um profundo cismar, de que só a custo desmergulhava estremunhada. Pedia nesses momentos que lhe abrissem a janela do quarto, e o seu olhar voava logo para o azul, como mensageiro da sua alma, que também não tardaria, com o mesmo destino, a desferir o vôo.

-Ao amor! Ao prazer! Hurra! blasfemou o eco à fralda da serra da Tijuca.

E o carro dos libertinos sumiu-se na primeira dobra da estrada.

O campo recaiu na sua concentração.

A cadeirinha continuava no ponto em que a depuseram. O sol, ainda brando, derramava-se como uma bênção de amor, e nuvens de tênue fumo brancacento desfiavam-se no espaço, subindo dos vales como de um incensório religioso. O céu tinha uma consoladora transparência em que se lhe via a alma, pássaros cantavam em torno da tranqüila moribunda, ouvia-se o marulhar choroso das cascatas, a súplica dos ventos, a prece matinal dos ninhos. Toda a natureza parecia em oração.

A moça pediu que lhe abrissem a porta do palanquim e, reclinada sobre o colo do pai, fitou o espaço com o seu olhar de turquesa úmida. O azul do céu compreendeu o azul daqueles olhos celestiais. Houve entre eles um idílio mudo e supremo.

Ninguém em torno dava uma palavra, só se ouviam os murmúrios da mata, acordando ao sol, e os esgarçados ecos da música dos Meninos Desvalidos, que para além da serra tocava alvorada. A moça continuou a olhar para o azul, como se se deixasse arrebatar lentamente pelos olhos. Encarou longo e longo tempo o espaço, sem pestanejar. Depois duas lágrimas lhe apontaram nas pálpebras imóveis e foram descendo silenciosas pela palidez das faces.

Um sorriso que já não era da terra pairou um instante à superfície dos seus lábios puros.

Estava morta.

O sabor da existência

Terça-feira de carnaval, Gabriel acabava de acordar no seu quarto do «Provençaux» e permanecia na cama a pensar em Eugênia, quando lhe entregaram uma carta tarjada de negro que o convidava para o enterro dela.

Ergueu-se soluçando, sem querer acreditar no que vinha escrito.

Pois seria possível que aquela doce e mísera criatura se partisse desta vida, sem lhe deixar ao menos reduzir o novo desgosto, que ele involuntariamente lhe cravara no coração já tão magoado?... Pois então agora, quando justamente meditava ele os meios de reabilitar-se aos olhos dela, disposto a reagir por uma vez contra todas as degradações a que o arrastara a outra, é que Eugênia lhe fugia para sempre?... E lhe fugia levando consigo, no seu vôo externo, a lancinante impressão do último olhar que os dois entre si trocaram, ela de asas prestes a ganhar o azul, ele de rastros, a espolinhar-se no mais negro lodo da terra!

-Pobre Eugênia! murmurou arquejando o desgraçado. Nem de te chorar são dignas estas impuras lágrimas nascidas em antro tão imundo. Perdoa-me insultar-te ainda a branca memória com esta minha dor hipócrita e covarde. Nelas não creias, nem com elas se enterneça a tua alma compassiva e meiga! Fui eu quem te matou! Fui eu o teu algoz, anjo envenenado pelo amor que te inspirei! Desceste ao pântano, imaculada pomba; deletérios miasmas foi o que encontraste em lugar de amor que procuravas no meu coração de lobo. E agora choras tu, miserável! Cala-te, que o teu pranto põe feias nódoas na virginal mortalha da tua vítima! Traga em silêncio o remorso do teu crime, e volta à tua lama, libertino! Mergulha de novo na vasa em que agora bracejas aflito, e não levantes sequer o pensamento àquela que no mundo só teve uma falha cometida -a de haver um dia suposto digno de ser amado por ela!

E Gabriel, sufocado por uma nova explosão de soluços, rugiu apertando a cabeça entre as mãos:

-Maldito seja eu, contra quem tudo conspira! Foi-se-me a última esperança de salvação! Já nada me resta na vida! Acabou-se tudo!

-Ainda não! bradou numa voz à porta do quarto. Ainda te resta um amigo!

Gaspar! gritou o moço, caindo nos braços do padrasto. Perdoa- me, meu Gaspar!

-Cheguei neste instante e ainda não sei onde tenho a cabeça! disse o Médico Misterioso. Imagina que estava em Cantagalo à cabeceira de um moribundo, quando recebi de Pernambuco uma carta de meu cunhado Paulo Mostella, na qual me participava a crítica situação dos seus negócios e o estado perigoso da mulher. Podes calcular como fiquei com semelhante notícia; eu adorava minha irmã, era ela o último laço da infância que me restava no mundo... Três dias depois, meu doente de Cantagalo expirou. Não esperei por mais nada, corri a Pernambuco, sem me despedir de ti. Chego a essa cidade justamente no dia da falência de Paulo, e encontro Virgínia completamente perdida... Meus esforços foram baldados! Morreu-me nos braços! Paulo tinha de entregar-se no dia seguinte à prisão, a sua quebra foi considerada fraudulenta... mas, quando no momento terrível lhe invadiram o escritório, deram com o seu cadáver aos pés da secretária. Envenenara-se com ópio. Ao lado dele estava esta carta a mim dirigida.

E Gaspar tirou uma carta do bolso, e leu:

«Meu cunhado e amigo.

Escrevo-lhe na ocasião de morrer, e se lanço mão deste último recurso, é porque confio que o senhor olhará por meu pobre órfão, e nessa hipótese morro descansado.

Estou desonrado e estou viúvo; isto é, perdi as duas únicas cousas que me faziam viver - minha honra e minha família.

Gustavo já não é uma criança, tem dezenove anos e pode principiar a vida sem o meu auxílio; peço-lhe, porém, que o ajude com os seus conselhos e com a sua estima.

Adeus, beijo-lhe as mãos e agradeço-lhe tudo o que fez, e tudo o que fará por nos. - Paulo Mostella».

-Marido e mulher foram enterrados na mesma ocasião e no mesmo lugar, continuou o Médico Misterioso. No dia seguinte, tratei do órfão, e uma semana depois partimos para cá. Mas, trazia comigo uma idéia que muito me preocupava; é que a pessoa encarregada de dar-me notícias tuas me havia escrito, dizendo que Ambrosina fugira com a filha do meu cocheiro; que este morrera de desgostos, e tu procuravas morrer de extravagâncias... Falaram-me de orgias, de desvarios, do diabo! Vinha, enfim, impaciente por tornar a ver-te, quando te acho neste estado de desespero... Já sei! Eugênia morreu, e tu sentes remorsos.. Mas eu cá estou para amparar-te! É preciso que te resignes ao sofrimento e à decepção; a vida, meu filho, não é outra cousa! Entretanto, no dia em que te visse perdido para sempre, creio que não resistiria a esse último golpe, pois és agora a única afeição que me resta... Desvelei-me por ti, fui teu pai, teu amigo e teu guia; suponho que me assiste o direito de pedir-te um favor... Esse favor é que vivas, que trabalhes! é que não te deixes morrer, quando por mais nada, ao menos em consideração a mim!

-E que me importam a vida e o trabalho? Conto eu porventura com a existência? Ah! Para o que tenha de viver ainda, não serão, de certo os meios pecuniários que me faltarão!

-Tudo isso é um perfeito engano. Todo o homem precisa de trabalhar!... Quanto ao que possues, por mais que seja, não te chegará para gastares como gastas ultimamente. Lembra-te de que já fizeste vinte e três anos, e se não acentuares agora o teu caráter, se não constituires a tua responsabilidade de homem, muito menos o conseguirás fazer mais tarde. Quero que mudes de vida, repito; quando já não seja por mim, seja ao menos pela memória de quem se vai enterrar hoje!...

-Cala-te! gemeu Gabriel, abaixando o rosto.

E nesse mesmo dia, ardendo em febre, abandonou o hotel «Provençaux», ao lado do padrasto que o reconduziu para casa.

Esteve de cama uma semana inteira, chegando a perigar de morte. Vertiginosamente girava o seu delírio entre dois pólos bem opostos -Ambrosina e Eugênia. Cada um destes dois nomes não lhe saía dos lábios senão para dar lugar ao outro.

Levantou-se da enfermidade, não com a suave melancolia dos convalescentes, mas abatido e triste, como se no fundo do organismo lhe ficasse o vírus de um mal sem cura. Não tinha ele então desses momentos de inefável gozo de reviver, que são como o doce esvair de um crepúsculo entre a moléstia e a saúde; ao contrário, dir-se-ia que o seu espírito, à medida que o corpo recuperava as forças, ia mais e mais se afundando em lôbregas cavernas de desalento. Negra hipocondria toldava-lhe o semblante, varrendo-lhe dos olhos e dos lábios os derradeiros sorrisos.

Meses depois estendido numa chaise-longue, pés cruzados sobre a mesma, charuto ao canto da boca, olhos espetados no teto, quedava-se havia meia hora, silencioso e esquecido da presença do padrasto.

-Mas enfim... perguntou este, batendo-lhe no ombro; que decides?..

-Hein? balbuciou Gabriel.

-Vais ou não?

-Para onde?...

-Ora essa! Viajar! Pois não acabamos de tratar disso?...

-Ah! Sim, respondeu o moço, fechando levemente os olhos e mudando de posição na cadeira.

-Mas então?

-É! Havemos de ver...

-Ora! Estás insuportável!

Gabriel não ouviu já esta última frase, espetou de novo o seu olhar no teto. O padrasto fez um gesto de impaciência e pôs-se a andar de um para o outro lado da sala.

Ouvia-se o relógio palpitar a um canto, e o crepitar das asas de uma abelha, que lutava contra a vidraça da janela. A casa tinha um profundo ar de tristeza; sentia-se que nem sempre por ela circulava o ar, e que aquelas paredes e aquele teto não estavam habituados ao eco alegre do riso de crianças e vozes de mulher. Gaspar, depois de muitas voltas pela sala, foi postar-se novamente defronte de Gabriel.

-Então? disse, vendo que o enteado não dera por sua presença.

-Hein? repetiu o rapaz, fitando-o abstratamente.

O médico então se aproximou mais dele, e lhe tomou uma das mãos. Gabriel deixou cair a cabeça sobre o peito.

Pobre criatura... pensou o padrasto, depois de alguns segundos; muito caro pagas tu a falta de mãe durante a infância! Não serias assim, inútil e perdido, se nos teus primeiros anos de mocidade te inoculasse ela com o seu amor, a idéia do bem e da justiça! E, quem sabe, se não teria eu também grande parte na tua miséria, meu desgraçado filho?... Fui o teu exemplo, o teu guia, o teu mestre; eu! O menos competente para isso, pois que me faltava energia, faltava-me fé na própria vida; faltava-me tudo, menos o tédio e a tristeza; eu sabia que era homem, apenas porque sofria! E é este despojo, é este espectro de homem, que há vinte anos representa para ti todo o teu passado e toda tua família! Ah! Não serias sem dúvida o que és, se outro se houvesse encarregado da tua educação moral. Amei-te, só porque vinhas tu de tua mãe. Quanto egoísmo, meu Deus! E, entretanto, o meu amor nunca te serviu de benefício, fez-te ao contrário caminhar sempre na inútil sombra da minha árida tristeza... Eu me revejo em ti, querida vítima!

E Gaspar afastou-se para chorar à vontade. Gabriel deixou-se ficar na mesma postura, agora com o olhar ferrado no chão.

Pairava-lhe o espírito entre duas vastidões inatingíveis e ambas igualmente desejadas; uma, porém, toda claridade de luz sidérea e matinal, outra feita de ardentes chamas agitadas e vermelhas. E os dois infinitos se abraçavam como o céu se abraça com o oceano. Tranças louras, crespos cabelos negros, anjo e demônio se confundiam numa única saudade! E o casto e tímido sorriso do anjo era avidamente bebido pela boca sensual e vermelha do demônio; asas brancas, cobertas de nupcial e imaculado véu, estalavam nas garras do lúbrico e formoso monstro vestido de granada e ouro; alva açucena emurchecia e calava o seu virginal aroma embriagada pelos quentes sândalos do inferno.

Gabriel estava em ambos, e sentia perfeitamente no íntimo do seu desejo, que, apesar de tudo, se pudesse escolher, ele sacrificaria ainda uma vez o anjo ao demônio.

E esta convicção torturava como o vício inconfessável. Repugnava-lhe o seu próprio coração, e sentia a sua alma debaixo dos pés, envergonhada e suja.

A idéia da responsabilidade moral principiava a querer entrar-lhe o espírito, e o desgraçado fugia dela por compreender que lhe faltava coragem para ser homem. Daí a sua atual e constante preocupação -o suicídio. A morte lhe parecia a única solução possível para o infernal dilema daquela sua triste vida. Mas o suicídio também era um grande enfado. Exigia esforço moral e físico. Era afinal um penoso trabalho tão aborrecido talvez como o próprio viver.

-Diabo! exclamou ele, sacudindo a cabeça, para sair de todo do seu pesadelo. Maldita a hora em que nasci!

Gaspar, que o observava, correu a conter-lhe o nervoso ímpeto.

-Que é?! Que tens?! Perguntou em sobressalto.

-Nada! Nada - Um ligeiro abalo... Passou!

Nessa ocasião, foram interrompidos pela criada:

-Lá fora estava uma velhinha pobre, que desejava falar ao Dr. Gaspar.

-Deve ser algum dos meus doentes, disse o médico, e mandou que a fizessem entrar para o consultório.

Era a velha Benedita, a mãe do cocheiro Jorge, que andava a tirar esmolas pelas casas conhecidas. Gaspar não a reconheceu logo, mas, quando lhe ouviu o nome, a fez conduzir para a sala em que estava Gabriel.

A velha pediu licença de assentar-se, pousou no chão uma trouxa que trazia, e, gemendo a sua fraqueza deixou-se escorregar sobre uma cadeira.

-Ai! Ai! Suspirou ela, sorrindo, apesar do gemido.

E a pobrezinha de Cristo declarou que já não era senhora das suas pernas.

Estava muito acabada; a morte do filho e a fugida da neta apressaram-lhe a decrepitude.

Gaspar olhava para ela com ar compassivo e desconsolado. A mísera já quase nada restava de aparência humana; era uma fruta seca, lavada em risos de pedinte, a cara toda engrelhadina como uma castanha pilada, as ventas fungosas, e as orelhas bambas e em dependura que nem abalos tortulhos. A boca, inteiramente murcha e sem memória de dentes que a habitaram, não largava um só instante de remoer em seco, e a mandíbula inferior com tal ânsia se atirava à outra, que se diria querer devorá-la com as suas gengivas desbotadas e carcomidas. Por debaixo do queixo escorriam-lhe pelangas chochas e macilentas, e, através das farripas de coco que lhe ouriçavam a cabeça, transparecia-lhe o crânio, casposo e áspero como casco de cágado. Doía vê-la assim, indecorosamente desfeitiada de jeito humano, a agarrar-se com o seu último alento a esta terra onzeneira, a quem todavia bem pouco tinha ainda a pobrezita que restituir de si.

Gabriel não lhe tirava os olhos de cima. A mendiga, depois de muito tossir, vergada sobre a carcaça do peito, começou a falar com um vestígio de voz que lhe restava. Eram sons roufenhos, cheios de falhas e babujados de saliva.

-Que o senhor doutor não se enfadasse! Ela vinha pedir-lhe uma caridadezinha, e saber se porventura havia alguma notícia de sua neta...

Mas a idéia de Laura perturbou-a logo, e a coitada apertou ainda mais os olhinhos, espremendo em lágrimas a sua saudade por entre as remelosas pálpebras.

-Ah! Só Deus sabe... só Deus sabe... dizia ela dificultosamente, quase sem se poder exprimir; o muito que tenho padecido! Quando Laura nos abandonou e meu Jorge, meu rico filho! Me morreu, fiquei sem saber de mim!

-Mas, se me não engano, observou Gaspar com interesse, a senhora aboletou-se em casa de D. Genoveva e...

-É verdade! Eu fui para casa de D. Genoveva; mas é que depois as cousas mudaram de figura... Desde que o Alfredo perdeu o emprego...

-Quê? Pois o Alfredo não continua empregado em casa do Windsor?

A velha sustentava que não; não sabia, porém, explicar os pormenores desse fato. Só o que podia afiançar é que o Alfredo estava muito mal.

E com efeito assim era.

Durante a moléstia de Eugênia, já o amante de Genoveva se queixava do peito e da garganta, mas não tinha ânimo para abandonar o patrão na delicada conjuntura em que este se achava. Agravaram-se, porém os seus incômodos, e viu-se Alfredo obrigado a não sair da cama. Por essa época, Eugênia faleceu, e o pai, inconsolável resolveu retirar-se do comércio brasileiro, e partir com o resto da família para a Inglaterra, donde lhe propunham arranjo de vida.

Ora, entre Alfredo e o sócio restante na casa, havia uma velha rixa, que de muito teria lançado aquele no olho da rua, se não fora a proteção do Windsor.

Uma vez retirado este da sociedade, Alfredo, ainda de cama, recebeu a despedida do emprêgo com o pequeno saldo de seus ordenados.

Principiou então para ele e para Genoveva uma existência toda de dificuldades. A botica pedia dinheiro, a moléstia queria dieta, e os recursos não chegavam. A mulher atirou-se ao trabalho, tomou encomendas de roupa para lavar, lavou com talento, com coragem e com alma; o que aliás, nada é de estranhar, se nos lembrarmos de que a avó da viúva do comendador Moscoso, conforme dizia esta ao próprio marido, tinha sido no seu tempo a melhor lavadeira do Rocio Pequeno.

Quem puxa aos seus não degenera.

E, ou fosse por atavismo, ou porque a necessidade é o melhor mestre de ofício, o certo é, que Genoveva, a esfregar roupa, agüentava a casa, mantinha no colégio uma pupila, com quem em breve travará o leitor muito boas relações, e acudia com remédios à moléstia do seu homem.

A velha Benedita, essa é que tivesse santa paciência, mas o tempo não estava para caridade!... Que fosse bater a outra freguesia!...

E ela obedeceu, coitadinha! E lá foi bater à porta de Gaspar.

-Descanse, disse este, quando a velha terminou o seu longo aranzel. Não é necessário que peça esmola; recolha-se cá em casa, que nada lhe faltará. Olhe! Entre, e a criada lhe dará um cômodo. Vá, vá entrando.

Benedita já se havia levantado.

-E o meu Chimboraso, pode vir comigo? perguntou ela.

-Que vem a ser esse Chimboraso?...

-É o meu cão, Sr. doutor; um diabo de um bicho, que faz uma criatura gostar dele...

E o rosto engelhado de Benedita iluminou-se de alegria com a lembrança daquela sua última afeição.

-Animalito de Deus! Ah! Ela havia de mostrá-lo ao Sr. doutor!

-Pois que venha também o Chimboraso, disse o médico, procurando terminar a conversa.

E como a velha tentasse com muita dificuldade pôr-se de joelhos:

-Então? deixemo-nos disso; vá ver o seu cômodo, vá entrando, vá!

Benedita, sem dizer uma palavra, procurava beijar-lhe a mão.

-Ora, não, não! Opunha Gaspar, a empurrá-la brandamente para o interior da casa. Vá! Vá descansar!

-Ela obedeceu, agradecendo muito a esmola que recebia, e prometendo não se esquecer de Gaspar nas suas orações.

Já na porta, parou, e voltou-se para dizer:

-É que eu tenho tamanho medo de não resistir ao desamparo!... Quando penso na morte, fico toda fria: Oh! Não quero a cova!

Gabriel olhou para ela com surpresa.

-A morte!... que terrível cousa deve ser a morte. E a velha fez-se mais lívida. Quanto deve custar a uma criatura sair desta existência para ir meter-se debaixo da terra, num buraco! Ficar a gente fria, dura como um pedaço de pau, à espera que as carnes criem bicho, que os bichos nos chupem até fazer o osso limpo! Oh! Deve ser terrível! Que medo me faz a morte!

E depois de uma pausa, acrescentou com o olhar fito:

-Bem sei que pouco vale a vida. Isto tudo é miséria, isto tudo é engano, isto tudo é sofrer, mas em todo o caso não é a morte, não é o buraco na terra! Que bela cousa é a vida! Já não tenho olfato, nem paladar; já quase não posso ver; já não gozo amores, e, contudo, faço muito gosto neste restinho de vida. Nada! Assim mesmo velha, assim mesmo que não presto, quero a minha rica vidinha, quero ver isto por cá! Para morrer, todo tempo é tempo! Viva a galinha com a sua pevide!

E, com um riso do outro mundo, a velha saiu afinal, cantarolando e tremendo.

Gabriel ficou por muito tempo a olhar para a porta por onde ela saiu.

-Feliz destroço!... disse ele. Que inveja me faz a tua miséria!