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O boêmio

Gustavo, o sobrinho de Gaspar a este confiado por Paulo Mostella, vinha a ser o resultado daquela adiantada gravidez em que se achava Virgínia, quando a vimos em Pernambuco, nos últimos tempestuosos dias da árdega existência de Violante; o que quer dizer que vinte anos são decorridos depois disso, e que o Médico Misterioso está agora por conseguinte orçado pelos cinqüenta, e Gabriel com a metade dessa idade.

Gustavo era um belo moço no seu tipo nortista. Altura regular, boa saúde, olhos inteligentes, palavra fácil e riso pronto. Tinha o gênio arrebatado, mas o coração generoso e meigo, caráter desregradamente altivo e chapeado de fortes aspirações morais.

Chegara ao Rio de Janeiro com todas as doidas e perfumadas ilusões dos seus vinte anos, cavalgando, descalço e sem esporas, uma nuvem de sonhos e de esperanças.

Fora morar com o tio, mas logo ao fim de poucas semanas declarou abertamente que não podia continuar a viver do pão alheio e preferia aventurar-se lá fora, por sua conta, na luta pela existência. Embalde empregou o Médico Misterioso todos os meios para dissuadir de semelhante loucura, e embalde Gabriel juntou suas razões às do padrasto: «Gustavo nessa época apenas ganhava quarenta mil-réis mensais, como noticiarista de um periódico de vida não menos incerta que o referido ordenado, e, com magros recursos, iria sem dúvida sofrer por aí torturantes e ridículas necessidades!» Foi, porém, tudo inútil, e o sonhador mudou-se, com a sua nuvem cor-de-rosa, para a companhia de dois estudantes de medicina, igualmente pobres e não menos gineteadores de ideal.

Principiou então para ele a verdadeira vida de boêmia. Quanta privação e quanto vexame! mas também quanta dourada fantasia! Quanto aroma de mocidade em flor, e quanta delicadeza de sentimentos!

Com três forasteiras andorinhas se encontraram à beira de um telhado antes de formar o seu verão, encontraram-se os três boêmios um belo dia por acaso à mesa de um café da rua do Ouvidor, e conversaram, e riram, leram e fumaram de camaradagem os seus versos sem conta e os seus cigarros bem contados, fingiram juntos depois um jantar de quatrocentos réis por cabeça, e ficaram bons amigos. Já nessa mesma noite dormiram os três no mesmo quarto, e desde então formaram a sua república, onde muitas vezes durante o dia inteiro faltava o que comer, o que fumar e o que beber, mas onde nunca faltou do que rir, com o que sonhar e a quem amar.

Uma tarde, entretanto, Gustavo ficara em casa. Era o dia de seus anos, e nesse dia justamente o sonhador não havia jantado, nem almoçado, e a fome lhe fazia o tempo mais frio e as horas mais longas.

O sol escondera-se. Gustavo fechou o livro que lia e foi pôr-se à janela, a olhar vagamente para o espaço. Havia no ar uma dura melancolia, que se levantava para o céu com as pardacentas névoas exaladas da terra; a natureza, repousada e farta, bocejava a sua indiferença; a cidade, quieta e morna, parecia entorpecida na egoística placidez de uma digestão feliz.

A república era num segundo andar, nos fundos da rua Santa Teresa, e aos ouvidos do bôemio chegava o eco da música dos alemães tocando no Passeio Público.

Apareceu a primeira estrela.

Então o desterrado sentiu abrir-se-lhe por dentro no coração um fundo e sombrio vale de saudades. Lembrou-se da sua extinta família, das suas afeições interrompidas de toda a sua infância protegida e afagada. Quanta recordação! Naquele dia de seus anos reuniram-se em casa os amigos do pai, fazia-se festa, levavam-lhe presentes. Foi naquele mesmo dia que ele uma vez recebeu de mimo o relógio de ouro, agora empenhado sem esperanças de resgate, como recebeu o anel e o alfinete de gravata já também engolidos pelo mesmo sorvedouro.

Depois de muito divagar pelo seu passado ainda quente, Gustavo foi buscar o retrato de sua mãe e, à derradeira luz do crepúsculo, quedou-se a contemplá-lo silenciosamente, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces.

Dias depois, já o tal jornal em que ele trabalhava havia estourado, ficando a dever-lhe três meses de salário, e o sonhador atravessava as ruas da Corte, a torcer com insistência o buço, nesse ar desconfiado e revesso dos moços de aspirações intelectuais, a quem, fora da família, vieram a faltar de todo os meios de subsistência; cabeça baixa, olhar carregado, roupa no fio e sapatos rotos. Alguns conhecidos seu fingiam não o ver, menos o Reguinho que estava sempre a oferecer-lhe fantásticos empregos. Gustavo nessas ocasiões sentia um grande e impotente ódio sufocar-lhe o coração, e mentalmente fazia terríveis projetos de vingança contra tudo e contra todos.

As dificuldades reproduziam-se para ele sem trégua, nem resfolgo; cada dia a viver era um problema a resolver. Mas nem por isso se apeava dos seus sonhos, nem se deixava invadir pelo desânimo. Havia de achar furo na vida! havia de descobrir meios de vencer e chegar! havia de escrever os livros que sentia em gestação dentro do seu espírito, e havia de ter o quinhão que era da sua boca, o bocado para o qual a natureza o armara com aqueles belos trinta dentes, que ultimamente lhe serviam mais para rir do que para comer.

Que diabo! monologava ele em revolta. Há por aí tanto sujeito, nulo de inteligência e de aptidão para qualquer trabalho, que todavia anda limpo, satisfeito e confortado, por que não hei de eu conseguir ao menos ter o estômago seguro e um abrigo certo, para poder dedicar às letras algumas horas por dia?...

De todos esses misteriosos recursos, de que no Rio de Janeiro vivem em grande quantidade certos meliantes que muito consomem e nada produzem, o jogo, o calote, o dinheiro arranjado de empréstimo, as comissões gravadas à sede de pândega e à sensualidade dos ricos inexperientes, de tudo isso não tinha o pobre Gustavo sequer desconfiança na sua sonhadora ingenuidade; e o mesmo fato de se confessar ele necessitado de trabalho, como a sua leal modéstia, a sua franqueza, a sua honestidade enfim, eram outros tantos obstáculos que lhe trancavam os caminhos da vida.

De uma vez saiu a correr os colégios do Rio de Janeiro à procura de trabalho. Era impossível que entre tantos e tantos estabelecimentos de educação, não houvesse algum que precisasse dos seus serviços. Entrou no primeiro que encontrou. Veio recebê-lo um velho, cuja fisionomia branda e simpática, e cujos cabelos brancos e respeitáveis, lhe inspiraram logo grande confiança. O velho era o diretor do colégio; fê-lo entrar para a sala e lhe perguntou o que desejava.

-Ganhar a vida... disse Gustavo; venho oferecer-lhe os meus serviços...

-Como professor?..

-Sim, senhor, ou como simples empregado; estou numa situação da aceitar tu....

-Que matérias sabe o senhor?

-Para ensinar sei o português, francês, espanhol, aritmética e desenho.

-Nós precisamos justamente de um professor de espanhol; em breve vamos precisar de um de desenho e um substituto de português primário; o que aí está vai tratar-se em Barra Mansa...

O rosto de Gustavo tomou logo uma expressão mais animada; o velho, porém, o observava de alto a baixo, com gesto de desconfiança e desagrado.

-São justamente as matérias que poderei ensinar melhor. Meu pai era oriental e deu-me lições de espanhol desde muito cedo; no português também estou bem preparado, porque ultimamente tenho estudado com esperança de um concurso; quanto ao desenho, sei o suficiente para ensinar em colégio.

O velho, sentado comodamente em uma cadeira de braços, havia já apertado os olhos três ou quatro vezes, esticando os lábios, como quem medita; e depois, a esfregar as mãos nas coxas, perguntou:

-Trouxe consigo os seus atestados?...

-Que atestados?...

-É boa! De professor..

-Ah! Eu não tenho atestados... nunca fui professor... desejo justamente principiar agora...

-E olhe que não principia muito tarde!

E o velho, levantando-se resolutamente, convidou-o a sair com estas palavras:

-Pois, meu caro senhor, sinto muito não lhe ser agradável; mas... neste colégio só se admitem professores garantidos pela Instrução Pública.

-Mas, eu me submeto a exame, disse Gustavo, já também de pé; e se não estiver habilitado...

-Hei de pensar nisso! respondeu o diretor, sem mais procurar disfarçar a sua impaciência.

E fez um gesto com a mão aberta, o qual tanto podia significar «Passe bem!» como «Ponha-se a fresco!»

Gustavo saiu, sem dizer uma palavra; no corredor fez uma mesura.

-Viva! bocejou o velho, fechando a porta com estrondo.

O boêmio desceu as escadas furioso, mas sem desanimar, continuou a farejar trabalho pelos colégios. Uns não precisavam de professor; outros não o podiam admitir, porque ele era muito moço; outros não diziam a razão porque não queriam; outros voltaram à questão dos atestados, e todos o olhavam com a mesma desconfiança e o despediam com a mesma sem-cerimônia.

Ao meio-dia, Gustavo achava-se em Botafogo, defronte de um colégio de muito boa aparência.

Havia um homem na chácara; o rapaz disse, mesmo da rua, que desejava falar ao Sr. diretor.

-Não há diretor! respondeu secamente o homem.

-Este ao menos é original! pensou Gustavo, quase risonho.

-Então, com quem posso entender-me?...

-Com a diretora.

-Ah! É colégio de meninas!... Tenha a bondade de dizer à Sra. diretora que eu desejo falar-lhe.

O homem subiu uma escada de pedra, e pouco depois veio abrir o portão.

Que podia subir!

Uma mulher conduziu-o à primeira sala. Era um lugar decente, sério, rigorosamente mobiliado; nas alvas paredes havia finas gravuras representando assuntos religiosos.

Esperou cinco minutos. Depois abriu-se uma porta, e a mulher que o conduziu fê-lo entrar para outra sala. Achou-se então Gustavo defronte de três irmãs de caridade, dentre as quais a mais velha se adiantou para ele, com os olhos cravados no chão, as mãos engolidas pelas largas mangas do seu burel, e a cabeça toucada pelo característico e formidável lenço de linho engomado.

Gustavo vergou-se cortesmente e, por hábito social, estendeu a mão às religiosas, que logo se contraíram num escrúpulo freirático, rechupando mais os olhos e escondendo mais as mãos.

-V. V. Ex.as desculpem-me... balbuciou o moço, meio confuso; incomodeia-as, na persuasão de encontrar aqui o que fazer como professor...

-Ah! É professor?...

-Sim, minha senhora, respondeu ele, a reparar que uma das duas irmãs retropostas era bem bonita rapariga.

-É aqui mesmo da Corte ou é da província?... perguntou ainda a primeira, com um sotaque francês muito pronunciado.

-De Pernambuco, minha senhora.

E Gustavo, desta vez reparou que a bonita o observava debaixo dos cílios.

-Nunca tinha vindo ao Rio?...

-Nunca minha senhora.

E pensou consigo. Mas que olhos tem aquele diabinho!

-E tem gostado da Corte?...

-Nem por isso, minha senhora. Ainda estou desempregado.

E desta vez descobriu nos lábios da irmã dos lindos olhos a pontinha de um sorriso.

«Faço-me jardineiro neste colégio!» pensou ele, sob a influência dos olhos da rapariga.

-Mas... disse, procurando voltar ao principal assunto da sua visita; V. V. Ex.as precisam de mim...?

-E sua província é bonita?... interrompeu a irmã curiosa, sempre a olhar para o chão.

-Sou suspeito para responder, minha senhora. Mas, como dizia... Acaso V. V. Ex.as precisam...?

-E há muitos colégios em Pernambuco?

-Mau! disse Gustavo consigo, depois de responder alto que sim.

-O ensino é muito religioso?

-Sim, minha senhora.

-Pagam bem às professoras?

-Regularmente, minha senhora.

-E o clima, que tal é?

-Quente!

-E a alimentação?

-Comum!

-E o povo?

-Bom!

-Dizem que desordeiro!

-Histórias!

-E a cidade, é divertida?

-Nem sempre!

-Há passeios públicos?

-E teatros também, bailes, cafés, bilhares, há de tudo! Dançarinas de cancã e pândegas carnavalescas!

-Ah! exclamou a religiosa com um gesto de pudor.

E só abriu de novo a boca, para inquirir:

-O senhor sabe quem tenha para alugar uma rapariga que entenda de cozinha?...

-Não, minha senhora.

-Se souber, é favor mandá-la cá.

-Pois não, minha senhora.

-Quanto ao senhor, não o podemos aceitar, porque só admitimos professores eclesiásticos de reconhecida virtude...

-Então, tenha a bondade de dar-me as suas ordens...

-Deus o ajude!

E as religiosas viraram de bordo, depois de uma cortesia. Gustavo ganhou a porta, mas na ocasião de sair, voltou o rosto, e seu olhar encontrou no caminho o da rapariga bonita, que lá do extremo oposto da sala lhe atirou um sorriso franco e já de joelhos levantados.

No corredor estava a criada, à espera dele, para o conduzir à chácara.

Gustavo chegou afinal à rua.

-Apre! exclamou; que francêsa cacête, mas que linda menina!...

E à medida que ele, a retroceder lentamente pela praia de Botafogo, se afastava do colégio das irmãs de caridade, a sua imaginação, moça e fogosa, voltava para lá, a galope.

E a endiabrada ia saltando grades, atravessando quartos, até chegar à perfumada cela da linda religiosa de olhos meigos. Encontrou-a sozinha, a rezar no seu oratório. O grosseiro burel do hábito não permitia que se lhe suspeitasse o desenho voluptuoso das formas, sumia-lhe o corpo, deixando permanecer em evidência apenas o rosto angelical, a que as abas da touca de linho branco serviam de asas de querubim.

-Como eu te amo! dizia Gustavo no seu sonho, a beijar imaginariamente aqueles dois belos olhos castanhos, que se lhe quedavam gravados na alma com o sorriso com que se despediram dele.

E depois, num amor ideal, religioso, etéreo, seu espírito, abraçado ao dela, voava pelo espaço afora, entre nuvens de incenso e coros celestiais, que lhe faziam a ambos tremer de gozo as asas entrecruzadas.

De repente, porém, uma circunstância o chamou à dura realidade da existência: era a necessidade absoluta de comer; tinha o estômago completamente vazio. Deu balanço às algibeiras, e daí a pouco, já instalado numa mesinha de mármore do café de Londres, fazia defronte do seu almoço de trezentos réis as seguintes reflexões:

-Como deve ser delicioso casar-se. a gente com uma criatura daquelas! vê-la sempre a seu lado, amá-la a todos os instantes, e viver só para ela, e só dela! Deve ser muito bom!... Tão bom, quanto é aborrecido almoçar café com leite e pão torrado, quando a alma nos está a reclamar, do fundo das entranhas, alegres bifes com batatas e um bom copo de vinho!...

Ao chegar à república, um dos seus companheiros o recebeu com esta frase:

-Ó Gustavo! Queres ganhar uns cobres?...

-Pronto!

-Sabes desenhar, não é verdade?

-Mais que o Pedro Américo! Por quê?

-Pois se quiseres, vamos imediatamente à casa da minha lavadeira. Pediu-me ela que lhe arranjasse um desenhista para retratar o cadáver do marido. Serve-te a encomenda?

-E quanto estará disposta, essa providencial e ensaboadora viúva a pagar para que eu lhe imortalize o malogrado esposo?...

-Não sei... mas o que vier é dinheiro, e nós estamos a tinir.

-Pois mãos à obra! exclamou Gustavo alegremente.

E, depois de munir-se da sua pasta e dos seus petrechos de desenho, saiu com o companheiro para a residência da tal lavadeira, cuja figura, como vamos ver, é aliás muito velha conhecida do leitor.

Era a primeira vez que Gustavo ia desenhar por dinheiro. Até aí seus trabalhos artísticos não passavam de exibições em família, no seio de parentes e íntimos amigos, que a uma voz proclamavam com igual entusiasmo o grande talento do menino; de sorte que o modo frio e quase desatencioso pelo qual o receberam em casa da lavadeira, doeu-lhe no coração como clamorosa injustiça ao seu indiscutível mérito.

Entretanto, ia aparando os lápis, preparando o papel e os esfuminhos; e afinal, tomando a sua pasta assentou-se com esta sobre as coxas, defronte de um longo canapé de palhinha, onde estava o defunto, magro, estirado e duro, como se fora feito de sola.

Principiou a obra, no meio de um grande silêncio compungido, em que se arrastavam suspiros espaçados.

Ouvia-se ranger o carvão sobre o papel de Holanda. Ao lado dele, o amigo que o levara acompanhava com a vista o trabalho, e procurava ajudar o desenhista, lembrando particularmente da fisionomia do defunto.

-Olha que ele tem as ventas mais abertas e o queixo mais magro!... dizia, com a voz misteriosa e benfazeja. Puxa o cabelo mais para a esquerda!

Gustavo não protestava por delicadeza, mas as pessoas que lhe ficavam em frente bem percebiam a sua contrariedade.

Uma velha já se havia chegado para junto do retratista, com o rosto seguro pela mão esquerda e o cotovelo apoiado na direita.

Depois, vieram outros, até que afinal se viu Gustavo cercado por todos os lados. Entre essas pessoas estava, como milagre, a dona daqueles bonitos olhos, que pela manhã, no colégio das irmãs de caridade em Botafogo, se lhe haviam gravado no coração; mas Gustavo, sem desprender a vista do trabalho, deles sentia apenas o doce eflúvio banhar-lhe a alma.

O defunto, estendido no seu canapé, parecia estar só à espera que o rapaz lhe acabasse o retrato, para resolver numa gargalhada escarninha, o inquietante sorriso que abominavelmente lhe entretorcia os lábios de múmia.

Gustavo pediu que retirassem das ventas do retrato duas bolinhas de algodão que ali lhe haviam posto.

Às seis horas da tarde, estava pronto o desenho Gustavo assinou-o, e entregou-o à dona da casa.

-São quarenta mil-réis, disse, com pretencioso ar de artista.

-Bem, respondeu aquela; mas o senhor fará o obséquio de mandar receber amanhã, porque a pessoa que tem de dar o dinheiro só mais tarde chegará.

No dia seguinte, ainda no corredor, a lavadeira disse-lhe que a obra não valia quarenta mil-réis; que o pagador da encomenda não achava o retrato parecido, nem sequer bem desenhado; que o autor de semelhante caricatura devia contentar-se com vinte mil-réis!...

E, como Gustavo recalcitrasse, veio o próprio dono da encomenda despachá-lo.

O quê?! Pois tu é que és o tal artista? disse o Médico Misterioso, muito surpreendido defronte de Gustavo.

-É verdade, meu tio, sou eu.

Gaspar não pôde deixar de rir.

Como o leitor já compreendeu naturalmente o morto, que Gustavo retratara com mais convicção do que perícia, era Alfredo, o nosso velho Marmelada; e a lavadeira era Genoveva, que se não podia consolar da perda do seu querido companheiro.

-Uma cousa é ver e outra é dizer, minha rica amiga, explicava ela à velhinha Benedita, que aparecera para fazer companhia ao cadáver. Era um santo homem! Nunca lhe vi o nariz torcido; sempre amável, risonho e procurando meios e modos de agradar-me! Coitado!

As amigas ouviam estas palavras a sacudir simultaneamente a cabeça, como se uma só invisível mola imprimisse a todas o mesmo movimento.

-Ai! Ai! disse uma.

E o coro respondeu:

-Ai! Ai!

-É o caminho de nós todos! Sentenciou outra.

-Digo-lhe com franqueza, continuou Genoveva, empenhada na conversa com Benedita; o defunto comendador, apesar de ser quem era e do muito que gastava comigo, nunca me deixou tantas saudades com esta criatura! Não sei que diabo tinha este homem para se ficar gostando tanto dele!...

-É a amizade que a gente toma! Procurou explicar sentenciosamente a velhinha Benedita; mas, para consolar você não se deve agora matar por amor disso!... O que não tem remédio, remediado está!...

-Mas custa tanto!...

-Custa, é verdade; mas se tenho de ir eu, vá meu pai que é mais velho!... resumiu a velhinha com o seu riso egoísta.

-Ai! Ai! Suspirou Genoveva.

E passou a descrever a moléstia e a morte de Alfredo:

O homem, há muito tempo já, não andava bom; queixava-se de uma pieira no peito e de um cansaço aborrecido nas pernas. Às vezes ficava amarelo e com fastio, que Deus nos acuda! - «Desta mesmo não me levanto!» eram as suas palavras de todo o instante; e ultimamente então deu para ficar nervoso por tal forma, que não pregava olho durante toda a noite... Foi nessa época que aquele malvado o despediu do emprego! Imaginem vocês como o pobre do homem não ficou! Nunca mais levantou a cabeça! Até que ontem, quando eu estendia a roupa para corar, veio a negrinha dizer que seu Alfredo estava roncando na cama, muito aflito... Larguei tudo de mão, e corri para junto dele. Remédio daqui! remédio dali! mas qual! O pobre homem roncava, roncava, muito agoniado, sem encontrar posição na cama; até que afinal tive um palpite, e mandei chamar o Dr. Gaspar, que é homem que nunca se negou aos pobres! Veio o doutor, viu, examinou -estava morto! Então pedi ao médico a esmola de pagar a um desenhista o retrato do meu defunto!

-Não! respondeu Gustavo. O senhor declarou já que a obra não presta! Não aceito pagamento!

-Mas, vem cá, meu filho! Eu não sabia que o trabalho era teu!...

-Tanto melhor! Porque assim falou com franqueza. Se alguém aqui deve estar agradecido, sou eu, que ganhei uma lição!

-Sim, mas, vem cá, disse o médico, obrigando o sobrinho a entrar para a sala de Genoveva. É preciso que nos entendamos por uma vez; preciso ter a consciência tranqüila!... No fim de contas, és meu sobrinho, e eu tenho obrigação de saber de tua vida!

E depois de um pausa:

-Por que não vais morar novamente lá em casa? Que caprichos são esses comigo, que represento aqui tua única família e fui tão bom irmão de tua mãe?... Pensas que não sei a vida miserável que tens levado ultimamente? Por várias vezes, chamei-te para casa, sem que ao menos me respondesses... Entretanto isto não pode continuar assim! Teu pai encarregou-me de cuidar de ti; sei que não sou rico, mas felizmente os meus recursos chegam para mais um...

-Obrigado! interrompeu Gustavo. Eu conto empregar-me agora... Vou entrar em concurso.

Enquanto não aparecer o emprego?...

-Então? perguntou o outro em ar de amizade. Posso contar contigo amanhã...

-Não dou certeza...

-É porque não tencionas ir. Todavia, seria muito razoável que aceitasse de minhas mãos o auxílio que preferes receber das mãos de estranhos...

-Quem lhe disse que eu aceito obséquios de alguém?!

-Calculo eu, ora esta! Tu não tens rendimentos, não tens emprego, hás de aceitar de alguém os meios de subsistência..

-Em todo o caso, é justamente para lhe não dar o direito de lançar-me em rosto a minha miséria, que recuso o agasalho que me oferece! Se o senhor me fala agora deste modo, como não me falaria se eu vivesse à sua custa! Não vou!

-Estás muito enganado! Falo-te como pai, e quero que me obedeças como filho. O teu lugar é lá em casa! Exijo que vivas em minha companhia!

-Não posso!

-Mas por quê?

-Porque não quero!

-Reflete bem!

-Não! Não! E não!

Vésper

Palpitava de comoção a edemoninhada zona do Rio de Janeiro, que vai desde o Largo do Paço até à nascente da rua do Lavradio. A parte leviana e galhofeira da população carioca agitava-se na rua do Ouvidor, eletrizada de interesse por uma grande novidade.

O que teria acontecido de tão extraordinário, para trazer assim em alvoroço. Os repórteres das folhas e os afiambrados janotas dos pontos de bondes. Que diabo poria em reboliço as redações dos jornais, os salões de carambola e de sociedades carnavalescas, as lojas e armarinhos de jóias e de modas, as confeitarias, cafés e restaurantes do alegre coração da cidade?! Seria a morte do Imperador? seria a queda do Partido Liberal? Seria algum levantamento da escravatura? Seria a quebra de algum banco? Seria uma nova guerra com alguma outra República vizinha, ou seria simplesmente o sorteio da grande loteria da Espanha?

Nada disso. A parte folgazã da população do Rio de Janeiro delirava de entusiasmo, apenas porque no vasto e constelado horizonte da bela pândega fluminense, raiara uma nova estrela, bonitona e petulante, ameaçando ofuscar, só com a sua brilhante apariação, todas as outras que cintilavam no satânico empirio.

Era a ordem do dia a «Condessa Vésper». Por todo o ruidoso centro do prazer carioca se falava com febre da deslumbrante criatura, que atravessara a rua do Ouvidor vestida de veludo carmezim bordado a ouro, faiscante de rica pedraria e jóias orientais.

Vinha diretamente de Paris, depois de percorrer todas as capitais do mundo, em que mantém no vício-amor o seu mercado alto. Trazia de comitiva um secretário louro, membrudo, barbado e enluvado, que lhe dava o tratamento de «Alteza», e um grande mono das Antilhas, que na rua lhe carregava a bolsinha de mão e lhe abria com irresistível graça a portinhola do carro.

Um delicioso escândalo!

Todos corriam a vê-la, todos a queriam conhecer. Inventaram-se logo em torno dela mil lendas e tradições. Uns a diziam artista, sem dúvida judia e grega, que só entre essas poderia haver mulher tão formosa; outros protestavam com orgulho ser a Condessa Vésper, brasileira legítima, que em Paris casara com um fidalgo russo e depois fugira com um tenor italiano; outros enfim pretendiam que ali andava maganice alta de príncipes, e citavam confusamente, de ouvido em ouvido, o nome do Duque de Saxe e do Conde d'Eu.

Essa estranha condessa era nada mais nada menos que Ambrosina. É que três anos haviam decorrido sobre os acontecimentos relatados no último capítulo, três anos que, dia a dia, nada apresentam digno de nota, mas que vistos em conjunto representam nestas Memórias um importante período de transformações.

Durante esse tempo, tudo e todos se foram modificando lentamente, menos a velhinha Benedita. Desde o Médico Misterioso até o nosso recente Gustavo, grandes transformações operaram. Genoveva, a legítima descendente da flor das lavadeiras do Rocio Pequeno, já não mora na sua casinha do Engenho Novo; novas dificuldades depois da morte do seu homem e a sua índole rasteira, carregaram com ela para um cortiço, ficando a casinha alugada por oitenta mil-réis mensais. Tal mudança, digamos francamente, não foi penosa à mãe de Ambrosina, e cremos até que, de muito antes estaria realizada, a não ser certa consideração ao então restaurado Alfredo.

Genoveva tirava bom partido dos seus cinqüenta anos. A gordura parecia querer cortar-lhe a atividade, ela porém, azafamada e forte reagia, levantado-se às quatro da madrugada, e mourejando que nem um negro durante o dia inteiro. Nunca se sentira tão bem como ali, com seu ruidoso par de tamancos, toalha à cabeça o vestido enrodilhado nos quadris, e toda escorreita e sacudida a bater a sua roupa, entre a deferência e a estima das colegas.

Os moradores do cortiço tinham por ela um respeito particular, davam-lhe o tratamento de dona e falavam misteriosamente de uma filha, que lhe entrara para o convento; de um comendador, que desaparecera arrebatado por desgostos, e finalmente de uma riqueza, de cegar! Escondida no quintal da casinha do Engenho Novo.

E a viúva do comendador açulava inconscientemente tais fantasias, porque, gostando aliás de tagarelar o seu bocado nas horas de descanso, fugia sempre da conversa quando lhe tocavam nos parentes, ou lhe remexiam no passado.

Ninguém seria capaz de dizer que ali, naquela velha robusta e trabalhadora, estivesse a rapariga linfática e bamba de trinta anos atrás. A planta, nascida entre a roupa molhada e a grosseira alegria do cortiço, definhara nas salas tristes do comendador, mas uma vez transportada para o meio em que brotara, levantou e vicejou radiosa.

Assim como Genoveva, outros personagens se transformaram; Gustavo, por exemplo, já não era o mesmo sonhador boêmio, a bracejar na desordem e na miséria; trazia agora a vida metodizada e segura, graças exclusivamente à inflexível perseverança do seu esforço. Havia publicado com algum êxito nada menos que três romances, conseguira fazer representar um drama, era colaborador efetivo do «Correio Mercantil» e tinha duzentos mil-réis mensais numa secretaria pública.

Mas, como já estava ele longe de sentir as comoções que experimentou quando viu, pela primeira vez, versos seus publicados?...

Foi num domingo: alguns rapazes haviam fundado pouco antes um jornalzinho, e pedido a Gustavo que mandasse para ele alguma cousa. Gustavo mandou uma longa poesia, em versos soltos, que comeu quase toda uma página. E durante a composição não se pode arrancar de ao pé dos tipógrafos, preso por um delicioso interesse, uma impaciência irresistível e torturante.

Esqueceu-se de jantar, e ao receber as primeiras provas, tremiam-lhe as mãos e saltava-lhe o coração. Afinal, já à noite, saiu da redação com uma folha impressa, e lá foi pela rua, a ler, gesticulando, sentindo em todo ele o eco de cada frase, de cada palavra, de cada sílaba. O mundo em torno era nada ao lado daquele pedaço de papel impresso! Como lhe pareciam pequeninos e vis os burgueses satisfeitos que desciam para os teatros! Como tudo era mesquinho, reles corriqueiro, ao lado daquela produção do seu talento, ali estampada em letra de forma, tal como a obra dos poetas consagrados, cujos nomes lhe enchiam a alma de fecunda inveja!

Mas tudo isso passou, como passou a sensação do primeiro elogio pela imprensa, o sentimento de glória da primeira transcrição espontânea, e o íntimo orgulho do plágio, de um ataque insultuoso ao plagiado.

Larguemos, porém de mão o nosso poeta, e vamos surpreender Gaspar no seu antigo gabinete de trabalho, ao lado de Gabriel.

Olhe o leitor, e verá duas sombrias figuras -um velho calvo, encanecido, todo coberto de luto, e um rapaz louro, prematuramente cansado da existência, e transpirando pelos gestos, pelo olhar, pelas atitudes, o fastio dos fartos e o tédio dos ricos ociosos.

Estão aí assim há duas horas, a conversar frouxamente. o moço fuma charutos seguidos, toscanejando no fundo da sua poltrona, e o velho, assentado ao lado de uma secretária, com a cadeira cercada de papéis rotos, vai, enquanto conversa, passando os olhos pelas cartas, que tira de um grande maço de sobre a mesa e, depois de rasgá-las, arremessa ao chão.

São três horas da tarde, em fins de abril. O dia triste e úmido entra pelas vidraças embaciadas da única janela do gabinete, e põe nos objetos um ar sinistro e melancólico.

O moço queixa-se de aborrecimento, e espreguiça-se de instante a instante, a abrir a boca. O outro, depois de inutilizar os seus papéis velhos, levanta-se e vai assentar-se ao lado dele.

-Mas, vamos a saber, disse; estás pelo que te propus?

-O que é mesmo?...

-Pelo empréstimo dos cinqüenta contos de réis.

-Ah! Quando quiseres...

-Bem! Então amanhã, sem falta, me darás.

-Mas o que tencionas fazer desse dinheiro?

-Ainda não te posso dizer; mas descansa, no destino que lhe vou dar, não arriscas um vintém... os próprios juros ser-te-ão restituidos religiosamente. É uma questão toda de confiança...

-Bem! Já não digo mais nada.

-Amanhã mesmo te darei os documentos da dívida.

-Como quiseres...

E passaram a conversar sobre outros assuntos.

-Quando partimos?... perguntou Gabriel.

-Para o mês que vêm, naturalmente. Tenho ainda que providenciar sobre muitas cousas; é preciso acomodar a velha Benedita, encarregar algum colega de certos doentes, tratar de uma infinidade de maçadas. Felizmente o Gustavo não me dá o mínimo cuidado.

-Esse nem sequer tira o chapéu quando me vê. Um doido!

-Não é por mal, contradisse Gaspar. Tu é que te não devias incomodar com isso! Ele é um bom moço... tem caráter e tem talento.

-O que, homem? Sabes lá o que ele diz de nós?

-Não há de ser tanto assim...

-Chamou-nos basbaques, em presença de quem o quis ouvir; disse que tanto eu, como tu, éramos duas crianças, dois tipos românticos, que vivíamos na lua!

-E olha que disse meia verdade, respondeu Gaspar, depois de uma pausa; porque, no fim de contas, as circunstâncias especiais da existência, de qualquer de nós dois, nos puseram fora do alcance das forças práticas da vida comum e das leis reguladoras da sociedade. Hoje mesmo, que estou velho e vejo o mundo por um prisma bem diverso; hoje, que tenho o raciocínio já apurado pela experiência, ainda me sinto dominado todavia pela corrente romanesca em que nasci, e na qual palpitou a minha inútil juventude. Tu vieste depois, é certo, mas nunca viveste no teu tempo, nunca dependestes dos homens para os conheceres; nunca foste oprimido, para poderes ter perfeita compreensão da justiça; nunca sofreste misérias, em luta pela existência, para poderes formar idéia justa da verdade. E, nessas condições, sem um lugar entre os homens, sem parentes, sem responsabilidade e sem amor, vivendo às cegas, iludido, explorado e desestimado, não pudeste compreender o mundo que te cercava, e tiveste de voltar as vistas e a atividade dos teus sentimentos para o passado. Esse passado era tua mãe e sou eu; isto é, era o romantismo no seu maior desvario. E aí tens como nunca chegaste a compreender, meu pobre Gabriel, a época em que tens vivido!

Gustavo, entretanto, prosseguiu o médico, é um produto de elementos inteiramente contrários aos que determinaram o teu caráter e o teu temperamento; há entre vocês proporção de idade e relação mesológica, mas absoluta incompatibilidade no modo de ver as cousas. Formam os dois uma medalha, cujos lados, apesar de juntos, nunca se poderão unir. E, se quisermos determinar qual dos dois lados da medalha é o direito e qual o avesso, não o conseguiremos, porque ambos são legítimos e lógicos, e ambos têm a sua razão de ser. Foi por isso que jamais conseguimos a amizade e a confiança de Gustavo. O presente desconfia sempre do passado, e nunca o toma a sério. Gustavo revoltou-se contra nós, porque o seu espírito moderno, frio e observador, tendia fatalmente a reagir contra nossa abstração idealista, que nos levava à contemplação e ao êxtase. O moço pobre, trabalhador e independente, não podia suportar a nossa tristeza e a nossa concentração. Para ele somos simplesmente ridículos mas a verdade é que somos, nós dois, por processos diversos, igualmente atrasados; eu, porque me deixei estacionar, e tu, por um simples fenômeno de educação e de hereditariedade.

Gabriel atirado indoletemente na sua poltrona, ouvia as palavras do padrasto, quase sem as compreender. Era a primeira vez que lhe arrastavam o espírito a semelhantes considerações; nunca até aí cogitara dos elementos que determinaram a sua farta existência, e nunca se lembrara de prestar contas dos seus raciocínios. Havia aceitado a vida, sem indagar donde ela vinha, nem para onde se encaminhava. Um dia deu por si no mundo, reparou que era rico e bem parecido; tinha dinheiro e saúde... Era gozar! Que lhe importava o resto? A fortuna chegara-lhe às mãos como uma carta anônima, e ele nem sequer agradecia, porque não tinha a quem dirigir os seus agradecimentos. As circunstâncias do meio, da educação e da hereditariedade fizeram-no pueril e romântico, e ele de braços cruzados aceitou essa imposição, como quem aceita uma fatalidade orgânica. Não reagiu contra ela, como não reagiria contra o seu sexo, se nascesse mulher.

Eis, porém, que agora Gaspar, para o obrigar a ver claro, lhe torcia o olhar para a frente.

-Mudaram-se os tempos! disse o velho, depois de mais algumas considerações. Já não se trata de querer ou não querer acompanhar o movimento da sua época; trata-se de seguir a onda evolutiva ou ficar esmagado pelos que vêm atrás! Eu, por mim, estou velho e com os pés inclinados para a cova, pouco se me dá a onda me passe por cima; tu, porém, és moco e tens um grande campo aberto defronte dos olhos. É preciso que avances corajosamente, e eu não quero morrer sem te ver a caminho!

-Mas, nesse caso, o que me compete fazer?

-Trabalhar! Estou farto de dizer-te! É necessário que escolhas qualquer profissão, que te dediques a qualquer idéia! Daí é que te virá o ingresso na vida e entre os homens; daí se formarão as proporções da tua individualidade pública. Serás grande, se o teu trabalho for grande; serás menor, se o teu trabalho for pequeno. E se tiveres talento, abnegação e coragem, se viveres um pouco da alma dos outros, serás mais do que tudo isso, serás amado, não por um amigo ou por uma mulher, mas por um povo ou por uma geração!

Gabriel concentrou-se para meditar o que acabava de ouvir.

-Tens um exemplo no próprio Gustavo. Viste o modo sobranceiro pelo qual procedeu ele conosco; entretanto, é nosso parente e nada mais possuía além da boa vontade de trabalhar.

-Um pobre diabo!

-Foi! Será talvez ainda hoje, mas cada dia que passa é um degrau que ele sobe! Sem instrução, sem dinheiro, sem protetores, conseguiu todavia não se deixar morrer. Já é muito! E não se deixar corromper; o que é tudo! Ah! tu não podes fazer idéia do que é a existência, aos vinte anos, quando a temos de extrair de nós mesmos; nunca viveste nesse inferno, mas em compensação, nunca desfrutarás o paraíso que se alcança depois de atravessá-lo. E sabes por que razão Gustavo resistiu e venceu com tanta coragem às suas dificuldades? É porque tem um ideal. Eu próprio, ao ler os seus primeiros trabalhos literários, não pude deixar de rir, e cheguei a ter compaixão do pobre pretensioso; o segundo trabalho foi melhor, porém, que o primeiro, e, ao sexto ou décimo, já ninguém sorria, e muitos principiavam a confiar no futuro do novo literato. Vê como ele caminha agora!

Pela sua perseverança, pelo seu esforço, começa a galgar posição. Já é alguém! Os jornais ocupam-se dele em todo o Brasil, e pouco lhe falta para ter um nome feito. Agora é que Gustavo já não precisa absolutamente de nenhum de nós dois, e principia a sentir, por mim e por ti, uma compaixão muito mais legítima do que aquela oue me inspirou noutro tempo. E, à proporção que for ele caminhando, essa compaixão, se não trabalhares, irá crescendo, na razão direta do seu desenvolvimento e na inversa da tua decadência... Sim! Porque tu, se não trabalhares de qualquer forma, hás de fatalmente decair. É justamente essa diferença que há entre tu e ele. Tu gastas e ele ganha; ambos caminham para os extremos -ele da fortuna, e tu da miséria!

Suponho que estás em erro...

-Eu tenho certeza de que não estou. Todos nós nos achamos dentro do mesmo círculo destas leis de existência. Entretanto, o único fato que estabelece a superioridade de Gustavo sobre ti, é simplesmente a circunstância de haver ele nascido pobre, e tu rico. Para dizer tudo, acho até que tens mais talento do que ele e poderias, se não fosse a riqueza, ir muito mais longe e muito mais depressa.

-Mas, a que trabalho me hei de eu agora dedicar? estou velho, Gaspar!

-Qual velho, o quê! Para remediar um mal nunca é tarde! Principia por acabar de vez com a vida que levas, e vê se te casas. A família é uma responsabilidade efetiva, que te porá em ação para outras conquistas.

-Casar-me? Ah, isso é que não é possível!

-Não sei por que, mas adiante!

-Também acho pouco fácil romper de golpe com os hábitos e as relações que me cercam.

-Isto é o menos; depois da viagem que vamos fazer, nada disso existirá. Podes na volta começar vida nova.

Gabriel concentrou-se por algum tempo, e afinal levantando-se da poltrona, bateu com a mão fechada sobre a mesa:

-Pois está dito! exclamou ele. Vou trabalhar! Hei de ser um homem!

-Muito bem! disse Gaspar, abraçando-o. Só assim não levarei remorsos para a sepultura...

-Afianço-te que não os levarás!

-Conto contigo!

-Mas, nós precisamos partir o mais breve possível.

-Quanto antes!

E os dois iam entrar nos projetos da sua nova existência, quando a criada os interrompeu. Era uma carta para Gabriel.

-Sem-vergonha! resmungou este, depois de a ler.

-O que é? perguntou Gaspar.

-Nada... é aquela peste da Ambrosina que acaba de chegar da Europa, e tem o descaro de escrever-me...

-Mau... mau!... exclamou o médico, deixando-se cair numa cadeira.

Passagem de Vênus

A Condessa Vésper continuava a ser a ordem do dia na rua do Ouvidor. Seu nome corria de boca em boca, pronunciado, com quebramentos de olhos e sibilos de volúpia.

Por toda a parte se falava nela.

-Não imaginam! É uma escultura! Uma verdadeira escultura! dizia um sujeito bem vestido num grupo em casa dos Castelões. Viajei por quase toda a Europa, parte da Ásia, conheço África, bati a América de um lado a outro, gastei com as mulheres de mais afamada beleza, tive mulatas e negras, louras irlandesas, espanholas morenas, frias inglesas, e francesas de toda a casta, mas confesso que nunca vi um corpo comparável ao desta! - É simplesmente assombroso!

E o homem, entusiasmado pelo efeito que as suas palavras produziam na roda, deixava-se arrastar por elas e exagerava ferozmente os dotes físicos de Ambrosina, gozando da suposta superioridade de ser ele ali o único que a conhecia de perto, e fazendo disso um glorioso direito de a defender como cousa sua, sem admitir que ninguém no mundo conhecesse mulher mais bela e sedutora.

-Não! Deixe lá! Opunha um velhote, com um sorriso cheio de autoridade e boas recordações; deixe lá! Há de ser muito difícil encontrar um corpo como o da Aimée! Aquilo é que era mulher!

E o velho mordia os beiços com o que lhe restava os dentes.

-Ora, Conselheiro! bradou o outro revoltado; vem-me cá V. Ex.ª falar na Aimée!... Veja esta!, veja e dir-me-á depois se se lembra mais da Aimée! Ora, ora! logo quem - a Aimée! Um manipanso!

-Manipanso?! repetiu o Conselheiro com um frouxo de indignação e de tosse. A Aimée um manipanso?! Ah, que se não fosse por temor ao escândalo, dava eu aqui mesmo a única resposta que merece semelhante sacrilégio! Chovam do estrangeiro as condessas que choverem; a Aimée há de ser sempre a Aimée! Ora sebo!

-Não, Conselheiro, tenha paciência! Pode V. Ex.ª, esbugalhar os olhos como quiser e fazer-se ainda mais roxo do que está, não admito mulher mais bela que a Condessa Vésper! A Condessa Vésper! Ver a Condessa Vésper, e morrer!

-Pois sim! Não aparecem duas Aimées no mesmo século, meu caro senhor!

-Além disso, que mulher fina! Que francês o seu! Que chic! Que verve! Que...

Mas foram interrompidos por um formidável zunzum. Ambrosina nesse instante passava pela rua de Gonçalves Dias.

Ia toda cor de pérola, luvas até às axilas; governava ela mesma, com muita graça o seu phaeton, e da traseira o macaco guinchava, a fazer momices extravagantes.

Correram todos para lá, com um frenesi escandaloso. Os negociantes, em mangas de camisa, abandonavam o balcão; senadores, deputados, proprietários, janotas, comendadores, repórteres e estudantes, tudo que há de bom e tudo que há de mau em trânsito pela rua do Ouvidor, se abalroou numa só onda. Era um delírio de curiosidade!

Vênus passava!

E um pequeno italiano, com um maço de folhas de baixo do braço, gritava no seu mau português «Jornal da tarde! Traz o retrato da bela condessa russa! Quarenta réis!»

Os grupos compravam avidamente a folha.

Entretanto, por essas mesmas horas da tarde, em casa de Gaspar, dizia este ao enteado:

-Mas, com todos os diabos! És ou não és um homem?!

-Descansa que irei...

-Resolve-te então por uma vez! Está tudo pronto; a velha Benedita aboletada na ordem da Conceição, os meus doentes recomendados a um colega de confiança, os nossos papéis despachados... só nos falta partir!

-Já te não merecem crédito as minhas palavras...

-Que dúvida!

-Pois olha que não fico zangado contigo por semelhante cousa.

E tomando um ar mais refletido:

-Sei qual é o motivo de tuas desconfianças, mas tranqüiliza-te, meu Gaspar, que não são inteiramente infundadas...

-Estás agora a fazer-te de forte...

-Juro-te que entre mim e Ambrosina nada mais existe! Ameia-a, amei-a muito, não nego! Fiz laucuras, fiz delírios; adorei-a, enfim! Desde, porém, que ela se despojou da auréola que a minha imaginação lhe emprestara, deixou de ser ídolo, para ser lodo, para ser uma cocote vulgar e ridícula! O que eu nela supunha elevado e digno, nada mais era que o brilhante reflexo do altar em que a coloquei; uma vez fora de lá, o que queres tu que eu nela ame?

E Gabriel, voando pelo passado, acrescentou com febre:

-Sim! Eu adorava aquela mulher! Seria, por ela, capaz de todos os sacrifícios; mas, quando a vi de volta à Corte, ostentar cinicamente a degradação e o vício quando a vi feliz e radiante no meio da esterqueira... Ah! Gaspar! Foi tal a repugnância, tal o nojo que senti, que ainda agora pergunto a mim mesmo como pude desprezar-me ao ponto de idolatrá-la?!

-Falas com muito calor, para que eu possa acreditar no que dizes...

-Dou-te a minha palavra de honra que assim é. Ambrosina para mim morreu! A criatura que agora passa todas as tardes pelo Catete, a governar um phaeton, já não é ela, é uma infeliz que se confunde com todas as outras dissolutas.

Mas, em todo o caso, partiremos amanhã...

-Sem dúvida!... Não que me arreceie de ficar no Rio, mas só porque assim é necessário para o meu futuro.

-Ah! Se tudo isso fosse sincero!

-Acredita que é! Digo-te até com franqueza que a mim mesmo não perdôo haver-me iludido tanto! Não sei onde diabo tinha eu a cabeça para me deixar influenciar tão estupidamente por uma mulher medíocre, porque, afinal de contas, como ela se encontram mil a cada passo!...

-Ora! Não sentes o que está dizendo!...

-Verás!

-Afianças então que já não sentes cousa alguma por Ambrosina?...

-Ó homem! Como queres que te diga que não?!

-Pois então, sabe de uma cousa - tenho aqui uma carta dela para ti...

-Hem?! perguntou Gabriel, com um espontâneo movimento de interesse; mas, caindo logo em si, acrescentuou com indiferença: -Ah! Podes lançá-lo à rua, porque não a lerei...

-Dás-me então licença que a abra?...

-Toda!

-Porém, com a condição de te não dizer o conteúdo...

Gabriel respondeu com um gesto de desdém. Gaspar rompeu o sobrescrito, desdobrou a carta e leu-a. Mas, à proporção que seus olhos a devoravam, uma ligeira palidez ganhava-lhe a fisionomia.

-Cortesias!... disse ele depois, fingindo tranqüilidade; uma carta de cumprimentos...

E, antes que o rapaz cedesse à tentação de lê-la também, já o médico a havia substituído por outra, que rasgara em pedacinhos e lançara pela janela.

-Bom! disse afinal, tomando o chapéu e a bengala. Posso então contar contigo amanhã?

-Pela milésima vez: Sim! respondeu Gabriel.

-Bem. Até logo.

-Adeus.

E quando o padrasto já transpunha a porta:

-E verdade! Onde jantas hoje?

-No Mangini.

-Pois até lá.

Gabriel estendeu-se na sua poltrona, deixou cair para trás a cabeça, e espetou o teto com o mesmo olhar dos últimos capítulos.

Entrementes, Gaspar ganhava a rua, e tomava o primeiro tilburi que lhe passara perto.

-Largo do Rocio n. tal, disse ele ao cocheiro, depois de consultar a carta de Ambrosina.

O carro disparou. Pouco depois, o Médico Misterioso era conduzido, por um criado inglês, para uma saleta de espara da casa da Condessa Vésper, cujo luxo caprichoso e de primeira mão o perturbou levemente.

Em casa da condessa

Ouvia-se conversar, por entre risadas, na sala próxima.

Do som das vozes de homem destacava-se o metal estridente de uma garganta feminina.

-Quer falar à Sra. Condessa? perguntou o criado em inglês.

-Sim, respondeu Gaspar, dando o cartão.

E notou que, daí a pouco, a conversa da sala próxima era interrompida e logo ouviu um rumoroso farfalhar de sedas.

-Entre para cá, doutor! gritou Ambrosina aparecendo.

E Gaspar, depois de atravessar um pequeno gabinete, penetrou, no salão, onde conversavam animadamente.

-Dr. Gaspar Leite, disse Ambrosina, apresentando-o aos que lá estavam. Meu médico... acrescentou ela com um gesto muito gracioso.

Gaspar sorriu.

O salão era vasto e bem guarnecido, mas pouco confortável; faltava-lhe essa alma misteriosa e simpática, que os moradores vão insensivelmente comunicando aos móveis que o cercam terminando por emprestar a cada um deles alguma cousa do seu próprio caráter.

A gente sentia-se ali mal à vontade, como se estivesse em uma casa de vender trastes. É que era tudo novo em folha; os móveis rescendiam ainda ao verniz do marceneiro, as cortinas das portas e os panos das cadeiras tinham a goma com que saíram da fábrica, as cachemiras da mesa e do piano guardavam as dobras da caixa em que foram transportadas da Europa para o Brasil.

Todos aqueles trastes não nos diziam nada, não nos comunicavam cousa alguma; estavam ali, coitados! como uns pobres estrangeiros, que não sabiam falar a nossa língua. Não tinha a gente vontade de assentar-se naquelas cadeiras, encostar-se naquelas dunquerques, nem pisar naquele tapete, com medo de que viesse o mercador recomendar-nos que lhe não tirássemos o lustre da mobília.

Era esta a sensação que Gaspar experimentava ao entrar na sala de Ambrosina, e mentalmente ia comparando a insociabilidade de tudo aquilo com a franca camaradagem dos seus velhos trastes de família.

Entretanto, a bela criatura o tomara pela mão e lhe apresentava elegantemente às suas visitas.

-Este é o Sr. Rocha Coelho, deputado geral pela província da Bahia. É a primeira vez que vem ao Rio; escusa dizer que é pessoa de alto merecimento.

O deputado levantou-se apertou a mão de Gaspar, com ar, tão enérgico e grave, que lhe abanava os enormes bigodes negros e lhe fazia tremer a rebarbativa papada.

Ambos folgavam muito em travar relações.

-Este agora é o Sr. Dr. Lopes Filho, advogado distinto!

Gaspar repetiu o jogo da primeira apresentação. Folgaram muito igualmente em se conhecerem.

O terceiro não precisava ser apresentado -era o Reguinho.

Sempre magrinho, fútil, a empulhar os amigos. Os cabelos principiavam-lhe agora empobrecer e grisalhar mas ele conservava o mesmo ar passivo de menor que vive à custa da família.

-Bem; com licença! Já se conhecem, vão conversando, disse a dona da casa, saindo a correr, porque ouviu na sala de jantar a voz de uma mulher, que acabava de entrar familiarmente.

Os quatro homens ficaram a olhar por um instante uns para os outros, em uma perturbação cerimoniosa. Mas entrou um criado, a oferecer chá com leite frio, e o Reguinho foi assentar-se ao lado de Gaspar e perguntou por Gabriel.

-Ah! Partem amanhã? Ora, eis aí o que eu não sabia... disse o Rêgo, depois de ouvir a resposta do médico.

E ofereceu logo magníficas cartas de recomendação para vários pontos da Europa. Tinha muitos conhecidos, amigos, parentes até, gente toda de grande importância! Gaspar aproveitaria muito com aquelas cartas!

O médico desembaraçava-se do obséquio; dizia que a viagem era rápida, de passeio, não valia a pena o Rêgo incomodar-se...

Mas este, com a recusa, redobrou de oferecimentos, e contou depois que estava associado com o pai numa grande empresa que os faria milionários. -Menino! Queremos dinheiro! Queremos dinheiro, sebo! rematou ele, sempre a chupar os dentes.

Pouco depois, tornou Ambrosina; estivera a falar com a modista; as visitas que a desculpassem.

E voltando-se para Gaspar com muita camaradagem:

-Então? Que milagre foi este! lembrar-se dos amigos velhos?...

E acrescentou em tom grave, dirigindo-se aos outros:

-Salvou-me a vida! Estive à morte com uma fúria do maluco de meu marido! (E verdade, como vai ele?) perguntou ela a Gaspar e, informada de que Leonardo estava agora no Hospício de Pedro II, continuou, suspirando saudosas recordações: -Serei sempre reconhecida por esse serviço... Além do que, o Dr. Gaspar foi noutro tempo muito meu amigo, dava-me bons conselhos, ralhava-me às vezes...

E Ambrosina fazia-se muito amiga, muito camarada de Gaspar.

-Não sei como este ingrato se lembrou de vir cá!...

-É que lhe tenho de falar... em particular...

E como ela fizesse um movimento malicioso:

-Descanse, estou velho, não farei ciúmes a ninguém...

-Por mim, não os importunarei, declarou o Coelho Rocha, levantando-se com seus bigodões. Esperam-me para jantar.

-Eu também vou, disse o Lopes Filho, imitando-o. E foram beijar a mão da Ambrosina.

-Visto isso... acrescentou o Reguinho, depois de chuparos dentes.

-Mas eu, nesse caso, vim incomodá-los... Minha visita é rápida... observou o médico.

Seguiram-se grandes protestos de cortesia. Houve risos, apertos de mão, oferecimentos de casa, e afinal os três deixaram o campo livre.

-Venha para cá, doutor. Ficamos aqui mais à vontade, disse Ambrosina, passando o braço na cintura de Gaspar e conduzindo-o para um gabinete reservado. Agora, bem! Podemos livremente conversar.

E fechou a porta.

O Médico Misterioso não tinha ainda voltado a si do pasmo, que lhe causava tão inesperado acolhimento por parte de Ambrosina. Ele, que se lembrava ainda muito bem das suas últimas cenas com ela, pensou encontrá-la pouco disposta a atendê-lo, e eis que a caprichosa rapariga lhe dispensava agora todas aquelas amabilidades e se mostrava como nunca atenciosa.

-Ainda está muito zangado comigo?... perguntou ela, assim que os dois se viram a sós no gabinete.

-De forma alguma! respondeu Gaspar, e confesso que não contava ser tão bem recebido.

-O passado, passado! Não pensemos mais em tal. Além disso, naquela época, o senhor tinha toda a razão; eu é que era uma estonteada.

-Valha-nos isso! Estimo encontrá-la em tão boa disposição. Sabe? espero sair daqui devendo-lhe um grande obséquio...

-A mim?... Qual é?...

-Vai saber...

E o médico tirou da algibeira a carta, que tão engenhosamente havia substituído pela outra que rompera.

-Eu surpreendi esta carta sua, dirigida a meu enteado, guardei-a, e depois a li, com o consentimento do dono...

-Ah! E ele?...

-Ele não a leu...

-Não leu, por quê?

-Porque não deixei, ou porque ele não quis.

-Não quis como?...

-Para agradar-me, naturalmente; mas, como tenho pouca confiança em tudo isso, venho pessoalmente pedir-lhe que...

-Que...

-Que desista das ameaças que aqui estão escritas, nem só porque me intimida o escândalo iminente, como porque sei também que Gabriel não resistiria a tal provocação e acabaria por atirar-se novamente a seus pés...

Ambrosina não respondeu. Estava assentada num divã muito baixinho e fitava preocupadamente um ponto no chão.

-A senhora não calcula, prosseguiu o outro, quanto me custou convencer àquele pobre rapaz de que era necessário mudar de vida e trabalhar. Ele, coitado, se não tomar já e já uma resolução enérgica, perde-se totalmente, porque se irá pouco a pouco arruinando até chegar à completa miséria; é isso o que eu quero evitar. Sinto que estou velho, e preciso morrer descansado. Talvez haja um bocadinho de egoísmo nestas intenções, mas creia que eu trocaria de bom grado o resto da minha existência pela felicidade de Gabriel.

E o Médico Misterioso, depois de assentar-se mais perto de Ambrosina, continuou:

-Pois bem! Imagine agora o meu sobressalto ou quando, depois de conseguir de Gabriel sairmos amanhã mesmo do Brasil, e principiarmos, ao voltar, uma nova existência, dou com as palavras que lhe escreveu a senhora!..

E Gaspar leu na carta o seguinte:

«Sei que vais partir amanhã e peço-te que desistas de semelhante projeto. Estou hoje convencida de que de não posso passar sem o teu amor, e como a desgraça me fez egoísta, sinto-me resolvida a desmanchar com um escândalo a tua viagem, e a mim prender-te com mil beijos. Escolhe! Se quiseres resolver as cousas por bem, aparece-me hoje mesmo em minha casa. Se me não aparereceres até à noite, irei eu buscar-te onde estiveres!»

-Eis aí o que vinha eu pedir-lhe que não fizesse... disse humildemente Gaspar. Sei que isso não lhe custará muito, e estou disposto a recompensar-lhe esse obséquio com aquilo que a senhora exigir...

Ambrosina conservou por algum tempo o olhar caído, afinal cobriu o rosto com as mãos e desatou a soluçar.

-Sou uma desgraçada, murmurava ela, sacudida pelo pranto. - Sou muito desgraçada!

Gaspar passou-se para o divã, e amparou-a nos braços.

-Não se mortifique, disse; não se aflija desse modo...

Ambrosina encostou-se ao ombro dele e, depois de soluçar dramaticamente, exclamou com uma voz apressada e cheia de choro:

-Não é que o ame! Não! Eu nunca amei Gabriel! Mas eu o queria ao pé de mim, pelo simples fato de ser ele o único que me tem verdadeiro amor! Não é pelo desejo de amar que o procuro, mas é pela necessidade de ser amada!

-Ora! Há por aí muito homem que a ame loucamente!...

-Por capricho, por fantasia, ou por vaidade... Eu sou hoje a mulher da moda e custo caro. Amor! Amor por amor, só conto com o Gabriel!

-Em todo o caso, peço-lhe que o poupe... Suplico-lhe! Faça-me a vontade! É um velho, é um pobre pai, que lhe pede a felicidade de seu filho. Repare! tenho lágrimas nos olhos. Concordo com tudo que a senhora quiser, cumprirei as ordens que me der, contanto que me poupe o Gabriel!

-E se eu, em troca, exigir-lhe uma cousa?... o senhor consentirá?...

E Ambrosina sorriu, com os olhos ainda vermelhos de pranto.

-O que é?

-Uma cousa muito simples... respondeu a rapariga, tomando-lhe as mãos; quero...

-O quê?

-Tenho vexame... Não digo...

-Fale, por quem é!...

-E promete não ficar enfadado?... Promete não ralhar comigo?...

-Prometo, filha; mas vamos, dize o que queres...

Ambrosina passou os braços em volta do pescoço de Gaspar, e disse-lhe baixinho ao ouvido, com a voz medrosa e doce:

-Quero que me ame; que seja ao menos muito meu amigo, como noutro tempo...

E, depois de espreitar através dos cílios a atitude do médico, recolheu os braços, fez um ar muito triste, e acrescentou com os olhos úmidos:

-Se soubesse quanto sou infeliz... quanto sou desgraçada!... Teria compaixão de mim!

E depois de uma nova pausa:

-Não disponho de alguém que me estima nesta vida!... todos os que se chegam para mim, trazem já a intenção artificiosa de iludir-me ou de desprezar-me! É por isso que eu disputava Gabriel com tamanho empenho, é porque, desse ao menos, tinha a certeza de que tudo aquilo que viesse seria sincero e generoso... Pobre rapaz! Talvez hoje no mundo seja o único que me vote algum amor... os mais odeiam-me!... Se é um homem me odeia porque não lhe posso pertencer exclusivamente, como um cavalo de raça; se é uma mulher, porque não pode admitir que eu seja mais formosa do que ela. Entretanto, preferia ser feia, e atravessar a existência, obscura e feliz, ao lado de um marido... Mas não sei que maldição terrível me acompanha, que veneno insanável me poreja da pele, para destruir e matar tudo em que toca meu desejo! Cada vez que firmo o pé, é uma chaga que abro no caminho! Quem me dera ser boa para todos... mas meus carinhos embriagam, como a pérfida manenilha, e meus lábios queimam, como um réptil venenoso! Desde a loucura de meu marido até à morte de Laura, é minha vida uma triste cadeia de decepções; tudo que aspirei, tudo que amei, tudo que constituiu para mim sonho, esperança, ilusão querida, foi pouco a pouco enregelando e fenecendo, como uma aldeia varrida pela peste. Já não me animo a ter uma vontade! Agora mesmo, de volta ao Rio, vinha pensando em minha mãe, ardia por abraçá-la, queria refugiar-me, de todas as misérias de minha vida, naquele coração singelo e bom; mal chego, porém, descubro que ela morava em um cortiço, escrevo-lhe várias vezes, pedindo, rogando, que me aparecesse; e ela nem sequer me respondeu! Diga, não será isto a última das desgraças? não será isto a última expressão do infortúnio?... E vem o senhor pedir-me ainda que lhe ceda o Gabriel! Peça-me tudo que quiser; leve-me os diamantes, os cavalos, os móveis, mas deixe-me esse coração que me resta; deixe-me, por piedade, esse derradeiro amor!

-Não! Isso, não! respondeu Gaspar, sacudindo a cabeça.

-Então, dê-me outro que o substitua; como já disse, não é que eu ame Gabriel, mas preciso ser amada por alguém... o senhor quer arrebatar-me a última afeição que me resta; pois bem! Pode levá-la, mas há de deixar-me outra no lugar dela!...

Houve uma grande pausa. Gaspar permanecia, imóvel e mudo, ao fundo do sofá. Um ligeiro sorriso de ceticismo encrespava-lhe os lábios frios. Ambrosina, afinal, tomou-lhe de novo as mãos:

-Então, meu amigo, balbuciou ela; diga-me alguma cousa! Pois eu serei tão ruim, que lhe não mereça um bocadinho de afeio?!...

-Se se trata de uma simples afeição, uma afeição apenas, como ainda há pouco disse, de bons amigos de outro tempo, não porei dúvida alguma nisso...

-Obrigada! Obrigada! interrompeu Ambrosina com uma alegria de criança.

-Ouve, minha filha! E o velho tomou paternalmente a linda moça pela cintura e fê-la assentar-se sobre seus joelhos.- Eu amo tanto aquele pobre Gabriel, que, se tu fosses capaz de ajudar-me a regenerá-lo, eu, por gratidão, por admiração da tua generosidade, nem só seria teu amigo, como teu pai agradecido, teu protetor e teu amparo moral.

-Como és bom! disse ela, conchegando-se carinhosamente ao corpo de Gaspar. Como eu gosto de estar assim encostadinha a ti... Consola tanto ter a gente um peito como este para descansar a cabeça!...

A E, toda arrepios de rola acariciada, acrescentou com voz úmida, suplicante, infantil, a bater de leve no peito de Gaspar:

-Aqui não há vaidades, não há caprichos! tudo isto é verdadeiro e puro! Não é certo que tu me amas, como se eu fosse tua filhinha?... Dize, meu papá! Dize meu amor!

Gaspar, a despeito de tudo, sentiu-se comovido.

-Mas hás de esquecer-te por uma vez do Gabriel não é assim?...

-Bem me importa agora o Gabriel! Tu é que serás o meu amigo; e eu a tua nenê, meiga e submissa, como uma gatinha! Hein? que bom! Que bom! Exclamava ela, a encolher-se nos braços de Gaspar; amar um homem, sem outra intenção além do próprio sentimento; desejar tê-lo, sem outro fim mais que uma afeição tranqüila e casta. Oh! isto sim, isto deve ser consolador!

-Bem! disse Gaspar, procurando delicadamente desviar-se dos braços de Ambrosina. Ficamos então entendidos, não é assim?... Eu serei o teu bom amigo, e tu nunca mais darás um passo para perseguires Gabriel!

E ergueu-se.

-Sim, respondeu a formosa rapariga, que também se havia levantado. E, novamente abraçada a Gaspar, fazia-lhe agora festinhas na barba com o seu dedo de unha cor-de-rosa.- Sim, sim! Mas quero que me dês uma prova do teu afeto, antes de partires amanhã...

-Uma prova?... Como? De que forma?...

-Vindo hoje mesmo, à meia-noite, cear em despedida aqui comigo. Pois eu consentiria lá que te fosses sem me dizer adeus?...

-Mas, à meia-noite?!... Pareceria isso mais uma entrevista de amantes do que...

-Não sei porquê?... interrompeu ela. Não são as horas, nem é o lugar, que fazem as situações. Não tens confiança em ti?... Tenho eu em mim! Convém-me estar ainda, antes de partires, uma vez a sós contigo, e só a meia-noite é que me pertenço... Daqui a nada está aí gente para jantar em minha companhia!

-Mas...

-Se não quiseres vir, desisto já de tudo que combinamos, e eu procederei como entender!

-Bom! Bom! Virei à meia-noite; mas tu estarás só!...

-Juro-te! Nem mesmo pelos criados serás visto...

-Pois até logo.

-Vens, então?...

-Acabo de dizer que sim.

-E se não vieres?...

-Farás o que entenderes...

-Olha lá!...

-Estamos combinados, filha!

Pois conto contigo... Se encontrares a porta fechada toca o tímpano três vezes seguidas.

-Sim, adeus.

-Adeus, meu bom amigo.

E Gaspar, impaciente, alterado, ganhou o largo do Rocio, e tomou a direção do Mangini.

Pelo caminho reparou que todo ele ia penetrado do sutil e capitoso perfume, que Ambrosina exalava das carnes e dos cabelos.

A vez da cigarra

No terraço do Alcazar corria a pândega desenfreada. Representava-se La folie parfumeuse, e as notas candenciosas da alegre partitura misturavam-se no pesado ambiente do teatro com frêmito das gargalhadas, o fumo dos charutos e o vapor inebriante dos vinhos.

Em torno das mesinhas de mármore, homens e mulheres, aos magotes, vozeavam, numa estrepitosa concussão de línguas, em que a francesa era a mais atropelada. Fervia o champanha por toda a parte, e por todos os grupos faiscavam diamantes e jóias de alto preço. Havia toilettes das loureiras, um luxo de espetáculo d'ópera, e as carruagens, estacionadas na rua à espera delas, formavam serpentes que abrangiam quarteirões.

Sob a pobre e melancólica folhagem de bambus de que constava o jardinzinho do famoso café-concerto e que atormentada pela luz mordente do gás, parecia minguar de nostalgia, saudosa da frescura dos seus campos, rolava todas as noites, na mesma onda, a inconsciente e barulhosa prodigalidade dos herdeiros ricos e a torturante pantomimice dos fingidos argentários. Viam-se os elegantes de chapéu de feltro claro e luvas de cor, empunhando inquietadores bengalórios encabeçados de ouro; viam-se rutilantes e agaloadas fardas da Marinha e do Exército, em contraste com as joviais casacas negras dos cançonetistas parisienses, que vinham cá fora, nos intervalos dos atos, escorrupichar, a barba longa e de camaradagem com o público, o seu gelado grogue à la américaine. Destacavam-se os sangüíneos e atochados tipos dos ricos fazendeiros do interior da província ou do fundo de Minas e São Paulo, sequiosos por atirar às goelas da pândega fluminense um bom punhado de contos de réis da sua última safra de café; alguns desses, mal chegados essa mesma noite, ainda conservavam as suas botas da viagem e o seu poncho à moda do Sul.

Dentre o cheiro das perfumarias e dos pós de toucador, tresandava uma sutil e femeal rescendência pituitária, que punha nas ventas masculinas irracionais palpitações de faro.

Era ali, naquele teatrinho da estreita rua da Vala, entalado entre casas de comércio a retalho, que todas as noites a gente folgazã da Corte, e os mais que dela dependiam, iam buscar de ponto em branco o seu quinhão de gozo para os sentidos esfalfados; mas era lá também que muito desgraçado ia pedir ao ruído do alheio prazer o esquecimento das próprias agonias, de surdas e inconfessáveis dores, ou ia cavar, com um sorriso mais triste que o esgar de um enforcado, os dois mil-réis para as primeiras compras da casa no dia seguinte. Á sombra daqueles amarelecidos bambus, se encontravam os infelizes de toda a espécie, os infelizes que choram para fora, e os infelizes que choram para dentro; ao lado do vagabundo lamuriento e pedinchão, lá estava, em boa aparência, o mísero chefe de família desonrado pelo luxo da mulher e das filhas, o falido e risonho financeiro, vivendo, a cliquot e havana, à custa das regalias do seu débito à Praça; lá estava o político vendido e garboso da sua venalidade, e artista sem ânimo, e jornalistas dispépticos, e cômicos notívagos, e jogadores profissionais, e lindos mancebos de lábios alugados ao amor das dissolutas.

E desse elemento vário se compunha a enorme roda, que nessa noite cercava ruidosamente no Alcazar a formosa Condessa Vésper.

Ambrosina havia já criado, em torno dos seus cruéis sorrisos de amor, uma grande e rubra auréola de escândalos. Contavam dela fatos extraordinários de petulância e originalidade orgíaca, atribuiam-lhe no gênero todas as anedotas sem dono que vagavam pelo Rio de Janeiro, diziam com assombro os milhões que a Condessa desbaratara, as ruínas que a seus pés abrira, e as vítimas de amor que até aí fizera.

Ali, dentre todas aquelas almas escravas dos sentidos e despojadas de ideal, era ela talvez a única verdadeiramente feliz. Sentia-se radiante no meio da sua corte de libertinos, cercada de olhares suplicantes e aduladores sorrisos, alvo de desejos, de elogios e de invejas.

Em torno da sua mesa agitava-se a multidão curiosa e fascinada; as suas palavras eram acolhidas pelos companheiros de roda, como geniais preceitos, que enobrecem os primeiros ouvidos que os escutam. Ao seu lado, o Lopes Filho, o Rocha Coelho, o Reguinho e aquele célebre cogumelo Costa Mendonça, atentos e cerimoniosos, desfaziam-se em galanterias.

A Condessa não obstante protestava que ia fugir para casa, porque estava domesticando um urso branco, que entraria na jaula à meia-noite.

-Não se vá ainda... pedia labioso o deputado pela Bahia. Deixe isso para outra vez... Vamos cear ao Paris... o urso não fugirá!...

Ela, porém, não atendeu, ergueu-se, fez um geral e gracioso cumprimento à roda, e saiu acompanhada de longe por um imenso grupo de táticos admiradores, e de perto por aqueles quatro embeiçados, que a conduziam até à carruagem, disputando entre si a suprema honra de lhe dar o braço..

Ao entrar no carro, notou que da porta do teatro um rapaz, ainda muito moço lhe acompanhava os movimentos com um ar satírico e desdenhoso.

Ambrosina fingiu não dar por isso, mas a impressão daquele olhar, tão contrária a de todos os outros que ela essa noite recebera, lhe ficou doendo por dentro como imperceptível espinho cravado no seu melindroso orgulho de mulher formosa. Um simples olhar, talvez involuntário, e vindo distraidamente de olhos desconhecidos, bastou para toldar com uma pontinha de fel o triunfante humor, em que a leviana palpitava de vaidade no efêmero predomínio das suas graças.

Foi já nervosa que ela, ao chegar à casa, disse à criada, arremessando leque, luvas e chapéu:

-Sirva-me um banho tépido com bastante vinagre de Lubin, e tire um peignoir daqueles que estão na caixa de seda cor-de-rosa; a ceia que lhe encomendei traga-a para a saleta da alcova, não precisa deixá-la à mostra, ponha-a sobre a mesa de charão por detrás do biombo dourado; depois feche as portas da sala de jantar, e pode recolher-se; se o John ainda estiver acordado, diga-lhe que também o dispenso; deixe a porta da rua aberta... Mas avie-se, que espero por alguém, e são horas!

E daí a pouco, Ambrosina, mergulhando o mármore do seu corpo no cheiroso e opalino banho, murmurava sozinha:

-Maldito sujeito que me olhou daquele modo! Desejo-lhe a morte! E Deus que me ouça!

Esse sujeito, contra cuja vida lançava tão feia praga a formosa criatura, era o nosso altaneiro Gustavo, que naturalmente nem sequer suspeitaria ocupar naquele momento o endiabrado espírito da mulher mais espaventosa do alto coquetismo fluminense.

Entretanto, a torre de São Francisco começava a derramar lugubremente no silêncio das ruas as doze badaladas da meia-noite, e por esse tempo o sombrio vulto do Médico Misterioso, cabeça baixa e passos tardios, tomava a direção da casa da Condessa Vésper, sem desconfiar que era por alguém observado e seguido a distância.

Encontrou a porta da rua aberta e o corredor às escuras, entrou e subiu as escadas, sem olhar para trás!

Lá em cima foi recebido pela própria Ambrosina, que, como acabamos de ver, se havia preparado intencionalmente para aquela entrevista.

Vestia ela um amplo penteador de rendas transparentes, que deixavam adivinhar meia verdade do mistério das suas formas, calçava meia de seda listrada e chinela turca. Tinha os cabelos submetidos a uma trança única, que lhe caía nas costas como uma serpente viva, e os braços libertavam-se das fartas mangas do roupão e apareciam dominadores na sua pecaminosa nudez, apenas algemados por um par de pulseiras circassianas.

Quando Gaspar penetrou na voluptuosa câmara, dubiamente iluminada por uma lâmpada cor de lírio, sentiu-se abalado por uma doce e estranha saudade, que o transportava suavemente às cenas da sua juventude. A memória de Violante assistiu-lhe ao coração de um modo doloroso e lúcido, e ele parou, comovido, a contemplar Ambrosina estendida no divã.

A tentadora sorria, a fumar um cigarro de tabaco oriental, e, com um gesto delicioso, disse-lhe que corresse o reposteiro da porta e fosse assentar-se ao lado dela.

O médico obedeceu, quase sem consciência do que fazia.

-Estamos em completa liberdade, acrescentou Ambrosina, beijando-lhe as mãos. Podemos conversar de coração aberto...

-Aqui me tem, balbuciou Gaspar. Vamos a saber o que me ordena...

-Que não me fales desse modo... eis o que te ordeno antes de tudo... Quero-te mais camarada, mais íntimo, mais chegado a mim...

E arrastou-se toda ela para ele, puxando para o seu colo a cabeça do médico.

-Vamos... disse este, desviando-se; falemos do que importa... Deste modo não chegaremos a nenhuma conclusão!...

-Há tempo!... contrapôs Ambrosina, quase ressentida. Façamos primeiro uma ceiazita à la bohême. Estou com apetite, e temos aqui mesmo o que trincar, sem precisarmos de ninguém.

E, tapando com as mãos os ouvidos para não escutar os protestos da visita, correu a buscar a mesinha de laca, e ela mesma serviu ostras frescas, pão, espargos, morangos e champanha.

Em seguida, fez Gaspar assentar-se à mesa e, pondo-se de novo ao lado dele, pediu-lhe que abrisse a garrafa, e ia já atacando as ostras, muito lambareira e sensual, a lamber com língua de gata a rósea ponta dos dedos e a dar estalinhos com a língua contra o céu da boca.

O médico mal tocava no prato por comprazer; dizia-se indisposto e começava, contrariado, a franzir as sobrancelhas; Ambrosina, porém, não desanimava e, enquanto comia e bebia, fazia-lhe infantis carícias e conversava alegremente.

Palraram sobre a viagem no dia seguinte, veio a pêlo a famosa carta por ela dirigida a Gabriel, e Ambrosina a reclamou logo; queria queimá-la, para que não permanecesse vestígio do seu primitivo amor.

Gaspar concordou e apressou-se a sacar a carta do bolso. Veio com ela de envolto uma fotografia.

-E de alguma mulher?!... Deixa-ma ver! Pediu Ambrosina, com grande empenho.

-Qual mulher! É de um sobrinho meu... Aí a tem veja!

Ambrosina ficou séria. o retrato era do rapaz que tão insolitamente a fitara à saída do Alcazar.

-Quem é este sujeito?...

-Um sobrinho meu, acabo de dizer.

-Chama-se?...

-Gustavo Mostella.

-Ah!

-É um excelente rapaz. Tem talento e tem caráter...

-Não me parece boa...

-Engana-se...

-Muito antipático!...

-Não acho...

E Ambrosina ficou a olhar longamente para a fotografia; depois, atirou com esta para junto do prato de Gaspar e disse, espreguiçando-se:.

-Ai! Ai! Tenho um pouco de preguiça...

-Quer que me retire?

-Não. Que lembrança!... Quero ao contrário, que me deixes encostar ao teu colo...

E, sem esperar pela resposta, estendeu-se no colo do médico.

Este via-lhe os olhos cerrados a meio, via-lhe a boca entreaberta, a mostrar a pérola dos dentes, via-lhe a carnação deliciosa da garganta, a transparência da pele, o cor-de-rosa das narinas, e sentia-lhe o aroma dos cabelos; mas sua fisionomia não denunciou o menor abalo interior. A máscara do rosto conservou-se inalterável.

-Estou meio tonta... segredou Ambrosina. Leva-me para a alcova, sim? Conversaremos lá...

Mas, com uma idéia súbita, exclamou despertando:

-Ah! É verdade! Fechaste a porta da rua?

-Não decerto...

-Espera então um instante... Dispensei os criados... Vou eu mesmo fechá-la, para ficarmos mais à vontade.

-Não é preciso tomar esse incômodo... eu me encarrego disso agora ao sair. Adeus.

E Gaspar ergueu-se, decidido irrevogavelmente a retirar-se, mas a rapariga não lhe deu tempo para fugir: com um gesto profissional e certeiro, passou-lhe os hábeis braços em volta do pescoço, grudando-se toda a ele e prendendo-lhe os lábios com os dentes.

O Médico Misterioso ia arrojá-la de si, quando de súbito se arredou o reposteiro da entrada, deixando ver o vulto transformado de Gabriel, que, trêmulo e arquejante, olhos em fogo, os observava mas pálido que um cadáver.

Um só grito se ouviu, feito da exclamação dos outros dois.

Ambrosina, temendo-se em risco de uma agressão do ex-amante, fugiu para o interior da casa, e Gaspar precipitou-se no encalço de Gabriel, que observada a cena, deixara de novo cair sobre ela o reposteiro, e aos esbarrões se afastava pelo corredor.

O médico quis ampará-lo nos braços, o rapaz, porém o repeliu com ímpeto, balbuciando entredentes cerrados pela cólera:

-Desculpe-me ter vindo interrompê-lo nos seus íntimos prazeres... Não pude evitar a mim mesmo esta nova beixeza! Dou-lhe todavia a minha palavra de honra que não a cometi por aquela desgraçada, mas só pelo senhor, a quem eu supunha meu amigo e incapaz de tamanha infâmia!

Não te iludas com o que viste! Eu tudo te explicarei, meu filho!

-Proibo-lhe que me dê esse tratamento! O senhor nunca foi meu pai, felizmente! E de hoje em diante nada mais há de comum entre nós! Afaste-se de mim!

-Gabriel!

-Não me toque, ou eu o esbofetearei!

E Gabriel, ganhando a porta do corredor, desgalgou a escada.

-Ouve, meu filho! Ouve-me por amor de Deus! Exclamava o médico já na rua.

Mas o outro havia de carreira alcançado o carro que o esperava na praça, e mandava ao acaso tocar para a frente a toda força.

A pobre lavadeira

No dia seguinte, Gaspar, verificando que o enteado havia fugido do Rio de Janeiro, sem deixar rastos, sem a ninguém comunicar o destino que levava, meteu-se, ardendo em febre, a bordo do transatlântico em que contava seguir com ele para a Europa, e por sua vez desaparecia da Corte, levando o coração tão despedaçado, quanto é natural que a essas horas acontecesse igualmente com o pobre Gabriel.

Semanas depois desse triste rompimento, que arrojava os dois amigos para longe um do outro, quase toda linfática população fluminense de novo se agitava num delírio de entusiasmo.

É que na véspera Ambrosina estreara no Alcazar. Não se falava em outra cousa; os jornais vinham pejados de elogios à deslumbrante Condessa Vésper, meteram-se em circulação os mais pomposos adjetivos, para dar idéia dos encantos da debutante, e, nas rodas dos habitués do teatrinho francês e dos flanadores da rua do Ouvidor, descreviam-lhe com assombro a perfeição maravilhosa do corpo.

Foi um estrondoso triunfo! Uma das folhas mais lidas, dizia nas suas publicações gerais, que a nova artista era uma glória nacional, e que os brasileiros se enchiam de orgulho ao lembrar-se de que aquele primor de estatuária viva era carioca da gema.

Entretanto, a própria Ambrosina estava bem longe de esperar semelhante fortuna.

Um dia o empresário do Alcazar, o Arnaud, que lhe havia já franqueado o teatro, apareceu-lhe de novo a falar mais insistentemente sobre isso, e, tão bonitos pintou os resultados da estréia, que conseguiu afinal abalar o espírito da loureira.

Mas olhe que eu não sei cantar, homem de Deus!... objetou ela.

-E alguma das que lá tenho o saberá porventura...

-Mas terão boa voz, ao menos!...

-Nom de Dieu! Praguejou o empresário francês. Não se pode ter melhor voz do que a sua para o Alcazar!

Ali não queremos voz, queremos jeito! Percebe? A questão é de savoir faire!

-Porém é que eu nunca representei em minha vida!...

-E quem lhe pede que represente? Quero é que se mostre! Com esse corpo e essa cara não há que recear do público!

Ambrosina sorriu.

-Além disso... insistiu o Arnaud, o palco lhe realçará o prestígio. Não há para uma mulher bonita melhor moldura que os bastidores e as gambiarras!...

-E a empresa, como vai?...

-Vai mal! Pois se não tenho ninguém!... Aquela meia dúzia de gatas magrás que lá estão, desacreditam-me o teatro! Faltam-me boas pernas... Se a senhora me voltar o rosto, o Alcazar -morreu!

E o Arnaud acompanhou a sua última frase com um gesto trágico de profeta; que prevê um fim de mundo.

Ambrosina mostrou-se compungida.

-Morre! É o que digo! A senhora não sei se o salvará, mas pelo menos há de suster-lhe a queda por algum tempo, até que apareça alguém capaz de arriscar ali um par de contos de réis!... Oh! exclamou o empresário com ar convicto -aquele teatrinho é uma mina, que se pode explorar com muito pouco dinheiro! A questão é de reformar o jardim e mandar buscar um tenor! Não, não temos absolutamente vislumbre de um tenor! Quando lhe falei à primeira vez, há cousa de sete meses, se a senhora tivesse querido, eu podia nessa ocasião dar-lhe um bom ordenado, mas, o diabo dos negócios foram tão mal de lá para cá, que agora só o que posso fazer é oferecer-lhe sociedade na empresa...

-E você acha que com algum dinheiro se levanta aquilo?...

-Oh! Oh! Soprou o francês, por única resposta.

-Pois eu me associo com oito contos de réis, e trabalho; serve-lhe?

-Se serve! E afianço-lhe que vai ganhar rios de dinheiro!

No dia seguinte, Ambrosina deu as suas providências para arranjar o capital; os oito contos de réis pingaram da algibeira dos seus admiradores, como o sumo de uma fruta espremida. Ficou a cousa afinal arranjada da seguinte forma: o então ministro da Fazenda um conto de réis; o comendador X. X., presidente de certa companhia garantida pelo Estado, dois contos de réis; o deputado Rocha Coelho, quinhentos mil-réis; mais três comendadores do comércio, a quatrocentos mil-réis por cabeça, um conto e duzentos mil-réis; um diretor de secretaria trezentos mil-réis; um banqueiro de roleta, quinhentos mil-réis; um fazendeiro, que a convidara para ficar só com ele, oitocentos mil-réis. E o que faltava ainda foi obtido em quantias pequenas de algibeiras de todos os tamanhos e jerarquias: de sorte que Ambrosina nem teve de tocar no seu fundo de reserva, como esperava, e talvez ainda guardasse algumas sobras na ocasião de reunir o produto das quotas.

Pouco depois, passaram-se os documentos necessários, e era ela empresária do Alcazar.

Estreou com duas pífias cançonetas e um quadro vivo, mas por tal sorte apimentou os versos e os gestos, e tão à mostra apresentou as suas formas esculturais, que o público sentiu vibrar-lhe no sangue uma faísca diabólica e levantou-se entusiasmado, a lançar no palco chapéus, lenços, bengalas e ventarolas, possuído de verdadeiro delírio.

No dia seguinte, a sala da Condessa Vésper encheu-se de homens de toda a idade e posição social, e os cartões, os ramalhetes, os oferecimentos, os pequeninos presentes de consideração, choveram de todos os lados.

No espetáculo imediato, subiram os bilhetes a um preço escandaloso, os cambistas encheram-se a grande, e às sete horas da noite já se não podia passar pela rua da Vala. O teatrinho parecia vir abaixo! O nome da formosa estrela enchia o ar, pronunciado em todos os sotaques e diapasões. O público sentia-se impaciente, a orquestra apressada.

Afinal, subiu o pano, e Ambrosina, quase nua, viu-se calçada de flores até acima dos joelhos.

Não obstante, no meio daquela porção de rosas foi envolvido um novo espinho, e este agora bem agudo -era um cartão de Gustavo.

Em casa, no seu primeiro momento de independência, Ambrosina releu o tal cartão, dez, vinte vezes seguidas, e acabou por atirar-se à cama, soluçando, dominada por uma violenta comoção, que não ficou bem averiguado se era produzida pela raiva, pela excitação da noite, ou por qualquer outra causa.

O cartão dizia o seguinte:

«Gustavo Mostella pode à festejada Condessa Vésper o obséquio de marcar-lhe amanhã uma hora, na qual lhe possa ele falar, em confidência, a respeito de certa lavadeira por nome de Genoveva. Rua do Rezende...»

Era simplesmente isto o que dizia o cartão.

E a cousa explica-se do seguinte modo: Gustavo morava num cômodo de sala e alcova, que lhe alugava a família Silva, proprietária e moradora de um sobrado da rua do Rezende. Pagava noventa mil-réis por mês, com direito, além da comida, ao arranjo dos quartos, ao banho e ao café pela manhã.

A família Silva, que se compunha de uma velha chamada Joana e duas filhas trintonas, era gente pobre, porém boa e honestamente laboriosa; e o hóspede, em troca dos graciosos desvelos que recebia dela, jamais negava os seus serviços, tinha ocasião de ser-lhe útil.

Uma vez disse-lhe a velha que desejava merecer-lhe favor, e, passando os óculos do nariz para o alto da cabeça, acrescentou com voz misteriosa:

-Nesse cortiço aí aos fundos da casa, há uma pobre mulher, bem apresentada ao que dizem, que há tempos lava para mim; ultimamente tem estado de cama, e mandou-me agora pedir que lhe fosse lá escrever uma carta, não sei para qual dos seus parentes. Como o senhor na ocasião não estivesse cá, desci eu próprio a ter com ela, acheia-a muito mal, coitada! E prometi à infeliz que, mal o senhor chegasse, lá iria a meu pedido prestar-lhe aquela caridade.

-Pois não, respondeu o rapaz; posso ir imediatamente, contanto que venha comigo alguém, para mostra-me a qual dessas centenas de portas tenho eu de bater.

E, enquanto D. Joana chamava pela negrinha que na casa representava o papel de copeiro, Gustavo, sem se desfazer do chapéu e da bengala, dizia de si para si, a recordar-se das muitas vezes em que da janela do seu quarto ficava a contemplar a labutação do cortiço:

-Deve ser aquela mulherança gorda e azafamada, que estava sempre a ralhar com as crianças, e de quem copiei o tipo da «Brigona» no meu romance «A Estalagem».

Daí a pouco esperava à porta da lavadeira que o mandassem entrar. A negrinha tinha já enfiado pelo quarto, a dar notícia da chegada «do mocoque ia para escrever a carta».

O cortiço estava todo em movimento. Havia nele o alegre rumor do trabalho. Um grupo de mulheres, de vestido arregaçado e braços nus, lavava, conversando e rindo em volta de um tanque cheio. Um português, com jaqueta atirada sobre os ombros, tagarelava com uma negra, que entrara para vender hortaliças; duas crianças más, assentadas na grama raspada de um quase extinto canteiro, entretinham-se a enraivecer um cão. Um mascate, com uns restos de cachimbo ao canto da boca fumava ao lado de um tabuleiro de quinquilharias de vidro, e conversava em meia língua com uma velha ocupada a depenar um frango.

Gustavo observava tudo isto, e era igualmente observado. Seu tipo destacava-se ali, no meio daquela pobre gente, que o olhava com desconfiança.

Mas, afinal, a negrinha reapareceu, chamou por ele, e o rapaz entrou no quarto da lavadeira.

Era um cubículo estreito e oprimido pelo teto. Gustavo deu alguns passos e parou, afrontado pela escuridão e pela insalubridade do ar que respirava ali. A sua retina, que acabava de receber a luz de fora, ainda se não havia dilatado; só depois de alguns segundos foi que principiou ele a distinguir vagamente alguns vultos confusos.

-Venha para cá... disse uma voz fraca e arrastada.

O rapaz tomou a direção da voz, quase às apalpadelas.

A negrinha nessa ocasião voltava com uma cadeira, que fora pedir à vizinha, e Gustavo assentou-se ao lado da cama em que estava a enferma.

Pôde então com dificuldade reconhecer que a pobre mulher era justamente quem ele supunha.

Mas, que mudança!... pensava. Que transformação...

E declarou que D. Joana lhe pedira fosse ali escrever uma carta.

A senhora está doente?... perguntou ele depois.

Ao ouvir a última frase, a enferma pôs-se a gemer, como se só então se lembrasse dessa formalidade da moléstia.

E começou a queixar-se do que tinha, como se falasse ao médico.

-Estou muito mal, disse; o senhor não faz uma idéia! São pontadas no estômago, dores nas juntas, tonturas, cólicas, e a boca amarga, que é uma desgraça!

E como Gustavo fizesse um movimento de interesse:

-Mas o que mais me consome é esta perna! acrescentou ela, esfregando a mão pela perna esquerda.- Olhe!

E, gemendo, cingiu o lençol à coxa para dar idéia da inchação.

-Porém aqui há de ser um pouco difícil escrever... arriscou Gustavo, a olhar em torno de si.

-Abre-se aquele postigo...

E gritou:

-Ó Bento!

-Eu abro! lembrou Gustavo.

E, depois de trepar-se na cadeira, abriu uma janelita de dois palmos, que ficava sobre a cabeceira da cama.

Entrou logo por aí um grande jato de luz, cortando o espesso ambiente com uma lâmina cor de aço.

Foi então que Gustavo viu distintamente a miséria repulsiva que o cercava.

A lavadeira, deitada sobre uma velha cama de ferro, tinha um aspecto hediondo. A doença comera-lhe a gordura, e caíam-lhe agora tristemente do pescoço, dos ombros e dos braços, as peles vazias e engelhadas. Seus olhos desapareciam engolidas pelas pálpebras empapadas, sua boca era uma fístula, a febre levara-lhe os cabelos, e o crânio, mórbido pelo molho de luz que vinha do postigo, desenhava-se, como o da velhinha Benedita, através do transparente rede das farripas secas e grisalhas.

-Já tenho ali a tinta e o papel, disse ela, sem atentar para a preocupação de Gustavo.

Este olhava em torno de si, oprimido pelo aspecto cru e nojento de tudo aquilo. Nas paredes, entre manchas de umidade, havia várias litografias de santos, nelas pregadas sem moldura; no chão, sapatos velhos, cestos de roupa suja e uma gaiola quebrada; a um canto, uma bacia de folha transbordava água sebosa. E uma galinha, cercada de pintos, cacarejava pelo quarto, a mariscar nuns pratos engordurados, que teriam servido naturalmente à última refeição.

-Quando quiser, estou às ordens... observou Gustavo, impaciente por livrar-se daquele espetáculo.

-Feche-me primeiro a porta, pediu a velha; não quero que ouçam a nossa conversa. Esta gente de cá é muito amiga da vida alheia... Bem! agora puxe aquela mesinha para junto de mim! assim... Pode assentar. E antes de escrever, escute... escute com toda a atenção...

Gustavo percebeu que hálito da lavadeira transpirava aguardente.

Estela

Um tanto vergado na cadeira, o antebraço direito firmado sobre a perna, o olhar fito, tinha Gustavo a expressão concentrada de quem ouve com muito interesse.

A lavadeira disse-lhe francamente toda a sua vida; relatou como fora recolhida à casa do seu protetor, a morte deste e o imediato casamento dela com Moscoso; depois falou a respeito das questões de seu marido com o pai do Médico Misterioso, do aparecimento de Gabriel, do casamento de sua filha Ambrosina com Leonardo, da loucura do noivo, da morte do comendador, da intervenção de Gabriel, que se amasiou com Ambrosina, e, finalmente, das complicações que surgiram como conseqüência de tais desordens, dando em resultado a fugida de Ambrobina com Laura para a Europa, cujo verdadeiro alcance à pobre mulher estava bem longe de calcular.

-Mas, depois da união de sua filha com o Gabriel, como viveu a senhora?

-Ah! É justamente para chegar a esse ponto que lhe contei tudo mais...

E, depois de descansar um pouco, continuoú, com a voz sempre arrastada:

-Calcule o senhor que um dia encontrei sobre a cama de Ambrosina um bilhete, na qual me comunicava ela haver-se mudado para a companhia de Gabriel. Fui lá; minha filha convidou-me para ficar, eu não quis, e isolei-me na minha casinha do Engenho Novo. Foi então que me apareceu o Alfredo Bessa. o Alfredo mostrou interesse por mim, ia fazer-me companhia, conversar, encarregar-se de meus negócios. Era um bom amigo; um dia propôs-me ficar com ele, e eu aceitei...

E, como Gustavo acabava de preparar um cigarro, ela tirou uma caixa de fósforos debaixo do travesseiro, passou-lhe em silêncio, e continuou:

-Depois da morte do Alfredo, e como fosse escasseando o trabalho, mudei-me para cá, onde com o aluguel da casa do Engenho Novo e o resultado de meu trabalho, tratava da vida e da educação de uma órfá, que eu havia tomado à minha conta.

-Diga-me uma cousa, interrompeu Gustavo; esse Alfredo, de que fala a senhora, não foi retratado depois de morto?...

-Foi, porém muito mal; por um moço, que um freguês nosso nos levou à casa. Ficou uma borracheira...

-Bem; mas o que é feito daquela menina de olhos vivos, que por essa ocasião estava em sua companhia!... Aquela, a quem o mocodo retrato prometeu retratar igualmente?...

-Estela! Pois essa é que é a minha pupila; mas como sabe o senhor disso?...

-É cá por uma cousa... Vamos adiante.

-Essa menina ia ver-me de vez em quando, mas era interna no colégio das irmãs de caridade em Botafogo. Eu dava-lhe uma pensão com o aluguel da casinha do Engenho Novo, porém há quatro meses que as cousas mudaram inteiramente de figura, há quatro meses que não pago a pensão; a diretora escreveu-me várias cartas, prevenindo que me ia remeter a pequena; eu não tenho onde a receber, nem posso tampouco ir lá entender-me com ela. É um inferno!

-E por que não a recebe na sua casa do Engenho Novo?...

-Aí é que bate o ponto! Depois que Ambrosina partiu para Europa, nunca mais me deram novas dessa ingrata, e, como tinha, eu a minha filha adotiva, fazia por esquecer-me da outra; mas, eis o demo, mando uma vez receber o aluguel da casinha do Engenho Novo, e o que recebo, em vez de dinheiro, é a notícia de que a casa fora vendida e que era agora o novo dono quem nela morava. Indago, procuro descobrir o que queria tudo isso dizer, e chego afinal à conclusão de que a casa fora vendida por Ambrosina, que havia chegado do estrangeiro com o nome de condessa não sei de quê!

-Mas, a casa não era sua?

-Sim; havia, porém, sido comprada em nome de minha filha... para escapar aos credores de meu marido...

-Sua filha! Condessa! Ah! exclamou Gustavo; compreendo! É a Condessa Vésper?

-Justamente! É isso!

-Ah! Essa sujeita é sua filha?... repisou Gustavo, muito preocupado. E o que quer a senhora que lhe faça agora?

-Que o senhor me escreva uma carta a ela dirigida, e dê as providências para que a carta seja entregue em mão própria...

-Isso hoje será difícil, porque a Vésper tem uma festa no Alcazar; mas vou ver se consigo.

-Está bem, concordou a lavadeira; contudo que o senhor prepare a carta agora mesmo, e não se descuide de entregá-la quando for possível.

-Pode ficar descansada.

E Gustavo, depois de inteirado do que a velha queria dizer à filha, escreveu a carta, e saiu, prometendo voltar com qualquer resposta.

Eis aí o que deu motivo ao bilhete, que tanto sobressaltou Ambrosina na noite dos seus triunfos.

Entretanto, o rapaz, ao deixar o cubículo de Genoveva, levava no coração um motivo de grande contentamento; era o que acabava de saber com respeito a Estela, o mocinha de olhos bonitos, que tanto o havia impressionado quando a viu pela primeira vez no colégio de irmãs de caridade em Botafogo e logo depois por ocasião do malsinado retrato de Alfredo; e a qual, a partir daí, nunca mais deixara de associar-se aos sonhos do poeta como noiva eleita para a futura felicidade de homem público. Ia vê-la afinal, falar-lhe diretamente, talvez até receber de seus lábios de donzela uma esperança de amor.

Á noite desse mesmo dia foi ao Alcazar, armado com o bilhete que conseguiu fazer ir ter às mãos de Ambrosina, na manhã seguinte, perfeitamente seguro do que tencionava pôr em prática a respeito de Estela, correu ao seu editor, muniu-se com o que aí tinha em dinheiro, tomou um tílburi e seguiu para o colégio das irmãs de caridade. Não lhe foi possível ver a pupila da lavadeira, prometeram-lhe, porém, que às cinco da tarde poderia falar-lhe em presença da diretora, ou da irmã que estivesse de semana. Saldou a conta de Genoveva e, propondo-se pagar um mês de pensão adiantado, soube com surpresa que a sua protegida permanecia ultimamente no colégio, não já na qualidade de aluna, mas de simples empregada no serviço doméstico do estabelecimento.

Retirou-se triste, e durante o resto desse dia nada mais fez do que esperar o momento da prometida entrevista.

À hora aprazada lá estava ele de novo no colégio, e bem pode o leitor calcular com que ansiedade não lhe saltaria por dentro o coração, quando lhe anunciaram que a desejada menina ia afinal ser conduzida à sua presença.

Estela apareceu cabisbaixa e silenciosa na sua estamenha azul-ferrete, e com os cabelos escondidos numa desgraciosa coifa de torcal; acompanhava-a de perto a semanária, velha, macilenta, de óculos quase negros, mãos ocultas nas largas mangas do burel, e o rosto resguardado pelas engomadas abas do seu enorme toucado de linho branco. A rapariga parecia tolhida de sobressalto e timidez, mas seus formosos olhos logo se acenderam e animaram ao dar com os de Gustavo, que a contemplavam enamorados; e, com o feminil e agudo instinto, que jamais atraiçoa a mulher defronte do homem que a ama lealmente, toda ela no mesmo instante se encheu de confiança, deixando em sorrisos transbordar do íntimo da alma a consoladora previsão do novo caminho em flor, que naquele supremo momento ia abrir-se para a sua casta e obscura mocidade.

A semanária, sem levantar a cabeça, nem desencovar as mãos, afastou-se discretamente para um canto da sala, entrincheirada nos seus terríveis óculos, cujos vidros redondos e abaulados, lhe davam à fisionomia, assim a certa distância, um perturbador aspecto de ave agoureira.

Gustavo, ao contrário do que sucedia com a moça, e apesar da íntima segurança das suas intenções, achava-se cada vez mais perplexo e embaraçado. Foi com uma voz apenas perceptível que ele lhe falou da necessidade de cuidar seriamente do futuro dela, à vista do precário estado em que se achava Genoveva.

Estela, com o rosto afogado de comoção, ouvia-o sem ânimo de arriscar palavra. E o moço não se fartava de vê-la, achando-a agora sem dúvida menos bonita, porém muito mais fascinadora e amável. Naqueles travessos olhos, que os dele enfeitiçaram desde que se viram pela primeira vez, lágrimas já de mulher haviam deixado tênue sombra dessas ocultas mágoas, donde tira a natureza as melhores notas dos seus hinos de amor.

-A senhora não poderá continuar na falsa posição em que se acha... balbuciou ele. E preciso ocupar na sociedade o lugar que lhe compete...

A semanária tossiu lá do seu canto, e Estela, abaixando as pálpebras, murmurou:

-Será muito difícil... Não passo de uma pobre órfã, quase totalmente desamparada...

-E por que não se casa?... Arriscou o rapaz, abaixando ainda mais a voz.

A rapariga estremeceu, sem responder, mas em compensação a tosse da velha aumentou, e o agoureiro espectro começou a aproximar-se dos dois namorados sinistro e lento.

Gustavo acrescentou, chegando a boca ao ouvido da moça:

-E se lhe aparecesse um rapaz, pobre, mas trabalhador e honesto, que a amasse muito... muito...?

Estela sorriu, de olhos baixos, e começou a torcer e destorcer nos dedos o lenço de algodão que tirara da algibeira; ao passo que a lôbrega semanária, num frouxo de tosse recalcitrante, vinha cada vez mais aproximando deles as duas negras vigias dos seus óculos.

-Então... nada me responde?... insistiu Gustavo.

-Não creio... segredou Estela.

-Pois sei eu de um moco nessas condições, cujo maior desejo na vida é obtê-la por esposa...

A tosse da velha tomou proporções intimidadoras, e daí por diante não teve tréguas. Estela torcia e destorcia o lenço com um frenesi mais significativo.

-Vamos... prosseguiu o rapaz, ganhando ânimo e levantando a voz para dominar a tosse da semanária; vamos... diga se posso levar ao desgraçado uma esperança... feliz, ou se tenho de desenganá-lo para sempre... Responda, Estela!...

-Não sei...

-E se uma família de gente virtuosa e meiga a viesse buscar aqui, com o fim de a levar para a companhia dela, não como criada, nem agregada, mas como amiga, que pode quando quiser montar a sua própria casa e constituir honestamente o seu lar... Diga, Estela, a senhora não consentiria em acompanhá-la?...

Ela respondeu que sim com a cabeça, e Gustavo, porque a velha tossia agora desesperadamente, exclamou, soltando verdadeiros berros:

-Então em breve estarei de volta, e comigo virá a mãe dessa família, que se entenderá com a diretora do colégio! Adeus, adeus, minha noiva querida!

Estela, radiante de alegria, estendeu a Gustavo uma das suas mãozinhas, que ele avidamente tomou para levar aos lábios.

A semanária, porém, sem largar de tossir, se havia já metido de permeio entre eles, enquanto por todas as portas do salão surgiram, fariscantes, muitas outras toucas de linho branco, que a tosse da semanária e os gritos do rapaz tinham posto em reboliço.

Gustavo bateu em retirada, mas lá da porta de saída ainda se voltou para a rapariga, a dizer com os olhos e com o estalar dos lábios o que as suas palavras não conseguiram.

E desceu a escada do jardim aos pulos, como se todo corpo lhe acompanhasse os saltos do coração, e lá fora meteu-se de novo no seu tílburi, ardendo por chegar a casa e entender-se com D. Joana sobre o que acabava de combinar com a pupila da lavadeira.

Ao chegar à rua do Rezende, entregaram-lhe uma carta, que ele arremessou para o lado, sem abrir, e daí a pouco ficava assentado, de pedra e cal que Estela seria reclamada no dia seguinte às irmãs de caridade pela família Silva.

Só na ocasião de recolher-se à cama é que o rapaz abriu afinal a carta, e leu o seguinte:

«A condessa Vésper comunica ao Sr. Gustavo Mostella que está às ordens dele amanhã às três horas da tarde, Largo do Rocio n.º...»

Rapina

Em caminho da casa de Ambrosina, Gustavo ia formulando intimamente as melhores considerações sobre os seus próprios atos. Sentia esse lisonjeiro gozo que experimentamos ao fazer bem a qualquer pessoa, e ao qual, sem intenções paradoxais, se poderia chamar egoísmo da bondade ou desvanecimento do altruísmo.

Calculava de si para si que iria entestar com uma pantomimeira impertinente e orgulhosa, ele, porém, ia bem prevenido, e não desanimaria por isso, nem se daria por achado -havia de entregar-lhe a carta da pobre lavadeira, declarando francamente o deplorável estado em que viu a infeliz, e obrigando, com ríspidas razões, à famigerada Condessa, a mostrar-se menos desumana com a desgraçada que a trouxe nas entranhas.

E até, como sucedera noutro tempo com Gabriel em circunstâncias, aliás, bem diversas, punha já em ordem os seus belos raciocínios de poeta, formava em linha de batalha os esquadrões dos implacáveis e persuasivos argumentos, com que havia de vencer aquele duro coração de libertinha, e arrastá-lo à compreensão dos deveres filiais, por entre uma brilhante escolta de objetivos em brasa.

E caminhou firme para o alcácer inimigo, cuja porta atravessou impávido sendo introduzido lá em cima à voluptuosa saleta de espera por uma francesa velha e arrebicada, que lhe deu familiarmente o tratamento de «Cher mignon».

Gustavo, depois de medir desdenhosamente de alto a baixo, disse-lhe em tom de ordem que fosse prevenir à dona da casa da sua presença ali. E, fechando a cara e dilatando os lábios, soprou com força, como se atiçasse o morrão que levava aceso para lançar fogo à sua artilharia.

Mas, ao primeiro olhar da inexpugnável Ambrosina, que não levou muito a vir, todo esse arsenal de guerra se dispersou pelo ares, que nem um frouxel de paina ao sopro de inesperado tufão.

Ela, entretanto, parecia indiferente, e se alguma cousa transpirava dos seus gestos e da sua fisionomia, era uma formal amabilidade, cujo frio sorriso não passava dos dentes.

O noivo de Estela, embatucado e fulo de acanhamento, gaguejou algumas palavras de cortesia e entregou-lhe a carta de Genoveva.

A Condessa o fez passar para a mesma antecâmara em que recebera o Médico Misterioso, ofereceu-lhe uma cadeira e foi sentar-se a um canto, no divã, a romper vagarosamente o sobrescrito da carta.

Gustavo observava-a numa atitude cerimoniosa. Por mais esforços que fizesse, não conseguia pôr-se à vontade defronte daquela mulher deslumbrante, que o dominava com o seu ar de imperatriz romana. Sentia-se oprimido por uma irresistível e humilhante fascinação.

Vésper estava com efeito bela. Os braços e a garganta surgiam-lhe de uma confusão de rendas claras, como de um floco de mitológicas espumas do oceano. A cabeça, rica de contorno, destacava-se no enrodilhado artístico dos cabelos. Os olhos, mesmo quando fechados, transluziam os sutis fulgores da volúpia, e a boca o cruel segredo das paixões calculadas, das febres previstas e dos grandes delírios oficias do amor.

Ao terminar a leitura, ergueu-se altiva, e perguntou ao portador da carta se sabia quem a tinha escrito.

-Um seu criado... disse timidamente o rapaz.

-O senhor? Mas nesse caso, entre o senhor e minha mãe há velhas relações?...

-Absolutamente, minha senhora. Eu mal a conheço!...

-E ela confiou-lhe tudo o que vem escrito?!...

-Sua mãe havia pedido a uma vizinha que lhe fizesse a carta; a vizinha não pôde servi-la e encarregou-me por sua vez de...

-Ó senhores, com efeito! Mas então, minha mãe não teve o menor escrúpulo de envolver um estranho nos mistérios de minha vida?

Gustavo sorriu.

-Descanse, disse ele, erguendo-se; nunca terei ocasião de falar sobre semelhante cousa!...

-Hein?! perguntou ela, virando rapidamente a cabeça.

-Digo que não terei ocasião de falar no que me confiou a senhora sua mãe...

-E o que quer dizer o senhor com isso?

-Oh, minha senhora! Quero dizer que não me meto com a vida alheia.

E o rapaz acrescentou, depois de uma pausa, durante a qual Ambrosina parecia meditar:

-O acaso conduziu-me ao lado de sua mísera mãe; ao vê-la fiquei comovido, ofereci-me, não só para escrever essa carta, como para a entregar pessoalmente e exigir a resposta. Se a senhora, porém, não estiver por isso, eu direi à pobre lavadeira que se console, e veremos por outro lado... Sempre há de aparecer algum hospital que a receba por... compaixão.

-Mas, para que diabo me está o senhor a mortificar?... Minha mãe fala-me aqui a respeito da venda que fiz da casa do Engenho Novo: eu, porém, não cometi nenhuma ilegalidade com isso -a casa era minha!- Nem podia eu adivinhar que um fato, aliás tão insignificante, trouxesse tais conseqüências!... Minha mãe, se não está comigo, é porque não quer... ela sabe perfeitamente que eu não lhe fecharia a porta. E para acabar com a questão, vou dar-lhe uma mesada.

E tornou-se a assentar-se.

-Mas, é o diabo! disse ela depois. Não me convinha envolver estranho algum neste negócio!...

-Bem! rematou Gustavo, tomando o chapéu; isso já não é comigo... Direi, pois, à senhora sua mãe alguma cousa a respeito da mesada, e mais tarde, então, a senhora responderá à carta por escrito...

E fez um cumprimento, despedindo-se de Ambrosina.

-Ainda não se vá!... pediu esta, com a voz suplicante e lançando sobre Gustavo um belo olhar de leoa subjugada.

-Em que lhe posso ainda ser útil?... perguntou o rapaz voltando-se.

-Em muita cousa, disse ela, tomando-lhe o chapéu e segurando-lhe uma das mãos. Venha cá... Conversemos...

E depois de novamente assentados:

-O senhor vai ser o meu procurador em todos os negócios que disserem respeito à minha mãe.

-Está bem...

-Imagine que será a única pessoa senhora desse segredo, e que deve guardar sobre o assunto a maior discrição...

-Pode ficar descansada.

-Já que o acaso o pôs ao meu lado neste triste negócio, eu só ao senhor confiarei os meus sentimentos e as minhas intenções... Não me diga que não!

E, abalando mais a voz e chegando-se intimamente de Gustavo, acrescentou, quase com a boca em seu ouvido:

-Não calcula quanto sofro!... Não calcula quanto me custou fingir a indiferença, que ainda há pouco afetei ao receber esta carta!... O modo pelo qual está ela escrita revela coração e caráter. Sei que nunca me hei de arrepender de fazê-lo solidário de minhas penas íntimas...

O senhor será o único homem que participará dos meus segredos, mas antes disso há de prometer-me uma cousa...

-Que cousa?...

-Ser meu amigo e prová-lo prestando-me desde já um serviço...

-Qual é?...

-Prevenir minha mãe de que eu irei hoje visitá-la, e vir buscar-me à meia-noite para me levar ao cubículo em que ela mora. Está dito?...

-Pois não...

-Oh! Eu lhe serei muito grata!... Conto então com o senhor à meia-noite?

-Sem falta.

-Pois bem, à meia-noite o espero aqui mesmo. Já me encontrará pronta para o acompanhar.

-Nesse caso, até logo, disse ele.

-Adeus, meu amigo.

E Ambrosina estendeu a fronte, que Gustavo não beijou.

À hora predileta, já ela com efeito, entocada num carro de praça, esperava pelo rapaz defronte da porta de casa. E dentro em pouco chegavam os dois à miserável residência da viúva do comendador Moscoso.

Graças a Gustavo, a lavadeira tinha sido antecipadamente prevenida daquela misteriosa visita.

Todo o cortiço ressonava, prostrado pela grossa labutação desse dia.

Ambrosina, vestida de negro e embiocada em mantilha entrou na estalagem pelo braço do poeta.

Ia pressurosa e confusa, mas não era a mãe, coitada desta! Quem a preocupava nesse instante, era o enigmático rapazola que lhe dava o braço. Apesar de toda a sua diabólica perspicácia, não tinha ainda a presumida conseguido formar seguro juízo sobre que espécie de animal vinha a ser aquele estranho escrivinhador de novelas, que a tratava por cima do ombro e com um sorriso tão irritante quão pouco amáveis eram as suas palavras.

Ah! Que Gustavo lhe preocupava o espírito e a trazia intrigada desde aquele seu primeiro olhar à porta do Arnaud, disso já não havia dúvida. Ambrosina a princípio procurou, não obstante, explicar o fato por um simples fenômeno de antipatia, mas depois teve de abrir mão dessa hipótese, à vista do insólito abalo nela produzido pelo espinhoso bilhete do estouvado na noite dos seus maiores triunfos, e agora pela quase agradável impressão que lhe causara a generosa atitude do boêmio com respeito à pobre velha, de quem ela era filha e mal se lembrava.

Sim senhor! dizia consigo a loureira; podia ele gabar-se de ter maravilhosamente comovido o belo e frio mármore de que era talhada a Condessa Vésper!

-Qual mármore! Os trinta anós de uma mulher, voluptuosa e materialista como aquela, jamais chegam desacompanhados de fundas modificações no seu temperamento. Ambrosina galgara à curvilínea idade em que a mulher perdida faz grande questão dos seus momentos de amor ex-ofício e, como para se desforrar dos intermináveis tédios do amor profissional, escolhe detidamente, gulosamente, contemplando, estudando em concentrado silêncio de conhecedor, o tenro e apetitoso eleito dos seus dispépticos sentidos, para afinal o saborear em remancho, reservada e grave, plenitude de uma delícia cevada e egoística. E Gustavo tinha então de vinte e quatro a vinte e cinco anos, fortes, sadios e bem aparelhados.

Essa é que era a verdade. Não se vá porém supor que, por ter já trinta anos, estivesse Ambrosina menos bela; ao contrário, o que perdera em graça juvenil ganhara em femínea plástica atingindo a esse glorioso apogeu da carne, que cresce precede na sua órbita fatal ao primeiro pungir do decínio, mas que naquele brilhante e rápido fastígio atinge ao mais alto grau da perfeição da forma.

Será preciso dizer que tão inesperada resistência por parte do mocetão, excitou, naqueles zodiacais e formosos trinta anos, a flama acesa pelo sensual capricho do momento? E que, ao terminar a visita, já se sentia a caprichosa perfeitamente resolvida a capturar o revesso boêmio, custasse o que custasse?

A visita foi breve, mas em compensação muito penosa para a rapariga. Não contava esta encontrar a mãe em tão negro e repulsivo estado de miséria; as acres fezes da existência tinham de todo corroído o que porventura ainda restasse de coragem na pobre vencida, cuja derradeira aparência de energia só na aguardente encontrava, agora por último, uns vislumbres de muleta. A desgraçada, quando logo pela manhã não bebia ó seu trago de cana, desabava para o resto do dia numa tristeza que a punha cismadora e demente.

Ao ver entrar a filha no quarto, ela começou a chorar. Ambrosina correu a beijar-lhe a mão, e com um gesto pediu a Gustavo que se afastasse.

O rapaz saiu, cerrando sobre si a porta, e, durante a abafada conversa das duas mulheres, ouvia-se o som dos passos dele, que lá fora passeava, à espera, por entre a récua de casinhas do cortiço.

Ficou resolvido que Genoveva, com um nome suposto iria para a companhia da Condessa Vésper. Não foi sem repugnância que a infeliz, apesar de seu geral desfibramento, aceitou semelhante derivativo da miséria, mas esse pobres restos de dignidade não conseguiram vir à tona do lodo em que a triste mãe se aniquilava. Iria viver das migalhas dos bródios pagos pelos amantes da filha, e bem compreendia ela, coitada! O alcance de tão extremo recurso, porém que remédio, se lhe faltava agora o ânimo para tudo, até para deixar de existir?

Já em caminho de casa, Ambrosina, fazendo-se muito íntima de Gustavo e sem largar da boca o nome da mãe, encarregou o rapaz com respeito a esta de várias delicadas incumbências.

-Não a desampare, por amor de Deus!... dizia ela, segurando-lhe as mãos; faça com que mãezinha vá para junto de mim o mais depressa possível!... Se soubesse como doi na consciência a ter deixado chegar àquele estado!... O senhor é a única pessoa envolvida nisto... Não me abandone, que eu morreria de desgostos! Mãe, só temos uma na vida! lembre-se, meu amigo, que é uma filha que intercede aflita pela salvação de sua própria mãe!

-Não me descuidarei, descanse! balbuciou ele, um pouco perturbado.

-Ela prosseguiu:

-A ninguém, a não ser ao senhor, seria eu capaz de falar deste modo... Veja como correm as lágrimas dos olhos!

E levou às suas faces as mãos de Gustavo, demorando-as depois contra os lábios, como para lhe dar, com um ósculo de gratidão, humilde cópia de quanto a penhoravam aqueles serviços.

-Mas que profunda confiança me inspira a sua pessoa!... segredou ela, acarinhando-lhe as mãos com os lábios. Nunca fui assim, creia, com mais ninguém, nem mesmo com, meu marido! Oh! Se o senhor me abandonasse neste transe, nem sei o que seria de mim!

-Não tenha receio.

-Se for preciso gastar, não meça despesas... olhe! O melhor será levar já algum dinheiro... Eu vim prevenida!

-Não, não! Dir-lhe-ei ao depois o que gastar...

-Obrigada! Obrigada! Sei que o senhor vai ter incômodos e infinitos aborrecimentos, mas neste mundo devemos socorrer-nos uns aos outros, não é verdade? Oh! como seria eu feliz se algum dia lhe pudesse ser útil em qualquer cousa! Socorra minha mãe, e pode dispor de tudo que possuo! Disponha de mim! toda eu estou sua da ponta dos pés à ponta dos cabelos!

-Muito agradecido, mas que exagero! Não vejo motivo para tanto!

E Gustavo, sentindo agitar-se-lhe o sangue, afastou-se discretamente do corpo de Ambrosina, que ao dele se havia ligado inteiramente.

-Ah! chegamos! exclamou o perseguido com um suspiro de desabafo.

O carro havia com efeito parado à porta da Condessa.

-Não se vá... disse esta ao moço, despedindo o cocheiro. Sinto-me tão abalada pela comoção, que receio ficar sozinha... Faça-me um pouco de companhia à ceia... É um favor que lhe peço. Juro que não o deterei por muito tempo!...

Gustavo esquivava-se com desculpas e agradecimentos, sentindo-se quase ridículo.

Ela o prendeu pelos braços, puxando-o para dentro do corredor. E, tomando-lhe a cabeça entre as mãos, disse-lhe com o rosto encostado ao dele:

-Não sejas tolo, meu amor!

E com violento beijo, em que os dentes dos dois se chocaram, Ambrosina injetou-lhe no sangue o alucinante morbus da sua venérica luxúria.

Entre garras

E a partir de tal momento, Gustavo nunca mais se possuiu.

O leitor, que já sabe de quanto era capaz Ambrosina, poderá facilmente imaginar o que não teria feito esse formoso demônio para captar o amor do impressionável moço, e o modo pelo qual não ficaria este, de corpo e alma, seu escravo.

Arrastado a princípio só pelos sentidos, depois atraído pelo sentimento e pelo hábito, pouco a pouco se foi o mísero convertendo em amant au coeur da Condessa Vésper.

E tal situação lhe criava sérias dificuldades, porque, embora se recusasse Ambrosina aceitar das mãos dele qualquer dádiva de valor, impunha-lhe todavia a dignidade, ainda não vencida de todo, contrariar freqüentemente a generosidade da amante, o que para o infeliz representava verdadeiro sacrifício.

D. Joana, a cujo cargo se achava Estela havia já cinco meses, embalde tentara chamar de novo o hóspede ao bom caminho. Gustavo, além de não realizar o casamento com a rapariga no prazo combinado, parecia disposto a sacrificar a pobre senhora, não pagando as atrasadas contas do que devia. Ela, por sua vez endividada com os fornecedores, revoltou-se afinal e declarou que, em atenção às circunstâncias, guardaria a órfã consigo, mas quanto ao outro, que não estava absolutamente disposta a continuar a dar-lhe casa e comida, antes da solvência dos seus próprios compromissos.

Gustavo retirou-se da casa, abrindo mão de tudo que possuía, menos roupa, livros e manuscritos, e lá se atirou ele para o centro da cidade, à procura de um cômodo mobiliado em um desses coloniais edifícios do tempo da independência, cujas formidáveis e vetustas salas, de paredes de metro e meio, se viam agora tristemente transformadas em verdadeiras colméias de pinho forrado de banalíssimo papel de cor, e aos quais davam os seus sublocatários o pomposo título de «Palacete de hóspedes». Não era muito valioso o espólio do que, a saldo do seu débito, deixara com D. Joana o literato, mas quanta perseverança, e quanta privação de, pequenos gozos vulgares, não representavam esses modestos e adorados móveis, lentamente adquiridos à proporção que iam aparecendo os recursos e se oferecendo as propícias ocasiões! Além dos objetos de utilidade prática, havia também alguns quadros comprados ao belchor e algumas pobres esculturas, que de preciosas só tinham a boa vontade de quem as conservava com tanto carinho.

Mas foi-se tudo, e com essas frágeis cousas também se lhe foi o equilíbrio da vida e do trabalho, tão penosamente conquistado, para de novo abrir-se sob seus pés os negros alçapões da boemia, com todas as suas desordens, martírios e vergonhas, mas sem lhe renascer, ao lado disso, aquela primitiva febre de concepção intelectual, com que dantes o visionário durante longas horas do dia ou da noite desenhava seus romances, apenas alimentando, além de suas esperanças, por um pão comprado na véspera no quiosque da esquina e uma caneca de café nem sempre quentes.

Ambrosina, entretanto, ia para com ele se fazendo menos amorosa e muito mais exigente em sacrifícios de ordem moral. Queria agora que Gustavo a acompanhasse todos os dias aos ensaios no Alcazar, e que à noite se conservasse na caixa do teatro enquanto durasse o espetáculo, e que a levasse às compras à rua do Ouvidor, e saísse com ela de carro a passeio pelo Catete e Praia de Botafogo.

O rapaz protestava, mostrando a falsa posição e o ridículo que lhe provinham de tudo isso, sem falar no perigo de perder o seu escasso emprego, única fonte de recursos certos que lhe restava.

A tais protestos seguiam-se arrufos e rompimentos, que apenas duravam horas e terminavam numa doída explosão de carícias mútuas.

Ainda lhe acudiam, todavia, súbitos lampejos de dignidade, e ele nesses lúcidos instantes tentava reagir com ânimo forte, mas Ambrosina, inexoravelmente, se desfazia em lágrimas e soluços, enleando-o todo com inéditos juramentos de amor e mil beijos enlouquecedores, aos quais cedia o desgraçado, cada vez mais prisioneiro e vencido.

De outras vezes eram os ciúmes que o arrebatavam. Nessas ocasiões Gustavo perdia de todo a cabeça e esbravejava furioso. Ela, porém, sorria de si para si e bem pouco se movia com tais crises, segura, na sua provecta experiência do amor libertino, de que por simples zelos nenhum homem abandona à mulher amada; e tratava então de seguir a boa tática aconselhada em tais ocasiões. Fechar os braços e negar os lábios, deixando que agora chorasse ele por sua vez, enquanto ela descansava os olhos e a garganta, tranqüilamente à espera dos indefectíveis afagos da reconciliação.

E Gustavo entrava cada vez mais fundo no aviltamento, em cujo lodo a sua inteligência, arrastando as asas encharcadas, nem sequer ousava já erguer os chorosos olhos para nenhum dos seus primitivos ideais. Faltava-lhe agora coragem para tudo, para todo e qualquer esforço; era com dificuldade até que ainda comparecia ele de quando em quando ao seu emprego público, apesar das repetidas admoestações do chefe da repartição. Estava desleixado, preguiçoso, subserviente e tristonho. À tarde e à noite, nuns incoercíveis apuros de dinheiro, percorria as casas de jogo, jogando quando podia, e arranjando modos de jogar com as sobras dos alheios lucros, quando de todo lhe faleciam os próprios meios.

Um dia recebeu a demissão.

O que seria dele agora?... pensava desanimado. Ambrosina, porém, não se mostrou afligida ao receber tal notícia, declarou ao contrário que chegava a estimar o fato, pois assim o seu bebê ficaria dela exclusivamente.

E a queda do desgraçado ganhou daí em diante vertiginosas proporções. Gustavo chegou a aceitar obséquios reais da amante, e muitas vezes encontrou nas algibeiras dinheiro, que ele não sabia donde procedia.

Revoltou-se a princípio, mas Ambrosina, tapando-lhe a boca com a dela, lhe afogou a última reação do brio com a lama dos seus implacáveis beijos.

E assim quase dois anos decorreram. Por essa época justamente morria Genoveva no hospital. A pobre mulher consentira em ir morar com a filha, mas não pudera suportar por muito tempo o triste papel, que ao lado daquela lhe impunham as fatais circunstâncias do meio. Tinha às vezes, bem a contragosto, coitada! De intervir nas degradações de Ambrosina, e isso lhe doía ainda por dentro, como se lhe fosse direito a algum ponto de sua alma, porventura conservado intacto. Doía-lhe a cumplicidade nos embustes e tramóias da filha contra a bolsa dos libertinos ricos, nas mentirosas desculpas aos amantes explorados e iludidos, na comédia, sempre repetida, da conta apresentada por terrível credor no melhor momento de um matinal idílio, cujo preço devia, em boa consciência, estar já compreendido nas largas despesas da noite anterior. E ainda mais lhe doía o ver-se em muitos casos obrigada a comissões degradantes, passando por hipócrita e ávida de propinas quando tentava revoltar-se, fazendo rir quando de todo não podia conter o pranto, e ouvindo monstruosidades quando tentava escapar aos estroinas, que lhe davam palmadas nas ilhargas e derramavam champanha pela cabeça.

Em público, a Condessa Vésper achava muita graça em tudo isso, e aplaudia a estroinice dos seus libertinos com gargalhadas profissionais, mas em particular, quando se achava a só com a mãe, tinha para esta palavras de filha e pedia-lhe desculpa daquelas brutalidades. Genoveva, porém, não se consolava e, apesar das suas abstrações de demente, preferiu que a metessem num hospital, e no fim de contas lá morreu, inteiramente desamparada.

Ambrosina chorou nesse dia, mas, para não dar na vista, foi até ao Alcazar, e não deitou luto.

Pouco depois, Gustavo lhe apareceu uma bela manhã mais expansivo, e tomando-a pela cintura, disse-lhe que tinha arranjado um emprego rendoso, e queria propor-lhe uma cousa...

-O que vem a ser?... perguntou ela.

-Oh! Uma cousa muito séria, cuja realização depende exclusivamente da resposta que me deres ao que te vou perguntar!

-O que é?

-Diz-me francamente, Ambrosina, tu me amas?...

Ambrosina olhou em silêncio para ele, e riu-se.

-Não zombes... Responde! Preciso saber se me amas deveras!...

-Mas para quê?...

-Preciso... Responde!

-Dize primeiro para que é...

-Pois bem; ouve: preciso saber se deveras me amas, porque se assim for, quero que despeças todos os teus amantes e fiques somente comigo!

-Ora essa! Para quê?... e por quê?...

-É boa! Porque te adoro! Porque preciso de ti para viver! Porque não posso continuar a suportar as tuas relações com outros homens! Agora, que já tenho um ordenado, desejo dividi-lo honestamente contigo, na paz de uma existência confessável, e trabalhar muito! Mas, para a realização de todos esses sonhos, é indispensável primeiro saber se me amas por tal forma que sejas capaz daquele sacrifício...

Ambrosina não respondeu; ficou a cismar.

-Então?... insistiu Gustavo, responde, minha amiga! uma palavra tua dar-me-á mais coragem que todos os clamores do meu caráter! Lembra-te de que por ti esqueci tudo, desviei-me do meu futuro, cortei minha carreira, acovardei-me, perdi-me! Vamos! Não me queiras obrigar agora a amaldiçoar o destino que nos aproximou! Fala! Diz-me alguma cousa!

-Mas o que queres tu que eu te diga?...

-Quero que me digas se me amas e se és capaz de um sacrifício por esse amor; se tens, finalmente, alguma cousa no coração que te dê ânimo para esquecer todo o passado, abdicar do luxo, privar-te dos prazeres ruidosos, e viver só comigo e exclusivamente do nosso amor! Fala! Dize! Lavra a minha sentença!

Ambrosina fez um ar concentrado, foi até ao sofá, assentou-se, cruzando as pernas e deixando-se cair sobre as almofadas; depois ofereceu a Gustavo um lugar ao pé de si, e disse-lhe:

-Queres que te fale com toda a franqueza?

-Decerto.

-Olha lá!

-Não quero outra cousa.

-Talvez venhas a arrepender-te e nesse caso o melhor é ficarmos calados...

-Não! Fala!

-Bem; vais ouvir então o que nunca imaginaste, nem eu a ninguém revelaria espontaneamente... vais saber de cousas minhas, cuja transcendência nem compreenderás talvez. Vou levantar a lousa de meu coração e consentir que, pela primeira vez alguém penetre nele. Coragem, e escuta!

Gustavo estremeceu da cabeça ao pés, e concentrou-se ansioso, com a alma suspensa dos rubros lábios de leoa.

Viva Napoleão!

-Toda e qualquer mulher, principiou a Condessa Vésper, uma vez viciada pela ociosidade farta e pelo hábito quotidiano da satisfação de todos os seus instintos e de todos os seus caprichos, nunca jamais se poderá contentar com a banal existência de chá com torradas, que lhe ofereça um rapaz pobre e honesto, de roupa bem escovadinha, lenço cheirando a água-de-colônia, e algibeiras cheias de máximas filosóficas em prosa e verso...

E, a um gesto interlocutório do amante, disse ela entre parênteses:

-Não tens de que te espantar com esta franqueza! Que Diabo, filho! Eu bem te preveni!

E prosseguiu, sem esperar pela réplica:

-Acredita numa triste cousa, meu pobre Gustavo; essa denominação que vulgarmente nos conferem de «mulheres perdidas» é muito justa e muito verdadeira, pois com efeito não há salvação possível, para a desgraçada uma vez presa na voragem da ostentação mantida pelo próprio corpo. Podemos, por alguns dias, alguns meses, alguns anos até, reprimir e disfarçar os vícios da nossa vaidade; mas, lá chega um belo momento em que, só o simples espetáculo de uma mulher que nos passe defronte dos olhos triunfante no seu phaeton tirado por animais de raça, exibindo um rico vestido à última moda, e a idéia de que com uma simples pirueta na vida a suplantaríamos imediatamente, é quanto basta às vezes para tranverser toda a nossa pseudo-regeneração e de novo atirar conosco à primitiva e sedutora lama! Não te revoltes, meu amigo! Falo-te com o coração nas mãos e segura do terreno em que piso. Para nenhum outro homem teria eu esta franqueza, porque isso me poderia acarretar gravíssimas desvantagens profissionais, mas contigo, que nada mais tens para mim do que o teu amor de poeta...

-Cínica! atalhou Gustavo.

-Oh! Nada de palavrões! Não tens direito de enfadar-te, nem eu estou agora disposta a uma cena violenta.

-Pois então não me provoques com palavras que me humilham!

-Não sei por que te hás de julgar humilhado. Suporás acaso que enxergo alguma superioridade nos homens mais ricos do que tu? Se eles têm mais dinheiro, é porque o herdaram, ou roubaram, ou o ajuntaram à força de paciência e economia; isso, porém, não vale a milésima parte do teu talento e ainda menos do pobre desprezo que tens pelas vaidades burguesas e pelas ambições vulgares. Todavia, filho, o teu talento, por maior, nem todos os teus brilhantes méritos, seriam capazes só por si de dar-me a deliciosa febre, o delírio do gozo de oprimir pela inveja às mulheres honestas, os loucos transportes dos vícios ultra-humanos e sensacionais, o insubstituível prazer de vingar esta carne que se vende, a ela escravizando e com ela envenenando os que a compram e conspurcam de beijos luxuriosos!

-Oh! Se me amasses, nem uma só dessas cousas te acudiria ao pensamento, quanto mais aos lábios!

-Mas, valha-te Deus! tudo neste mundo é relativo. Se eu te não amasse, filho, não estaria tu aqui assim, ao meu lado, a pagar-me em palavras duras o direito que meigamente te confio de dispor de mim, como se foras meu dono... Creio pelo menos não haver eu recebido nenhum decreto do Imperador, mandando-me que te ature; se o faço é porque te amo, toleirão!

-Entretanto, disse ele, erguendo-se, bem diferente é o amor que me inspiraste!... Eu também vivia preso a uma outra vida, melhor que a tua; não feita de falsas e ostensivas vaidades, mas de justas e sinceras aspirações, e com a qual tive de romper por amor do teu amor... Sonhos, esperanças, ideais, tudo calquei aos pés, para às cegas seguir o destino que teus olhos avistassem! Tu não tens coragem para deixar um vestido à moda e um carro, e eu tive para abandonar o caminho que conduz a todas as considerações públicas e a todas as felicidades íntimas! Ah, não! Tu não me amas, desgraçada! tu nunca a ninguém amaste!

-Como te enganas!... murmurou Ambrosina, com um suspiro profundo. Oh, se amei!

-Ah!

-Oh, se amei! Tudo o que agora sintas, e muito mais, tudo isso já passou por esta alma perdida e gasta!... Pede a Deus nunca te faça a ti sofrer o que eu sofri...

-Ah! Então tu não me amas, porque já amaste demais? Não me amas porque foste já inteiramente de outro?! Oh! Por piedade não me mates deste modo! Por piedade não me fales em outro homem!

E Gustavo, arfando, deixou-se cair em uma cadeira, a segurar a cabeça com as duas mãos.

-Não foi um homem... segredou Ambrosina, indo afagar-lhe os cabelos. Põe à larga o coração e reprime os teus zelos... Vou confiar-te um manuscrito, que outros olhos não viram além dos meus... Se o leres, ficarás inteiramente tranqüilo... e talvez curado.

-Um manuscrito?

-Sim, querido, uma simples nota de minha pobre vida, mas pela qual poderás penetrar até ao fundo do meu coração, e de lá voltares sarado para sempre da poética ilusão de amor que te inspirei. Espera um instante.

E daí a pouco voltava ela com um pequeno livro de capa negra, que passou a Gustavo.

Este abriu o livro, e leu na primeira página:

«LAURA»

-Que significa este nome? exclamou o rapaz.

-Lê! disse Ambrosina. É quase nada... obra de alguns minutos de leitura...

Gustavo afastou o reposteiro da janela e, à luz que vinha de fora coada pelas cortinas, começou a ler o seguinte:

«Era no inverno, um céu de lama enlameava a terra. Eu vagava pelas ruas, sem destino, embriagada e foragida.

»Nesta noite havia rompido com o meu amante, o meu primeiro homem, porque a súbita loucura do outro, que tive por marido, não lhe deu tempo para me fazer mulher.

»Na questão com meu amante era deste a razão e minha toda a culpa: fora eu nessa mesma tarde surpreendida por ele a traí-lo, ao fundo da chácara, sob um caramanchão de jasmins, com um miserável que lhe parasitava a bolsa e lhe corrompia o caráter.

»Fugi de casa com medo que ai me matassem numa crise de ciúmes, e quando me achava lá fora, prestes a sucumbir ao cansaço e ao desamparo, fui socorrida por um pobre homem, generoso e rude, que carregou comigo e me recolheu ao leito virginal de sua idolatrada filha.

»Foi então que conheci Laura.

»Um sonho! Dezesseis anos, olhos negros e ardentes, boca desdenhosa e sensual, dentes irresistíveis e um adorável corpo de donzela.

»Acordei essa noite nos seus braços.

»Foi o meu único amor em toda a vida. Jamais em delírio de sentidos, paixão, esquecimento de tudo, alma e carne se fundiram numa só lava de desejo insaciável e ardente, como com as nossas sucedeu para sempre nessa noite imensa, misteriosa, revolta e sombria como um oceano maldito.

»Fugimos as duas para a Europa.

»O pai de Laura morreu de desgosto.

»E para nós outras se abriu uma estranha vida de delícias trancendentais e cruéis. Primaveramos em Nice e fomos de verão a Paris. O velho mundo, sistematicamente orgíaco, nos era indiferente e banal. Vivíamos uma para a outra.

»Laura, porém, ao declinar do estio, começou a sofrer. As violetas dos seus olhos, mais doces que as estrelas do Adriático, iam-se fanando e amortecendo; vinham-lhe às faces sinistras manchas cor-de-rosa, e, aos primeiros crepúsculos do outono, todo o seu mimoso corpo de flor impúbere caiu a definhar, pendido para a terra.

»Eu passava os dias e as noites ao lado dela, numa vigília de beijos angustiosos, em que o meu amor libava dos seus lábios murchos a derradeira essência.

»Prazer horrível! Quantas vezes não imaginei que naqueles nossos sombrios êxtases, ia beber-lhe o último alento? mas em vão tentava a morte intimidar-me, rondando-nos as carícias e disputando da minha boca a doce e cobiçada presa; mais forte do que ela, era a sangüínea onda do desejo que nos arrebatava, num só vulcão de fogo, aos páramos do supremo delírio da carne.

»Laura voltava sempre estarrecida e chorosa desses fatais arrancos dos sentidos. Eu bebia-lhe as lágrimas.

»Uma noite, ergueu-se a meio na cama, e fitou-me estranhamente. Tinha os olhos em sobressalto, a boca desvairada.

»-Laura! Exclamei, sacudindo-a nos meus braços.

» Ela conservou-se imóvel.

»Laura! minha Laura! Não me atende? é a tua Ambrosina que te fala! Ouve! Escuta, meu amor, minha vida!

»E cobria-lhe o trêmulo corpo de aflitivos beijos.

»Laura, porém, continuava estática e de olhos fitos nos meus. Afinal levantou-se sobre os joelhos, volveu a cabeça vagarosamente de um para outro lado, e depois, soerguendo o seu débil braço de virgem, a apontar à toa na inspiração do delírio que a arrebatava para os meus remotos devaneios da puerícia, disse-me com a voz comovida e quase extinta:

»-Não ouves?..

»-O quê?!

»-O som longínquo dos tambores...

»-Minha Laura!

»-É Bonaparte que reúne os seus soldados para a guerra... Não vês além esfervilhar aceso o oceano de baionetas?... Olha! vão bater-se! Agitam-se por toda a parte as águias vitoriosas! multidão saúda-o grande corso! Ele agora passa em revista as tropas, montado no seu cavalo branco... Fervem gritos de entusiasmo, clarins ressoam, atroa os ares o rufo dos tambores! Oficiais, refulgentes de ouro, galopam sobre os rastros do meu Imperador. Como vai belo! Da palidez da sua fronte e da sombra de seus olhos transparecem fulgurações divinas. O seu sorriso É um clarão de glória... Ei-los que partem! Já mal se avista o fuzilar das armas e mal se ouvem trovejar os tambores. É a tempestade que se afasta para rebentar além. Rompeu o fogo! Estão em plena batalha! A pólvora os embebeda numa nuvem de fumo. Ninguém mais se entende! Chocam-se os esquadrões, retinem os ferros, ronca a metralha! Avante! Avante!

»E Laura, de pescoço estendido, a boca aberta, o olhar disparado em flecha, deixou-se cair sobre as mãos, numa atitude de esfinge, e murmurou, apenas percetivelmente:

»-Viva Napoleão

»E, num estranho chorar de morta, começaram-lhe as lágrimas a escorrer dos olhos pelas faces emurchecidas, sem um soluço, nem um gemido.

»-Laura chamei, tomando-a nos meus braços.

»Ela deixou pender molemente a cabeça sobre meu ombro, estirou os membros, e um extremo suspiro lhe fugiu do peito.

»Já não vivia.

»Apoderei-me dela então, louca, sem consciência de mim (Ainda era tão formosa!) e colei meu lábios aos seus amortecidos, e enlacei-a toda fria contra o meu colo ardente, bebendo o derradeiro calor daquele idolatrado corpo já sem vida.

»E foi a última vez que amei... para sempre!»

-Vês tu? interrogou Ambrosina, entre sorrindo e triste, quando Gustavo fechou o livro; para sempre!...

Ele demorou-se um instante a contemplar, muito abstrato, a capa do manuscrito; depois, como se despertasse, o restituiu à dona, e foi buscar o chapéu e a bengala.

-Adeus... disse.

-Para onde te atiras? indagou ela.

-Não sei...

-E quando voltas?

-Nunca mais...

-Hein? Nunca mais?!

-Sim. Adeus.

Houve um silêncio, durante o qual o desgraçado em vão esperou que a amante lhe cortasse a retirada com uma carga de carícias; Ambrosina não se moveu do divã em que estava, e murmurou afinal, de olhos meio cerrados:

-Pois adeus...

Gustavo despejou-se para a rua, levando a morte no coração. Dizia-lhe no íntimo um sinistro pressentimento que desta vez não iria a caprichosa, como das outras, desencová-lo donde se escondesse ele, para o reconduzir, escoltado de beijos, ao seu delicioso presídio.

-Está tudo acabado! Tudo acabado! monologava o infeliz, atravessando a praça de D. Pedro I.

E era ela quem, de olhos secos e boca vazia, lhe fechava a porta da alcova; e era ele quem agora estalava de ansiedade por lhe cair de novo aos pés, rogando-lhe que lhe deixasse continuar a ser martirizado e aviltado!

Ah! Não se pode avaliar dessas primeiras horas de abandono, sem se ter sido um dia desprezado de súbito pela mulher amada; são séculos de uma agonia constante e mortífera, que nos converte a existência na mais pesada das grilhetas, e nos reduz o coração a uma carnaça babujada e dilacerada pela matilha dos ciúmes e das saudades. Todo o nosso organismo se transforma então num laboratório de fel bilioso, onde o espírito vai buscar a tinta negra e amarga com que veste os seus gemidos e os seus lutuosos pensamentos; agre período de desfibração do nosso pobre ser, durante o qual perdemos todas as forças de resistência para as lutas da vida moral e física.

Só dois dias depois dessa inquisitorial tortura, em que de todo ele apenas se conservou inabalável o próprio mal que o devorava, foi que Gustavo descobriu por fim a verdadeira razão daquele insólito desabrimento de Ambrosina, e da proterva franqueza com que lhe patenteara as secretas podridões da sua libertinagem; é que a vil tinha já de olho, em virtual preparação, quem o devia suceder no amor ex-ofício, um guarda-marinha de dezoito anos, moreno e meigo, tímido como as primeiras violetas de junho, e lindo como o primeiro amor dos adolescentes.

Gustavo os vira juntos uma vez, por acaso, ao fundo de um camarote no Politeama, tão felizes e tão invejados, que teve de fugir dali para não cometer algum crime. Depois começou a encontrá-los por toda a parte, sempre inseparáveis e confidenciais; encontrou-os nas corridas do Jockey-Club, no jardim do hotel Dori, nos gabinetes particulares do Paris, nos bailes do Rocambole e na caixa do Alcazar.

E sua alma pôs-se mais negra e infecta do que a lama dos esgotos.

Deu então para beber, e, uma vez ébrio, ia provocar Ambrosina à casa desta, lançando-lhe da rua todos os vitupérios de que era capaz o seu desespero; mas depois, às horas mortas da noite, quando, por um fenômeno do vício, mais forte lhe roncava por dentro o desejo dela, voltava o miserável, como um cão enxotado e fiel, a uivar à porta da prostituta as angústias daquele amor que lhe punha o coração em lepra viva; e chorava, e suplicava, com humildes lágrimas de mendigo faminto, a esmola dos sobejos do outro.

Ambrosina, sem lhe esconder ao menos os risos da festa ao sangue novo com que se banqueteava a sua gulosa carne, mandava corre-lo pelos criados; e, de uma feita, às três da madrugada, o fez levar preso por um soldado de polícia.

Gustavo foi de novo posto em liberdade no dia seguinte às nove horas da noite, e ao sair da enxovia levava no coração uma idéia sinistra e decisiva.

Consultou as algibeiras. Tinha de seu apenas quatrocentos réis.

-É quanto chega! disse ele.

E caminhou resolutamente para o centro da cidade.

A condessa e a princesa

Desceu a rua do Lavradio, atravessou a praça de D. Pedro I sem olhar para os lados, e seguiu pela rua da Carioca até o Largo do Paço. Penetrou no pequeno jardim defronte da Capela Imperial e assentou-se um instante num dos bancos laterais, a olhar abstratamente para o mal iluminado palácio do Imperador, que nessa tarde havia descido de Petrópolis. Depois ergueu-se com um grande suspiro, e, de chapéu na mão e passos lentos, encaminhou-se para uma tasca do Mercado, pediu aguardente de cana, bebeu de um trago mais de meio copo, e tomou afinal a direção do ponto das Barcas Ferri.

Ao chegar aí, olhou para o mar; a noite estava límpida e toda afogada de estrelas. Muita gente descia de Niterói; senhoras e mulheres do povo recolhiam-se à Corte, trazendo ao colo, ou arrastando pela mão, crianças tontas de sono que rabujavam.

Bateram onze horas.

Gustavo comprou o seu bilhete de passagem com os últimos duzentos réis que possuía, cruzou a estação, entrou na barca, subiu à coberta, e foi assentar-se à proa com o cotovelo na grades da amurada e o rosto apoiado a uma das mãos.

Ninguém lhe via as lágrimas.

Em breve a máquina principiou a roufenhar, movendo no ar os gigantescos braços da balança, e a embarcação começou a mexer-se e a desgarrar-se do pontão flutuante, tranqüila, pesada e lenta, como um terciário paquiderme que abrisse o nado nas suas águas favoritas.

Havia poucos passageiros no tombadilho. Um grupo de rapazes, ameijoados num dos bancos do centro, conversava alegremente, dizendo versos em voz alta e falando de poetas brasileiros. Gustavo ouviu pronunciar o seu nome e ouviu declamar sonetos seus. O homem do leme vigiava o horizonte, a espiar o rumo da viagem pelo postigo da sua guarita.

E a melancolia do mar erguia-se para o céu, bebendo a luz das estrelas.

Gustavo acendeu um cigarro, e pôs-se a andar de uma ponta para a outra do convés.

A barca adiantava-se, arfando.

Ao meio da baía, ele atirou fora o cigarro, procurou um ponto mais deserto e sombrio ao lado da chaminé, transpôs o gradil da amurada e, de pé sobre as bordas desta, olhou por algum tempo o mar; e depois cerrando os olhos, de um salto se precipitou nele.

As águas fecharam-se sobre o seu corpo.

-Homem ao mar! gritou surdamente uma voz à popa.

Mas ninguém deu por isso, nem se moveu, e a barca continuou inalteravelmente a cortar a baía em direção de São Domingos de Niterói.

Só daí a três dias, quando as ondas rejeitaram à praia do Flamengo o cadáver do suicida e a polícia o recolheu ao fúnebre depósito da ladeira da Conceição, pois ainda não estava concluído o necrotério vizinho ao Arsenal de Guerra foi que, pelas circunstância das notícias da imprensa, veio a saber Ambrosina do triste fim da sua recente vítima.

O trágico desfecho daquele desgraçado drama de amor e de depravação, que os jornais diários trataram logo de explorar, a impressionou profundamente pelo seu lado espetaculoso, e veio a servir para acrescentar ao novo capricho da loureira pelo tal guarda-marinha de dezoito anos, uma nota sentimental e fatídica, que o tornava muito mais esquisito e saboroso.

E a farsante Condessa teria sem dúvida tirado muito maior partido desse teatral episódio da sua espaventosa existência, se nessa ocasião não lhe aparecesse uma alta e sedutora empresa, a que ela de pronto se lançou, sem distração da menor partícula de sua atividade.

É que acabava de cair sobre o Rio de Janeiro, depois de uma divertida viagem de correção à volta do mundo civilizado, o famoso e estouvadíssimo príncipe D. Felipe sobrinho, do Imperador e aluno da Escola Militar.

D. Felipe era o tormento do velho Monarca, que na sua patriarcal rapidez de atos públicos e privados, nem lhe daria de novo acesso em palácio ao lado dos netos infantes, se não foram as intercessões da virtuosa e compassiva Imperatriz Dona Teresa. D. Pedro II não perdoava ao sobrinho as estroinices e extravagâncias, que às vezes, força é confessar, degeneravam em ribaldaria e maldade.

Dera motivo à correcional viagem de que agora tornava sua Alteza, uma terrível diabrura celebrizada nos anais contemporâneos da vida fluminense; e foi que um dia, depois de uma formidável desordem no jardim do Alcazar, a polícia, no meio de grande pancadaria, cadeiras partidas, mesas e cabeças rachadas, colhera vários estudantes da Praia Vermelha, entre os quais se achava o incorrigível príncipe.

D. Felipe foi, com os seus colegas de curso acadêmico e companheiros de pândega, conduzido pela força policial à Escola Militar, porque só aí podiam, ele como aqueles, serem submetidos à prisão.

Imagine-se em que estado não iriam!

Eram três horas da madrugada quando lá chegaram, e o fato, aliás comum, teria passado sem notoriedade, se o demônio do rapaz não se lembrasse de, ao enfrentar com o corpo de guarda da imperial academia, sacar da algibeira o Tosão de Ouro que levava consigo, e, com ele pendurado ao pescoço, entrar solenemente no bélico recinto.

Como de rigor, o Oficial de guarda mandou bradar armas ao Tosão de Ouro, o que equivalia a dar sinal da presença do Imperador, pois no Brasil só este até aí ousara servir-se dessa cavaleiresca ordem de Felipe o Bom, apesar de ser ela facultativa aos outros membros varões da família imperial brasileira.

Fez-se alarma. Toda a Escola ferveu logo num levante, ao estrugido de tambores e clarins que chamavam a postos o Estado Maior.

E os velhos professores tiveram, em sobressalto, de afrontar o seu reumatismo, e precipitarem-se estremunhados aos competentes uniformes de grande gala, para receber a suposta visita de Sua Majestade.

Foi por entre a formatura em peso da veneranda corporação da Escola, que D. Felipe, esbodegado e sorridente, atravessou para a prisão.

Calcule-se daí o efeito de semelhante escândalo, e por ele quanto se não chocaria o circunspecto Monarca.

Agora, de volta à Corte, D. Felipe vira uma vez Ambrosina às pernadas com um pobre cançoneta, naquele mesmo famoso teatrinho onde se engendrara pretexto a referida anedota histórica, e logo correu à caixa para se fazer apresentar à festejada exibicionista de belas formas, procurando incontinenti requestá-la de assalto.

Ora, a D. Felipe não dava o Brasil mais do que um conto de réis por mês, casa, trens, criados e cavalos; mas, como sabiam todos os mercadores do Rio de Janeiro que as contas do pândego príncipe, por maiores e absurdas, eram sempre, mais cedo ou mais tarde, liquidadas pelo erário imperial, nem só não lhe regateavam crédito, como ainda procuravam espertalhonamente meter-lhe pela cara tudo aquilo que pudessem.

Ambrosina tinha disso perfeita ciência, e rejubilava por conseguinte com a sua heráldica conquista.

Sua Alteza, ao cabo de alguns meses, propôs, tomá-la para si exclusivamente, com a condição, porém, de que a amante não havia de pôr os formosos pés em tábuas de ribalta, nem dar trela a guardas-marinhas, enquanto estivesse em companhia dele.

Ela aceitou, arroubada de contentamento. E foi essa a fase mais brilhante do seu efêmero fastígio; foi como vai ver o leitor, o momento apogístico da sua venusta glória, o delicioso instante da embriaguez de Safo, mas também o Leucale fatal, donde havia de rolar a Condessa Vésper ao abismo comum das mercadorias de amor.

Apogeu e ocaso

D. Felipe pôs-lhe casa em Botafogo, mandou, por inspiração própria e segundo desenho seu, aparelhar o brasão de armas da Condessa Vésper -uma grande estrela de prata em campo azul-celeste, cortado em diagonal por duas ordens de lágrimas vermelhas; em cima a coroa condal, e por baixo do escudo um ramo de camélias brancas e deu-lhe lacaios de libré agaloada, tomando do brasão as duas cores carmim e prata; e deu-lhe jóias, e deu-lhe rendas tão preciosas que valiam ainda mais que as jóias, e vinhos tais, que valiam mais que as rendas.

Vésper tocara ao seu zênite, à fúlgida culminância que precede ao fatal declínio.

Pouco, muito pouco tempo durou o plenivênio de sua glória, apenas um ano, mas nesse fugaz instante gozou ela todas as delícias das voluntariedades; foi por um momento de sua vida o centro planetário, em torno do qual todos os prazeres livres e todos os vícios caros do Rio de Janeiro bailaram ébrios de gozo. Os principescos salões de sua casa converteram-se, não só no quartel general de todas as prodigalidades elegantes, de todas as gentis libertinagens de um outro sexo, mas ainda no alegre ponto de reunião de muito dignitário de gravata lavada e de homens de real merecimento libertário, artístico e científico. Nas suas esplêndidas noitadas, de ceia permanente, em que o champanha corria a jorros e a orquestra só emudecia ao clarear da aurora; em que as bancas de lansquenet, de bacará e de trente e quarente, se sucediam, deslocando centenas de contos de reis, viram-se, ao lado das vulneráveis divas de colo nu, altas patentes de mar e terra, poderosos conselheiros da Corte, velhos senadores cobertos de condecorações; formidáveis banqueiros, cujos sorrisos de lábios secos valiam ouro, capitalistas donos da Praça, e titulares que dariam para uma coleção completa, desde o bisonho comendador de grau mínimo na Maçonaria, até o rebarbativo Conde, grau 33, com chácara em arrabalde e o nome imposto pela Câmara Municipal à rua em que ele habitava.

E ela, ao lado do seu príncipe, cercada de admirações de ricos e de protegidos pobres, sentia-se plenamente feliz, gozava essa felicidade, tão ambicionada e tão rara, que só experimentam os privilegiados da fortuna, os eleitos da sorte; a felicidade de chegar ao fim proposto, de cumprir o seu destino na terra, de tocar com as mãos e com os lábios o ideal sonhado durante a vida.

Nesse ano de plenitude, Ambrosina chegou a ser uma irresistível potência, cujo valimento se estendia escandalosamente até aos degraus do Trono. Quantas vezes não foi ela, às horas escusadas do pôr do dia, visitada e adulada por estranhos de boa cotação na sociedade, que lhe iam solicitar a graça de uma recomendação para os magnatas do poder? Quantas vezes não recebeu, com frios gestos de rainha, a clandestina visita de alguma pobre senhora, que entre risonhas e envergonhadas lágrimas, lhe suplicava uma palavra de interesse pela promoção do marido ou pela nomeação do filho? Quantos casamentos de dinheiro, e quantos casamentos de amor, e quantos adultérios, e quantas reconciliações conjugais, não dependeram dela? Quantos destinos não lhe foram parar às felinas mãos, para destas receber a nova direção que lhes quisesse imprimir a soberana fantasia da loureira?

De tão senhora da fortuna, e de tão satisfeita consigo mesma, chegou Ambrosina a revelar belas alterações no temperamento e no gênio. Era difícil surpreender-lhe então um gesto de mau humor ou de má vontade; dera ao contrário para mostrar-se indulgente e branda com os inferiores, compassiva e humanitária para com os humildes e fracos, cheia de um espetaculoso interesse pelas vítimas de qualquer notável desastre. Acudiam-lhe agora, àqueles mesmos lábios a cujo sopro vidas de vinte anos se apagaram, doces sorrisos de meiga afabilidade para os pálidos necessitados, que de longe se arrastavam até à fímbria de seus vestidos em súplica de piedosos. Quem sabe lá o que não sairia ainda de semelhante demônio, se aquele plenário ano se prolongasse indeterminadamente!... Mas, um dia fatídico para ela! O seu áulico amante lhe divisou por entre os ondulantes e fartos cabelos da nuca, os primeiros fios brancos, e lhe pressentiu através dos beijos as primeiras rugas da velhice.

Dois meses depois, D. Felipe desaparecia do Rio de Janeiro, sem se despedir da sua companheira de vícios, e ainda por cima lhe alçando mão de algumas das melhores jóias que ele próprio lhe havia dado.

E a roda da fortuna começou a desandar vertiginosamente para a Condessa Vésper.

Tão lenta e folgada fora a ascensão, quão rápida e pungente era agora a descida. O atrevido fausto em que a deixara instalada o fugitivo príncipe, os dispendiosos hábitos que lhe ensinara, e o exigente meio que lhe dera, mais lhe agravavam a situação e lhe precipitavam o fatal soçobro. Pouco depois da deserção de D. Felipe, já o largo crédito que se havia aberto em torno dela, se fechava com um golpe cicatrizado.

Ambrosina, viu aflita desmoronar-se debaixo de seus pés, como por alçapões de teatro, todo o rebrilhante e cenográfico pedestal em que num momento se julgou soberana; e compreendeu, ai dela! Que isso acontecia, não porque só um príncipe D. Felipe a pudesse manter naquelas alturas, mas porque a sua época passara, porque outras mulheres, mais moças e mais novas, lhe empolgavam, entre vitoriosas gargalhadas, o chocalheiro e leve cetro da libertinagem fluminense.

Vésper descambava e amortecia à luz de novas estrelas.

O próprio Alcazar, onde campeara ela no Rio de Janeiro os seus decisivos triunfos de mulher formosa e pública, caía também de moda, e só era já freqüentado por uma velhada quieta e conservadora, metodicamente pagodista. E pouco sobreviveu ele ao desmaio da sua última estréia de primeira grandeza depois de agonizar por alguns meses, repetindo velhas e estafadas canções dos seus tempos felizes, entregou a alma ao diabo, quase juntamente com o esperto Arnaud, cuja vida parecia identificada com a do endemoninhado teatrinho.

De repente, viu-se Ambrosina cercada de uma negra nuvem de meirinhos e credores de dentes refilados, que lhe fariscavam rendas e alfaias, jóias e baixelas, móveis, carros e cavalos, sem que tudo isso lhe desse não obstante para pagar em juízo a metade do que devia a executada.

Dentre os meirinhos, um, que se mostrava diretamente interessado por ela, procurou falar-lhe em particular.

Ambrosina agarrou-se a ele, como o náufrago à primeira mão que se lhe estende; mas, ao encará-lo de perto, e ao reconhecê-lo afinal, teve um instintivo retraimento de surpresa e de repugnância.

Relapsia

Céus! O meirinho era o Melo Rosa, o seu primitivo cúmplice!

Mas que estranha cara tinha agora o trampolineiro! Parecia raspada a caco de telha! O diabo do homem estava escamoso, descabelado e cor de brasa; não dava absolutamente idéia do que fora quinze anos antes! Que sinistro mal o poria naquele repulsivo estado?

-Não se deixe ficar aqui... É pior! Segredou ele a Ambrosina, arrastando-a para um canto escuro. Trate quanto antes de apanhar o que de melhor puder carregar dentro das malas, e negue-se a futuras intimações... O escrivão ainda não chegou... Se não fizer o que lhe digo, estes cães lhe arrancarão a camisa do corpo! Mas mexa-se sem perda de um segundo! Daqui a pouco a casa estará interdita!

-Mas para onde hei de ir?...

-Tome este cartão. É de um chalé da rua dos Arcos... Lá encontrará quartos com pensão, ou sem pensão. Boa gente! Diga que vai em meu nome - eu agora me chamo Melo Junior.

A Condessa Vésper aceitou o alvitre do seu ex-ofício transformado em beleguim, e lá foi, com um nome suposto, dar consigo ao latíbulo por aquele inculcado.

Era uma casa de ar muito tranqüilo, mas suspeito, de um luxo encardido e mofado em que as capas dos sofás e das cadeiras acolchoadas serviam, não para as resguardar do pó, mas para esconder aos olhos dos hóspedes os ultrajes do tempo e do uso. Por toda a parte cortinas, tapetes, biombos, quadros e mesinhas, tudo, porém, repuído e amolambado.

Pelo esvaziamento das portas mal cerradas, lobrigavam-se vultos brancos de mulheres em penteador, arrastando chinelas de veludo e fumando cigarros. E pelos corredores sentia-se um cheiro impertinente da cozinha de hotel.

Ambrosina, ao tomar pé nos seus novos aposentos, desatou a chorar, e foi com o coração desfeito em amargura que a reformada loureira essa noite se recolheu à cama, depois de haver jantado no Dori, para se não encontrar com o Melo Rosa, que ficara de ir ter com ela ao pôr do sol.

Mas, no dia seguinte, logo pela manhã, ao correr os olhos pelo primeiro jornal que lhe caiu nas mãos, teve uma grande alegria: na lista dos passageiros do Rio da Prata estava o nome de Gabriel.

-Que felicidade! exclamou ela, secando o vestígio das lágrimas com um sorriso.

E correu à escrivaninha, onde de um fôlego minutou uma extensa carta, que terminava deste modo:

«Venha Gabriel; não é por capricho de amor que lhe faço este pedido, mas porque me dói e me pesa na consciência todo o mal que lhe causei. Quero que me perdoe de viva voz, ou de viva voz me castigue, lançando-me ao rosto todos os insultos da sua maldição. Não me revoltarei! anátema ou perdão, hei de receber o que vier de seus lábios, como divino orvalho para esta minha pobre alma requeimada pela agonia. Se soubesse como estou mudada, como é outro o meu coração, e outro o meu espírito... Se me vir de perto, e se me ouvir por um instante, juro que terá dó de mim! Não lhe peço amor, não! Sei perfeitamente qual É o alcance de todo o mal que lhe fiz; quero porém, desafogar-me dos remorsos que me devoram, quero beijar-lhe os pés depois de ser por eles batida, como um vil animal que lhe pertença; quero chorar das suas pancadas e das suas injúrias, para não chorar de vergonha e de arrependimento. Venha! É só isto que lhe suplico. Lembre-se de que ninguém, além do Senhor, resta no mundo, dos que deveras me amaram; venha ver-me neste penitencial retiro em que definho sob o obscuro nome de Elvira Branco. Será uma esmola, um serviço piedoso levado à cabeceira de uma desgraçada, que não tem ânimo de largar o mundo sem ouvir, pela última vez, a palavra do único homem que amou. Venha! Seja digno do seu coração! - Ambrosina - Rua dos Arcos, n.º 90, primeiro andar, quarto n.º 5».

Gabriel leu esta carta sem tirar o charuto da boca, e foi, menos levado pelo reflexo do seu maldito amor, do que pela traidora curiosidade do coração, que o relapso pecador decidiu aceder à invocação da sua primeira amante.

Iria ver Ambrosina... por que não? Negar-se, ou deixar aquela humilde súplica sem resposta, seria mostrar-se receoso de um encontro, e dar por demais importância ao que em verdade já lhe não merecia nenhuma. E, caso ainda houvesse nele vestígios de saudade da estúpida paixão que lhe estragara a vida, semelhante visita os destruiria sem dúvida uma vez por todas, pois a desgraçada, se afinal se havia resignado a um obscuro arrependimento, era seguro por ver-se completamente batida e já sem cotação no mercado do prazer.

Iria ver de perto esse destroço de inimigo, e contemplar, em plena paz, os restos da desmantelada fortaleza, em que ele se chorou prisioneiro durante a melhor parte da sua mocidade.

-Sim, deve estar acabada! Deduzia ele, a calcular o tempo decorrido desde que os dois se conheceram. E não é sem razão! Andará pelos quarenta anos ou perto disso... Ora, eu, que sou mais moço, já tenho cabelos brancos e rugas até na alma, ela o que não terá?...

E foi calmo, positivo, cheio de um ar prático da vida, que Gabriel entrou na precária sala de Ambrosina.

Ela apareceu-lhe toda de luto, arrastando uma grande e magoada contrição.

Não tinha consigo um jóia; traje e penteado eram de um simplicidade calculada e artística. Nenhuma tinta no rosto, nenhum artificial perfume nos cabelos. Os braços cobertos por um filó negro; na garganta, pálida e nua, um pequenino crucifixo de marfim pendente de um cordel de seda.

Como ainda está bonita!... Foi o primeiro pensamento de Gabriel, assim que a viu.

E, meio condoído pelo ar triste e resignado da ex-amante, disse-lhe em tom quase cerimonioso:

-Vê que não fiz ouvidos de mercador ao seu convite... Aqui me tem...

-Obrigada! muito obrigada! respondeu ela comovida e suspirosa, indo beijar-lhe a mão.

-Dou-lhe os meus parabéns por dois motivos, volveu o rapaz; porque está muito bem conservada e porque me parece inteiramente convertida...

-Aceito o cumprimento pela segunda das razões, mas não pela primeira... balbuciou Ambrosina, fazendo a visita tomar assento a seu lado num divã rasteiro; convertida, isso estou eu... Ah, se estou! Quanto a bem conservada... não sei, nem me interessa saber. Ainda ontem, num dos meus momentos de íntima revolta contra mim mesma, estive quase, por desespero, a despojar-me dos cabelos... Imagine!

-Que loucura!..

-Loucuras foi o que eu fiz noutro tempo... e daria agora, acredite! todo o meu sangue, para me resgatar de qualquer delas!

-Como mudou, hein?

-Oh, sim, felizmente! Muito, porém, tenho sofrido e muito tenho chorado! Reconheço, entretanto, que, no fundo, não sou tão má; posso até dizer que nasci para a abnegação e para o sacrifício. Mas, não sei que revessa estrela me persegue, que maldição me acompanha desde o berço, para que eu, em toda a minha desgraçada vida, deixasse sempre atrás de mim um rastro de vítimas e uma esteira de gemidos angustiosos. Desejei vê-lo de novo, Gabriel, porque ao Senhor devo a parte melhor, mais doce e menos impura, do meu triste destino, o único instante de minha existência em que não me julguei de toda indigna de amar a Deus; chamei-o para lhe pedir que me perdoe e, se lhe merecer compaixão a dor suprema da mais perdida das perdidas, que a esta ampare sempre com a sua generosidade de homem de bem, para que não tenha ela de recorrer dê novo à prostituição, como único meio de vida que lhe resta.

E Ambrosina, cujos suspiros lhe transbordavam por entre as palavras, começou a chorar desafogadamente.

Gabriel, por simples instinto de piedade, deixou que a desgraçada lhe pousasse a cabeça sobre o colo; mas, ao encará-la rosto a rosto, ao sentir nas suas barbas as quentes lágrimas que ela vertia, e a respirar-lhe o fêmeo e ferino cheiro daquelas mesmas carnes e daqueles mesmos cabelos, em que outrora se lhe prendera cativa para sempre a alma enamorada, todo o seu passado, toda a sua louca paixão, lhe acordou por dentro num arranco de desenfreado desejo, no qual ele a chamou inteira para o corpo, cingindo-a nervosamente nos braços e devorando-lhe os lábios com beijos ardentes, doidos, famintos, enquanto da garganta lhe rebentavam velhos soluços há tempo reprimidos e esmagados.

-Eu te amo! Eu te amo! Eu te amo! Exclamaram ambos, rolando-se abraçados.

A última camisa

E ferraram-se de novo.

Foram habitar num retiro da Tijuca, para além da Raiz da Serra, numa velha chácara emboscada de mangueiras, entre quedas e sussurros d'água.

Ambrosina parecia completamente transformada. Saía todos os domingos pela manhã, a ouvir missa numa capela próxima à casa, ia sempre de negro, com um véu sobre o rosto. Fazia-se agora muito religiosa, muito amiga de festas de igreja e de dar esmolas aos mendigos devotos.

Sonhava-se já uma santa!

Mas queria mesa farta, e em certos dias o seu jantar era um banquete, a que só faltavam os convivas. Passava em demorada revista as hortas e os galinheiros da chácara, parava a contemplar o chiqueiro dos porcos, o curral das ovelhas, a vaca de leite e os cavalos de serviço. A sua criadagem aumentava todos os dias.

Gabriel, ocioso e apático, deixava-se ir ficando ao lado dela, não em verdade pelo gosto que lhe desse a companhia da amante, mas pela previsão do mal que lhe traria a sua ausência, à imitação desses pobres operários das minas de mercúrio, que já não podem cá fora suportar o ar inalterado; e precisam, para manter o equilíbrio da vida, volver a respirar o veneno com que por muito anos viciaram o organismo.

Vinham-lhe às vezes tão negras e profundas crises de tédio, que Ambrosina, temendo, com o suicídio do companheiro, perder aquela farta aposentadoria, não se desgarrava dele rondando-lhe os gestos e as intenções.

Todavia foi ela, e não Gabriel, quem rompeu com semelhante vida patriarcal. Não suporta por muito tempo a estabilidade doméstica o mastim que nasceu para a vagabundagem das ruas.

Uma vez, o rapaz, percebeu-lhe lágrimas, inquiriu, entre bocejos, sobre o que a punha nesse estado.

Ela, por única resposta, deixou-se-lhe cair nos braços com uma explosão de soluços.

-Sou uma desgraçada! Sou a peste! exclamou.

-A que vem isso, filha?

-Pois não é assim? Tudo o que me cerca há de murchar e fenecer? todos os que se chegam para mim hão de fatalmente cair nessa tristeza e nesse desânimo em que te vejo mergulhado, receosa de que sucumbas de tédio?... Oh! Estou farta de ver sofrer em torno do meu azar! É demais! Qual foi o meu grande crime, para que de mim pobre amaldiçoada dos céus! Nunca partisse um elemento de alegria sã e de sincero riso?! Quero ser boa e simples, quero ser como tantas outras mulheres que fazem a felicidade dos que as amam, mas já não me animo sequer a desejar o bem dos meus semelhantes, porque meu coração foi formado pela lama dos infernos. Maldita seja a hora em que eu nasci! maldita a estrela que me abriu os olhos! Quanto invejo essas pobres velhas, que chegam pacificamente ao fim de uma longa e uniforme existência, cercadas de netos e abençoadas por uma geração inteira! Quanto invejo os que partem deste mundo, sem deixar atrás de si um só eco de rugir de ódio ou de gargalhar de escárnio!

E voltando para Gabriel, disse-lhe numa agonia crescente:

-Vai! Foge de mim. Evita-me! És moço; vai gozar em paz, vai viver! Casa-te, constitui família, faze-te amado por uma mulher digna de ti! Meus carinhos te secam o sangue, meus beijos te umedecem a inteligência! Foge-me, querido! Amo-te muito, para consentir que te associes à minha estrela!

-Onde diabo queres tu chegar com tudo isso. Não te compreendo!

-Quero arrancar-te deste degredo!

-Mas, filha, não foste tu própria quem escolheu isto aqui para morarmos?...

-Sim, porque não previa as conseqüências; agora porém, receio perder-te... Esta solidão está a matar-te lentamente, eu sofro por te ver nesse estado... Não! Não! É preciso salvar-te!

-Qual! Por mim, não! Por mim não te incomodes. Em toda a parte me aborreço do mesmo modo... O mal vem de mim e não do lugar em que me acho... Se é só por isso, põe o coração à larga, e não te preocupes com os enfados de uma mudança.

-Mas é que eu própria começo a sucumbir de tédio!

-Ah! Isso agora é outra cousa. Compreendo! Sentes falta do ruído da cidade. O corpo pede-te pândega. Já me tardava, confesso-te!

-E é exato. Esta existência calma, entre cascatas e mangueiras, em vez de acalmar-me os nervos, tem a propriedade de irritá-los... Não nasci para isto! No fim de contas, o mais digno e honesto é submeter-se cada qual ao seu temperamento e deixar-se de hipocrisias; mais vale a franca jovialidade do que uma austeridade fingida e falsa. Sinto-me bem disposta como nunca; amo e sou amada - quero viver! Quero gozar, em plena expansão de alegria o resto de minha mocidade ao lado do meu amante. Venham de novo as ceias, os vinhos, os delírios do jogo e das madrugadas de prazer! Sou de novo a Condessa Vésper!

Gabriel sacudiu os ombros, enjoado.

-Faze o que entenderes, disse ele; mas talvez te arrependas...

-É difícil... Pois se isto já é um arrependimento de arrependimento!... Não! Não! Preciso sair daqui. Vou fatalmente! Se me não acompanhares, irei só.

Daí a dias, mudavam-se para a cidade, tomando na Praia da Lapa, em frente ao mar, um sobradinho de três janelas, que era um brinco. E a Condessa Vésper começou a reaparecer nos teatros e nas corridas, ao lado do seu taciturno amante.

Apesar de já inteiramente fora do calendário das mulheres de alto bordo, fizeram-se logo comentários de todo o gênero a seu respeito. Uns, naturalmente por espírito de contradição, achavam que ela agora estava ainda mais bela; outros, sistematicamente pessimistas, pretendiam que a sazonada ex-estrela do Alcazar, já não valia dois caracóis. E atribuíam-lhe uma grande regeneração por amor, falava-se, por aqui e por ali, ora de uma formidável paixão, que esteve a dar com ela num convento de freiras, ora de uma moléstia, não menos terrível, que por pouco não lhe deixara os ossos a descoberto. E citavam com pasmo as toilettes sérias de Ambrosina, as suas jóias, e as suas novas maneiras de pecadora impenitente e consagrada.

O seu porte era agora de uma rainha viúva e silenciosamente devassa.

Mas, por este tempo, a liquidação forçada do Banco Mauá, onde Gabriel tinha todos os seus bens, rebentou como uma bomba, espalhando escandalosamente a ruína e a miséria no meio de centenares de acionistas, que de seus depósitos apenas percebiam o cheiro do estouro.

Ambrosina sentiu fugir-lhe a alma. Abraçou-se ao amante num transporte de heróica solidariedade na desgraça, e durante muitos dias viveram os dois, quase que exclusivamente, para ler, por entre um dueto de suspiros e soluços secos, os boletins, as notícias, e os ardentes comentários da imprensa sobre a tremenda bancarrota. Maria Antonieta com certeza não se mostrara em público mais altivamente resignada, quando perdeu o seu trono, nem tivera, ao lado de Luiz XVI, mais lindas palavras de dor, e lágrimas mais eloqüentes, do que as de Ambrosina aos pés de seu amante arruinado.

Mas, nos primeiros intervalos dessa ideal agonia, foi logo cuidando a loureira de arranjar quem junto dela pudesse substituir Gabriel, porque, a este, coitado! faltava absolutamente aptidão para de qualquer modo ganhar a própria vida, quanto mais ainda a de uma companheira de má boca e hábitos epicuristas.

A cousa, porém, não seria assim tão fácil!... Onde diabo iria ela descobrir de pronto um outro Gabriel; isto é, um homem que a visse ainda hoje pelo mesmo prisma de vinte anos passados?... Devia ser difícil! A infeliz já não tinha de beleza mais do que um saldo em ligeiras frações; a gordura começava a dissolver-lhe de todo a helênica pureza do contorno; e os seus famosos cabelos, que, ao descer da Tijuca, dera ela em tingir de louro, ganhavam agora uns tons fulos em que tresandava fraudulento cheiro de preparação química.

Foi nessas circunstâncias que resolveu ir buscar à porta de um dos seus mais antigos e ferrenhos admiradores, por quem não obstante sentira sempre instintiva e profunda repugnância, um tal Moreira, por alcunha «O Arrocha», dono de uma casa de jogo das mais fortes do Rio, e com cavalos de corrida. Homem efetivamente desagradável, ordinário e popular, de um cinismo arrogante e ruidoso, corpo duro, cabelo à escovinha, cara raspada e vermelha com pintalgações furunculosas.

Andava sempre com as algibeiras inchadas de contos de réis, para bancar a roleta ou o dado, na primeira ocasião que se oferecesse nas tavolagens dos colegas.

Ambrosina tinha-lhe profundo asco, apesar da justa fama que o cercava de muito pichoso na escolha da roupa íntima, e de bom gastador com mulheres; seria assim! Ela, porém, não o podia ver nas suas invariáveis calças brancas, casaco sem colete, a camisa carregada de brilhantes, o farol ao dedo e o charutão ao canto da boca; todo ele a arrotar descarada audácia, asseio caro, estômago farto e próspera luxúria.

O fraco do Arrocha pela Condessa Vésper não era simples questão de apetite sensual, entrava aí em alta dose um grande fundo de especulação malandra. Como bom conhecedor, o patoteiro farejava em Ambrosina um belo auxiliar para as pantomimices da banca, e queria fazer dela o braço direito da sua casa de jogo. E, quanto ao mais... ora adeus! - Madurinha estava a fazenda, isto estava! Mas, que diabo! Aquilo era mulher para instruir a quem a ouvisse, e devia saber do ofício, que nem a própria Chica Polca!

E uma noite, quando Gabriel voltava de certa viagem a São Paulo, aonde fora ver se conseguia receber algum dinheiro do que tinha por lá deixado de empréstimo sem garantia, encontrou todo fechado, deserto e quase inteiramente vazio, o sobradinho da Praia da Lapa.

Ambrosina havia arribado para os braços do Arrocha, depois de fazer leilão dos móveis e obras de luxo e de arte da sua última instalação deixando apenas ao esbulhado amante o que rigorosamente constituía objeto de uso exclusivo dele.

Gabriel ficou quase que reduzido à roupa do corpo e ao dinheiro do bolso.

In extremis

Tão exausto de ânimo e tão vencido pela decepção, vinha o mísero despojado ao chegar a casa que não teve ele uma lágrima, nem um gesto de revolta para aquela nova perfídia da sua velha traidora; chegou até a sorrir dando de ombros, sem indagar saber o que escapar ao despojo, nem o que ela porventura lhe deixara escrito a título de desculpa ou de justificação.

Tornou à rua, e lá se fez para os lados da cidade rebocado pelo seu próprio desânimo, a procura de uma parelha de aluguel, que o ajudasse a arratar a carga daquela pesada noite.

Foi afinal dar aos lábios de uma rapariga, que acabava de fazer a sua aparição no baixo mercado dos beijos fluminenses. Chamava-se Eva Rosa, mas o seu verdadeiro nome o leitor conhece, como conhece à dona; era a nossa Estela dos olhos bonitos, a quem um dia sonhara o malogrado Gustavo fazer senhora.

Depois de percorrer a regimental escala que vai desde a criadinha festejada pelo amo até à mesquinha amante acumulativa das funções de criada e cozinheira, surgira afinal a infeliz, oficialmente, à tona do impudor de porta franca, fazendo das janelas do hotel Ravaux trampolim para o grande salto na larga piscina da devassidão carioca.

Gabriel deixou-se ficar muitos dias ao lado dela, ouvindo os pormenores da história dos negros amores de Gustavo com Ambrosina; e, enquanto procurava ele aturdir o coração nos braços dessa quinhoeira de infortúnio, vítima também da Condessa Vésper, reaparecia no Rio de Janeiro, sinistramente velho e prostrado, o Médico Misterioso, que sentira agravar-se longe da pátria o seu mau estado de saúde com a terrível notícia da quebra do Banco Mauá.

O que, logo ao chegar à Corte, lhe constou de positivo a respeito da fraudulenta liquidação desse estabelecimento de crédito, em que todos no Brasil depositavam a melhor boa-fé e a qual Gabriel, como o próprio Gaspar, haviam confiado os seus haveres, ferrou com ele de cama, e por pouco não o matou de vez.

Mandou então chamar com urgência o enteado, a quem, em vão, já tinha por várias vezes escrito do estrangeiro.

Gabriel resistiu a princípio, mas afinal cedeu. E os dois amigos, ao trocarem o primeiro olhar depois de tão longa e desabrida ausência, sentiram-se igualmente comovidos.

O enfermeiro afastou-se do quarto a um gesto do enfermo.

-Não podia morrer sem falar contigo... disse este a Gabriel; porque não era só pelo meu interesse que o precisava fazer... Apesar de não haveres nunca respondido às minhas cartas, é minha segura convicção que já chegaste afinal a compreender quanto foste injusto para comigo, e quão pouco merecia eu ser por ti odiado e abandonado...

-Não falemos nisso... murmurou Gabriel, de olhos baixos.

-Ah, sim! Deves estar a estas horas plenamente senhor da verdade a tal respeito, a não ser que aquela maldita mulher, uma vez de novo ao teu lado, achasse meios ainda de tirar, a seu favor, novo partido de uma situação, falsa na aparência, que a nós dois ridiculamente incompatibilizava... Agora, porém, que acabas de ser, tão de surprêsa, defraudado pelo Banco Mauá no que restava do teu belo patrimônio, terás, meu filho, ocasião de conhecer definitivamente o vil diabo por quem me desprezaste... É esperares mais um pouco, e hás de ver confirmado o que te digo! Não te dou muitos dias para que Ambrosina te fuja para os braços de outro, se encontrar quem a receba!

-Já encontrou...

-Abandonou-te já?

-Já.

-Ainda bem, meu pobre Gabriel! Ao quer que seja, aproveita a desgraça! Respiro, apesar de que semelhante felicidade tire a sua razão da tua própria ruína. De hoje em diante, tens que traçar um novo programa para a tua vida... É preciso que nunca te esqueças de que já não és rico.

Gabriel soltou um gemido.

-É verdade... disse entredentes; pensei eu, pobre de mim! Que não pudesse ser mais desgraçado do que me supunha. Enganei-me! a miséria veio completar a obra. Sou um miserável!

-Não! E és muito menos desgraçado do que foste; apenas, convém que acordes por uma vez dos teus pesadelos. Era por isso, principalmente, que eu não queria morrer sem falar contigo, sem te deixar de pé na vida... e de olhos bem abertos... E como a morte é traidora e anda por aqui junto, não devemos perder tempo... Escuta, meu filho; antes, porém, de mais nada, olha, toma esta chave, e com ela tira daquele cofrezito de ferro uma volumosa carteira que lá está.

Gabriel obedeceu. Cumpria as ordens do padrasto com a solene submissão que se deve ao enfermos desenganados.

-Para que é isto?... perguntou ele agitando na mão a carteira que sacara do cofre.

-É para te ser restituído... explicou o enfermo, virgulando as palavras com uma tosse seca; aí dentro encontrarás, em bilhetes esterlinos, o principal e os juros dos cinqüenta contos de réis, que te tomei, contando já que havias de chegar à completa pobreza...

Gabriel arfava de comoção.

-Do que sobrar, prosseguiu o outro, e com o produto do que porventura aqui encontrarem depois de minha morte, farás o meu enterro e um última esmola aos meus doentes pobres. Espero não te esqueças de que tanto maior será a esmola, quanto mais modesto for o enterro, e de que não te ficará bem lesar aqueles desgraçados de quem era eu o único amigo... Quando te pedi o que agora te restituo, sabia que mais cedo ou mais tarde, cairias na miséria, mas, confesso, não a fazia tão certa... estava, como todos, bem longe de prever a quebra do Banco Mauá. Era a minha intenção deixar por algum tempo amargasses bem a necessidade, para poderes depois tomar o real sabor da vida, e dar então a esse último punhado de dinheiro o seu verdadeiro valor; a morte, porém, não me deixa tempo para tanto, e tenho de confiar ao te próprio critério o que esperava eu da ação benéfica dos fatos. E é isto só o que agora me preocupa...

Gabriel não pôde por mais tempo reprimir a sua comoção.

-Meu bom amigo! exclamou, lançando-se nos braços do padrasto.

-Sim! Só o teu futuro me dá cuidado... É a única preocupação que levo comigo para fora da vida.

-Não se mortifique por minha causa!

-Oh! Sinto perfeitamente que me cabe grande parte na responsabilidade da tua desgraça... Amei-te demasiadamente... fiz de ti um ídolo, quando devia ter feito simplesmente um filho... Fui um visionário! Errei! Perdoa-me!

E, como Gabriel com um gesto lhe exprobasse falar tanto, Gaspar abaixou a voz, e acrescentou sucumbido:

-Ah! bem caro paguei o bem que te não fiz! bem caro paguei o meu tributo à delirante época em que decorreu a minha mocidade! Desgraçados que fomos! Desgraçados que fomos!

E as lágrimas do velho romântico correram-lhe pelas barbas brancas.

-Oh! Sossegue por amor de Deus! Suplicava o rapaz; concentre todo o seu pensamento na boa ação que acaba de praticar comigo, salvando-me da miséria; e console-se com a idéia da gratidão que neste instante me invade a alma, para nunca mais a abandonar! Creia-me, meu pai, ligado piedosamente ao seu amor e sinceramente contrito dos meus erros!

-Obrigado, meu filho...

E o moribundo deixou pender a pálida cabeça sobre os travesseiros, inundada por uma auréola de extrema lucidez, em que se pressentia já o alvorecer de uma outra vida.

Foi arquejante, e talvez meio em presa ao supremo delírio, que ele mais tarde volveu a falar, levando ao peito descarnado a mão de Gabriel que entre as suas apertava.

-Segue à risca o que te vou dizer... balbuciou com os olhos imóveis: não olhes para trás de nós, não pares a contemplar no teu caminho a sinistra sombra que fomos... Vê! a luz vem de frente! Não te voltes contra a luz, que a noite é doce, mas intrigante e traiçoeira... Em nome de tua mãe, meu filho, não mergulhes de novo na vasa em que acabas de naufragar! Nunca mais leves o teu corpo à boca, sem teres ganho o teu dia; não ponhas teu corpo com o de uma mulher, a quem não possas defender em qualquer terreno; não doures a tua vaidade com o ouro que não ganhaste com as tuas próprias mãos, porque só esse orgulha a quem o gasta. Faze da necessidade, alheia ou própria, a senhora arbitral do teu dinheiro; nunca o sonegues quando ela o reclamar, nem jamais o gastes sem que dele justifique ela a aplicação. E trabalha, e poupa; poupa principalmente nas quantas pequenas, que as grandes por si mesmas estão guardadas; trabalha, seja em que for... o trabalho é o senhor dos homens livres, é o único senhor, a cuja dependência nos tornamos independentes; não suponhas que te humilhas a homens quando te curves diante do trabalho, não tenhas escrúpulo nem vexame de exercer qualquer ocupação subalterna, faze-te soldado, soldado raso, e, quando o dever te reclamar, leva ao ponto mais arriscado e mais glorioso, essa desgraçada vida, que expões sem glória a cada instante nos braços das perdidas e nas távolas dos bêbados. Desconfia de ti próprio, sempre que não fores necessário a alguém; se não prestares para os outros, menos prestarás para ti mesmo... O coração, meu filho, só tem janelas para fora; se quiseres ser feliz, deixa que por elas te entre no íntimo a felicidade alheia... E... e... ama...

Mas a voz perdia-se-lhe na garganta, e os seus olhos, sempre imóveis a pouco se embaciavam.

Vinham-lhe ainda, todavia, aos lábios quase tão imóveis como os olhos, entre palavras de amor, o nome de Violante, o nome do pai, e o de Gabriel, e o de Virgínia, e o de Ana e de Eugênia.

O enteado, de joelhos ao lado do leito, colocou o rosto sobre uma das mãos do agonizante, abafando com elas os seus próprios soluços encharcados de pranto.

Gaspar arquejava.

Pouco depois apareceu o colega que o assistia, e disse em particular a Gabriel que o padrasto não deitaria a noite inteira.

Morreu com efeito às duas da madrugada.

O enterro, no dia seguinte, teve um grande acompanhamento, mas só de pobres; gente de sociedade quase nenhuma compareceu. O Reguinho, entretanto, se mostrou na comitiva, já grisalho e enrugado, sempre, porém, com o mesmo ar de filho-família irresponsável de todo, e sempre a mentir a pretexto de tudo.

A velhinha Benedita, essa não faltou, coitada! Toda curvadinha sobre o seu bordão, a cabecinha a tremer, e o queixo a amanducar em seco, lá foi ela se arrastando até ao cemitério de São João Batista, para rezar bem rezadinho um rosário sobre a sepultura de seu benfeitor, a quem Deus Nosso Senhor tivesse em santa guarda, com as alminhas do Paraíso, pelo muito que ele em vida fizera pelos desgraçados.

Os brilhantes do Farani

Com a prisão do Arrocha, que a justiça acabava de condenar a dois anos de cadeia por crime inafiançável, depois de haver a polícia lhe dado busca na casa de jogo e apreendido o que lá encontrara, viu-se Ambrosina obrigada a voltar de novo a atividade prostibular, mas agora, não já como vagabunda ovelha, e sim como abelha mestra de quatro raparigas, entre as quais Eva Rosa era a de melhor cotação.

E Gabriel, que a despeito dos conselhos «in extremis» do padrasto, fora pouco a pouco, com a última aragem da fortuna, recaindo na primitiva prodigalidade, um belo dia, quando deu por si, depois de uma noite de dissipação em que adormeceu inconscientemente nos braços de Estela, acordou, sem mesmo saber como, nos da sua velha amante, e entre bocejos de apatia se deixou quedar.

Já não tinha, porém o relapso, ao lado de Ambrosina, vislumbres dos arroubos da sua paixão de outrora; amava-a de cara fechada, como traga um bêbado a indispensável dose de aguardente, que lhe exige o vício.

Mas, ainda assim, existiram juntos quase um ano, ao fundo de um policromo hotelzinho de gente de teatro, por cima do recém-criado Casino da rua do Espírito Santo, que se propunha substituir o Alcazar de saudosa memória popular. E durante esse tempo, valha a verdade, nada de notável ocorreu entre eles, a não ser o próprio fato que de novo os desuniu -um doido capricho de Ambrosina por um hércules francês, que se exibia todas as noites no Círculo do Lavradio; homem belo e brutal, com músculos de bronze, a cujo áspero peso gemia a outonada loureira, sentindo esmagarem-se-lhe as dormentes gelatinas em que se lhe havia derretido pelo corpo o palpitante e branco mármore do passado.

A desgraçada o idolatrava, sem a si própria explicar a razão por que. Ele comia-lhe o dinheiro que lhe fariscava nas meias, e batia-lhe com os pés; ela, entre soluços de mulher adorada, dizia-lhe abjeções, cuspia-lhe nas barbas, mas ia, lacrimejante de amor, rebuscá-lo ao fundo das bodegas, para lhe pedir perdão e lhe suplicar que não estivesse a matá-la de ciúmes.

O francês levou-a a esfocinhar nas últimas degradações da crápula rasteira, enquanto teve de partir para Buenos Aires com a companhia de funâmbulos a que pertencia, esgueirou-se à sorrelfa, receando que o seu crampon lhe estorvasse a saída.

Ambrosina reparou então que o miserável, ainda pior do que fez D. Felipe, lhe carregara com os poucos objetos de valor imediato que lhe restavam, e tratou logo de arranjar meios de encostar-se de novo a Gabriel.

Este porém, já de frouxos recursos poderia dispor por esse tempo; achava-se quase completamente esgotado em todos os sentidos. Dera ultimamente para beber e jogar por vício, equilibrando a existência pelas alternativas da roleta e do álcool. Tornava-se desleixado em extremo, e até desbriado.

Ambrosina conseguiu empolgá-lo de novo, e agora mais do que nunca fazia dele o que bem queria, insultava-o constantemente, e lhe não abria a porta, quando o desgraçado fora de horas lhe chegava ébrio e sem dinheiro.

-Vá dormir na estação de polícia, que isto aqui não é lugar de vagabundos! exclamava ela, pondo a cabeça entre as folhas da janela.

E, se insistia, despejava-lhe o balde das águas servidas.

Mas, nem assim, o pobre diabo a deixava de vez.

Uma ocasião afinal, largos meses depois do último aferramento dos dois, Ambrosina, passando de manhã cedo pela rua do Ouvidor, para ir ao Mercado regatear as compras do almoço, viu em uma das vitrinas do Farani, um belo e rico broche de brilhantes.

Eram apenas duas pedras, muito fundas, porém, e muito limpas. Ao lado um cartão com letras de ouro dizia que a jóia custava quatro contos de réis.

-Ah! Meu tempo!... suspirou a filha do comendador Moscoso, a fitar, enamorada e triste, as duas sedutoras gemas.

E, depois de muito as contemplar em platônico deselo, soltou um novo e mais fundo suspiro, e lá se foi seguindo o seu caminho, mal amanhada e bamba, levando cravada na alma uma agonia que toda por dentro a encharcava de fel.

Ao mercado, inteiramente fora dos seus hábitos de lambareira, fez as compras nesse dia sem se demorar na escolha das vitualhas e sem desfranzir o rosto, passando alheada e torva por entre a pilhas do legumes viçosos e peixes cor de prata que espalhavam no ar o quente aroma das hortas e o frio olor das maresias; e não se deteve um só instante, como costumava, a olhar gulosamente para os montões de frutas frescas e caças despojadas, ou para as relumbrantes serpentes de chouriços e salpicões banhados de gordura, em que das outras vezes deixava a alma pendurada pelos olhos.

É que os dois belos brilhantes não lhe saíam da imaginação.

Chegou a casa possuída de uma raiva dolorosa e surda, uma como íntima revolta contra a certeza do seu aniquilamento, a dura certeza de que ela, nunca mais seria ninguém.

Chorou, chorou muito, arrepelou-se, e pensou em morrer.

-Mas por que não hei de eu possuir aqueles brilhantes?! exclamou a miserável a sós com a sua agonia, entre arquejos desabridos. Sim, hão de ser meus! Ainda há nesta carne fibras da Condessa Vésper!

E quando o amante lhe apareceu à tarde, disse-lhe ela secamente:

-Ó Gabriel! Tens ainda algum dinheiro em depósito?

-Quase nada, filha; por quê?

-Porque preciso que me compres um broche de brilhantes que vi no Farani; um de duas lindas pedras, levemente azuladas, e engastadas num simples alfinete de ouro. Custa quatro contos...

-Estás bêbeda!

-Parece-te? Pois fica então sabendo que não tornarás a pôr os pés neste quarto, se não trouxeres os brilhantes contigo!

-Vai dormir! Isso passa!

À noite, porém, Ambrosina não lhe abriu a porta, como lha não abriu no dia seguinte, nem no outro.

Gabriel, que havia caído numa estranha tristeza, resignada e fria, foi então à casa bancária onde depositava o seu dinheiro, e perguntou de quanto ainda dispunha.

-Quatro contos e tanto, responderam-lhe.

-Passe o recibo.

-De tudo?

-Sim.

Embolsou o dinheiro, tocou para a casa do Farani.

Parou defronte do mostrador. Os dois brilhantes, as duas tentações de Ambrosina lá estavam em toda a sua refulgente glória; e o desgraçado estremeceu ao trocar com eles um rápido olhar, como se desse com efeito de surpresa com os olhos de alguém, de algum demônio, do cruel demônio que implacavelmente o perseguia desde o seu primeiro sonho de amor.

No meio de um ardente eflúvio de cintilações, feito de acesas cores em que parecia transluzir a alma fulgurante dos minerais preciosos, destacavam-se, a fitar Gabriel, as duas irrequietas pupilas de carbone vivo. Havia a granada e o rubi, com as suas luzes quentes e sangüíneas, que lembram os sorrisos do pecado; a esmeralda, matinal e alegre como a lágrima do mar gotejada dos cabelos de Afrodite, ao lado da safira, triste e sombria. como as gotas da noite; e opalas, misteriosas e sinistras em contraste com turquesas cor do céu em dias felizes, e pérolas que guardam no rijo e imaculado seio secreta: luzes do fundo do oceano, e místicas ametistas, sensuais cornalinas, topázios cheios de sol, e camafeus mais polidos e trabalhados que um verso de Virgílio. Mas a todo esse refulgir da ardente e rica pedraria, sobrelevava-se o fulgor das duas lúcidas pupilas de luz diamantina, que provocadoramente desafiavam Gabriel para um supremo desvario.

O amante de Ambrosina entrou na loja.

-Deseja alguma cousa?... perguntou-lhe o moço do balcão, a medi-lo com certo ar desconfiado.

-Aquele broche que está exposto...

-A que broche se refere o senhor?

-Ao de quatro contos, com dois brilhantes..

-É só para ver?...

-Não; é para comprar.

-Pronto!

-Separe-lhe as pedras.

-Separar-lhe as pedras?!

-Sim; desengaste os dois brilhantes.

-O senhor dessa forma estraga a peça...

-Não faça caso; separe-as.

-Mas...

-Compreendo... Aqui tem o dinheiro.

-Pois não! É um instante!

E o caixeiro, depois de conferir e recolher o pagamento, isolou as duas belas gemas, que entregou ao comprador juntamente com os engastes e o cofre.

-Está servido, disse; quando precisar de mais jóias...

-Obrigado, resmungou Gabriel, guardando aqueles objetos no bolso do sobretudo.

E dirigiu-se então a uma casa de armas. Aí comprou um jogo de pistolas de carregar com bala pela boca. Depois pediu ao armeiro que a carregasse com pólvora seca, muniu-se de espoletas, e saiu.

Estava a cair de fome. Foi ao Mangini, meteu-se num gabinete reservado, e, enquanto esperava que lhe servissem o jantar, carregou as duas pistolas com um brilhante cada uma.

Acabada a refeição, acendeu tranqüilamente um charuto, e seguiu, sem alterar os passos, para a casa de Ambrosina.

Eram cinco horas da tarde, mas anoitecia já quando ele lá chegou, porque junho orçava pelo seu meado e viera muito nebuloso esse ano.

-Ainda?! berrou a loureira, ao ver entrar Gabriel. Não lhe disse que não voltasse sem os brilhantes?! É birra!

-E quem te diz que não te trago?...

-Hein?! interrogou ela, correndo para o amante, de braços abertos. Não estás gracejando?...

Ele mostrou o estojo.

-Meu amor! Oh! Deixa ver! Dá-me! Dá-me cá!

E Ambrosina beijava o infeliz, a bater palmas, a rir e a saltar numa alegria igual às dos seus melhores tempos do passado.

-Prepara então o teu colo... exigiu Gabriel. Quero-o nu, todo nu!

Ela, num gesto rápido e frenético, rasgou o corpete do vestido, patenteando os infecundos e carnudos peitos.

-Agora, bem! Dá-me o teu lenço... acrescentou ele.

-Meu lenço?... Aí o tens... Para quê?...

-Espera... É uma fantasia... Deixa vendar-te os olhos...

Ambrosina submeteu-se, com arrepios de gozo, a perguntar se o broche então armava também em colar.

-Sim, respondeu o amante, empunhando as pistolas, que já tinha engatilhado. E quero que só o vejas defronte ao espelho... com os teus brilhantes no colo.

-Pronto! disse ela afinal, de olhos vendados.

Gabriel, fazendo-lhe pontaria sobre os peitos clamou:

-Aí os tens, demônio!

E disparou ao mesmo tempo as duas armas.

Ambrosina, soltando um gemido, caiu de costas, banhada em sangue.

Semanas depois, recebia Gabriel na casa de Detenção a visita da mãe do finado cocheiro Jorge. De todos os seus conhecidos, foi essa, foi a velhinha Benedita, a única pessoa que se lembrou de ir vê-lo.

E a pobre de Cristo estava cada vez mais engelhadinha, mais seca e mais curvada, e também mais agarrada à vida, sempre com um terrível medo de morrer, e sempre a terminar os seus intermináveis aranzéis com o grato provérbio: «Viva a galinha com a sua pevide!»

Foi ela a encarregada pelo assassino de Ambrosina de trazer-nos o manuscrito e a carta de que falamos no começo deste livro, e foi ela igualmente quem nos informou mais tarde de que o infeliz preso, no dia em que tinha de embarcar para Fernando de Noronha, a cumprir sentença de galés perpétuas, aparecera morto na prisão, conservando ainda cravada no peito a arma com que se arrancara do mundo, um belo punhalzinho de cabo de marfim com incrustações de ouro, entre as quais se lia o nome de Violante.

FIM