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- III -

Depois do oitavo dia da minha voluntária clausura despertei no seguinte ao canto de um cenário que festejava a aurora.

Levantei-me e fui debruçar-me a janela que abria para o jardim.

O frescor suave das auras, o perfume das flores, o ruidoso acordar da cidade lembraram-me aquele anelado amanhecer do dia, em que eu fizera a primeira experiência da minha luneta mágica; e as arrebatadores impressões que eu recebera, podendo ver, e admirando a aurora, as flores, as borboletas, a natureza enfim.

Os pesares, as sensações repugnantes, os tormentos e o horror da visão do mal como que se varriam da minha memória exclusivamente empenhada em avivar a saudade do bem que eu havia perdido.

Apoderou-se de mim melancolia tão profunda e sombria como era profunda e sombria a noite dos meus olhos.

Passei um dia de silenciosa amargura, e arrependi-me mil vezes de haver quebrado a minha luneta mágica.

Se eu tivesse sido mais prudente, e ainda mesmo dissimulado, por certo que não me teriam faltado meios de iludir quantos me cercavam e cercam, e de conservar a preciosa luneta.

Agora é tarde, e o meu pungente arrependimento não me aproveita, e só duplica a aflição que me acabrunha.

A cada momento vinham-me à lembrança o Reis e o armênio, o Reis tão bom e amável, tão complacente e obsequiador; o armênio tão hábil e tão sábio; tão poderoso em magia, e tão leal em seus conselhos.

Lembrança inútil!

Eu havia sido tão descortês, tão ingrato em meu proceder em relação ao Reis, que me não era licito pensar em ir de novo bater à sua porta, que ele tinha o direito de me fechar no rosto.

E o armênio? Como poderia eu aparecer, mostrar-me diante dele depois da minha desobediência aos seus preceitos?...

E todavia eu teimava sempre em lembrar-me do Reis e do armênio...

E de instante a instante perguntava a mim mesmo, se o armênio ainda se conservava trabalhando nas oficinas do Reis...

A idéia de voltar ao famoso armazém de instrumentos óticos da Rua do Hospício, começava a perseguir-me, a dominar-me, como a paixão mais violenta escraviza, e move, impele e arrebata a sua vitima.

Dois únicos sentimentos ainda me tolhiam os passos: eram o vexame e o medo.

- IV -

É claro que eu estava em caminho adiantado para vencer o vexame, que me fazia hesitar em apresentar-me na casa do Reis.

Todo o homem é mais ou menos egoísta e em proveito do seu egoísmo raro é aquele que em circunstâncias imponentes, em casos extraordinários não sacrifica simples consideração de delicadeza.

Quantos homens ricos e maus que nunca deram esmola ao pobre, tornados mendigos pelo vaivém da fortuna, deixariam de estender a mão pedinte a algum recente herdeiro de inesperada riqueza, ao qual dantes tivesse por vezes respondido: Deus o favoreça?!...

Eu não fiz tanto como isso: hei de pois dominar o meu vexame e ir à casa do Reis.

Pedirei perdão com humildade, e luz para meus olhos, como um condenado à morte que pede a vida ao poder que e capaz de dá-la.

O medo que eu tenho, é de sair à rua, de expor-me às zombarias, as vaias, à perseguição dessa gente que me detestou, que talvez me detesta ainda por causa da visão do mal.

Em seu ódio, em seu empenho de vingança muitos conspiraram para que eu fosse reputado maníaco ou doido, e em todo caso perigoso e nocivo à sociedade.

Horrível ameaça pesou sobre mim, e mais de uma voz, mais de um conselho sinistro apontava a conveniência de me recolherem ao hospício dos alienados.

Eu tenho medo de aparecer a essa gente que maldizia de mim, e que pedia a minha prescrição, o encarceramento do doido.

Tenho medo de sair à rua.

- V -

Refletindo bem, me parece que este medo chega a ser pueril.

Tenho duas presunções a favor da minha segurança, duas observações que destroem todos os fundamentos do medo.

Não se provou, conforme as exigências da lei que eu estivesse ou fosse doido; o pronunciamento de muitos homens irrefletidos apenas poderia indicar que eu era um excêntrico ou enfim possuído de esquisita mania, o que nem por isso prejudicava o meu juízo em relação a todas as circunstâncias e condições da vida particular e social.

Ora, na cidade do Rio de Janeiro não só não se recolhem ao hospício dos alienados os excêntricos e maníacos da ordem em que fui contemplado, como é certo que os excêntricos, e adoidados não reconhecidos legalmente doidos gozam privilégios de tolerância, e de indulgência, e quando algum deles ofende a sociedade, com o escândalo publico, em que compromete o decoro da família ou ataca de frente as mais veneráveis e santas considerações sociais, encontra impunidade certa, e desculpa segura na voz do povo que diz: «não se faça caso: aquilo tudo é excentricidade o homem tem suas manias mas no fundo é boa coisa».

Eu creio pois que não há lugar nem cidade como o Rio de Janeiro, em que se possa ser impunentemente e sem inconveniência pessoal não somente excêntrico e maníaco mas até doido, completamente doido, contanto que se traje de paletó escovado e se tenham meses ou dias de lucidez.

Afora esta importante consideração que deve utilizar-me, conto por mim o tempo, que ainda mais foi ajudado pela notícia da destruição ou despedaçamento da minha luneta mágica.

Perdida, quebrada a luneta, cessou o motivo da perseguição que moviam contra mim.

E lá vão oito dias!

Oito dias valem oito anos para memória e para as impressões mais fortes do povo da nossa capital.

Em oito dias regenera-se o político que a opinião pública irritada condenou.

Em oito dias do réu se faz o juiz do pleito em que fora réu.

Em oito dias as vezes a rocha Tarpéia se transforma em Capitólio.

Em oito dias corre o Letes por onde estava bramindo a memória de um escândalo.

Em oito dias a sociedade ligeira, inconstante, mudável, seria capaz de santificar o diabo.

Não há atividade de opinião que resista à extensão, à eternidade de oito dias na nossa capital.

O nosso povo é a certos respeitos povo um pouco francês.

Eu tenho por mim oito dias: refletindo assim, perdi o medo e vou sair a rua.

Ensaiarei um passeio de simples experiência, e se eu for feliz, se me deixarem em paz andar pela cidade, amanhã ou depois de amanhã irei à casa do Reis.

- VI -

Ao cair da tarde saí.

Em relação a meus olhos pouco importava que eu saísse de dia ou de noite; quis porem arriscar-me a aparecer à luz do crepúsculo para observar a impressão que a minha pessoa causava ao público.

Não me era possível apreciar expressões fisionômicas daqueles que reparassem em mim; mas eu tinha e tenho bom ouvido de cego, e não me escapariam nem o murmurar da maledicência, nem mesmo o sussurro da curiosidade revelada em trocas de palavras abafadas.

Caminhando vagarosamente, e com atenção dissimulada, porém viva, ouvi, e percebi o que alguns disseram, vendo-me passar.

-Míope ou antes cego, como dantes!

-Perdeu o encanto...

-Que encanto! caluniavam o pobre rapaz...

-Deveras?

-Foi vítima da mais cruel perseguição.

-Coitado!

-Querem-no cego para desfrutarem-lhe a fortuna...

-Que imoralidade!

Eis como pensavam e murmuravam quase todos ao considerarem o meu infortúnio.

Volúvel e caprichosa cidade! o seu juízo se modifica, e até muda completamente com o volver de alguns dias, e o objeto das maldições pouco a pouco se torna objeto de simpatias.

Estudai a capital; a nossa é provavelmente como todas as outras de iguais ou maiores proporções: os seus habitantes vivem sujeitos ao contágio moral dos sentimentos; uma opinião entra em moda, poucos a examinam e discutem, a novidade a recomenda, o contágio moral a espalha, mais tarde a reflexão começa a patentear-lhe as falhas, o espírito ressentido reage, a reação propaga-se por novo contágio, e se pronuncia fulminando-a, e então nem distingue o que ela pode ter de exatidão e de verdade entre os erros, aliás a principio aplaudidos como acertos.

A opinião pública é deslumbrante, mas leve e fugitiva; assemelha-se às fadas dos contos orientais, encanta, porém ilude; é igual às jovens formosas e facilmente apaixonadas, seduzem e cativam e mudam de amor em breve prazo.

Quando cheguei ao fim destas e de outras semelhantes reflexões, era noite, e eu me achava sentado em um dos bancos de pedra do jardim da Praça da Constituição.

Ninguém reparava em mim, senti-me ou isolado ou defendido pela indiferença de todos, e todavia, poucos dias antes eu tinha sido naquele mesmo lugar causa de alvoroço geral e vira a multidão fugir aterrada da minha presença, como se eu estivera na Ásia e afetado da peste negra.

É triste, miséria da humanidade! Aquela indiferença que em minhas apreensões desse mesmo dia, eu desejava tanto, e tanto pedira ao céu, aquela indiferença que era a paz que a população me concedia, acabou por fatigar-me, por despertar o ressentimento da mais estulta vaidade em minh'alma de pobre pecador.

A popularidade é sempre um pedestal em que o homem se levanta acima dos outros; mas a impopularidade também é pedestal, distingue pela reprovação ruidosa, e em vez de abaixar, também levanta, também arranca do vulgar a sua vítima, e para açoitá-la, eleva-a ao pelourinho, e mostra-a pela sua perseguição ou pelo seu ódio acima das proporções comuns da generalidade.

Eu já havia experimentado a distinção torturadora da aversão popular; eu já tinha sido notabilidade embora adiada, e senti-me abatido, desprezado, aviltado, reduzido à invisível nulidade pela indiferença com que me deixavam nem olhado no meu banco.

Houve um momento em que atiçado, impelido, enlouquecido pela influencia traiçoeira da mais estúpida vaidade, tive ímpetos de levantar-me, e de bradar àquela multidão que não me via: «olhai-me! persegui-me! eu tenho a visão do mal...»

Mas exatamente nesse momento alguém me tocou com a mão no ombro, e me disse ao ouvido:

-Até que enfim nos encontramos!

- VII -

Vi diante de mim e logo sentado a meu lado um vulto de homem, de quem não pude distinguir as feições e nem ao menos a moda e a cor dos vestidos.

-Quem é? perguntei.

-Pois a tal ponto se esqueceu de mim?...

-Se me conhecer, deve saber que sou quase cego.

-Sou o Reis.

Reconheci imediatamente a voz do Reis, mal pude abafar um grito que me rompia da alma e creio que teria caído de joelhos, se esse excelente homem não me tivesse contido.

-Perdão! balbuciei; eu fui um ingrato, perdão!

-Seja prudente, disse-me ele; conversemos em voz baixa; não convém que o reconheçam.

Apertei com ardor as mãos do meu bom amigo Reis, e ainda assim tive um pensamento suspeitoso, maligno; pois perguntei a mim mesmo, se a visão do mal não desmentiria as aparências tão eloqüentes e persuasivas da bondade, e do generoso caráter deste homem.

Era a dúvida, era o ceticismo que a visão do mal tinha inoculado no meu espírito.

Guardei silêncio inexplicável pela desconfiança que me inspirava a humanidade; mas o meu egoísmo os cálculos do meu interesse pessoal fizeram com que eu mantivesse apertadas entre as minhas as mãos daquele, em que de novo eu depositava todas as esperanças, de remédio, de recurso, de socorro para a minha miopia.

-Então inutilizou a sua luneta? perguntou-me o Reis.

-É verdade: em um acesso de desespero pelo horror que tive de mim próprio, ousei praticar esse ato de loucura.

E referi miudamente toda a história dos prodígios da luneta mágica, e todos os desgostos que eu sofrera por ela.

-Também eu por minha parte não sofri pouco; porque perseguiram-me e há quem me persiga ainda por lunetas mágicas; mas com efeito é extraordinário, e incompreensível!...

-A luneta?

-Não; continuo a não acreditar no poder da cabala; é porém incompreensível a ilusão pasmosa dos seus sentidos.

-Não houve ilusão; eu juro...

-Juram do mesmo modo e com a mesma convicção quantos têm sido vitimas de igual ou semelhante exaltação enferma do espírito.

-Oh! eu era, como sou, tão míope que posso considerar-me cego, e mercê daquela admirável luneta vi distintamente, perfeitamente...

-Até ai creio, é possível; mas na famosa visão do mal não acredito.

-E todavia era real e incontestável.

-Eu só tenho fé em Deus, e creio somente na verdadeira ciência; se a magia fosse uma realidade, e eu quisesse explorá-la, ganharia milhões em poucos meses.

-Como?

-A mania do nosso armênio se agrava cada vez mais: ofendido pela incredulidade, e, diz ele, dedicado à minha pessoa pela influencia irresistível de não sei que fluido misterioso e inescrutável de que ele me fala, oferece-se para operar maravilhas, que tornariam o meu armazém em oficina encantada.

-Que maravilhas?

-Entre cem outras por exemplo as seguintes: óculos que façam ver o que se passa a mil léguas de distancia; pequenos espelhos polidos pela magia que reproduzam a imagem do rosto de uma velha com todas as graças da sua mocidade passada, binóculos, por um de cujos vidros, se veja todo o passado e pelo outro todo o presente da vida intima da pessoa que se observa; instrumentos de precisão ótica que patenteiem o ouro, as pedras preciosas, as riquezas e os segredos dos monstros oceânicos que se escondem por baixo das camadas da terra, no leito dos rios, e no fundo dos mares; lunetas e pince-nez que emprestam à mulher morena da Arábia e a mameluca do Brasil a palidez romanesca das filhas melancólicas da poesia dos sonhos, e aos olhos negros da caucasiana, e aos negros cabelos da espanhola os olhos cor do céu azul da inglesa, e os cabelos de ouro das princesas dos cantos de Ossian.

-É extraordinário!

-O armênio com efeito o é; quer saber? no dia e na hora, em que o senhor quebrou a sua luneta, ele veio ter comigo e disse-me: «a salamandra libertou-se: o seu míope quebrou a luneta magica».

-É possível?!!!

-Dois dias depois as folhas diárias da capital deram conta do caso.

-E onde está o armênio?

-Sempre encerrado em seu gabinete prestigioso no fundo do nosso armazém.

-Adivinhou então o meu infortúnio?

-E espera-o.

-Espera-me?

-Assegurou-me que o senhor nos procuraria amanhã: marcou-me o dia.

-Ainda esta! era a minha idéia; confesso-o. E não o espanta essa previdência do futuro? Essa vidência do pensamento alheio?

-Espanta-me por certo; mas sei também que a ciência está longe de ter pronunciado sua última palavra sobre os assombrosos fenômenos do magnetismo.

-E o armênio?

-Conta com a sua visita.

-Eu hesitava e temia...

-E ele assegura que dará novo e infalível recurso para vencer a sua miopia, novo e infalível porém não o mesmo.

-E se eu bater à sua porta?...

-A porta da nossa casa abre-se a todos os homens, que vão bater a ela, e para os honestos, para os honrados nunca houve hora em que não se abrisse.

-Irei amanhã.

-É o dia marcado pelo armênio.

-Marcou ele também a hora?

-Disse que do dia e da hora a escolha lhe pertence e que do dia e da hora depende a condição benigna ou maléfica do socorro que lhe poderá dar.

-E qual a hora mais propícia?

-Não quis dizer.

-Em todo caso terei luz para os meus olhos?

-Terá, conforme ele assevera.

-Depois da meia-noite começa o dia de amanhã: irei depois da meia-noite... estou ansioso... irei, se a sua bondade chega a tolerar a minha visita em horas, em que o descanso e o sono é um direito de todos.

-Hei de velar esta noite; não creio na magia; quero, porém, desejo e peço uma segunda experiência do poder desse armênio que se presume mágico, e se julga capaz de realizar impossíveis.

-Espere-me, pois que eu irei.

-Quer que previna o armênio?...

-Como lhe parecer melhor.

-Em tal caso prefiro experimentar, se espera e adivinha a sua visita. Não o prevenirei.

-Conte pois comigo; mas... depois da meia-noite.

-Por que tão tarde?...

-Não sei: instintivamente desejo falar ao armênio em hora mais próxima do dia...

-Achar-me-á velando.

O Reis levantou-se e, depois de me apertar a mão, retirou-se.

- VIII -

Fiquei só, refletindo.

Eu ia de novo recorrer a magia, e, se alcançasse outra e igualmente poderosa luneta, talvez expor-me de novo às perseguições do povo.

Ter uma luneta mágica para não usar dela, seria criar para mim o martírio de Tântalo.

Usar da luneta mágica novamente obtida seria perigo quase certo para a minha segurança.

Reproduziram-se pois as minhas tristes apreensões, e os meus cuidados, e se me antolhava um tormento que ainda não provara, a certeza da visão, ou a impossibilidade de exercê-la pelo medo da perseguição...

Portanto era minha sina sofrer sempre, ser sempre como o proscrito dos homens!

E todavia em todo caso eu desejava, eu queria poder ver.

Mas se a magia era uma ciência sobrenatural, porém verdadeira, pois que operava as maravilhas que eu experimentara, e contava ir experimentar, por que não poderia ela também livrar-me da reprovação pública e torná-la mesmo se não em estima ao menos em tolerância ou indulgência?

Resolvi-me a falar sobre este assunto ao mágico, a quem regato capaz de realizar impossíveis.

Não compreendo, não posso admitir a pertinácia, com que o meu amigo Reis nega-se a reconhecer o miraculoso poder do armênio.

Ou eu me engano muito, ou anda aí receio pueril de expor-se ao ridículo, e de passar por explorador de suposto charlatanismo na opinião dos espíritos fortes.

Os espíritos fortes! Não conheço espíritos mais fracos do que esses que se dizem fortes. A sua força consiste na negação de tudo quanto não podem explicar ou pelos sentidos ou pela sua razão que só resolve dentro do círculo das idéias que recebe pelos sentidos. A sua negação é pois um trono consagrado à ignorância, e firmado no materialismo.

Dantes eu não sabia reconhecer a profundeza destes erros filosóficos; graças porém à influência da minha luneta mágica, e principalmente à visão do mal, acho-me curado da minha miopia moral.

Faz-me pena, não digo a incredulidade, porque não a admito, mas a obstinação do meu amigo Reis.

Um homem que tem nas suas oficinas um mágico da força do armênio, e mágico que lhe oferece prodígios, teima em não querer experimentar ao menos a capacidade extraordinária, os trabalhos estupendos desse esclarecido adepto da cabala.

Só o receio do ridículo, e o respeito exageradíssimo aos espíritos fortes pode explicar semelhante procedimento.

Pois eu tenho para mim que em proveito da humanidade, e em especial serviço ao público brasileiro, devo comprometer tanto quanto me for possível o Reis.

Se eu conseguir, como espero, segunda luneta mágica tão admirável como foi a primeira, anunciarei pelos jornais a existência do armênio nas oficinas do Reis, e a diversidade e surpreendentes condições dos instrumentos óticos que ele pode temperar no fogo da magia.

Tenha o amigo Reis paciência, hei de comprometê-lo, e as justas exigências dos seus fregueses e do público o obrigarão a aproveitar-se da habilidade magica do armênio, e a facilitar a todos os instrumentos óticos por este preparados.

Se assim não quisesse, cumpria-lhe não ter e não conservar esse mágico em suas oficinas.

- IX -

Empreguei tanto tempo nestas reflexões, que de súbito as interrompi, quando o guarda do jardim veio dizer-me que era tempo de retirar-me, pois ia trancar as grades.

A noite se adiantava.

Deixando o jardim, pensei que não me convinha recolher-me a casa.

Meu irmão, minha tia, e a prima Anica bem poderiam desconfiar do meu primeiro e prolongado passeio depois da inutilização da luneta mágica, e ficando alerta, embaraçar a minha saída de casa em desoras.

Achei prudente este juízo, e resolvi-me a matar o tempo, passeando pelas ruas desertas da cidade.

E passeei... e andei, como o judeu errante; ninguém me perguntou quem eu era, nem me espiou os passos.

Míope nada vi; mas distraí-me, ouvindo o ruído anunciador da negligencia da autoridade pública.

Ouvi o ressonar de mais de um indigente que dormia nos degraus do alpendre de uma igreja, e perguntei a mim mesmo se não havia na capital do Império um asilo para a indigência sem teto, para a miséria esfarrapada e sem recurso.

Ouvi as juras e os protestos de jogadores infelizes ou roubados, que saiam em furor de uma casa, onde se cantavam árias italianas ao som do piano na sala da frente, e se arruinavam fortunas ao lansquenê em alguma saia do interior; e perguntei a mim mesmo por que a polícia, que invade a alçada de todos os poderes do estado, não manda trancar as portas das casas públicas de jogo, onde tantos mancebos devastam as riquezas de seus pais, tantos caixeiros fazem paradas à custa das gavetas dos amos, tantos inespertos são criminosamente despojados por jogadores trapaceiros.

Ouvi o estrépito da orgia das famosas mulheres impudicas, e dos velhos ricos, e jovens viciosos que de copo de champanha em punho, e com a voz da lascívia nos lábios entoavam cantos obscenos em honra do ridículo da velhice, da corrupção da mocidade, e do desavergonhamento da nudez e do opróbrio do sexo, do recato, do pudor, e da honestidade; e perguntei a mim mesmo que exemplo davam aos filhos esses velhos, que esperanças devam à pátria esses jovens, que futuro esperavam as esposas e as filhas dos primeiros, as mães e as irmãs dos segundos.

Ouvi...

Deus me livre de dizer tudo quanto ouvi, rebentando do interior de certas casas, ou falando sem reserva nas ruas ao ruído abafado ou a algazarra vergonhosa do vício em dissimulação ou em desenvoltura.

Ouvi finalmente no dobre de alguns sinos o sinal de três horas da madrugada, e dirigi-me então a Rua do Hospício.

Como da primeira vez o Reis me esperava à porta de sua casa.

- X -

Entrei.

Eu achava-me fatigado do longo passeio e pedi licença para descansar alguns momentos.

Sentei-me e respirei afadigado.

O Reis se conservou em silêncio ate que lhe perguntei:

-O armênio?

-Sem dúvida está no seu gabinete; não o preveni.

-Eu não posso ver o que porventura terá de se passar dentro em pouco; conto com a sua condescendência para referir-me por miúdo o que não me é dado apreciar pela vista.

-Pode estar certo disso.

-Bem; já descansei: vamos procurar o armênio.

O Reis tomou-me o braço e disse:

-Vamos; se ele é, como pretende, verdadeiro mágico, deve ter adivinhado a sua visita; se o não é, surpreendê-lo-emos ou descuidado, ou dormindo.

E tínhamos apenas avançado um passo, quando o armênio mostrou-se à porta do fundo do armazém, trazendo na mão uma lanterna furta-fogo.

-Eu adivinhei a tua visita, mancebo, disse ele.

E fitando o Reis, acrescentou:

-Reconheça-me pois verdadeiro mágico.

O Reis não respondeu; evidentemente ficara confundido.

O armênio adiantou alguns passos para nós, e dirigindo-se a mim, disse-me:

-Criança! não te acuso pelo que fizeste: a tua desobediência aos meus conselhos era um fato previsto pela magia; és homem, tinhas de errar, como erraste.

-Não errarei outra vez, balbuciei humildemente.

-Errarás sempre, e tornarás a desobedecer-me.

-Não!

-Vê-lo-ás.

-Então conseguirei deveras outra luneta mágica?

-Sim, se a exiges.

-Peço-a de joelhos.

-Criança! para que teimas em querer ver?...

-Porque ver é viver.

-Eu te anunciei da outra vez que o que me pedias era o mal, o gelo do coração, o ceticismo na vida, e sabes que não te enganei.

-Mas ao menos eu vi, e agora de novo me acho cego.

-Criança! tu escolheste um dia benéfico, um domingo, uma hora propícia, a que antecede apenas ou vê despontar a aurora; ainda assim porém tu verás demais!

-Embora!

-Pedes-me uma segunda luneta mágica que te será fatal como a primeira.

-Já tenho por mim a experiência.

-Será o engano infantil na vida...

-Aceito!

-Será a credulidade insensata.

-Aceito!

-Será a inocência indefesa.

-Aceito!

-Será a zombaria do mundo e a cegueira da razão.

-Aceito!

-Por que, criança?…

-Porque eu quero ver.

-Verás demais!

-Aceito.

-Eu o sabia, e tanto que o altar está pronto e nos espera; já evoquei os espíritos elementares: nada falta; vamos.

Mas ao primeiro passo, o armênio levantou a lâmpada, inundou-nos de luz, e disse:

-Trazes vestidos de cor preta, que e antipática a Júpiter, cujo dia é hoje...

E fez com a mão um sinal que eu não vi com os olhos; mas a que obedeci, ficando imóvel, e como preso ao lugar que meus pés pisavam.

O armênio saiu do armazém para ir ao seu gabinete.

O Reis silencioso, eu estático, respirávamos apenas, dominados pelo prestigio do mágico que em breve tornou a aparecer, trazendo uma túnica de pano branco bordada de triângulos de prata.

Cumprindo as ordens do mágico tirei a sobrecasaca, o jaleco e a gravata que eram de cor preta, e vesti a túnica.

-Agora vamos, repetiu ele.

O Reis e eu seguimos em silêncio o mágico.

- XI -

Não pude ver o que se passou desde que entramos no gabinete do armênio até o fim da operação mágica; referirei porém o que o meu amigo Reis me contou com inteira verdade e profunda admiração.

Cumpre-me declarar que o meu amigo insiste em não acreditar na magia; confessando porem não poder explicar e menos negar os prodígios de que foi pela segunda vez testemunha.

O Reis jurou culto e fé às ciências físicas e fanático por elas não quer ver o maravilhoso e o sobrenatural que lhe está entrando pelos olhos, nem sentir o que está tocando os seus sentidos.

Todavia leal e nobre, o meu amigo referiu-me quanto viu e que vou repetir, e apelo para o seu testemunho que é insuspeito por ser testemunho de incrédulo.

O armênio que nos conduziu ao seu gabinete, trajava vestido de púrpura com tiara e braceletes de ouro; trazia no dedo competente anel de ouro com um rubi, e na cabeça barrete ainda de púrpura com o pentagrama bordado de prata.

A porta do gabinete magico abriu-se em par a um simples aceno da mão direita do armênio

O interior do gabinete estava resplendente de luz, e todo ornado das mesmas figuras e símbolos da cabala, que na primeira operação mágica se observaram; as cores porém eram outras e diferentes; as paredes estavam pintadas de vermelho vivo, tendo em cor de ouro as vinte e duas chaves do Tarot, e os sinais dos sete planetas; o teto era azul como o céu no dia mais sereno, tendo no centro a figura do pentagrama fulgurando, como se fosse fogo, como se tivera tomado de empréstimo o brilho do sol mais ardente.

A mesa que servia de altar da magia mostrava-se coberta com um imenso pano branco, alvíssimo, tendo figuras cabalísticas sem numero bordadas em ouro. O chão era tapizado de peles de leão, que conservavam o aspecto exterior das cabeças dessas feras, e cujos olhos flamejavam abertos.

Os instrumentos da magia, os símbolos que enchiam o altar e o gabinete eram ainda os mesmos, a vara mágica porém tinha terminando-lhe a ponta um quase imperceptível triângulo de ouro.

Coroas de louro e de heliotrópio ornavam o altar, no qual a figura sinistra do diabo fora substituída por uma pomba, em cujo peito aberto entrava uma serpente que lhe mordia e devorava o coração.

Nós tínhamos penetrado no gabinete, e o mágico se sentara e se concentrara.

Um galo cantou seguidamente três vezes.

O armênio levantou-se e bradou: «Uriel! Zadklel! Gehudiel!... Oriphiel!...»

E na parede sobre o altar esses quatro nomes surgiram em caracteres de fogo, como as palavras proféticas no festim de Baltazar. O mágico tomou em suas mãos a lâmpada mágica que estava já ardente, e levou-a, dando três passos para o lado do Ocidente, e depois depositou-a outra vez no altar; mas no ângulo ocidental dele.

Em seguida firmou no meio do altar sem esforço nem artifício apreciável um finíssimo tubo de vidro azul de palmo e meio de altura e de diâmetro igual em toda sua extensão, tendo à meia polegada da extremidade inferior um orifício em que a custo entraria um fio de seda, e na extremidade superior um triângulo de ouro perfurado, e apenas perceptível.

Sobre esse triângulo o armênio colocou o vidro côncavo destinado à luneta: o equilíbrio, a firmeza do tubo de vidro sobre o altar, do vidro sobre o triângulo não tinha explicação aceitável; mas era real.

O galo cantou de novo três vezes.

O mágico estendeu o braço para tomar a vara mágica: mas ouvindo o piar de uma coruja, empunhou a espada e manejou-a no espaço, exclamando: «Zadklel! Zalriel! Oriphiel!».

O piar da coruja cessou, o galo repetiu seu canto, e o armênio atirou longe de si a espada, do cuja ponta saiu uma flama que foi embeber-se no pentagrama que radiava no teto.

Tomando então a vara mágica o armênio mergulhou o triângulo em que ela terminava a sua ponta na flama da lâmpada e dela tirou e levou um fio de fogo até o orifício do tubo de vidro azul.

O tubo acendeu-se, ou pareceu acender-se todo. O mágico lançou imediatamente sobre a flama da lâmpada cinamomo, incenso, açafrão, e sândalo rubro, e o fumo perfumado foi sair pela extremidade superior do tubo de vidro, envolvendo em ondas aromáticas o vidro côncavo que descansava sobre o triângulo de ouro.

Pela terceira vez o galo cantou três vezes, e não se ouviu piar de coruja.

O armênio radiante e ufanoso levantou o braço e firmou a vara mágica uma polegada acima do vidro côncavo, e do triângulo do vidro azul em fogo.

Um minuto depois uma faisca cor de sangue negro saiu do fogo do vidro azul e pregou-se no triângulo da vara mágica; mas o armênio sacudiu três vezes a vara, dizendo: gnomo! para os vulcões!

E a faisca apagou-se.

Dois minutos depois outra faisca amarela desmaiada, rompendo do vidro azul foi tocar no triângulo de ouro da vara mágica; mas o armênio bradou: ondina! para o seio das fontes e para o fundo dos mares!

E a faisca logo se apagou, como a primeira.

Três minutos depois terceira faisca, e essa cor de sangue negro surgiu do mesmo ponto e pareceu querer embeber-se na áurea extremidade da vara mágica; o armênio porém bradou: salamandra! para o fogo do inferno!

E a faisca se apagou e o solo e a casa estremeceram debaixo de nossos pés.

E no fim de quatro minutos ainda uma faisca brilhante se desprendeu do vidro azul, e começou a embeber-se no ângulo em que terminava em ponta o triângulo da vara mágica.

-Quaternário! exclamou o armênio; absorve-te, e depois liquefaz-te, silfo, e liquefeito, te exagera no bem!

E a faisca pouco a pouco se foi embebendo na fina ponta da vara mágica, que ainda ficou imóvel e firme sobre o vidro côncavo...

Passou um minuto, e caiu da ponta da vara mágica uma gota d'água semelhante a uma lágrima no vidro côncavo, que a observou.

E a pomba que tinha o peito aberto exalou um gemido.

Passaram dois minutos, e caiu da ponta da vara mágica outra gota d'água, outra lágrima, que também se embebeu no vidro côncavo, e a pomba cujo peito estava aberto, e o coração era mordido pela serpente gemeu duas vezes.

Passaram três minutos e terceira gota d'água, terceira lágrima caiu da ponta da vara mágica, e foi embeber-se no vidro côncavo, e a pomba que mostrava o peito aberto e a serpente a morder-lhe e a devorar-lhe o coração, gemeu três vezes.

-Ternário! exclamou o armênio e abaixou a vara mágica.

O gabinete que parecera arder em incêndio de repente passou a mostrar-se em suave luz de crepúsculo da tarde.

O armênio retirou da extremidade do vidro azul, cujo fogo se apagara, o vidro côncavo, lavou-o com água perfumada que derramou da taça mágica, enxugou-o com o pano que forrava o altar, armou-o em um finíssimo aro de prata, imprimiu neste o selo cabalístico, e enlaçou no anel da luneta um fio de cabelo loiro, que engrossou subitamente, tomando a forma e proporções de um trancelim de ouro.

Logo depois o armênio pronunciou uma palavra cabalística, cujo sentido só ele compreendeu, e por breves momentos a luz se apagou e reinou a escuridão.

Ouvimos um grito: -retorno!...

O grito pareceu-nos vir de fora e de longe, e logo duas janelas se abriram no gabinete, e o raiar suave da aurora, e o despontar do dia deu-nos a claridade duvidosa e romanesca que precede ao esplendor do sol.

O gabinete mágico desaparecera por encanto: achamo-nos o Reis e eu diante do armênio em um quarto modesto, de paredes brancas e nuas, contando apenas em seu interior uma rude mesa, uma cadeira, e um leito humilde.

-Sou o pobre que dá tesouros, disse o armênio.

E entregando-me a luneta, continuou:

-Dou-te pela segunda vez uma luneta mágica: verás por ela quanto desejares ver; verás muito; mas poderás ver demais. Criança! dou-te um presente, que te pode ser funesto; ouve-me com atenção: não fixes esta luneta em objeto algum, e sobretudo em homem algum, em mulher alguma por mais de três minutos; três é o número simbólico e para ti será, como na outra, o número simples, o da visão da superfície, e das aparências: não a fixes por mais de três minutos sobre o mesmo objeto; porque além de três minutos, hás de ter a visão do bem, que o meu poder de mágico não te pode impedir, pois a visão do bem será a vingança do silfo que escravizei para teu serviço.

-Eu te obedecerei! respondi.

-Hoje mesmo me desobedecerás, tornou o armênio com voz lúgubre.

-Não! Juro que não!

-Vê-lo-ás, tornou ele, e prosseguiu: terás a visão do bem e hás de ser por ela infeliz; verás demais no presente, e poderias ler no futuro, fixando-a por mais de treze minutos sobre o mesmo objeto; eu tenho porem piedade de ti, e te proíbo ainda a vidência do futuro: Cashiel! Schaltiel! Aphiel! Zarabiel! eu impeço a vidência do futuro a este mancebo, e esta luneta quebrar-se-á em suas mãos antes do décimo quarto minuto de fixidade.

E mal acabou de falar, o armênio deitou-se no seu leito, fechou os olhos, e imediatamente dormiu.

- XII -

O meu amigo Reis levou-me do gabinete do armênio para o armazém.

-E então? perguntei-lhe...

-Não sei... não sei... não sei... repetiu o Reis, respondendo-me; este homem parece o demônio...

-Duvida ainda?

-Não posso explicar o que testemunhei; mas duvido sempre.

-É demais!

-Vá ensaiar a sua luneta, e volte a dizer-me o que ela é; preciso saber tudo...

Foi só ouvindo esse convite do meu amigo Reis que me lembrou o pedido importantíssimo que eu devia fazer ao mágico.

-Ah! exclamei; esqueceu-me pedir ao armênio algum encanto, algum talismã que me pusesse a salvo da perseguição popular. Eu não poderei usar a minha luneta sem expor-me aos maiores perigos...

-Podes! disse uma voz grave: nada receiem.

Era o armênio que me mostrara à porta do fundo do armazém, e que apenas acabou de pronunciar essas palavras, se retirou, desaparecendo como uma visão misteriosa.

Despedi-me logo depois do meu amigo Reis que ficara mudo de surpresa e admiração.

Era dia; venci porém a minha ardente ansiedade, resolvido a fazer o primeiro ensaio da minha nova luneta mágica em minha casa, a sós, e livre de qualquer curioso observador.

Visão do bem

- I -

O armênio é um mágico sublime.

A minha nova luneta é na visão das aparências ou igual ou superior a primeira.

Agora sim, creio que devo e posso considerar-me feliz; feliz porque possuo tão precioso instrumento ótico, feliz porque me é dado usar dele sem perigo.

Fiz o primeiro ensaio da minha nova luneta mágica, fitando-a de longe e às ocultas sobre os meus três parentes, e vi-os, distingui as feições de qualquer deles como as distinguira com a outra luneta, e até cheguei a ver mais, pois percebi um sinalzinho azul no meio da face esquerda da prima Anica, sinalzinho que lhe dá na verdade uma certa graça ao rosto.

Seguro da força do maravilhoso instrumento ótico, aumentou ainda mais a minha confiança no armênio, e resolvi logo pôr em prova a certeza que ele me dera de que eu poderia sem receio de perseguição ou de perigo algum usar da minha luneta mágica.

Apesar disso cumpre-me confessar que foi com algum abalo do coração e com a mão trêmula, que, ao sentar-me a mesa do almoço em companhia dos meus três parentes, prendi a um dos olhos por dois minutos a luneta mágica.

-Oh! temos nova luneta? disse sorrindo o mano Américo.

-É verdade, e ótima, como... a outra.

-Como a outra não, observou a tia Domingas; esta me parece diferente e não me faz mal aos nervos, como aquela que felizmente se quebrou.

O meu espanto não pode ser maior.

-Vê bem? Vê muito?... perguntou-me a prima Anica, cheia de curiosidade.

-Bem e muito, respondi.

-Que tenho no meu cabelo?

-Uma rede de retrós, que os contem.

-No meu peito?

-Um amor-perfeito.

-Nas minhas orelhas?...

-Nada; não traz brincos.

-É estupendo!

-Assim o penso.

-Por que não conserva fixada a sua luneta?

-Porque além de três minutos de fixidade eu veria mais do que devo e quero ver.

-O mal?

-Não; o bem.

-Ora! experimente em mim.

-De modo nenhum: o mágico me aconselhou que o não fizesse.

-Eu lho peço.

-Deus me livre de obedecer-lhe, Anica.

-Empresta-me a sua luneta por cinco minutos?

-Sem dúvida.

Passei a luneta à prima Anica, que apenas fixou-a, exclamou, retirando-a:

-Ah!... nada posso ver... e que peso sobre os olhos... que fogo...

-É efeito da magia...

-Quando eu digo que há mágicos de Deus, e mágicos do diabo não querem me acreditar!... observou a tia Domingas.

-Ora pois, mano Simplício, disse meu irmão; conserve cuidadoso a sua boa luneta...

-Olhe-me com ela! tornou a prima Anica.

Fiz-lhe a vontade, olhei-a por dois minutos.

-Como me acha?

-Lindos cabelos, e rosto a que um sinalzinho azul na face esquerda dá tal encanto...

Anica interrompeu-me desatando a rir; mas com evidente satisfação da sua vaidade de moça.

Eu estava como assombrado.

Que mudança de idéias e de prevenções, e de apreciações relativamente à luneta mágica!

Quem pudera dizer aos meus parentes que a minha nova luneta não era como a outra, e que em vez da visão do mal, continha o poder da visão do bem?

Como isto aconteceu não sei; mas aconteceu.

Evidentemente eu não tinha perseguição, nem perigos a recear.

O armênio salvara-me.

O armênio é verdadeiro mágico.

- II -

Acabado o almoço, e depois de abraçado e ardentemente felicitado pelos meus três parentes, de quem ainda continuava a desconfiar muito, voltei ao meu quarto com a alma repleta de consolação, de alegria, e de entusiasmo.

Creio que entrei no meu quarto, saltando jubiloso, como um candidato da oposição que se vê eleito deputado depois de uma dissolução da câmara temporária, ou como um mancebo namorado que após resistências cruéis da família da amada, recebe a decisão ditosa, que lhe dá as glórias de noivo.

Beijei mil vezes a minha luneta mágica e mil vezes jurei que seria acautelado e prudente, que me contentaria com a visão das aparências e que nunca iria além de três minutos procurar a visão do bem.

Entretanto a visão do bem era uma coisa que não podia fazer mal!...

Esta idéia já havia entrado por mais de uma vez no meu espírito: ver o bem! eu tinha sofrido tanto, vendo em tudo, em todos, e por toda parte o mal, que ver o bem poderia ser uma agradável compensação, uma profunda consolação para mim...

Mas eu jurara a mim mesmo obedecer fielmente aos conselhos do armênio, e portanto venci, esmaguei o meu desejo de ver o bem.

Hei de, protesto que hei de contentar-me com a visão das aparências: é duro, é triste o privar-me da visão do bem; não a quero porém; juro que não me exporei a essa visão que o armênio reputa inconveniente.

A visão do bem deve ser deliciosa! mas não a quero; não sou criança louca; sou homem de juízo, e de força de vontade: não quero, não terei a visão do bem.

- III -

Lembrou-me o meu amigo Reis.

O Reis! tenho pena dele.

A incredulidade do meu amigo Reis é mais do que pertinácia no erro, é um atentado contra os direitos do publico que por ela se vê privado de instrumentos óticos temperados pela magia do armênio, e que podem vulgarizar maravilhas.

O meu amigo Reis é incrédulo; eu porém não sou egoísta, não quero para mim só os milagres que o armênio é capaz de realizar.

Conscienciosamente entendo que em proveito de todos devo atraiçoar o meu amigo Reis, publicando o que sei e o que obtive do armênio, e o que o armênio é capaz de dar, enriquecendo, sublimizando, tornando mágicas as oficinas, que alimentam o armazém do Reis.

Que me cumpre fazer? É claro: vou redigir uma noticia do que obtive e consegui das oficinas do Reis, vou denunciar a existência do armênio, e a sua extraordinária habilidade em magia, vou obrigar, forçar o meu amigo Reis a satisfazer aos seus fregueses, tornando público o que o armênio se declara pronto a realizar em matéria de instrumentos óticos encantados ou mágicos. É um serviço que devo prestar ao meu país e ao mundo.

Entusiasmado fixei a luneta, tomei a pena e comecei logo a escrever:

NOTÍCIA IMPORTANTE

«O abaixo-assinado, possuidor de uma nova e não menos admirável luneta magica que, por grande favor obteve do Sr. J. M. dos Reis, em cujas oficinas na casa de instrumentos físicos etc., a Rua do Hospício n.º 71 trabalha um armênio que é profundamente amestrado em magia, julga do seu dever publicar um segredo que não convém ser por mais tempo guardado.

O Sr. J. M. dos Reis, teimando em não acreditar na magia, nega-se a aproveitar-se dos oferecimentos do armênio prejudicando assim os seus interesses e os do público.

Informo pois que o armênio, a quem devo a luneta mágica, se propõe a preparar para que o Sr. J. M. dos Reis exponha a venda no seu armazém vidros e instrumentos óticos de assombrosas condições; espelhos que refletem a imagem dos velhos com o viço da mocidade passada, óculos, binóculos e lunetas que fazem ver o que se passa e o que há a muitas centenas de léguas de distancia, no leito dos rios, no fundo dos mares, no seio da terra...»

Oh!... que fiz eu? Que estou vendo?... meu Deus!... é a visão do bem!...

Escrevendo, esqueci o tempo, passaram mais de três minutos, e, como predissera o armênio, hoje mesmo desobedeci aos seus conselhos!

Pequei involuntariamente; como porém é bela e suave a visão do bem!

As palavras que eu acabava de escrever me pareceram acendidas em brando fogo em que brilhavam generosos sentimentos... as palavras escritas falavam a meus olhos, a incredulidade do Reis exprimia a nobre severidade da ciência e o escrúpulo da religião, a capacidade magistral do armênio revelava o inocente e benéfico poder da magia que os homens não compreendem, e por isso apreciam mal, a noticia escrita por mim transpirava de todas as linhas, de todas as palavras, de todas as sílabas o amor da humanidade. Em tudo e em todos somente sentimentos nobres e doces virtudes.

Que prazer! que delicias experimentei e estou experimentando!

Ah! por que o armênio havia de aconselhar-me a não usar da visão do bem?

Por que privar-me destes gozos que fazem sorrir a alma beatificada pela pureza e santidade do sentimento?...

Que mal pode provir do bem?...

Eu me senti feliz, imensamente feliz...

Completei a notícia, acrescentando ao que tinha escrito, o seguinte período:

«Ao público, e especialmente aos fregueses do Sr. J. M. dos Reis cabe o direito de à força de pedidos, empenhos, e reclamações coagi-lo a vencer a sua incredulidade, e a aproveitar os oferecimentos do armênio mágico para facilitar ao público e aos seus fregueses todos os instrumentos óticos e maravilhosos espelhos encantados pela magia».

Datei a notícia, assinei-a com o meu nome e imediatamente mandei tirar dela três cópias, para que no dia seguinte aparecesse ao mesmo tempo em todas as gazetas diárias da cidade do Rio de Janeiro.

- IV -

Que mal pode vir do bem?

Devo abster-me da visão do bem depois de haver experimentado uma vez as sensações mais deliciosas, a suavíssima consolação que ela assegura?

O armênio me aconselhou que me abstivesse da visão do bem, declarando-a tão perigosa como a visão do mal; eu porém involuntariamente já infringi esse preceito do mágico...

Se há perigo na visão do bem, já pois inadvertidamente me expus a ele...

A falta, a desobediência estão cometidas...

Ainda mais: o armênio afirmou que hoje mesmo eu desobedeceria aos seus conselhos, e assim aconteceu sem que da minha parte houvesse intenção premeditada.

Portanto o que aconteceu tinha de acontecer.

Não seria estulta vaidade pretender levantar-me contra a fatalidade, resistir à lei da magia?

E a visão do bem me foi tão agradável!

Se eu não pude vencer o encantamento da visão do mal, que me fazia sofrer tanto, como poderei triunfar do encanto da visão do bem, que é tão deleitosa?...

Eu não sei se estou sofismando para me enganar a mim próprio, imaginando, inventando escusas e desculpas com o fim de serenar a minha consciência, que escrupulosa me repete os conselhos do armênio; sei porém e confesso que a curiosidade, um desejo irresistível me impelem com a mais viva força para o gozo da visão do bem, que já me encheu a alma de felicidade e de contentamento.

Eu sinto que há verdade e enlevo, beatificação da vida, amor da terra e dos homens, sorrir do coração, luz do céu iluminando a terra na visão do bem.

Quaisquer que sejam os perigos a que me arrisque pela visão do bem, de boa vontade os arrostarei.

E impossível que eu me torne desgraçado por ver o bem.

Perdão, armênio! doravante vou desobedecer-te intencionalmente.

Visão do bem! eu te quero, eu te adoro, eu te bendigo, e te aceito para guiar-me no caminho da vida.

- V -

Fixei a luneta e cheguei-me à janela do meu quarto: vi a prima Anica debruçada à janela do seu.

Lembrou-me a idéia que dos sentimentos dessa moça egoísta, fria, incapaz de amar, eu fizera pela visão do mal, e retirei a luneta com repugnância.

Momentos depois a reflexão me acudiu; e compreendi que exatamente pelo conhecimento que eu já tinha daquela mulher-cálculo, mulher-aritmética, mulher mais terra do que céu, mais matéria do que espírito: mais pó do que alma, era nela que melhor experimentaria a visão do bem.

E fitei a prima Anica, que parecia estar meditando.

Vi-lhe o rosto que eu conhecia, o sinalzinho azul que o engraçava, os cabelos formosos, e...

Passaram os três minutos, e o coração e a alma de Anica se abriram, se patentearam ao meu espírito perscrutador.

Oh! como fora caluniadora e perversa a visão do mal!

Anica é um anjo de inocência e simplicidade, e ao mesmo tempo uma senhora de juízo reto e de exemplar virtude. O que eu julgara nela gêlo do coração era virginal recato, o que eu tomara por cálculo material e egoísta era a reflexão e a sabedoria instintiva de uma mulher-modelo; zelosa, sem ciúmes rudes e ridículos, econômica sem vileza, amante sem paixão em delício, serena, complacente, dedicada, livre do amor da ostentação e do luxo, de costumes simples, estremecida pela família paciente, suave, meiga, Anica é a mulher que reúne todos os dotes para felicitar o homem que for seu esposo.

Encontrei a minha imagem na alma de Anica; não porém como a visão do mal ma mostrou: encontrei-a amada, ternamente amada, encontrei-a cercada dos cuidados e do interesse de um sentimento tão profundo como generoso que só lembrava a minha fortuna, a minha riqueza com o receio de que fossem motivos que excitando a ambição de alguma outra mulher, prejudicassem às aspirações do seu amor desinteressado e puro.

Vi na alma de Anica também a imagem do mano Américo, mas somente afagada por inocente e mimosa afeição fraternal.

Horizonte sem nuvens, mar sem tempestades, céu de lua cheia luminoso e sereno, jardim de belas flores sem espinhos, terra de solidão sem florestas negras, nem abismos, nem antros de feras, tranqüilidade sem tristeza, saudade sem amarguras, flama sem incêndio, recato, modéstia, melindre, abnegação, amenidade, eis o que é a prima Anica.

De súbito ela volveu os olhos para a minha janela, percebeu que eu a fitava com a minha luneta mágica e sorriu-se docemente para mim.

Que sorrir! Foi como um raiar de aurora.

Deixei cair a luneta, e quase me ajoelhei para adorar a angélica moça.

Creio nos amores que de repente conquistam e escravizam os corações.

Creio nas paixões que de improviso se acendem.

Creio nos amores e nas paixões que os romances nos descrevem inspiradas em um momento pelos encantos de jovens formosas e de prestigio deslumbrante.

Creio; porque eu sinto que amo apaixonada e perdidamente a prima Anica.

Eu quero ajoelhar-me, prender-me aos pés desta moça gentil, mimosa, rica de virtudes, quero ajoelhar-me a seus pés, prender-me aos seus pés como se me prendessem as asas de um anjo, que em sublime vôo me levasse à salvação, à glória suprema, ao céu.

Abençoada seja a visão do bem, se a prima Anica quiser aceitar a minha mão, o meu nome, e ser minha esposa, a santa companheira na minha viagem pela terra, a mulher unificada comigo nos trabalhos, e nos gozos da vida.

- VI -

Veio-me a idéia correr imediatamente à presença da tia Domingas e pedir-lhe em casamento a prima Anica; mas contive-me; porque me lembrou que devia para isso achar-me autorizado pela noiva, e porque desejei desfrutar o encanto de alguns dias de intimas confidências, e de enlevo de namorados com a adorada moça.

Com a certeza que eu tinha de ser amado por Anica, e com a segurança da sua virtude alguns dias de demora no pedido de casamento não podiam senão duplicar a minha felicidade com o aguçamento de honestos mas ardentes desejos da posse do objeto amado.

Empreguei o resto do dia no estudo da tia Domingas, e do mano Américo pela visão do bem.

Indispensavelmente a visão do mal tinha sido a visão do diabo, que me fizera ver o contrário da verdade, e caluniar os mais santos corações, e os caracteres mais puros e generosos.

A tia Domingas era a devoção, a piedade personalizada. Aos pobres negava esmola à nossa vista, e semeava benefícios às escondidas: era a caridade do evangelho, o bem que fazia, só ela o sabia. e quando rezava, mais vezes suas orações eram por seus parentes e pelos estranhos, do que por si. No governo da casa economizava para matar a fome à indigência, e imaginava mil pretextos para ter mais que dar, e encobrir o que dava.

A tia Domingas era e é uma santa velha; o que ela faz em obras de caridade só Deus o sabe, e eu agora também o sei pela visão do bem.

O mano Américo é o tipo da dedicação fraternal: vive pensando em mim, negociando por mim, e explorando em meu favor e beneficio as evoluções, revoluções, e combinações da praça do comércio.

Em sua abnegação sublime deixa intatas e não desviadas do emprego em que se acham as somas da sua riqueza própria, e, mercê de uma procuração que assinei, negocia com a minha fortuna, jogando na praça: se perde, perco eu e é justo; se ganha, tira dos lucros a sua porcentagem, o que é justíssimo; a prova da honradez e boa-fé do mano Américo é que a minha fortuna ainda não diminuiu um ceitil, embora não tenha aumentado por causa de alguns prejuízos conseqüentes de jogo infeliz.

O que tem sempre aumentado é a fortuna do mano Américo que nunca perde, e ganha sempre; mas a isso nada tenho que dizer; porque o mano Américo só se ocupa de mim, e faz o sacrifício de jogar na praça somente com o meu dinheiro, e em tal caso quando há perdas, é evidente que eu devo carregar com elas, tanto mais que quando há lucros, meu irmão os reparte comigo.

É evidente que se o mano Américo jogasse na praça com os seus próprios recursos, ganharia somente para si, e eu não teria parte nos lucros.

Eu fora o mais vil ingrato se desconhecesse o que devo ao mano Américo.

A visão do bem acaba de mostrar-mo tal qual ele é. A sua prudência e sabedoria igualam à sua dedicação fraternal, e aos escrúpulos de sua probidade.

Com a minha luneta mágica eu poderia gerir perfeitamente os meus negócios; não incorrerei porem nesse erro: o mano Américo continuará a ser o depositário de toda minha fortuna, e a administrará e empregará absolutamente, como entender melhor.

Oh! quão aleivosa e envenenada, traidora e diabólica era a visão do mal! A que criminosos juízos sobre o caráter dos meus ótimos parentes me levou ela!

Ainda bem que posso enfim ver e apreciar a verdade, e pelo conhecimento da verdade viver a mais ditosa, e risonha das vidas.

Casar-me-ei com a prima Anica.

A tia Domingas será o gênio protetor da família e o anjo da caridade que fará descer as bênçãos do céu sobre a nossa casa.

O mano Américo continuara a ser o arbitro, o regulador dos negócios da família, dispondo convenientemente dos nossos cabedais em proveito de todos.

E eu serei o egoísta, o desfrutador de tantos benefícios só e de tanta felicidade sem trabalho, sem cuidados, só me ocupando do amor da prima Anica.

Abençoado seja o armênio

Abençoada seja a luneta mágica que me deu a visão do bem.

- VII -

Eu tinha a febre da felicidade.

O mundo e a vida me festejavam o coração; eu desejava rir, divertir-me, folgar.

Em casa a tia Domingas e a prima Anica dormiam cedo, e eu senti-me contrariado pelas horas que havia de perder, deitando-me antes da meia-noite.

Acudiu-me ao espírito um pensamento extravagante, e talvez menos digno de quem já se considerava noivo: lembrou-me ir ao Alcazar Lírico, que nessa noite dava espetáculo e representação -não pedidos, nem para público de escolha-; mas da sua série ordinária e portanto menos contidos e mais livres.

Não refleti mais: decidi-me a realizar o meu intento.

A hora aprazada entrei pela primeira vez no tal teatro francês, de que tanto mal me diziam, e tomei um lugar no meio de numeroso concurso de homens e de mulheres.

Antes de tudo observei o teatro, cuja descrição não farei: achei-o bonito e cômodo mas no fim de três minutos de exame, a luneta mágica encantou-me com a visão do bem.

Que injustiça fazem ao Alcazar Lírico: vi nele o contrário do que me informavam! Vi nele o ponto de reunião de todas as classes da sociedade, o jubiloso recurso de entretimento para os homens pobres que não podem pagar outro menos barato, e para as mulheres que degradadas pelo vício são repelidas da boa sociedade; vi nele a mais eloqüente escola de moralidade pública pela exposição ampla e quase sem medida do comércio imoral e repugnante das criaturas desgraçadas que tem descido à última abjeção: melhor que as teorias e os conselhos de um pai austero, falava ali à mocidade o exemplo vivo dos perigos e das torpezas da devassidão. O Alcazar me pareceu enfim uma bela instituição filantrópica e filosófica, a ética de Jó ensinada pelas antíteses, a ostentação da grandeza da virtude pela observação da baixeza do vicio.

Não pude compreender a razão por que o governo do Brasil ainda não concedeu subvenção ou loterias anuais para auxílio deste admirável teatro lírico francês!

Passei imediatamente a observar os espectadores de ambos os sexos, e antes deles as atrizes ou artistas.

Em breve me apercebi como que abismado em um dilúvio de arrebatadoras graças e dos mais generosos sentimentos. Não houve para a minha luneta uma só atriz francesa que não fosse prodígio; se nos primeiros três minutos uma me pareceu menos bonita, outra menos bem feita, e outra menos engraçada, passados os três minutos veio a visão do bem obrigar-me a pagar a todas elas os justos tributos da minha admiração: esta atriz cativou-me pela sua rara e esquisita sensibilidade que a tornava por agradecida e terna incapaz de resistir à flama de quem em honra de sua beleza ia confessar-se, mostrar-se rendido a seus pés; aquela deu-me o mais sublime exemplo do amor do próximo; porque abrasada nesse religioso fogo de caridade, não sabia fazer exceção no seu amor do próximo, e amava todos os próximos, como a si mesma; aquela outra, vivo e surpreendente símbolo de humildade evangélica, condescendente e submissa dobrava-se à vontade alheia, e era a escrava de cem senhores.

Declaro que tive medo de apaixonar-me por todas essas generosas e santas criaturas, em cujos olhos ardentes, feiticeiros sorrisos, requebros de corpo, e estudadas posições, descobri somente a ambição inocentíssima de agradar, o impulso da sensibilidade a mais terna, o amor do próximo ou dos próximos o mais profundo, e a humildade cristã da santa moça submissa e pronta a ser escrava de novos senhores.

Evidentemente havia para o noivo da prima Anica verdadeiro perigo na observação repetida daquelas moças tão resplendentes de inocência e de candura; delas pois desviei a minha luneta mágica, e com o coração ainda palpitante de ternura, de enlevo, quase de entusiasmo, fixei-a no rosto de uma jovem que estava sentada perto de mim.

Cabelos castanhos e ondeantes, rosto oval e de cor pálida com uns longos roxos nas faces, olhos pretos e vivos, dentes brancos iguais e em continuo rir de continuo à mostra, o peito e os braços nus e os seios e as axilas por metade fora do vestido, mãos de vadia, cintura fina, os pés calçando botinas à Benoiton e atirados em exposição, palavra solta e louca, modos descomedidos, mobilidade febril, provocação e petulância, -eis a jovem em quem eu fixara a minha luneta mágica e que não podia contar mais de vinte anos de idade.

Era pois moça e bonita; mas trazia no olhar, no falar, no rir, no proceder o letreiro da devassidão; causou-me dolorosa impressão; tive dó daquela mocidade pervertida.

Entre mim e ela estava sentado um velho de sessenta anos pelo menos, que todo impertigado a miúdo lhe falava ao ouvido, como o fazia também pelo outro lado um mancebo que evidentemente devia ser mais atendido.

A rapariga mostrava-se alegre e folgazona, e sem dúvida ria-se do velho, quando escutava os segredos do moço.

Animei-me a perguntar em voz baixa ao velho:

-Quem é esta... mulher?

-Não a conhece?... disse-me ele admirado.

-Confesso que não.

-Pois não conhece a Esmeralda?

-Esmeralda? E o seu nome de batismo?

-Quase todas as raparigas da classe desta adotam ou recebem o seu nome de guerra; a moça, que está vendo a meu lado, chama-se Esmeralda pela paixão e preferência que lhe merecem as pedras desse nome: observe o adereço que ela traz ao pescoço.

-Com efeito é riquíssimo.

-Sei bem o que ele vale: custou-me os olhos da cara.

Voltei-me com repugnância, desviando outra vez a minha luneta mágica da figura daquela mulher desgraçada, e do rosto do velho ridículo e parvo.

Pouco depois mudei de lugar e encontrei-me com aquele mancebo meu vizinho que prazenteiro, gracejador e sempre jovial, tão indigno da minha amizade me parecera julgado pela visão do mal.

Já desconfiado dessa visão caluniadora, observei-o primeiro a alguma distância por mais de três minutos, e reconheci a perfídia da minha. primeira luneta: o meu jovem amigo era o caráter mais igual, mais nobre e distinto que se podia imaginar.

Fui ter com ele, que me festejou com expansão de verdadeira alegria.

-No Alcazar!!! exclamou enfim; tu no Alcazar!...

-E verdade; começo a viver.

-Estás apenas meio perdido; mas eu vou te perder de todo.

-Como?

-Do Alcazar a uma ceia infernal é só um pulo: queres pular?

-Não entendo.

-Convido-te para cear com uma dúzia de demônios de ambos os sexos.

-Uma orgia...

-Pouco mais ou menos: mademoiselle tem medo de se comprometer?

Corei da zombaria, e respondi:

-Aceito, se es tu que dás a ceia.

-Nessa não caia eu: quem paga a ceia é o tolo.

-E quem é o tolo?

-É o paio.

-E quem é o paio?

-É um animal que não conheces: é o velho que a Esmeralda depena.

-Conheço-o já; mas com que direito me convidas?

-O pateta do velho conta comigo e com um primo, de quem lhe falei, e que me faltou à palavra por causa de uma sobrinha, que celebra esta noite um batizado de bonecas: ficarás sendo meu primo durante a ceia, ou és mais tolo que o velho.

-Aceito o convite.

-Ainda bem, meu primo; principias a ter juízo.

- VIII -

A meia-noite o velho, dez alegres moças e outros tantos mancebos rodeavam esplêndida mesa.

Ridículo Baco de cabelos brancos, o velho provocava a companhia ao ruído, as cantigas livres, as libações freqüentes, a desenvoltura, a orgia enfim.

Mais bela e petulante que todas as suas companheiras, Esmeralda era digna rainha daquela festa, que me inspirava espanto e horror.

Esmeralda, impudica e doida, desnudava encantos que o recato esconde cuidadoso, deixando-os apenas adivinhar nas palpitações do peito que arfa. Ela tinha esvaziado as taças cheias de seis vinhos diversos, e pedia ainda champanha e conhaque!

Mísera bacante precisaria em breve que a levassem quase carregada para dormir em casa.

A bela moça embebedava-se!

Dentro em pouco faltava o juízo a quase todos: mulheres e homens se achavam aviltados, castigados pelos venenos da orgia e da depravação dos costumes.

Dois únicos dos convivas resistiam ao contágio fatal, o meu amigo, que bebera vinho com água, e eu que bebera água com vinho.

-Primo, disse-me ele; estuda esta lição, e aproveita-a.

-Tens razão, respondi; é tempo de fazê-lo: devo e quero apreciar toda a ignomínia, e toda a imensa vergonha dos nossos sócios de orgia.

E fixei a minha luneta mágica sobre a Esmeralda embriagada.

A principio vi, o que tinha já apreciado, seus dotes físicos, sua gentileza que o vinho e a petulância apenas anuviavam; Esmeralda era ainda bonita apesar da embriaguez e da ignomínia; sem dúvida que o era, pois que eu o reconhecia, embora o sentimento que ela me inspirava fosse o da repulsão e do tédio, que nos causa a vista de um animal imundo.

Passaram porém os três minutos e começou a visão do bem.

Li com surpresa e enternecimento na alma da embriagada a história do seu passado e dos tormentos de sua vida.

Menina de coração angélico, mimoso tipo de sensibilidade, fora muito cedo vitima do crime; era pobre e órfã e uma parenta corrompida preparou-lhe sinistro sono, e vendeu-lhe a um monstro a inocência e a pureza; riram-se de suas lágrimas e a arrastaram para o vício; mas em breve despertando no meio da perversão, Esmeralda teve remorsos, detestou sua vida, foi mil vezes desgraçada; desejou amar e ser amada, como ama e é amada a senhora honesta; era porém tarde: o mundo já tinha marcado a sua fronte com o sinal negro da reprovação perpétua. Então principiou para a mísera a vida do frenesi a que o desespero preside.

Na convicção tremenda do seu aviltamento embriaga-se todos os dias para esquecer a sua miséria moral, e para matar-se; sabe e sente que o conhaque queima-lhe as entranhas e lhe abrevia a vida; pelo sabor aborrece o conhaque, pelos seus efeitos adora-o; beberia fogo vivo, se o fogo vivo se bebesse.

O seu rir contínuo é o delírio da dor, a antítese das torturas do coração em convulsões dos lábios que fingem alegria.

Ninguém a despreza tanto como ela mesma se despreza, porque na pureza dos seus sentimentos e de sua sensibilidade adora a virtude, compreende a sublimidade do amor honesto, e se reconhece infame pela infâmia do vício.

Quando está só em casa, e vê passar uma jovem com o vestido branco e a virginal coroa de noiva no carro que a conduz à igreja, Esmeralda se ajoelha, chora, e reza; chorando por si, e orando pela noiva.

Fatal arruinadora dos ricos, que se tornam seus apaixonados, parece nadar em mar de ouro, e nunca lhe sobra o dinheiro; porque ela alimenta e veste quantos pobres a procuram; ou quantos pobres conhece; mas tem fama de dissipadora e ninguém a chama caridosa.

Nos desvarios precipites da sua vida Esmeralda ganhou créditos de petulante, interesseira, vil, desordenada, infrene e louca, incapaz de uma afeição, não suscetível de amar, demônio de gelo, demônio de voracidade áurea, demônio de corrupção; ela o sabe e ri com o seu rir que é mais amargo do que o pranto mais doloroso.

Que falsa apreciação! Esmeralda é flagelada pelo seu pudor inato de mulher que nasceu para ser santa; não tem ordem na vida maternal, porque abomina o cálculo egoísta a ponto de esquecer os cuidados do futuro; o que chamam sua loucura é como um castigo que ela se impõe na terra; sensível, dedicada, extremosa, amando tão ardentemente a virtude, que nem concebe escusa, desculpa, ou perdão para sua vida manchada e ignominiosa, tem uma coração que é um abismo de amor exaltado e sublime.

Se fosse amada, esposa de um homem a quem amasse, seria tipo de fidelidade, heroína pela abnegação, mártir pela paciência, anjo pela santidade dos sentimentos e da vida.

Contemplando essa vítima do mundo, e dos homens, essa embriagada adorável, essa virtude cheia de manchas, esse querubim profanado, essa mulher formosa de corpo aviltado e alma pura, esse coração todo amor, essa Madalena que se torturava no vício, que se atribulava na orgia, que se degradava na embriaguez, que antes da morte e com severa consciência condenava o corpo à corrupção, à podridão, as extremas e esquálidas misérias da terra, e tinha a alma arrependida já metade no céu, tive ímpetos de correr a beijar-lhe os pés, e de bradar-lhe: «acorda! surge do sono da embriaguez! eu te compreendo e te amo, eu te regenero, dando-te o meu nome!»

Creio que dominado pelos encantos físicos e morais de Esmeralda, eu teria ido além de treze minutos de contemplação, se o meu primo de convenção não me tivesse tocado no braço, fazendo assim cair a luneta mágica que eu fixara sobre a infeliz moça.

-Não olhes tanto para a Esmeralda, disse-me ele; corres o risco de ficar verde.

Ou por acaso, ou porque ouvisse a observação do meu suposto primo, a Esmeralda cravou em meu rosto um olhar flamejante, e logo depois empunhando o corpo, bradou:

-Conhaque! conhaque! conhaque!

Pareceu-me então que a ouvia pedir veneno para se ir matando, levantei-me de súbito, e atirei-me de encontro ao criado que correra a deitar-lhe conhaque no copo; arrebatei-lhe da mão a garrafa e exclamei:

-Basta! a senhora não deve tomar mais conhaque!

-Pois então... vou-me embora... balbuciou a Esmeralda, e no meio de gerais gargalhadas, saiu, cambaleando, apoiada no braço do velho.

- IX -

Dormi mal o resto da noite; porque despertei por vezes, sonhando com a prima Anica, e com a Esmeralda, e no dia seguinte encontrei as imagens de ambas, felicitando a minha alma.

Cumpre-me dizer que senti por isso mesmo o primeiro inconveniente da visão do bem: eu amava igualmente as duas moças, e hesitava sobre qual delas merecia preferência.

Anica era pura; Esmeralda manchada pelo vicio mais torpe.

Anica era sóbria como todas as senhoras de educação e apenas em jantar cerimonioso molhava os lábios com alguma. gotas de champanha; Esmeralda era afeita à ignomínia; da embriaguez.

Anica era objeto do respeito de todos, e somente em culto à sua virtude, e às delicadezas devidas ao seu sexo, alguns na sociedade lhe beijavam reverentemente a mão; Esmeralda era o escárnio de muitos, e o insulto vivo da moral pública.

Mas eu, melhor que todos, conhecera Esmeralda pelas revelações da visão do bem, e não podia deixar de fazer-lhe justiça.

Anica era feliz, tivera mãe e parentes a velar por ela, educação a aprimorar suas virtudes; Esmeralda era a desgraçada mártir sacrificada por infame parenta; a primeira tivera todos, a segunda ninguém por si.

E além disso a Esmeralda conservava o melindre do sentimento na depravação da vida; devorada pelos remorsos, tendo aversão ao vício que a aviltava, arrojava-se a ele, como a um castigo, e procurava abreviar seus dias com o veneno da embriaguez.

Não era Madalena arrependida, mas era Madalena delirante.

Se aparecesse um homem que amando Esmeralda, e sendo por ela amado, lhe dissesse: «eu te amo! eu te dou o meu nome e te regenero!», essa mulher se agarraria a esse homem, como a um anjo de salvação, e sua esposa dedicada, extremosa e fiel o faria feliz.

O marido de Anica será por força ditoso; mas desfrutador egoísta de uma dita, que toda lhe há de vir da esposa; o marido de Esmeralda porá fim a um grande infortúnio, cobrirá com os véus do seu nome uma nudez reprovada; fará uma obra de caridade, de amor santo, que o exaltará aos olhos de Deus, que purificou a Madalena arrependida.

Em uma palavra o marido de Anica poderá ser mais ditoso; mas o de Esmeralda será mais generoso.

E todavia eu hesitava sempre...

Às vezes a minha razão me dizia que todas as mulheres pervertidas têm sempre de prevenção no espírito a história de uma perversa sedução, de martírios cruéis, de desespero, de arrependimento sem proveito, de desejo de morte, e de exemplar dedicação; suas virtudes raras, e seus sentimentos sublimes, brilhariam sem dúvida com o mais vivo fulgor se achassem maridos que as regenerassem reservando-se elas entretanto o direito de serem no futuro e depois de casadas dignas do seu ignominioso passado.

A reflexão também me diz que a mocidade inexperiente e generosa tem na sua inexperiência e generosidade uma espécie de luneta mágica com a visão do bem, que faz tomar a nuvem por Juno, e acreditar facilmente em tudo quanto lhe cantam aquelas pérfidas sereias.

A razão enfim me está clamando, que o verdadeiro arrependimento exclui a idéia da persistência no pecado, e que a prática do vício em nome do desespero, da embriaguez, em nome do desejo da morte, e do esquecimento da infâmia no sono do álcool são pretextos rudes, sofismas repugnantes das mulheres depravadas.

Se é assim realmente a visão do bem, isto é, o modo de ver e de aceitar as coisas, de apreciar os fatos, e de julgar os homens, o homem e a mulher sempre pelo lado bom, sempre pelas regras da desculpa, do perdão, do bem, do otimismo na humanidade, é um grande e enorme perigo tão fatal em suas conseqüências, como a visão do mal que é o extremo oposto.

Estas considerações começavam a perturbar-me, a incomodar-me; eu porem não podia, sem ofender a minha consciência, negar-me a confessar, a reconhecer, a proclamar o que tinha visto pela visão do bem, contemplando a Esmeralda com a minha luneta mágica por mais de três minutos.

Evidentemente eu seria indigno, malvado, se não declarasse, se não estivesse pronto a declarar a todos, e à face do mundo, que a Esmeralda é uma pobre mártir, manchada em sua vida; mas santa pelo sentimento, anjo pelo coração.

Portanto a visão do bem fazia-me adorar a Esmeralda, como eu adorava a prima Anica, e hesitar sobre a escolha, sobre a preferência entre uma senhora honesta e uma mulher perdida e petulante.

A razão fria lutava com o sentimento em fogo, a reflexão com a generosidade, o juízo com o coração.

Muitas vezes eu tinha vergonha dessa minha hesitação entre a pureza e o último aviltamento...

Mas hesitava sempre...

A luta era um tormento, e a visão do bem começava pois a me fazer mal.

- X -

Mostrei-me pensativo e menos alegre ao almoço; Anica reparou nisso, e perguntou-me docemente qual podia ser a causa da minha melancolia.

Disse-lhe que tinha dormido mal, porque levara toda a noite a sonhar com ela; a resposta a fez sorrir, e livrou-me de mais explicações.

Nada é mais agradável à mulher do que o culto, e a turificação à sua vaidade.

Logo depois saí para visitar o meu amigo Reis, e dar-lhe conta da força, e do poder maravilhoso da minha luneta mágica.

Uma vez por todas fica declarado que o público da capital, como os meus parentes o tinham feito, deixou-me com a mais completa e absoluta tolerância ou indiferença no gozo pacífico e pleno da minha nova luneta mágica, conforme o armênio o havia garantido.

Ao chegar à casa do meu amigo Reis, um homem, que com ele conversava no armazém, voltou imediatamente as costas ao ver-me entrar, dizendo-lhe em voz baixa algumas palavras.

O Reis veio logo receber-me com a sua habitual e natural amabilidade.

Sem que rogado me fizesse, confiei ao excelente amigo tudo quanto se passara no dia antecedente em relação à minha nova luneta mágica.

-E não haverá nisso ainda muita influência de imaginação? perguntou-me o Reis sorrindo-se.

-Sempre incrédulo! respondi-lhe eu; não há meio de convencer a um homem que não quer ser convencido.

-Lembra-se da visão do mal?

-Muito.

-Que me diz dessa visão agora?

-Que era caluniadora e perversa.

-E por que não será traidora e falsa a visão do bem?

-Suponhamos que o seja; ainda assim a magia de que duvida é uma realidade, embora seja maléfica.

-Proponho-lhe uma experiência...

-Aceito-a.

-Vê aquele homem que nos dá as costas?

-Vejo-o

-Vou esconder-lhe o rosto com um lenço e o senhor que já o julgou pela visão do mal o julgará pela visão do bem e me dirá quem é ele.

-Estou pronto: não sei se poderei dizer quem ele seja, porque ignoro se a luneta mágica estende a tanto o seu poder; mas tenho a certeza de ver, de apreciar e de patentear o seu caráter, e as suas qualidades boas ou más.

-Experimentemos pois, disse o Reis.

E logo foi cobrir com um lenço de seda roxo o rosto do seu amigo ou freguês, que assim perfeitamente seguro de não ser conhecido, voltou-se para mim, e ficou firme, como se fosse uma estátua.

A um lado entre mim e o desconhecido o Reis nos observava risonho.

Fixei a minha luneta, e principei logo a falar, descrevendo o que via.

-Rosto comprido, magro, um pouco moreno, cabelos que começam a esbranquecer... este homem tem mais de cinqüenta anos de idade...

E seguidamente fiz o retrato do desconhecido.

O Reis ouvia-me admirado.

No fim de três minutos de observação senti que a visão do bem abria ao meu olhar a alma do desconhecido:

-Mal julgado por alguns; mas nobilíssimo caráter! este homem é procurador de causas no foro, e muitas vezes sacrifica seus interesses pessoais, servindo a ambos os litigantes contrários no empenho da conciliação e da harmonia; com o seu trabalho honrado e sábia economia tem adquirido alguma riqueza, e sabe acudir às circunstâncias difíceis dos seus amigos, emprestando-lhes dinheiro a juros; os velhacos o chamam por isso usurário; em seu lar doméstico pede à esposa e à filha diligencia, zelo e labor para fundamento da segurança do futuro; ele trabalha, a mulher trabalha, a filha trabalha, e a riqueza da família aumenta, e com o trabalho a moralidade do lar doméstico aprofunda raízes. E um homem útil à sociedade; severo em seus costumes, austero na educação da filha, na direção da esposa, no govêrno da casa, é um modelo de chefe de família, um exemplar, que por muitos pais e maridos deve ser copiado. Este homem chama-se... ah!...

-Que é isto? perguntou-me o Reis, notando a minha súbita surpresa.

Este homem chama-se Nunes... perdão meu velho e bom amigo! exclamei avançando dois passos para ele; perdão!... A visão do mal me tinha pintado o senhor com horríveis cores! perdão! perdoe-me! a calúnia não foi minha, foi da visão do mal que era aleivosa e malvada!

Vendo-se reconhecido, o velho Nunes tirou o lenço que lhe cobria o rosto, e deu-me apertado abraço.

-Perdoa-me? perguntei-lhe.

-Com uma condição...

-Qual?

-Há de remir a sua dívida: hoje mesmo jantará comigo.

-Com o maior prazer.

-Então também me perdoa? perguntou-me o velho Nunes por sua vez.

-O que, meu amigo?

-O mal que involuntariamente lhe causei; confesso que confiei a algumas pessoas o segredo da sua primeira luneta mágica; mas não fui eu quem inventou as falsidades que o comprometeram na opinião do povo.

-Tudo isso está passado...

-Ainda bem!

-Amigo Reis, eu quero agradecer ao armênio...

-Vou chamá-lo já, ou antes, venham comigo.

Seguimos o Reis, e quando chegávamos à porta do misterioso gabinete, esta se abriu, e o armênio apareceu, como se nos estivesse esperando.

-Para que me incomoda? disse-me ele rudemente; o dia em que precisará de mim, não chegou ainda. Deixe-me, vá gozar a visão do bem.

E trancou-nos a porta.

O velho Nunes observou, sorrindo:

-Positivamente a magia não tem escola de boa educação.

-Não, disse eu com tristeza: o armênio está ressentido da minha desobediência; ele tinha-me aconselhado que me abstivesse da visão do bem.

-Enganas-te, criança! respondeu de dentro do gabinete a voz do mágico: o que aconteceu devia acontecer.

- XI -

Voltamos ao armazém e nos sentamos para conversar.

Eu estava outra vez de bom humor; a resposta do armênio tinha banido minha súbita tristeza.

-Então, meu amigo Reis?

-Não compreendo isto; mas em todo caso estou firmemente decidido a resistir ao armênio, e a não consentir, a não admitir no meu armazém instrumentos mágicos.

-E se os fregueses o exigirem?

-Negarei a realidade do que não compreendo.

-E se amanhã aparecer em todas as gazetas diárias da capital a notícia da minha nova luneta mágica?

-Confio na sua discrição.

-Pois não confie; fui eu que redigi a notícia.

-Oh! que fez? exclamou o Reis.

Depois serenou logo e tornou:

-Sofrerei o que já sofri; mas desta vez lançarei todas as culpas sobre o armênio que não fala e não aparece a pessoa alguma.

-Que teima!

-Não quero no meu armazém instrumento algum que não seja obra da arte e da ciência humana. Eu já teria despedido este maldito armênio, se ele não fosse o artista mais hábil consumado, e dedicado nas minhas oficinas; tudo que sai das suas mãos, do seu trabalho, pode-se dizer perfeito; mas reputo a sua pretendida ou real magia perigosa à sociedade, ofensiva da religião, capaz até de perturbar a ordem pública.

O velho Nunes desatou a rir.

-De que ri assim? perguntou-lhe o Reis.

-Da sua inocência, respondeu-lhe o velho; vivemos na terra, no país das artes mágicas, e o senhor se arreceia de introduzir nela obras de magia! Meu amigo, o senhor está na cidade e não vê as casas.

-Como assim?

-Creia que há magias a cada canto; olhe: como é que empregados públicos, e homens de todos os misteres e condições vivem, ganhando cinco, e gastando cinqüenta em cada ano? Só por magia. Como é que um farroupilha há dois ou três anos se ostenta de súbito milionário? Só por magia. Como é que o Brasil festeja todos os anos o aniversário da sua constituição libérrima e vive, sem exceção de um dia, fora da lei constitucional e em plena ditadura, ou sob a vontade arbitrária, absoluta de quem está de cima? Só por magia. Acredite-me: há arte mágica na vida, na riqueza, no procedimento e na fortuna de muitos; há arte mágica nas misérias da administração, nas mentiras constitucionais do governo, nas zombarias feitas à opinião, no impune desprezo do povo, e até na paciência ilimitada dos que sofrem, há arte mágica...

-Basta, Sr. Nunes; no meu armazém se conversa sobre tudo, menos somente sobre dois assuntos.

-Quais?

-A vida alheia, e a política do estado.

-Pois fiquemos no que disse. Que horas são?

O Reis consultou o relógio:

-Duas e meia.

-É tempo; em nossa casa janta-se precisamente as três horas da tarde: a alegria seria completa, se o amigo Reis se sujeitasse a fazer hoje penitência conosco.

O Reis esquivou-se cortesmente ao convite, declarando que devia sua presença a um hóspede.

O velho Nunes e eu saímos.

- XII -

As três horas da tarde em ponto serviu-se o jantar na casa do velho Nunes.

Éramos quatro à mesa, ele e eu, sua mulher, a Sra. D. Eduvirges, e sua filha, D. Ana, a quem os pais chamavam familiarmente Nicota. Honrando com o mais bem merecido apetite o simples jantar de família que aliás era variado, excelente, e digno da apimentada cozinha brasileira, não me descuidei de fixar a minha luneta mágica sobre as duas senhoras.

D. Eduvirges ainda bonita, era o tipo da matrona do nosso país; boa e afável, mas recatada e grave, media suas palavras, governava seus olhos, sabia ser a rainha da casa, porém obediente ao rei por teoria de educação e prática da vida. Virtuosa sem violência, honesta sem esforços, tranqüila e plácida, feliz em seu retiro doméstico era como harmonia musical prolongada, monótona; mas em todo caso harmonia.

Nicota contava vinte e três anos, era morena, bela, agradável, jubilosa, e tinha uns olhos negros, que me pareceram crateras de lavas apaixonadas. Eu nunca tinha visto olhos como esses, e, deve-se dizer, nos olhos e no sorrir é que está a flama da vida de um rosto de mulher. A visão do bem tornou-me patentes a alma e o coração de Nicota. Inocente, suave, meiga, nascida para obediência de seu pai e do esposo, que a amasse, educada no trabalho que moraliza, na economia que não dissipa; mas não impõe privações, modesta e religiosa, ingênua e simples, engraçada e espirituosa sem saber que o é, poética no falar sem afetação, com um olhar que é fogo, com uma voz que é música, com um sorrir que é feitiço, com sentimentos em que a candideza se identifica com o amor, Nicota fez-me esquecer durante o jantar a prima Anica e a Esmeralda.

Levantei-me da mesa do jantar embriagado, completamente embriagado não de vinho; mas de amor.

Se eu não tivesse contemplado com a minha luneta mágica Anica em quase todo o dia, a Esmeralda na noite que se haviam passado, creio que no fim do jantar, que o velho Nunes me dera, me curvaria ante esse amigo, pedindo-lhe a filha em casamento.

Em meu coração sensível já lutavam não duas, mas três imagens de moças queridas, a quem eu amava com paixão igual, e sem preferência possível.

Eram três flamas ardentíssimas a consumir-me, a devorar-me a alma perdida por qualquer dessas três criaturas encantadoras e privilegiadas.

Eu amava Anica...

Amava Esmeralda...

Amava Nicota...

A preferência, a escolha entre elas era impossível...

Eu sofria muito...

- XIII -

Um mês inteiro correu para mim sempre em gozos da visão do bem em todos e em toda parte.

Mas, eu o confesso, a própria visão do bem não é isenta de inconvenientes, e a cada dia que passava, alguma nova contrariedade vinha perturbar a doce vida que eu vivia.

Desejando muito casar-me, ter por companheira e sócia na fortuna amiga ou adversa, nos risos e no pranto, uma mulher bela e amável, eu sentia uma barreira indestrutível opondo-se, tornando impraticável a realização desse desejo.

Do mesmo modo que me julgo com o direito de exigir da mulher que me aceitasse por esposo fidelidade absoluta, coração meu só, amor sem fingimento, assim também quero respeitar iguais direitos naquela que me aceitar por marido, nem admito que seja pura e abençoada pelo céu a minha união com a noiva que eu levar ao altar, se ela tiver um pensamento para outro homem, e se eu tiver um pensamento amoroso para outra mulher.

Ora o que me está acontecendo é que, a pesar meu, eu amo Anica, Esmeralda, Nicota, e amo ainda com o mesmo ardor mais trinta jovens senhoras, que tenho estudado com a visão do bem!

Dizem que com uma paixão mata-se outra: é engano! Eu já me abraso em trinta e três paixões, e creio que irei além.

E o que mais me penaliza, não é o meu tormento, este doce veneno trinta e três vezes multiplicado, e a dor, a desconsolação ou a falsa esperança dessas trinta e três vitimas da minha sensibilidade esquisita; pois que pela visão do bem tenho reconhecido que cada uma delas também me ama, que todas elas também estão apaixonadas por mim!

Urgido, atraído por tantos amores, vivo como às tontas a correr pela cidade para pagar tributos de amor e adoração; mas se em toda parte tenho enlevos, tenho em toda parte saudades...

Neste mês já fui doze vezes a casa de Esmeralda, que me recebe sempre risonha e se despede de mim com uns ares que aos três primeiros minutos de fixidade da minha luneta me parecem de inexplicável admiração, e que logo depois a visão do bem me explica, que são de profunda melancolia, e de pungentes remorsos. O certo é que nas minhas doze visitas, o meu amor tem sido exclusivamente platônico, e a conversação que alimento sempre cheia de lições de virtude, e de suaves esperanças de regeneração moral pelo sincero e completo arrependimento do passado.

Esmeralda com a sua reputação de interesseira, e arruinadora de quantos a freqüentam, ainda não me impôs, nem sequer me pediu a mais insignificante despesa; quis uma vez fazer-lhe presente de uma jóia, e ela, coitadinha! respondeu-me quase chorando.

-Não lha mereço; eu sou vil, e indigna da sua bondade; se lhe é grato obsequiar-me, assine alguma quantia nesta subscrição destinada a salvar da miséria uma numerosa família.

E apresentou-me um papel, no qual achei muitos nomes, e alguns de pessoas consideráveis, que tinham contribuído com seus donativos.

Assinei e dei o dobro da maior quantia que vi subscrita.

Nobre e caridosa Esmeralda! as pobres contavam tanto com ela, que até hoje tenho-lhe encontrado na mesa da sala mais oito subscrições para obras de misericórdia, para as quais também contribuí, como pude, a despeito da resistência, e dos protestos dessa moça tão mal julgada, dessa Madalena suave, que, eu o espero, o arrependimento há de purificar.

As subscrições têm me custado pouco mais de um conto de réis, de que fiz entrega a Esmeralda, e estou perfeitamente seguro de que ela não desviou um real do destino a que se dedicavam as quantias assinadas.

A Esmeralda é o gênio do bem. Um amigo, sem dúvida de caráter suspeitoso, procurou fazer-me acreditar que a infeliz rapariga zombava de mim, explorava a minha inexperiência, e que as subscrições eram falsas, e não passavam de velhacos e rudes laços armados ao meu dinheiro. Respondi a este aviso com o sorrir de quem abe o que faz, e como procede. Que me importam suspeitas vãs?... A visão do bem me dá certeza de que Esmeralda preferiria morrer de fome a tomar para compra de seu pão a menor das quantias dadas pelos subscritores beneficentes.

Juro que o meu dinheiro foi religiosamente empregado em socorro da miséria e da orfandade.