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- XIV -

Há oito dias que voltei pela décima vez à casa do velho Nunes, meu bom amigo, e ditoso pai da Nicota.

Eram onze horas da manhã, o velho estava fora, tratando dos seus negócios; mas a esposa e a filha me receberam com os corações abertos.

A nossa conversação para mim muito agradável prolongara-se até uma hora da tarde, quando entrou o velho Nunes apressado, e evidentemente dominado por dolorosa comoção. Cumprimentou-me, falou em segredo a D. Eduvirges, e saiu de novo sem despedir-se, e muito aflito.

D. Eduvirges ficara com os olhos rasos de lágrimas, e Nicota olhava para a mãe com expressão de tanta ternura que também quase me fez chorar.

-Que há? perguntei; um amigo tem o direito de saber o motivo da aflição da família, que verdadeiramente estima; sobreveio algum infortúnio? Qual é?

-Irremediável! exclamou D. Eduvirges.

-A morte de algum parente?

-Não.

-Pois irremediável, minha senhora, só conheço a morte.

-Oh! é um depósito de dez contos de réis, que meu marido deve e não pode entregar hoje.

-Hoje?

-E sabe o que ele me disse? Disse-me que é a casa de correção que o espera, e cujas portas vão se fechar sobre ele!... em poucos dias Nunes terá esse dinheiro e muito mais; hoje porém bateu já debalde a todas as portas!... é a desonra que o espera, e que o vai matar!...

Nicota desfazia-se em pranto e soluços.

Imediatamente o velho Nunes voltou de novo pálido e desfigurado, e após ele um homem, e mais dois, que exigiam a entrega do depósito...

A dor da família foi imensa; no meio porém daquela dor de esposa e de filha, e sobretudo, contemplando as lágrimas da bela Nicota, tive, gozei suavíssima prazer.

Eu nem sabia que gozava tanto crédito no Rio de Janeiro; bastaram porém algumas palavras pronunciadas por mim para transformar toda aquela tempestade rasgada em perfeita bonança.

Para resumir a história: assinei como sacador e endossante uma letra de dez contos de réis que devia vencer-se no prazo de trinta dias.

O velho Nunes jurou-me, sem que eu lhe pedisse juramento, que antes de quinze dias teria ele pago essa divida, que então se tornara em dobro dívida de honra para sua consciência.

O bom amigo abraçou-me; D. Eduvirges me ofereceu a mão que eu beijei respeitosamente, e Nicota me apresentou a fronte cândida, na qual toquei com a ponta dos meus lábios.

Tanta gratidão por duas assinaturas! tanto reconhecimento pelo saque e pelo endosso de uma letra, que o velho Nunes pagará em quinze dias!

Que família de anjos!

Eu nunca me senti tão feliz, como nesse dia.

Fiquei para jantar com aquela boa e santa gente.

A mesa do jantar bebi vinho no mesmo copo em que Nicota, sentada a um lado, apenas molhara os lábios; foi ela que trocou os nossos cálices, e seus pais não viram essa travessura, ou meiguice de moça inocente.

Como achei saboroso e excelente o vinho! pareceu-me sentir nele a delícia de um beijo de Nicota.

Bebi somente um cálice de vinho; aquele que Nicota divinizara com o contato da sua boca mimosa.

Se eu bebesse mais, ou de outro vinho, teria sido sacrílego.

-Sai da casa do velho Nunes, como um rei sai do templo, onde acaba de celebrar-se o ato da sua sagração.

- XV -

Graças a intervenção de pessoa competente, foi-me concedido, a poucos dias, o visitar a Casa de Correção: vi e apreciei tudo, e tudo ali me pareceu levado ao último apuro da perfeição.

O sistema administrativo do estabelecimento, a secretaria e livros de escrituração, as obras que se faziam, as disposições internas e até o local da casa, o método penitenciário adotado, a alimentação e tratamento dos presos, o zelo dos empregados enlevaram-me os sentidos.

Eu estava cheio de admiração, vendo e aplaudindo a sabedoria e a solicitude do governo do meu país naquela grande penitenciária, quando me levaram a correr as oficinas onde trabalhavam os condenados.

A princípio contemplei satisfeito o aspecto das oficinas, na excelência das obras que se executavam e sobretudo a importância moral do trabalho, cujo hábito regenerará os criminosos, fazendo de nocivos que eram, homens úteis à sociedade aqueles desgraçados.

Mas logo depois examinando com a minha luneta e pela visão do bem um por um todos os condenados, horrorizei-me da cegueira, da ignorância, ou da perversidade da justiça pública, dos tribunais, e dos juizes.

Será incrível; mas é verdade: não há um só daqueles infelizes condenados que não seja inocente dos crimes que lhes imputam, e todos eles, todos sem exceção, se distinguem por virtudes raras e pela moralidade mais exemplar!...

Eu estava convulso, irritado, aceso em fúria; veio-me a idéia soltar um brado de revolta, excitar as pobres vitimas à resistência, às armas, e à vingança; lembrei-me porém a tempo dos soldados que guardavam o estabelecimento e fugi das oficinas precipitadamente e bramindo de cólera.

Voltava para casa dominado por pensamentos perigosos, e revolucionários, e desejoso de uma profunda transformação social, que acabasse com os algozes, e salvasse as vítimas; mas de súbito parei: a casualidade me mostrava um grupo de cinco homens, conversando alegremente na rua, onde acabavam de encontrar-se; conheci a todos cinco: três eram desembargadores, e dois eram juízes de direito, portanto presidentes de júri; simples aplicadores da lei, ou fiscalizadores das nulidades, e das regras legais dos processos, eram contudo magistrados, e tendo contribuído para a condenação e tormentos de tantos inocentes, os monstros ainda podiam conversar com alegria!

Fitei sobre eles a luneta mágica, estudando-os um por um para inteirar-me de todos os instintos ferozes ocultos em seus corações de tigres...

E cinco vezes caí das nuvens e fiquei adoidado na terra...

Todos esses cinco magistrados são sábios, íntegros, justiceiros, escrupulosos e até aquele momento nenhum deles tinha jamais contribuído para uma só condenação injusta nem lavrado sentença nem lado o mais simples despacho que não fossem inspirados pela sabedoria, e baseados na lei.

A minha confusão não pode ser maior: os condenados eram inocentes, os condenadores tinham sentenciado com acerto; a contradição tornara-se pois evidente!

Como explicar a contradição?

Uma de duas:

Ou provas fortíssimas, porém de falsidade infelizmente não conhecida, tinham, condenando os réus, justificado os juizes;

Ou a minha luneta mágica mentia, enganava-me com a visão do bem.

É claro que adotei logo a primeira hipótese.

Cumpre-me dizer, que ainda assim refleti um pouco sobre o caso.

Com efeito a mocidade inexperiente é crédula demais, e deixando-se levar pelas aparências, dando fé às palavras de quem jura, sensibilizando-se diante do infortúnio, fácil em tomar o partido de quem chora e sofre, vendo em todos e em tudo o riso e o bem, porque ela é risonha e boa, deixa-se iludir e erra, presumindo ou julgando encontrar a virtude e a inocência, onde mil vezes só existe vício e crime.

Mas estas reflexões não têm cabimento no caso de que me ocupava; porque eu vi, e reconheci perfeitamente pela minha luneta mágica a inocência e a pureza de todos os condenados da Casa de Correção, embora eu visse e reconhecesse também logo depois o direito e a justiça que determinaram suas condenações.

Confesso que esta aparente contradição confundiu-me; já porém a expliquei sem quebra da confiança que deposito na visão do bem que tenho pela minha luneta mágica.

- XVI -

Um jovem da minha idade, grande coração, e alma cândida, Damião chama-se ele, excelente amigo, com quem me relacionei na casa de Esmeralda, levou-me anteontem por curiosidade minha, e a despeito das suas judiciosas observações, a uma casa, onde jogam o lansquenê três vezes por semana cavalheiros da mais fina educação.

O dono da casa é casado com uma senhora amabilíssima que toca piano como Hertz, e tem uma cunhada na primavera dos anos, que possui surpreendente voz de contralto, canta como a Stoltz, e é faceira, e linda; o seu nome é Hermínia, e não posso esquecê-lo mais; porque ela é a trigésima quarta senhora, por quem me sinto perdido de amor, e que me tributa igual sentimento.

Ninguém me censure por este muçulmanismo de amor platônico: sou escravo da visão do bem e amo sem querer amar.

Aproveitei duas horas deliciosas ouvindo tocar e cantar; todos porém jogavam, Damião mo fez notar, aconselhando-me que saísse ou jogasse.

Compreendi que o dever da cortesia me ordenava entrar no jogo.

Joguei pois e ganhei a principio; mas em breve a fortuna mudou e perdi não só quanto ganhara, como todo dinheiro que na carteira levava.

Consolei-me do prejuízo, observando que o meu amigo Damião fora de todos o que mais lucrara com as minhas perdas, que se elevaram a quinhentos mil-réis.

Quando não tive mais dinheiro para perder, deixei o jogo, e como as senhoras já se haviam recolhido, sai, e saiu comigo um outro jogador infeliz, que deixara aos carteadores do lansquenê o duplo do que me custara a minha curiosidade.

-São gatunos, arranjadores de maço, são refinados ladrões! disse-me ele.

-Para que tal suspeita? respondi; queixemo-nos da fortuna adversa; eu observei e estudei com escrupuloso cuidado todos aqueles jogadores, e posso assegurar que são homens honrados, e que jogaram com exemplar lisura, e nem o meu amigo Damião seria capaz de trazer-me a uma casa que não fosse muito moralizada e honesta.

-Damião?!!! ora é boa! esse é conhecido como trapaceiro e gatuno de profissão.

Coraram-me as faces, e irritado perguntei:

-Em tal caso como se explica a sua condescendência, jogando com semelhante homem?

-Tem razão, tornou-me ele; tem mil vezes razão; mas eles sabem atrair e endoidecer os mancebos inexperientes, como nós, com a paixão do jogo que é fatal, e com os belos olhos dessas duas sereias, que uma toca, outra canta, e ambas servem ao vício.

-Que está dizendo? que calúnia!... duas senhoras pudicas, recatadas!...

O meu companheiro de infelicidade ao jogo desatou estrepitosa gargalhada, e depois exclamou sem baixar a voz:

-O senhor é ainda mais simples do que eu! Tenha cuidado...

-A esposa, e a cunhada...

-Não há esposa, nem cunhada, fique-o sabendo, e não torne mais a esta casa maldita. Essas duas mulheres são também cartas do jogo aladroado, são damas dos baralhos do lansquenê, e ganham sua quota ou porcentagem do barato que rende o jogo em cada noite, além dos lucros das conquistas que fazem, namorando os tolos como eu.

E assim dizendo, o jogador infeliz retirou-se apressado.

Eu também encaminhei-me para a minha casa, meditando sobre a injustiça dos homens.

Aquele jogador irritado pelos prejuízos que tivera, não hesitara em caluniar os preclaríssimos cavalheiros com quem acabava de jogar, e duas jovens senhoras, tipos de delicadeza, de fina educação, e de virtudes sem mancha, conforme eu as vi, amei, e adorei pela visão do bem.

No jogo alguém havia de perder, e alguém havia de ganhar.

Chamar ladrão e gatuno, a quem ganha no jogo, é desconhecer as condições, a fortuna, as eventualidades do jogo.

Deste modo e com juízos tais não há inocência, nem probidade, que escape aos aleives do jogador infeliz.

Ainda bem que eu perdi. Estou livre de qualquer suspeita injuriosa, e nunca mais em minha vida tornarei a jogar.

Mas o que em suma, e em caso algum admito é que os botes da calúnia cheguem até os anjos.

Hermínia e sua irmã são duas flores, principalmente Hermínia é uma flor, um botão de rosa do paraíso.

- XVII -

Ontem achei a prima Anica pensativa e triste; à mesa do almoço olhava-me melancólica, e como que levemente ressentida do meu proceder; por duas vezes pareceram-me os seus olhos nadando em mal contidas lágrimas.

Sai de casa magoado, triste, e convencido de que eu era cruel, que não sabia apreciar o merecimento de Anica.

Compreendi que me era preciso consolá-la: é tão fácil consolar a pobre donzela que ama! Basta um sinal que dê testemunho de lembrança, uma flor que indique amoroso sentimento.

Eu tenho os meus direitos de primo e de convivência de família resolvi-me pois a levar nesse mesmo dia a Anica um mimo delicado e agradável à inocente vaidade de seu sexo.

Impelido por essa idéia dirigi-me à Rua do Ouvidor, e empreguei quatro horas nas casas de joalheiros e de modas a procurar debalde uma jóia ou um enfeite de bom gosto para levar de presente à minha querida prima.

Procurei debalde! Não que deixasse de encontrar algum objeto que me agradasse; mas porque todos quantos vi e examinei com a luneta mágica me agradaram tanto, me pareceram tão igualmente bonitos e mimosos que não me foi possível determinar a preferência.

Ninguém pode conceber que extravagante, pueril, ridícula, mas indeclinável e imperiosa luta se travou em meu espírito! A princípio cheguei a rir-me de mim mesmo, depois irritei-me e por fim desesperei! Se me decidia a comprar uma pulseira, a lembrança de uns brincos que antes examinara destruía-me a decisão; se um cinto com primorosa fivela estava quase a passar para as minhas mãos, a imagem de um faceiro relógio fazia recuar o cinto; entre uma linda caixinha guarda-jóias e um formoso álbum de retratos eu vacilava, como sobre tudo mais e nada decidia, e nada decidi! em uma palavra, quis e não pude preferir, quis e não pude comprar objeto algum!...

Senti-me ridículo, escravo inexplicável, inconcebível da irresolução mais insensata; a minha razão me aconselhava comprar qualquer daqueles objetos que me haviam parecido igualmente bonitos; mas que querem?... não sei explicar o fenômeno; mas foi-me impossível escolher um entre todos, porque a escolha dependia de preferência.

Reconheci então e pela primeira vez que eu era o ludibrio da visão do bem.

Voltei para casa aflito, e aborrecido de mim próprio; porque não pudera trazer um mimo para a prima Anica.

Recolhi-me ao meu quarto e refletindo sobre o que se passara comigo nos últimos dias, experimentei pungente dor; porque comecei a arrecear-me das conseqüências da visão do bem, e a nutrir algumas apreensões sobre o estado das minhas faculdades mentais.

Oh! não há sabedoria de homem que possa comparar-se com a sabedoria do armênio.

O armênio me avisou e não mentiu.

A visão do bem pode fazer mal.

- XVIII -

Ainda um outro mês, e neste o mel mudado em fel, a alegria em tristeza, a bonança em tempestade.

A medida que os dias se iam passando, a visão do bem se tornava mais imponente, absoluta, e desastrada.

Ao levantar-me da cama de manhã, ou tendo a qualquer hora de vestir-me para sair, era-me indispensável deixar de lado a minha luneta; porque se com ela tentava escolher as vestes, achava todas preferíveis, e não sabia mais como vestir-me.

À mesa era-me preciso comer às cegas do que me quisessem servir; porque se com a luneta examinava as diversas iguarias, não sabia mais por qual delas começar, aceso em paixão gulosa por todas elas.

Nos saraus a que eu ia, ou não dançava, ou pedia os meus pares sem consciência, e expondo-me a ridículos pedidos, dirigindo-me às vezes a senhoras, cuja idade não autorizava mais a dança, e isso porque, se eu contemplava as jovens presentes ao baile com a minha luneta, por todas elas me enlevava e me perdia, e a nenhuma era-me possível dirigir-me em primeiro lagar.

É certo que durante três minutos a luneta mágica só me oferecia a visão das aparências, e que eu devera não ir além desse espaço que era sem perigo; desde que porém eu fixava a luneta, uma força sobrenatural, superior a minha vontade, mais forte que a minha reflexão e consciência a grudava, a prendia à órbita até que a visão do bem me transportava, tornando-me escravo da admiração por atributos e dotes sempre fascinadores.

Era o bem mais maléfico que se pode imaginar!

Ou porque o tormento que se está experimentando sempre se afigura mais cruel do que o tormento que já se experimentou e passou, ou porque realmente eu sofria mais do que havia sofrido, a visão do bem chegou a parecer-me pior, mais funesta, do que a visão do mal.

A visão do bem realizava em mim o martírio de Tântalo.

Eu vivia mergulhado no bem e não podia gozar, desfrutar o bem.

Eu estava com os olhos no céu e com o coração preso no inferno.

- XIX -

Um dia tive desejos de possuir um bom cavalo de passeio; falei nisso a Damião, que em breves horas me levou a um negociante que dizia ter os melhores ginetes, e que me apresentou um com as recomendações mais entusiásticas.

Examinei o animal, e achei-o formosíssimo; o negociante asseverou-me e jurou que o cavalo era leão pela soberbia, ovelha pela mansidão, camelo pela paciência, águia pela velocidade.

Comprei caríssimo o singular e maravilhoso cavalo, e mandei-o recolher a uma cocheira.

No dia seguinte quis experimentar o meu ginete, e o dono da cocheira se opôs a isso, informando-me que o pobre animal era cego, e aberto dos peitos.

Revoltei-me contra o abuso de confiança, de que eu fora vítima, e fixando a minha luneta mágica, examinei de novo o cavalo, e reconheci que ele havia cegado de súbito e de súbito adoecido na noite que última passara, conservando ainda assim todos os sublimes dotes, que o vendedor exaltara.

Carreguei com o prejuízo; mas em todo caso honrando o testemunho leal, verdadeiro, consciencioso do negociante de cavalos.

- XX -

Vi-me constantemente cercado de amigos, em quem aplaudi e venerei virtudes exemplares; paguei-lhes jantares e ceias, e a quase todos emprestei dinheiro, que não me restituíram somente porque a fortuna lhes correu adversa.

Paguei flores, coroas e ovações em honra de atrizes dos diversos teatros, todas elas artistas de merecimento surpreendente, e de um proceder ilibado, que só os caluniadores e os perversos punham em dúvida, e recebi em compensação de quantas despesas fiz pela glorificação da arte, sorrisos e votos de eterna gratidão que em seus camarins onde as fui entusiasmado cumprimentar, me renderam essas sublimes intérpretes das sublimes criações dos nossos autores dramáticos, que a minha luneta mágica me mostrou pela visão do bem enriquecidos pelo seu trabalho, altamente honorificados pelo governo, e endeusados pelo povo.

Joguei na praça associando-me com um inglês, que é, pelo que me informou e esclareceu a visão do bem, o homem mais probo do mundo; mas as vacilações e subidas e descidas dos fundos públicos e ações dos bancos e de companhias foram tais, que eu perdi alguns contos de réis e o meu sócio inglês ganhou o dobro do meu prejuízo, o que ainda a minha razão não compreendeu; mas que a visão do bem elucidou perfeitamente, resplendendo os merecidos créditos de probidade e inteireza do nobre súdito de S. M. Britânica.

A visão do bem impeliu-me ainda a muitos outros atos, de que me desvaneço, mas que me custaram caro.

Contribui, subscrevi não sei para quantas liberdades de escravos, obras pias, dotes de donzelas órfãs, instituições filantrópicas, benefícios teatrais em favor de cegos e aleijados, socorros para indigência e nem me lembra que mais; Damião, a Esmeralda e vinte outras amáveis ou respeitáveis pessoas apresentaram-me as subscrições, e receberam-me as quantias com que contribui para todas essas obras de caridade, e estou certo de que o meu dinheiro foi muito bem empregado; porque a visão do bem mo assegura.

Mas na última quinzena deste mês, de que dou conta, têm sobrevindo fatos, e tenho ouvido apreciações terríveis que me provam, que ou fui vitima dos mais pérfidos enganos, e perversos abusos de confiança, ou a calúnia, e a maldade dos homens, que aliás reputo puríssimos, vão além de todos os limites.

- XXI -

Alheio aos negócios e não conhecendo bem o valor do dinheiro; porque em conseqüência da minha dúplice miopia, miopia moral e física, meu irmão, como ia tenho dito por vezes, tomou conta da minha fortuna, e sábiamente a dirigiu, eu, neste último mês e meio despendi talvez sem cuidado nem medida, deixando-me dirigir pela visão do bem.

Deste erro, se foi erro, não tenho mais desculpa na miopia moral; porque desde que recebi as lições da visão do mal o meu espírito se esclareceu e tive consciência de que sabia e podia compreender as coisas e refletir sobre elas; ao menos porém eu acho escusa no abandono da minha educação em matéria de economia. Como não me era possível gastar, não me ensinaram a guardar, e em resultado quando pude ver e desejar, despendi sem me importar com a conta das somas que despendia.

Creio firmemente que tenho despendido muito bem; mas é certo que o mano Américo logo na primeira quinzena do mês último observou-me com doçura que eu estava gastando despropositadamente.

A visão do bem fez-me então ver, que o mano Américo assim me falara somente pelo escrúpulo com que zela a minha fortuna; confesso porém que me senti acanhado, e que experimentei verdadeira dificuldade de pedir mais dinheiro a meu irmão.

Eu já contava tantos e tão excelentes amigos que não hesitei em confiar a um deles os embaraços da minha situação.

-Há recurso fácil, respondeu-me esse fidus Achates, levo-te a um escrupuloso negociante que te emprestará todas as quantias de que precisares.

E com efeito conduziu-me à casa do mais nobre, benéfico, e generoso capitalista, que me, foi emprestando dinheiro a juros de três por cento ao mês, e assinando eu letras garantidoras das dívidas.

O processo me pareceu comodíssimo; porque eu obtinha por meio dele e com extraordinária facilidade tanto dinheiro, quanto me julgava necessário.

A minha vida econômica deslizava-se pois plácida e suavemente, e a visão do bem a abençoava, ensinando-me, que eu empregava santamente, e acertadamente algumas migalhas da minha inesgotável riqueza.

E fui vivendo assim até que em um dia rebentou a primeira bomba de uma girândola de loucuras, conforme a chamou o mano Américo.

Eu fiquei então estupefato.

- XXII -

O caso foi o mais simples de todos os casos, ao menos pelo que me pareceu.

Vencido o prazo da letra aceita pelo velho Nunes, e que eu assinei como endossante e sacador, não tendo ido o aceitante pagá-la, veio pessoa competente exigir de mim o pagamento.

Eu estava em casa e também o mano Américo que tomando o documento e vendo a minha assinatura, encrespou as sobrancelhas, escreveu sem hesitar uma ordem para imediatamente ser paga e remida a letra não sei, nem me importa saber como e por quem.

Ficamos sós.

-Simplício, disse-me o mano Américo de mau humor; acabas de ser vitima de um velhaco.

-Velhaco? Não o creio.

-O Nunes? Todos o conhecem.

-Melhor o conheço eu.

-Como?

-Estudei-o perfeitamente por meio da minha luneta mágica que me dá a visão do bem. O velho Nunes é um tipo de probidade.

Américo olhou-me com a mais triste compaixão e tornou-me:

-Dez contos de reis! Deus permita que não seja esta a primeira bomba de alguma girândola de loucuras.

E tomando o chapéu, saiu apressado e como que abismado em mar de negras apreensões.

Eu estava espantado.

Para mim não havia nada mais natural, do que o velho Nunes não ter conseguido obter dez contos de réis no prazo fatal, e conseqüentemente pagar eu por ele.

Ninguém seria capaz de convencer-me de que o velho Nunes deixaria de pagar-me os dez contos de réis que eu apenas adiantara.

Era questão de tempo, demora de alguns dias ou de breves semanas.

A visão do bem não me enganava: o meu amigo Nunes é rígido como Catão, probo como a probidade mais austera.

E além de tudo isso, não é ele o feliz pai da formosa Nicota?

- XXIII -

Quando meu irmão entrou para jantar, tinha eu a luneta fixada, e quase o desconheci, tão descomposta pela cólera estava a sua fisionomia.

-Quebra essa luneta! exclamou furioso e com voz de trovão.

Ele avançava sobre mim; mas eu escondi no seio a luneta, e a tia Domingas e a prima Anica vieram correndo em meu socorro.

-Que é isto? perguntou a primeira assustada.

-É este doido, este frenético esbanjador, que em menos de dois meses atirou ao meio da rua trinta e dois contos de reis!...

-Misericódia! exclamou a tia Domingas.

-É possível?... disse Anica, perguntando-me.

O mano Américo trêmulo e agitado arrancou do bolso uma dúzia de letras aceitas por mim e que ele acabava de resgatar, pagando o principal e prêmios ao meu honradíssimo banqueiro, e mostrou-as às duas senhoras.

-Eis aí como este louco obtinha dinheiro para desastradamente esbanjar, fazendo avultados empréstimos a quantos velhacos quiseram abusar da sua mania, jogando e deixando-se roubar no jogo, pagando jantares e celas a cem desfrutadores, que riem-se dele, assinando centenas de mil-réis em falsas subscrições para obras pias e, o que é mais, entregando enormes somas a uma mulher desprezável, a cujos pés o idiota se ajoelha, adorando-a, como anjo de caridade!

A tia Domingas e a prima Anica pronunciaram-se violentamente contra mim, e com o mano Américo cantaram-me o mais horroroso terceto.

Conservei-me silencioso e imóvel; mas tremendo pela minha luneta mágica.

-E eu que não vi, que não adivinhei, que não compreendi o que se foi passando e naturalmente devia passar-se nestes dois meses!!! a bomba dos dez contos despertou-me hoje, saí, procurei informações; todos sabem, e somente nós ignorávamos, todos me indicaram o usurário que empresta dinheiro, e o exército de bargantes que depenam este imbecil!... Todos zombam dele, e devem zombar; porque o néscio esbanjou em menos de dois meses a terça parte pelo menos da fortuna que possuía!

Meu irmão tinha-me insultado tanto, que não pude mais conter-me e respondi-lhe:

-Ainda bem que foi da minha fortuna o dinheiro que despendi: já tenho idade bastante para empregar o meu dinheiro, como entendo, e sem pedir licença nem dar contas a alguém.

O tercéto rebentou de novo e uma chuva de impropérios e de maldições caiu sobre mim.

-Idade! exclamou enfim o mano Américo, dominando as outras duas vozes: os néscios, os idiotas não têm idade, e aos idiotas e dissipadores nomeia-se um curador!

-É o que cumpre requerer imediatamente, bradou a tia Domingas.

-O mais acertado é não deixar o primo sair à rua, observou Anica.

-Tudo isso se fará; mas o essencial é quebrarmos-lhe lá a maldita luneta, disse Américo.

-Não, acudiu Anica; trancado em casa pode bem conservar a luneta para ver e apreciar os parentes que o não enganam...

-Nada de concessões! gritou meu irmão.

Eu tive medo; olhei em torno de mim e nada vi; porque estava sem luneta, lembrou-me porém o gabinete do mano Américo, e de improviso corri para ele, tranquei-me por dentro, e com tanta precipitação que dando volta à chave, esta saiu da fechadura, e foi cair a alguns passos longe da porta.

- XXIV -

A borrasca ribombava sempre e incessante na sala e eu era de contínuo fulminado pelos raios de três cóleras em delírio: doestos, injúrias, aleives, pragas, insultuoso ridículo, tudo me lançavam com furor. Três ódios a falar não falariam mais venenosamente, três línguas-punhais a ferir não feririam mais profundamente.

O meu ressentimento dissipou o medo que me abatera o espírito; veio-me a vontade de examinar esses três semblantes desfigurados pelos sentimentos mais vis.

Fixei a minha luneta mágica, olhei pela abertura que deixara a chave caída da fechadura, e estudei os meus odientos parentes: apreciei primeiro olhos e faces que se abrasavam no fogo da ira, lábios convulsos, gesticulações ameaçadoras, e logo depois que pureza de intenções e que santidade de desígnios!... Meu irmão, minha tia, e a prima Anica, se mostraram tais quais realmente são, três querubins, então radiantes de fogo não de cólera, mas de verdadeiro amor, de sublime interesse por mim!... Estavam aflitíssimos e em dolorosa agitação; porque me supunham perdido no erro, e ludibrio de malandrins. O erro era dos meus três parentes e meu o acerto; mas as intenções deles indisputavelmente eram nobres, leais, desinteressadas, angélicas.

No meio porém dessas intenções veneráveis descobri firme e inabalável no ânimo de meu irmão a de quebrar a minha luneta mágica, e embora eu reconhecesse e reconheça a piedade dessa intenção, não pude com ela conformar-me; abençoei meu irmão, minha tia, e a prima Anica; mas tomei a peito salvar a todo transe a minha luneta mágica.

Eu estava vestido decentemente para sair à rua, só me faltava chapéu para a cabeça e porta franca para a retirada.

Com o auxilio da luneta achei no gabinete um chapéu do mano Américo, que me servia muito nas circunstâncias em que me achava, embora estivesse um pouco usado.

Faltava-me a porta para saída sem oposição; mas o gabinete abria uma janela para rua; o caso era grave e exigente; não havia recurso, e havia risco na demora da resolução; há tanta gente que de dia claro e com sol fora se presta a entrar pelas janelas em vez de entrar pelas portas, que não me pareceu anormal nem escandaloso no Brasil sair por onde se entra de ordinário para as mais altas posições do Estado.

Assim pois subi à janela do gabinete, e saltei na rua; ouvi gargalhadas, e não dei atenção a elas; apressei os passos, quase que corri, enfim afastei-me apressado da casa da minha família, como um preso, que se escapa e foge da cadeia.

- XXV -

Quando me achei longe de casa e me supus livre, por algum tempo ao menos, da generosa perseguição da minha família, instintivamente procurei a luneta mágica, e senti inexprimível prazer, tirando-a do seio; em seguida apalpei o bolso do paletó, e consolei-me encontrando nele a carteira, onde eu tinha ainda de reserva alguns centos de mil-réis.

Duplamente satisfeito, experimentei logo uma exigência da minha natureza animal que as recentes emoções haviam feito calar, mas que de novo falava com dobrada força: tive fome, e dirigindo-me a um dos nossos melhores hotéis, tomei sala para dormir, e mandei que me servissem o jantar.

Como é grandioso, sublime o sentimento da amizade, quando pronto corre a cercar o amigo caído na adversidade!

Apenas sentei-me para jantar, vi-me de súbito cercado por Damião e mais seis outros mancebos que me eram dedicados, e se tinham apressado a vir em meu auxílio, e a oferecer-me os seus serviços, pois que a cidade toda já sabia, o que comigo acabava de passar-se.

Com lágrimas de reconhecimento agradeci tão doce demonstração de interesse e de estima, e convidei a esses excelentes amigos para jantar comigo.

Que duas horas gozamos! A nossa mesa foi sucessivamente servida das mais delicadas iguarias, e dos vinhos mais generosos, que deliciosamente nos prenderam juntos até o anoitecer.

Acabado o jantar, declarei com franqueza que precisava descansar e imediatamente os meus ótimos amigos deixaram-me só, retirando-se a rir não sei mesmo de quê.

Ia recolher-me, quando me apareceu o dono do hotel ou chefe da casa, a quem eu já perfeitamente conhecia e estimava, como homem de verdade, singeleza e consciência.

-Sr. Simplício, disse-me ele; eu devo prevenir a V. S.ª de que esses sujeitos que daqui saíram, são todos parasitas de profissão, e exploradores da inexperiência; o senhor deu-lhes um jantar, que lhe custa cento e trinta mil-réis, e eles desceram a escada a rir descompassadamente da sua boa-fé, a que ousavam dar outro nome que não me animo a repetir.

Fixei a minha luneta mágica sobre o homem que me falava, e com espanto meu a visão do bem me fez reconhecer que ele dizia sempre e ainda desta vez a verdade; mas a visão do bem ainda também à mesa do jantar me mostrara como protótipos de amigos fiéis e dedicadíssimos os sete mancebos que acabavam de retirar-se!...

Fiquei suspenso, perplexo, indeciso, triste e aborrecido.

Paguei o jantar; fui deitar-me, e ou pela fadiga resultante das fortes emoções, por que naquele dia passara, ou pela mistura dos vinhos que bebera sem dúvida menos sobriamente do que costumo, adormeci logo, caindo em profundo sono.

Despertei às duas horas da madrugada, e a meu despeito, velei até o amanhecer.

Revolvia-me na cama, contra mim próprio excitado; porque não queria refletir sobre a minha situação; mas refletia.

Cerrava os olhos para dormir; mas o espírito velava.

Chamava em meu socorro a imaginação que por momentos perturbava com ilusões forçadas a série de graves reflexões; mas em breve a imaginação se apagava, e as frias reflexões se impunham.

À força, a meu despeito embora, não dormi e refleti.

Evidentemente eu tinha despendido muito em mês e meio... mais de quinhentos mil-réis por dia, três vezes mais do que a renda anual da minha fortuna, segundo os cálculos de meu honradíssimo irmão.

Tão avultada despesa (que eu estou certo que empreguei com proveito da humanidade), sem dúvida, conforme os costumes e o modo de ver da sociedade egoísta, e dos homens da lei que não julgam pelo coração nem pelo Evangelho, será explicada, recebida e sentenciada como dissipação, e por conseqüência, e até por amor da minha pessoa, me darão um curador!...

A visão do mal me expôs a ser trancado por doido no hospício de Pedro II, a visão do bem expõe-me a ser declarado néscio, ou idiota, ou por muito favor apenas dissipador da minha fortuna, e como tal confiado, entregue absolutamente ao domínio de um curador, de um dono e árbitro da minha pessoa, de um senhor de quem serei quase escravo!

Pela visão do mal ou pela visão do bem, pelo ódio ou pelo amor da humanidade, pelo juízo mau a respeito de todos ou pelo juízo bom a respeito de todos, as duas lunetas mágicas levaram-me ao mesmo perigo, ao mesmo fim, à mesma calamidade.

Uma, a primeira me fez passar por doido; outra, a segunda, me faz passar por néscio! Doido ou néscio, não escolho; porque a conseqüência é a mesma.

O meu curador será provavelmente o mano Américo, que concebeu e lá manifestou a horrível idéia de quebrar a minha luneta mágica.

Portanto querem condenar-me à miopia perpétua, miopia que para mim é a cegueira, é a morte no seio da vida!

Desejo, tenho o direito de desejar ver, que é viver, e não querem permitir que eu viva, não me permitindo que eu veja!...

Não! não! e não!

Hei de até o extremo defender a minha luneta mágica.

É certo que começo a conceber algumas desconfianças em relação ao acerto e à infalibilidade das revelações da visão do bem.

As contradições que notei entre a inocência dos condenados da casa de correção e as sentenças sempre instas dos magistrados, e entre os sentimentos dos amigos que ontem jantaram comigo, e os avisos leais e cheios de verdade do dono do hotel desacreditam um pouco no meu conceito a visão do bem.

Se a visão do bem fosse o apólogo vivo, a expressão real da inexperiência; se pela visão do bem eu me tenho tornado o escárnio dos parasitas, o ludibrio dos trapaceiros, a zombaria de todos, o objeto da mofa e do ridículo do povo... ah! eu preferia ter sido fulminado por um raio...

O ridículo!... o ridículo é a queda no charco; é o aviltamento sem compaixão; é o pelourinho mil vezes pior que o patíbulo; é o azorrague mais cruel que a guilhotina; é a morte pelo desprezo...

Quero antes a perseguição do ódio, do que o acompanhamento do ridículo...

E dizem que riem-se de mim... que me apontam, como estúpida vitima de homens sem consciência, e de uma mulher sem brio, e sem coração...

Eu sei, e sinto, eu tenho consciência de que tudo isso é falso; mas riem-se de mim!...

Que hei de fazer?... nem sei; quebrar a minha luneta magica, origem e causa de todas estas torturas do espírito?... não; menos isso.

O erro dos homens é patente: quem vive e procede com acerto, sou eu.

Resistirei pois aos homens, e me deixarei matar, defendendo a minha luneta mágica que meu irmão condenou.

Eu refletia assim, e tinha já esquecido as horas e o empenho de escapar às reflexões, dormindo, quando a aurora principou a espancar as trevas, e as auras matinais, refrescando o meu cérebro, me aditaram de novo e insensivelmente com o mais tranqüilo e suave sono.

- XXVI -

Levantei-me às dez horas da manhã, e tinha acabado de almoçar, ouvindo o sinal de meio-dia.

Dispunha-me a sair; mas vi entrar o meu amigo Reis, que vinha de propósito visitar-me.

No Reis depositava eu e deposito confiança sem limites. Ou todos o julgam pela visão do bem da minha luneta mágica, ou se eu me engano no juízo que faço do Reis, todos se enganam comigo.

Recebi o amigo Reis, como um cego, a quem se anuncia o primeiro raio de luz, e com ele a vida pelos olhos.

Apertamos as mãos, e nos sentamos um ao lado do outro.

-Temos sofrido muito ambos, e pelo mesmo erro, disse-me o Reis.

-Como?

-Eu errei, deixando-o entregar-se a um pretendido mágico; o senhor errou acreditando exageradamente nele.

-Mas se eu vejo!!!

-É porque ele conhece e esconde o segredo de elevar a maior, a mais alto, e ainda não calculado grau os vidros côncavos destinados a corrigir a miopia; tudo mais que ele emprega é delicadíssimo artifício de charlatanismo para excitar e inflamar a imaginação.

-A sua descrença é um erro...

-A minha tolerância é que tem sido erro; a notícia que imprudentemente fez publicar na imprensa diária da corte, e a fama da sua nova luneta deram causa a que meu armazém seja com freqüência procurado por pretendentes a instrumentos mágicos de ótica, sofrendo eu perseguições e desgostos, que mal pode calcular; isso porem é o menos.

-Que é então o mais?

-A situação em que se acha.

-Que pensa?

-Ouça-me com paciência: a sua pretendida visão do bem o tornou alvo das zombarias e do ridículo...

-Do ridículo?!!!

-Não há vadio, nem trapaceiro que não tenha abusado da sua boa-fé; o senhor aparece em público associado e convivendo com as celebridades mais imorais e desprezíveis da cidade...

-Que me está dizendo?

-A verdade: todas as senhoras conhecem já a sua... mania de se supor amado por elas sem exceção de uma só, e de amar igualmente a todas, e isso as diverte de modo tal, que nenhuma o vê que não precise de grande esforço para conter o riso...

-O riso!...

-Enfim o senhor é o divertimento de muitos, e o objeto da compaixão dos homens graves, que acreditam indispensável que sua família o sujeite a mais zelosa curadoria...

Senti que sucumbia ao peso do meu infortúnio.

O amigo Reis prosseguiu:

-Seu irmão foi hoje a nossa casa e queixou-se da maléfica influência das duas lunetas mágicas saídas das minhas oficinas; tive de reconhecer a minha responsabilidade e, pedindo perdão, assegurei que mais nunca permitiria ao armênio outra operação mágica para facilitar-lhe nova luneta.

-Que fez!... exclamei tremendo.

-Seu irmão disse-me que antes de três dias seria nomeado seu curador, e que empregará até a força para recolhê-lo ao seio da família...

-Três dias... e depois a privação da luneta mágica, a cegueira, e a casa tornada cárcere!!!

-Quando seu irmão saiu, fui ter com o armênio e referi-lhe a sua desgraça, a sua lamentável...

-Nesciedade.

-Não me animava a dizê-lo; os seus grandes prejuízos, e ridículo proceder em conseqüência da visão do bem.

-E o armênio?

-Respondeu-me, levantando e encolhendo os ombros com enregelada indiferença.

-Estou perdido...

-Então avisei severamente ao armênio, de que eu o despediria para sempre da minha casa, se nela praticasse uma única vez mais as suas pretendidas artes mágicas.

-E ele?

-Nem sequer olhou para mim; mas riu-se com o seu rir medonho.

-Não o despedirá!

-Despedi-lo-ei, se não me obedecer. Quanto ao senhor, meu jovem amigo, submeta-se a sua sorte: volte para o santo asilo da sua família, e deixe-se dirigir e guiar por seu irmão.

-Estou perdido, repeti lugubremente.

O Reis despediu-se e deixou-me só.

- XXVII -

Meu irmão dá-me três dias de liberdade, o mesmo prazo que se concedia aos condenados à morte: três dias entre a intimação e a execução da sentença.

E todavia meu irmão é o melhor dos homens, e símbolo do amor fraternal.

Serei eu realmente néscio ou idiota?... mas eu penso, raciocino, reflito, e tenho consciência de que o faço.

Ninguém me chamou idiota, somente me julgaram doido, quando eu julgava os homens e as coisas pela visão do mal.

Será pois a visão do bem fonte de nesciedade?...

É certo que pela visão do bem eu vejo todos sem exceção, tudo sem exceção resplendendo pureza e perfeições; ainda não descobri defeito em alguém, ainda não pude julgar má ação alguma.

Com efeito esta inocência e perfeição de todos e de tudo excluem a idéia do pecado, e portanto a idéia do prêmio e do castigo na vida eterna, o prêmio, porque é distinção, e não podem haver escolhidos e distintos quando todos são igualmente bons; o castigo, porque não há que castigar.

Assim pois eu ataco pela base a filosofia, a doutrina católica...

Meu Deus! terei eu sem o pensar chegado até ofender a religião?...

A visão do bem da minha luneta será como a do mal acesa pelo demônio?... será infernal pelo excesso de mostrar sempre o bem em todos e em tudo?

Minhas idéias se baralharam, minha cabeça começou a pesar-me; receei a iminência de um ataque cerebral, ou algum acesso de loucura.

Tomei o chapéu e sai sem destino, levando fixada a minha luneta; dei por mim na Rua Direita, reconhecendo o Boulevard Carceller, e fui sentar-me isolado à sombra da árvore mais vizinha da igreja do Carmo.

A defender-me da luneta que eu conservava fixada, levava cuidadoso a desconfiança no coração; mas o Boulevard estava cheio de gente, de homens e de senhoras: percebi que muitos me apontavam com os dedos, que outros sorriam-se, observando-me; mas a despeito da minha desconfiança, não pude resistir à evidência: compreendi, convenci-me que estava diante de uma reunião numerosa, na qual todos os homens eram santos, todas as senhoras anjos.

Sobretudo senti que as senhoras me contemplavam embevecidas e perdidas de amor; eu ardia no fogo de vinte novas paixões!

Que sensações deliciosas!... todas essas criaturas angélicas riam-se olhando para mim, e encontrando o meu olhar, e no riso de cada uma delas eu encontrava um céu aberto, um romper de aurora no paraíso.

De súbito chegou-se a mim um mancebo com o semblante abatido, e repassado de dor, e mal podendo falar, expôs-me a sua situação que era das mais pungentes sem dúvida, e acabou, pedindo-me o óbulo da minha caridade para enterrar o filhinho, o filho único, que deixara em casa morto no colo da consternada esposa.

Vi que o mancebo, mísero pai, falava a verdade, e às ocultas dei-lhe algum dinheiro.

Seguiram-se logo ao infeliz jovem uma imediatamente depois de outra três moças que se chegaram a mim, esmolando para missas pedidas.

Essas esmolavam, rindo-se, e eram raparigas elegantes, espertas, e francamente alegronas e travessas, devendo ser conhecidas de muitos que ali estavam, pois que com muitos trocavam gracejos; chegadas porém a mim vi-as confundidas de pelo, e abrasadas de amor; fitei bastante com a minha luneta cada uma delas, e extasiei-me, encontrando em seus corações a mais santa piedade, e profundo sentimento religioso.

É claro que concorri, como devia, para as três missas pedidas. Não podia ser de outro modo.

O que me valia, considerando as três moças, e as outras senhoras, era o seu número, e a semelhança e força igual que produziam em mim tantas belezas e tão preciosas qualidades; porque eu estava doido de paixão por todas elas, e todas elas também por mim, coitadinhas!

Como isso era não posso razoavelmente explicar; era porém assim.

Todavia em seguida as moças veio logo uma velha que me confessou ser viúva pobre, tendo seis filhos, que até aquela hora não tinham almoçado... dei-lhe esmola.

Depois da velha correu a ter comigo um cavalheiro de maneiras muito distintas, e da mais perfeita cortesia, a quem acontecera um desses pequenos infortúnios, a que todos estamos sujeitos: acabando de comer pastéis, e de beber uma garrafa de cerveja, reconhecera haver esquecido a carteira, e achava-se naturalmente muito contrariado. Fiz o que qualquer outro faria no meu caso: reconhecendo a capacidade e merecimento do cavalheiro, que me pareceu trigo sem joio, entreguei-lhe a quantia necessária para pagar a despesa que fizera.

Mas após o nobre cavalheiro avançavam lá para mim dez ou doze rapazes ao mesmo tempo, quando um venerando ancião, tomando-lhes os passos, e censurando-os com algumas breves, mas severas palavras, chegou-se ao banco que eu ocupava e disse-me:

-Mancebo inexperiente! Não vê, não sente, que está sendo vítima da zombaria de gente sem generosidade ou de maus costumes?... Para que deita fora o seu dinheiro?... Aqueles e aquelas que lho tomaram, simulando morte de filho, missas pedidas, fome de família, esquecimento de carteira, estão ali dentro da confeitaria, rindo às gargalhadas da sua inverossímil credulidade, comendo e bebendo à sua custa.

Fixei a luneta e vi: o velho era respeitável como as suas cãs, puro como os mártires da fé, verdadeiro como um axioma, severo como a lei, austero como a própria virtude, justo como a sentença da sabedoria.

-Que me diz, meu amigo?

-Eu não sou seu amigo, pois que nem o conheço; dói-me porém vê-lo deixar-se depenar por mulheres perdidas, e homens sem brio.

-É demais... tenho razão para reputá-las, e reputá-los dignos de toda a consideração...

-Infeliz moço! murmurou o ancião.

E logo depois tomando-me pelo braço, e obrigando-me a deixar o banco, acrescentou:

-Retire-se; recolha-se à casa; diga a seus parentes que cuidem mais e melhor do senhor.

-Os meus parentes!... esses declararam-me guerra... são ótimas pessoas, e muito me amam; mas alucinados perseguem-me...

-Como?

-Acreditam que sou... talvez maníaco, e querem nomear-me curador.

-Deixa-me dizer-lhe a verdade?

-Sem dúvida...

-Seus parentes tem razão.

Quase que me rompeu da garganta o grito de misericórdia! Fiquei como assombrado.

O ancião repetiu:

-Pobre moço! Recolha-se à casa.

E empurrando-me suavemente pelos ombros, foi sentar-se.

Eu apartei-me do Boulevard Carceller aflito, quase desesperado, e tanto mais que escutava atrás de mim, e no lugar donde me retirava, observações epigramáticas, tristes apreciações do meu estado, e até risadas de escárnio.

Minha situação piorava, o meu espírito se obumbrava cada vez mais, e as mais turvas e sinistras idéias começavam a invadi-lo.

Entrei com precipitados passos na Rua do Ouvidor: era a hora de mais costumada concorrência.

Eu mantinha a minha luneta sempre fixada; mas fixada sem consciência porque não queria ver, e não via; também não desejava ouvir, porém ouvia.

Pelos meus ouvidos pareceu-me estar ainda no Boulevard Carceller, porque era-me impossível não escutar risadas que mal se abafavam, ou que petulantes se desprendiam.

O meu nome era repetido em tom de compaixão por alguns, em tom de escárnio por outros.

Evidentemente ninguém me considerava, como eu queria ser considerado, e tinha direito de sê-lo.

-Aí vai ele...

-É o maníaco...

-É o Simplício...

-Coitado...

Eis as palavras, as designações cruéis, condenadoras, terríveis que me chegavam aos ouvidos!

Eu continuava a caminhar apressado, furioso, fora de mim, pedindo ao céu um abismo, onde caísse de súbito, um raio que me fulminasse...

Eu ia indo... sempre... quase a correr: deviam na verdade julgar-me desvairado...

De repente parei: uma voz argentina, suave, melodiosa exclamara:

-Como corre o bom anjo! É pena que não me visse! Segundo a regra morreríamos de amor um pelo outro, e ele me pagaria o jantar...

Olhei... fixei com a minha luneta mágica o demônio que assim tão barbaramente me ridiculizava... encarei-o... observei-o com ódio.

Ah!...

Era uma jovem no mais belo frescor da idade: vinte anos não mais, dezoito anos não menos; cabeleira de ouro com enchentes de anéis a inundar-lhe as espáduas nuas e alvejantes... colo nu, e seios quase de todo à mostra; vestido de duas saias, e toilette com mais cores que o arco-íris, meia perna patente... botinas justas de laços com botões a brilhar e de saltos de duas ou três polegadas... olhos radiantes, e boca a rir, mostrando os dentes brancos... sublimes...

Ela tinha parado e olhava-me provocadora, insolente, como a pedir-me jantar...

Esperei três minutos contemplando-a bonita para aborrecê-la escandalosa e infame...

Meu Deus! a visão do bem mostrou-me o que ela era...

Ela era a formosura... a pudicícia... o recato... um anjo!...

Insensivelmente meus joelhos se iam curvando; eu estava quase na posição, em que os devotos adoram a divindade, quando de todos os lados estrondaram gargalhadas...

A criatura angélica, gargalhando também saltou para dentro de um carro puxado por magnífica parelha, e fugiu-me...

As gargalhadas continuavam... era como uma pateada que me davam...

Em desespero, em frenesi, em fúria, corri, fugindo e fui encerrar-me no hotel.

- XXVIII -

Não saí mais nesse dia e dei ordem aos empregados do hotel para que despedissem a todos quantos me procurassem, pretextando ou incômodo ou ausência de minha pessoa.

Consumi a tarde, a noite e a manhã seguinte em teimosas, amarguradas, mas estéreis reflexões.

Eu estava precisamente na mesma situação, nas mesmas circunstâncias, em que me achava nos últimos dias da posse e uso da primeira luneta mágica.

Se alguma diferença havia entre as duas épocas e as duas aflições era agora para muito pior; porque agora se me quebrarem a luneta mágica da visão do bem, já sei que não poderei conseguir outra luneta.

E a sentença está lavrada e é irrevogável: o mano Américo, em sua extrema bondade e pelo grande interesse que toma por mim, receoso de que eu esbanje o resto de minha fortuna, me privará da luneta mágica que dá a visão do bem.

E é amanhã o dia em que por bem ou por mal serei recolhido à casa ou ao cárcere de minha família, e sujeito ao meu curador.

Deverei submeter-me?...

Estudei por todos os lados e em todas as suas conseqüências possíveis o caso, e conclui que o partido que me restava era fugir, e fugir imediatamente.

Para onde? Pouco importa; correrei o mundo; com dinheiro e boa vontade não se vive mal em parte alguma.

Examinei a minha carteira: restavam-me trinta e tantos mil réis!... fiquei desagradavelmente surpreendido; lembrou-me porém que na antevéspera tinha emprestado quatrocentos mil-réis a um dos amigos que jantaram comigo, e que na véspera assinara em duas subscrições para alforria de escravos.

A falta de dinheiro não podia embaraçar a execução do meu plano; eu contava tantos amigos que facilmente arranjaria quatro ou seis contos de réis.

Paguei o que devia no hotel e fui logo procurar o velho Nunes, e em seguida ao bom Damião e a mais quinze ou vinte, a todos os quais patenteei a minha situação, confiei o meu plano, e pedi algum dinheiro ou a titulo de empréstimo, ou em pagamento do que me deviam.

Triste observação!... Não achei em todos esses excelentes amigos um só que me acudisse com alguma e ainda diminuta quantia!... mas os pobres e honradíssimos homens asseguraram-me que em quinze dias ou um mês me levariam a casa trinta ou quarenta contos de réis.

É pena que somente para tão tarde possa eu contar com esse recurso que fora hoje tão poderoso, e que então será inútil para o meu plano.

Não desanimei e me dirigi ao meu banqueiro; este porém apenas percebeu o que eu queria, tomou o Jornal do Comércio que estava sobre a mesa de seu escritório, e mostrou-me um anúncio assinado por meu irmão, em que protestava não seria paga divida alguma contraída por mim.

Retirei-me desesperado; todas as minhas esperanças tinham falhado, todos os meios me faltavam para obter dinheiro...

Ninguém pode fazer idéia da dor que me despedaçava o coração...

Recorri ainda a dois outros amigos que me deviam também somas importantes... um deles voltou-me as costas sem me responder, e o outro não me conheceu!!!

Fixei a minha luneta mágica sobre cada um desses dois miseráveis... ah! nenhum deles era mau: o primeiro voltava-me as costas cheio de vergonha e de pesar por não poder servir-me, e sem dúvida ao ver-me partir, desatara a chorar... o outro, pobre infeliz, afetado de uma moléstia cérebro-espinhal, tinha perdido a memória; pelo menos foi isto o que reconheci pela visão do bem.

Perdida a última esperança, sentindo profundo, moralmente mortal o golpe da desgraça, prevendo o raio infalível que ia fulminar-me no dia seguinte, pus-me a andar sem destino, mas apressado, quase a correr não sei por quais ruas da cidade; sei porém que de improviso parei na quina, ou ângulo formado por duas ruas que se cortavam.

Aproximava-se numeroso préstito de carruagens; quis vê-lo passar.

Era o préstito lúgubre de um finado. Era um enterro.

- XXIX -

Tive um pensamento que estava naturalmente em relação com a negra tristeza do meu espírito.

Desejei estudar o cadáver, que se ia sepultar.

Fixei a minha luneta mágica no féretro.

Eis o que vi:

Primeiro um caixão de madeira coberto de ricos estofos pretos e de galões de ouro, dentro um cadáver já em corrupção, fétido, repugnante... Iodo e pó da terra e nada mais.

Logo depois a memória das singulares virtudes do finado e... oh!... a felicidade, a incomparável felicidade da morte!...

Eu vi, senti, compreendi a morte, que se patenteou tal qual é, a visão do bem!

Eu vi a morte -mal julgada, caluniada pelos homens- sono plácido, suavíssimo que começa à última dor, ao extremo transe da vida, e que acaba ao despertar nas delícias da eternidade; paz sem cuidados, sossego sem a mais leve perturbação -véspera instantânea da verdadeira vida- porta do fim que é luz celeste. -Oh! que gozos na morte! a podridão e o fétido do cadáver em sublime contraste muito de longe dariam idéia da pureza e do angélico aroma da alma que se desprende do pó! Que gozos na morte! O mais vaidoso dos reis sente-se pela primeira vez verdadeiramente grande e exaltado elevando-se à esfera onde se encontra igual ao mais humilde e rude dos vassalos ou escravos que tivera!... Não há dor, nem ânsias, nem moléstias, nem privações, nem miopia na imensa e refulgente região da morte! Aquela frieza enregelada do cadáver significa esquecimento absoluto das penas da vida efêmera e mundana.

Pela morte o escravo é livre, a criança e a virgem são anjos, a esposa jovem, a matrona e a velha santas, a mundanaria é Madalena purificada, o malvado, o celerado são arrependidos que se regeneram, o desgraçado é feliz, o mudo tem voz, o paralítico voa, o surdo ouve segredos, o cego vê nas trevas, o desgraçado é perfeitamente feliz!...

A morte é Jordão que lava as culpas...

A morte é glória...

A morte é luz...

Só a morte é que dá principio à vida.

Eis um pouco do muito que a visão do bem me fez descobrir e apreciar na morte.

O préstito já tinha passado.

Deixei cair a luneta mágica.

Abismei-me em profunda introversão, no estado da minha intima consciência, no estado novo e extraordinário do meu espírito...

Achei-me consolado, forte, invencível, contente, feliz...

Eu desejava, almejava morrer...

Morrer era começar a viver... e a viver que vida de delícias!...

Eu acabava de conceber a idéia, e de abraçar-me com a idéia do suicídio.

- XXX -

Examinei o ponto da cidade onde me achava, e logo conheci que havia parado para ver passar o préstito fúnebre no lugar, que é corte da Rua dos Barbonos, fim da das Mangueiras. e principio da dos Arcos.

A breve distancia estava pois mais adiante a ladeira do morro dantes chamado do Desterro, e desde o século passado de Santa Teresa.

Mais de um suicídio se tem realizado no alto, e nos desertos abismos daquele monte.

Instintivamente mas sem dúvida com a idéia da morte, dirigi-me para a ladeira, e comecei a subi-la passo a passo, com vagar e tranqüilidade, com ânimo sereno, e com o firme propósito de pôr termo a minha vida.

Eu não tinha comigo nem punhal, nem veneno, nem revólver, não levava pois arma, ou instrumento, ou meio de morte, e contudo subia a ladeira com intento de me matar.

A visão do bem me levava à morte.

Eu nunca visitara o sítio famoso do Corcovado; ouvira porém dizer que lá havia enorme precipício, profundíssimo abismo, no seio do qual a morte era certa para o infeliz que por acaso a ele se arrojasse.

Se as informações não eram falsas, o propósito me daria o fim, que receava do acaso ou da imprudência.

Não me era pois necessário levar comigo punhal, veneno, ou revólver: eu tinha por mim o abismo.

Fui subindo a ladeira tranqüila e pausadamente, descansando aqui, ali, e deleitando-me a ouvir o leve ruído das águas da Carioca, que em alguns pontos do antigo encanamento mandado construir pelos vice-reis do tempo colonial, parecem murmurar da negligência, ou da comparativa inferioridade da administração da nossa época, que vinte vezes por ano deixa o povo em penúria d'água, e diariamente lhe dá água da Tijuca toldada, mal zelada, e não aquela tão pura e admirável a que o gentio chegava a dar o condão de acender a inspiração da poesia

E fui subindo sempre.

A noite era formosa; a lua em fase plena mergulhava a cidade em um oceano de luz pálida, mas clara, suave, encantadora e romanesca.

Muitas vezes voltava-me para contemplar essa já grande Babel, esse labirinto de ruas que formam a opulenta capital do Brasil, e me embebia por minutos no grandioso panorama da bela sebastianópolis iluminada por milhares de flamas de gás, que simulavam enfeitiçá-la em noite de festa.

E de cada vez que me voltava para a cidade, eu dela me despedia, dizia-lhe o adeus saudoso e melancólico do filho que se separa da família, e que sabe que não voltará mais ao seu lar.

Eu subia sempre; o silêncio da noite era só interrompido pelo latir dos cães que, sentinelas vigilantes, guardavam as chácaras.

Ainda era cedo, mas a solidão completa; e todavia eu não tinha receio de encontro algum suspeito ou sinistro; receio de quê?... pobre e decidido a morrer, rir-me-ia do ladrão, do assassino que me atacasse.

Depois de muito longa marcha ouvi a voz de um homem que caminhava adiante de mim e que cantava uma rude cantiga com acompanhamento de viola, que ele próprio executava.

Apressei o passo e apanhei o cantor.

Era um guarda do aqueduto.

Trocamos a saudação de -boa noite.

-Vou seguindo o caminho do Corcovado?

-Sim senhor; mas a estas horas?

-É proibido?

-Não; já sei: quer amanhecer lá.

-Adivinhou.

-Pois eu vou dormir às Paineiras.

-Tanto melhor para mim. E das Paineiras ao Corcovado?

-Não há que errar.

Fomos seguindo em silêncio: no fim de meia hora perguntei:

-Por que não canta?

-Gosta?

-Muito.

-O canto anima o trabalho e ilude a fadiga, disse o guarda.

E afinou a viola e cantou outra cantiga também rude, e monótona, mas saudosa e melancólica.

No meio da solidão e da noite o canto do guarda produzia em mim indizível impressão de suave tristura.

Observei com a luneta mágica por mais de três minutos o guarda, e vi que era pobre, tinha mulher e dois filhos, vivia alegre, e por seus dotes merecia as honras da terra e a maior estima dos homens.

Revoltou-me a posição obscura desse homem distintíssimo pela nobreza de caráter, e pela santidade do coração.

Quando acabou a cantiga, perguntei-lhe:

-Que pensa da vida?

-Que custa a viver.

-Não é melhor a morte?

-E minha mulher? e meus filhos?

-É feliz?

-Conforme: se me dessem o dobro do que ganho, eu me julgaria dobradamente feliz um dia.

-E por que não dois dias e mais?

-Porque é quase certo que no segundo dia eu desejaria ainda outra vez o dobro do que estivesse então ganhando.

-E não tem aflições?

-Às vezes, e sobretudo quando não trabalho; mas em tais casos Luisa deixa a costura e vem perguntar-me o que tenho; correm os meninos a pular-me ao pescoço, e lá se vai a tristeza pelo morro abaixo; ou, se estou só em casa pego na viola e canto.

-Que pensa dos homens?

-Bem e mal: nem confio nem desconfio, e julgo que é melhor não pensar neles.

-Por quê?

-Porque todo tempo é pouco para cada um pensar em si, na sua família, no seu trabalho, e nas contas que deve a Deus.

Eu admirava a sabedoria do guarda do aqueduto, e compreendi perfeitamente o seu amor, o seu apego à vida pelo encanto da esposa e dos filhos.

Só o egoísta pode almejar as delícias da morte, sendo esposo e pai; eu porém procurei debalde uma noiva, não tenho filhos e posso portanto e devo morrer.

Enlevado pela conversação ia continuá-la, quando o guarda me disse:

-Estamos nas Paineiras, e aqui nos separamos.

Ensinou-me o fácil caminho que me levaria ao Corcovado, deu-me -boa noite- e desapareceu, metendo-se por um trilho quase encoberto pelo mato.

- XXXI -

Lavado de suor e arfando de fadiga cheguei finalmente a alto ermo do Corcovado.

A lua brilhava formosíssima, e consultando o relógio, mercê da minha luneta mágica, vi que eram duas horas da madrugada.

Véu impenetrável de cerração cobria o mundo nos espaços imensos em torno do Corcovado.

Eu estava em pé no trono de vasto país, submerso em dilúvio de neblina; compreendia a soberba majestade do meu sólio; mas tinha idéia das proporções dos meus estados.

O vento frio fazia-me tremer, o ar leve e puríssimo deleitava-me a respiração.

Sentei-me; quis pensar na morte e não pude, porque meus olhos se cerraram, e dormi.

Despertei ao primeiro raio do sol, que refletiu no meu rosto.

Levantei-me.

Era ainda cedo para ver o mundo abaixo dos meus pés e em torno do Corcovado.

Passeando pela planura, conversei comigo mesmo.

Morrerei; mas antes de morrer quero ver as grandezas da terra que deste sublime trono erguido por Deus se revelam e manifestam aos olhos do homem.

Aqui da altura direi o extremo adeus aos meus lá embaixo.

Será o último serviço que deverei a minha luneta mágica...

O último?...

Oh! eu vou morrer, por que não experimentarei a visão do futuro?... que me importa que se quebre a luneta, quando mais não posso usar dela?...

Fora loucura não tentar a experiência?...

Este novo pensamento dominou-me; fixei a luneta, e observei em volta do Corcovado o aspecto da natureza...

A cerração se desfizera de todo... o mundo se mostrava, se patenteava amplo, completamente sem véus, sem nuvens...

Vi...

Oh! meu Deus! eu não descreverei, não tentarei descrever o lindo, o belo, o sublime panorama, que por todos os lados, se abriu à minha luneta mágica, as cidades e povoados, as terras, e o oceano. as montanhas e os abismos, os montes e os vales, as torrentes e as pedras, o céu e os campos, a providência, e o mundo, a riqueza do favor de Deus, e a miséria da incúria dos homens!!!

Ajoelhei-me e orei.

Ergui-me e ainda uma vez, e outra, e mais dez vezes enlevei-me na contemplação das majestades da criação que em torno do Corcovado se ostentavam...

Tudo era grande, tudo menos o homem que era o perdulário, e o esbanjador sacrílego dos tesouros da terra, que Deus lhe dera...

Senti que para não odiar, desprezava o homem, desprezei-me também, lembrei-me da morte, que olvidara em minha contemplação entusiasta, lembrei-me também do suicídio e da visão do futuro.

O suicídio era fácil: um abismo estava cavado abaixo de meus pés; atirar-me a ele e não morrer era impossível...

Experimentar a visão do futuro era igualmente muito simples: bastava-me fixar a luneta mágica por mais de treze minutos sobre algum objeto.

Instintivamente lembrei-me da capital do Império do Brasil.

Ter por impressão extrema da vida uma idéia dos tempos que ainda hão de vir para aqueles que deixarei vivos, era uma ambição arrebatadora; ter por extrema despedida do mundo o quadro aberto do futuro próspero da pátria, seria a mais suave consolação, se eu pudesse conseguir a visão do futuro antes de suicidar-me.

Fixei pois a luneta mágica sobre a cidade do Rio de Janeiro e vi...

Durante os três primeiros minutos: força vital, prodígios de riqueza do solo do Império, majestade da natureza e em grande número de homens incapacidade, inveja, capricho, nepotismo, vaidade comprometendo tudo, sacrificando tudo, perdendo tudo no culto do egoísmo, e de ruins paixões.

Depois de três minutos até treze: a mesma e ainda mais surpreendente opulência de tesouros naturais do solo, o mais sábio governo do mundo, a população mais moralizada e pura, a constituição e as leis do Império religiosamente executadas, trabalho inteligente, a indústria esplêndida, abundância de ouro, profunda instrução em todos, contentamento geral, o céu na terra enfim...

Além de treze minutos: a visão do futuro... primeiro e de súbito imensa e compacta nuvem negra cobrindo todo o horizonte e logo através dela vivíssimo e penetrante raio de luz que me feriu e deslumbrou, que me fez recuar e cair por terra, quebrando-se em migalhas a luneta mágica de encontro a uma pedra!

Achei-me em trevas; mas ergui-me de pronto, e sem hesitar corri para o abismo e bradando:

-Adeus!...

Saltei o parapeito, arrojando-me ao profundo precipício...

Mas duas mãos possantes suspenderam-me pelas orelhas, pelas orelhas me contiveram por momentos no espaço entre a vida e a morte, e, sempre pelas orelhas, me tiraram da boca do abismo, e me depuseram no chão.

-Ainda é cedo, criança! disse a voz rouca do homem que me salvara, puxando-me as orelhas.

Reconheci o homem pela voz.

Era o armênio.

Epílogo

- I -

A suavidade das auras, a pureza do ar que banhavam docemente meu rosto e meus pulmões, o vivificante calor dos raios do sol venceram pouco a pouco a superexcitação nervosa que me ficara da tentativa de suicídio, do salto que eu dera, e da suspensão no espaço, na horrível boca do abismo.

Estirado no chão e em convulsivo tremor eu conservava a consciência de que vivia pela ativa lembrança das sensações instantâneas, mas violentas que me tinham torturado a alma; primeiro o adeus, extremo adeus deixado ao mundo, depois, dado o salto, o arrependimento súbito e vão; logo o socorro imediato e não esperado, e enfim a esperança, as ânsias e o terror desses instantes supremos, indizíveis em que me achei entre a vida e a morte, entre o suicídio que parecia absorver-me, e as mãos da providência que me continha pelas orelhas.

Passada uma longa hora, senti que me voltavam as forças.

Ajoelhei-me, e repeti em voz baixa breve oração.

Depois levantei-me e disse, procurando debalde com os olhos o armênio:

-Obrigado!

-Bom sinal! observou este; o teu coração voltou-se para Deus, e depois de render-lhe graças, a tua voz disse na primeira palavra um voto de gratidão ao homem que te salvou: morreste louco, e renasceste ajuizado.

Eu desatara a chorar, e chorei longamente.

O armênio tornou-me, depois de deixar muito tempo livre curso a meu pranto.

-Criança adoidada: já te puxei bastante as orelhas; mancebo infeliz, quero agora consolar-te.

Enxuguei com precipitação as lágrimas, e lancei os olhos quase sem luz para o lado, donde me vinha a voz do armênio.

Ele riu-se e acrescentou

-Adivinhei o teu criminoso intento e vim aqui salvar-te do suicídio, e dar-te nova, terceira e última luneta mágica.

-Oh!... e onde? e quando?

-Aqui mesmo e em breve.

-Que felicidade!

-Vou proceder à operação mágica.

-Eu a espero ansioso.

-E não tens medo?... aqui... neste lugar deserto... a sós comigo...

-Não.

-Confias pois muito em mim?

-Muito.

-Não há confiança sem fundamento que ao menos se suponha seguro, e tu nem sequer sabes como me chamo, o que não me admira, porque nem sabes o teu verdadeiro nome.

-Eu o conheço pelo armênio, o mais sábio dos mágicos, e sei que recebi na pia batismal o nome de Simplício.

-Erro duplo! não há aqui armênio nem Simplício.

-Então como nos chamamos?

-Eu me chamo Lição.

-E eu?

-Tu te chamas Exemplo.

-Ah!

-Escuta-me.

- II -

O armênio começou a falar.

-A exageração degenera os sentimentos, desvirtua os fatos, desfigura a verdade.

Exagerar é mentir.

No mundo há o bem e o mal, como há na vida o prazer e a dor.

Mas o bem é o bem, o mal é o mal como eles são e não podem deixar de ser para a humanidade que é imperfeita: perfeito bem, absoluto mal não há para ela.

O bem absoluto é Deus; mal absoluto não existe, não pode existir; porque seria o mal sem arrependimento, e sem perdão e portanto um limite à onipotência de Deus, o absurdo na verdade eterna.

Assim pois acontecimento, ser da criação, homem absolutamente maus ou absolutamente bons não são possíveis, nem se compreendem.

Estudar o mundo e os homens, observando-os pela enfezada lente do pessimismo é tão perigoso e falaz como estuda-los,observando-o pelo imprudente prisma do otimismo.

O velho misantropo, o homem ressentido e odiento que por terem sido vítimas de enganos, de ingratidões e de traições, caluniam a humanidade, na turbação do espírito doente, vendo em todos e em tudo o mal, prejudicam não só a própria, mas a felicidade de quantos se deixam levar por essa prevenção sinistra que envenena e enegrece a vida.

E no seu erro encontram duro castigo; porque em seus corações e em seu viver mergulham-se no dilúvio do lodo escuro e infecto do mal que vêem ou adivinham em todos e em tudo; e no furor de enxergar maldades, de condenar e aborrecer os maus, tornar-se-ão por si mesmos proscritos da sociedade, selvagens que fogem da convivência humana.

Eis aí o que te ensinei na visão do mal.

Dando-te a primeira luneta mágica, eu fui o que sou -Lição; observando pela visão do mal, tu foste o que és -Exemplo.

O mancebo generoso e inexperiente, a jovem donzela criada entre sedas, sorrisos e flores, educada santamnete com as máximas da benevolência, com o mandamento do amor ao próximo, e ainda mesmo aqueles velhos que nunca deixaram de ser meninos, vem sempre a terra como o céu cor de rosa, tem repugnância em acreditar no vício, deixam-se iludir pelas aparências, enternecer por lágrimas fingidas, arrebatar por exaltados protestos, embair por histórias preparadas, e dominar pela impostura ardilosa, e vêem por isso em todos e em tudo o bem -na prática do vício, imerecido infortúnio- no perseguido sempre um inocente -no mal que se faz, na indignidade, na trapaça e até no crime sempre um motivo que é atenuação ou desculpa.

E também esses tem, no erro da sua inexperiência a sua cruel punição; porque cada dia e a cada passo tropeçam em um desengano, caem nas redes da fraude e da traição, comprometem o seu futuro, e muitas vezes colhem por fruto único da inocente e cega credulidade a desgraça de toda sua vida.

Eis aí o que te ensinei na visão do bem.

Dando-te a segunda luneta mágica eu fui o que sou -Lição; observando pela visão do bem, tu foste o que és -Exemplo.

Escuta ainda, mancebo.

Na visão do mal como na visão do bem houve fundo de verdade; porque em todo homem há bem e há mal, há boas e más qualidades, e nem pode ser de outro modo, porque em sua imperfeição a natureza humana é essencialmente assim.

Mas a primeira das tuas lunetas mágicas não te mostrou senão o mal, e a seguinte te mostrou somente o bem, e para mais viva demonstração da falsidade e das funestas consequencias de ambas as doutrinas, ou prevenções, as duas lunetas exageraram.

Ora exagerar é mentir.

Mancebo, a verdadeira sabedoria ensina e manda julgar os homens, aceitar os homens, aproveitar os homens, como os homens são.

A imperfeição e a contingência da humanidade são as únicas idéias que podem fundamentar um juízo certo sobre todos os homens.

Fora dessa regra não se pode formar sobre dois homens o mesmo juízo.

Cada qual é o que é; cada qual tem as suas qualidades, e seus defeitos.

A sociedade que aceite cada homem com as suas qualidades e os seus defeitos, explorando umas e outras em seu proveito.

As próprias plantas venenosas são úteis: a ciência faz do veneno mais violento um meio destruidor de moléstias, regenerador da saúde, conservador da vida.

A educação do homem que é a base mais importante e a essencial da ciência social pode explorar em beneficio da sociedade, dirigindo-os convenientemente, os próprios defeitos correspondentes às qualidades estimáveis de cada um.

Mancebo! para te levar à verdade já te lancei duas vezes no caminho do erro.

Erraste acreditando no mal, erraste acreditando no bem, que te mostraram tuas duas lunetas, que exageraram o mal e o bem, ostentando cada uma o exclusivismo falaz do seu encantamento especial.

Erraste pelo exclusivismo; porque o exclusivismo é o absurdo do absoluto no homem.

Erraste pela exageração; porque exagerar é mentir.

- III -

Eu escutara com respeitoso silêncio o armênio que, tendo descansado alguns momentos, disse-me:

-Resolvi dar-te hoje a mais preciosa, mas também a última das lunetas mágicas que de mim terás.

-Qual?...

-Aquela que te fará gozar a visão do bom senso.

-Oh! a visão da sabedoria...

-Quase.

-Serei feliz... perfeitamente feliz!

-Nem assim.

-Por quê?...

-Porque o homem é o homem.

-Não entendo.

-Porque ainda com o bom senso há ardendo na alma do homem uma flama insaciável, que torna impossível a felicidade perfeita.

-Que flama é essa?

-A do desejo -de desejo que tem mil sobrenomes- amor, glória, ambição, ouro, honras, luxo, gula, vingança... e muito mais que eu não acabaria de dizer nem em duas horas.

-Ao menos porém a visão do bom senso não me tornará nem cético, nem ludibrio do mundo e dos homens.

-E não sofrerás menos por isso

-Como?

-Pela visão do bom senso reconhecerás, onde está o bem e o mal, e mil vezes não poderás aproveitar o bem, e livrar-te do mal.

-Mas é incompreensível!

-A pesar teu serás arrastado para longe do bem e para os precipícios do mal...

-Resistirei.

-Serás o censor de muitos e o reprovado de quase todos...

-Que importa?

-Os homens te condenarão contraditoriamente, como republicano e áulico, excêntrico e tolo, ateu e fanático, imoral e hipócrita, presumido e estúpido, santilão e demônio.

-Rir-me-ei deles.

-Terás pois a luneta; mas será a última.

-Conservá-la-ei sempre.

-Quebrá-la-ás.

-Conterá ela também a visão do futuro?

-Como, se é a do bom senso? -Criança, a visão do futuro não pode ser mais do que uma combinação de probabilidades feitas à luz do passado.

-Então juro que conservarei a luneta do bom senso por toda a minha vida.

-Fá-la-ás em pedaços e intencionalmente.

-Por quê?

-Porque é melhor não ver.

-Oh! não...

-Vou dar-te a luneta.

- IV -

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- V -

Não posso dizer o que se passou durante meia hora ou mais; porque eu nada vi, nada podia ver, pobre míope quase cego que eu era.

O armênio procedera a uma operação mágica não sei como, nem em que altar de cabala improvisado à luz do sol e no alto do Corcovado.

Ouvi piar de aves, silvos de serpentes, conjurações do armênio que me pareciam sair ou do seio da terra, ou de profunda gruta, senti frio de gelo e calor de fogo ardente; em seguida reinou silêncio, e em breve o mágico lançou-me ao pescoço um trancelim que suponho ser de arame que enlaça a luneta pelo competente anel, onde, como vim a saber depois, estava gravado em letras microscópicas o nome -raro.

-Fixa a luneta! gritou-me com sua voz ronca o armênio.

Obedeci, e fixando a luneta mágica, vi diante de mim o mágico melancólico e carrancudo, e o meu amigo Reis agradável e risonho.

O armênio voltou-nos imediatamente as costas, e desapareceu logo, descendo apressado a montanha.

O Reis abraçou-me: e disse:

-Aquele homem é irresistível; adivinhou o ato de loucura que o senhor ia praticar, e prometeu-me salvá-lo sob duas condições, de que não quis prescindir: a primeira foi que eu conviesse em ser-lhe dada uma terceira e última luneta mágica, que teria a visão do bom senso; a segunda que eu consentiria em expor à venda no meu armazém lunetas mágicas com a visão do bom senso.

-E o meu amigo...

-Poderia eu hesitar, quando se tratava de impedir o seu suicídio?... Comprometi-me a tudo; mas consegui do armênio três concessões.

-Quais?

-Que ele faria suas operações mágicas fora da minha casa; que ficaria em sigilo o que o senhor porventura observasse por meio da visão do bom senso; e que exclusivamente aos meus fregueses e amigos de intima confiança eu pessoalmente e só eu cederia, vendidas ou doadas, as lunetas mágicas do bom senso, ficando ainda a meu arbítrio a exigência de segredo, até que provas irrecusáveis do forçado encantamento experimentado por diversas pessoas, excluíssem qualquer suposição de credulidade pueril.

-Portanto o armênio começa enfim a convencê-lo.

-Ainda não; mas é um homem extraordinário. Quer ver? Acertou pelo seu o meu relógio; marcou precisamente a hora em que eu devia chegar ao alto do Corcovado, e encontrá-lo, lançando-lhe ao pescoço a sua nova luneta, e eu cheguei aqui exatamente à hora precisa, e no momento em que o armênio alargava com as mãos o cordão da luneta acima da sua cabeça e o fazia logo descer ao seu pescoço!...

-E se soubesse...

-Perdão; saberei tudo depois. Agora urge satisfazer a dois empenhos, um meu, e outro nosso.

-O seu antes do nosso: qual é?...

-Promete-me o sigilo, a que o armênio não se opõe?

-Pela minha gratidão e amizade juro guardá-lo.

-Obrigado! disse o Reis apertando-me britanicamente a mão

-E o nosso empenho?...

-Não o adivinha?... são onze horas da manhã e ainda não almoçamos… eu apenas tomei café às três horas da madrugada.

-E eu não ceei ontem, e estou morrendo de fome... desçamos para a cidade.

-E lá almoçaremos, jantando.

Pusemo-nos alegremente a caminho.

Apesar da fome devoradora que sentia, reconheci que é menos fatigante e desagradável descer do que subir às montanhas, exceto, exceto sempre, mas exceto somente, quando se trata das alturas do governo.

- VI -

E já lá vai um mês... um mês inteiro de visão do bom senso.

Sinto desejo veemente de referir o que tenho observado; mas estou preso pelo dever de gratidão e pela religião do juramento, que me impõe silêncio.

Quantas lunetas do bom senso terá o armênio preparado mágicamente para o armazém do Reis? E este a quantos amigos as terá confiado?...

Não posso compreender estas cerimônias e escrúpulos do meu amigo Reis.

Tais escrúpulos são até antipatrióticos.

Se o Reis quer teimar no seu prejudicialíssimo sigilo, deve ao menos, e embora muito em segredo, oferecer sete lunetas mágicas com a visão do bom senso para uso dos membros do ministério e do governo do Brasil.

Não posso falar, não posso escrever, não posso dizer o que a visão do bom senso me está ensinando há um mês.

Quando o meu amigo Reis me desligar do juramento que fiz, escreverei o livro da -Visão do Bom Senso.

Mas até lá... segredo.