Saltar al contenido principal

Visor de obras.

Selecciona una palabra y presiona la tecla d para obtener su definición.
Previsualización Saltar al contenido principal
Selecciona una palabra y presiona la tecla d para obtener su definición.

Ao decênio de Castro Alves

Quem sempre vence é o porvir!


No espadanar das espumas

que vão à praia saltar!

Nos ecos das tempestades

da bela aurora ao raiar,

um brado enorme, profundo,
5

que faz tremer todo o mundo

se deixa logo sentir!

É como o brado solene,

ingente, celso, perene,

é como o brado: -Porvir!
10

Pergunta a onda: -Quem é?...

Responde o brado: -Sou eu!

Eu sou a Fama, que venho

c'roar o vate, o Criseu!

Dormi, meu Deus, por dez anos
15

e da natura os arcanos

não posso todos saber!

Mas como ouvisse louvores

de glória, gritos, clamores,

também vim louros trazer.
20

Fatalidade! -Desgraça!

Fatalidade, meu Deus!

Passou-se um gênio tão cedo,

sumiu-se um astro nos céus!

As catadupas d'idéias,
25

de pensamento epopéias

rolaram todas no chão!

Saindo a alma pra glória

bradou pra pátria -vitória!

já sou de vultos irmão!
30

Foi Deus que disse: -Poeta,

vem decantar a meus pés.

Na eternidade há mais luz,

dão mais valor ao que és.

Se lá na terra tens louros,
35

receberás cá tesouros

de muitas glórias até!

Terás a lira adorada

c'o divo plectro afinado

de Dante, Tasso e Garret!
40

Então na terra sentiu-se

um grande acorde final!

O belo vate brasílio

pendeu a fronte imortal!

O negro espaço rasgou-se
45

e aquele gênio internou-se

na sempiterna mansão.

A sua fronte brilhava

e o áureo livro apertava

sereno e ledo na mão...
50

E o mundo então sobre os eixos

ouviu-se logo rodar!

É que ele mesmo estremece

a ver um vulto tombar.

É que na queda dos entes
55

que são na vida potentes,

que têm nas veias ardor,

há cataclismos medonhos

que só sentimos em sonhos

mas que nos causam terror!...
60

E o coração s'estortega

e s'entibia a razão!

No peito o sangue enregela

e logo a história diz: -Não!

Não chore a pátria esse filho,
65

se procurou outro trilho

também mais glórias me deu!

E quando os séculos passarem

se hão de tristes curvarem

enquanto alegre só eu?...
70

Oh! Basta! Basta! Silêncio!

repousa, vate, nos Céus!

Que muito além dos espaços

os cantos subam dos teus!

Se nesta vida d'enganos
75

não são bastante os humanos

pra te render ovações!

Perdoa os fracos, ó gênio,

que pra cantar teu decênio

somente Elmano ou Camões!
80


Entre luz e sombra

Ao dia 7 de Setembro

Libertas Lux Dei!!...


Surge enfim o grande astro

que se chama Liberdade!...

Dos sec'los na imensidade

eterno perdurará!...

Como as dúlias matutinas
5

que reboam nas colinas,

nas selvas esmeraldinas

em honra ao celso Tupá!...

Eram só cinéreas nuvens

os brasílios horizontes!
10

Curvadas todas as frontes

caminhavam no descrer!-

As brisas nem murmuravam...

Os bosques nem soluçavam...

Os peitos nem se arroubavam...
15

-Estava tudo a morrer!...

De repente, o sol formoso

vai as nuvens esgarçando.

as almas vão palpitando,

cintilam magos clarões!...
20

E o Índio fraco, indolente

fazendo esforço potente

dos pulsos quebra a corrente,

biparte os acres grilhões!...

Por terra tomba gemendo
25

o vão, atroz servilismo...

Rui a dobrez no abismo...

Eis a verdade de pé!...

Enfim!... exclama o silvedo

enfim!... lá diz quase a medo
30

selvagem, nu Aimoré!...

Assim, brasília coorte,

falange excelsa de obreiros,

soberbos, almos luzeiros

de nossa gleba gentil,
35

quebrai os elos d'escravos

que vivem tristes, ignavos,

Ffrmando delas uns bravos

-P'ra glória mais do Brasil!...

Lançai a luz nesses crânios
40

que vão nas trevas tombando

e ide assim preparando

uns homens mais p'ro porvir!

Fazei dos pobres aflitos

sem crenças, lares, proscritos,
45

uns entes puros, benditos

que saibam ver e sentir!...

Do carro azul do progresso

fazei girar essa mola!

Prendei-os sim, -mas à escola
50

matai-os sim, -mas na luz!

e então tereis trabalhado

o negro abismo sondado

e em nossos ombros levado

ao seu destino essa cruz!!...
55

Fazei do gládio alavanca

e tudo ireis derribando;

dormi, co'a pátria sonhando

e tudo a flux se erguerá!

E a funda treva cobarde
60

sentindo homérico alarde,

embora mesmo que tarde

curvada assim fugirá!...

Enfim!... os vales soluçam

enfim!... os mares rebramam
65

enfim!... os prados exclamam

já somos livre nação!!...

Quebrou-se a estátua de gesso...

Enfim!... -mas não... estremeço,

vacilo... caio, emudeço...
70

Enfim de tudo inda não!!...


Sete de setembro

Liberdade! Independência!...

eis os brados grandiosos

que quais raios luminosos

fulguraram lá nos céus!...

Eis a mágica -Odisséia
5

que duns lábios rebentando,

foi o povo transformando,

foi rompendo os negros véus!...

As colinas, prados, montes,

as florestas seculares
10

-os sertões, os próprios mares

exultaram com fervor!

E os brados retumbaram

pela lúcida devesa,

pela virgem natureza
15

com homérico clangor!...

Qual artista consumado,

qual um velho estatuário

do Brasil no azul sacrário,

essa data vos traçou,
20

-o triunfo mais pujante,

a eleita das idéias,

a maior das epopéias

-q'inda igual não se gerou!...

Mas embora, meus senhores
25

se festeje a Liberdade,

a gentil Fraternidade

não raiou de todo, não!...

E a pátria dos Andradas

dos -Abreu, Gonçalves Dias
30

inda vê nuvens sombrias,

vê no céu fatal bulcão!...

Muito embora Rio Branco,

esse cérebro profundo

que passou por entre o mundo,
35

do Brasil como um Tupá!...

Muito embora em catadupas

derramasse o verbo augusto,

da nação no enorme busto

inda a mancha existe, há!...
40

É preciso com esforço,

colossal, estranho, ingente,

ir o cancro, de repente

esmagar que nos corrói!...

É preciso que essa Deusa,
45

a excelsa Liberdade,

raie enfim na Imensidade

mais altiva como sói!...

Sai da larva a borboleta

com as asas auriazuis
50

e um disco vai -de luz

a deixar onde passou!

No entanto o grande berço

das façanhas de Cabrito

inda espera um novo grito
55

como o -Basta- de Waterloo!...

Eu bem sei que Guttemberg

que esse Fulton primoroso

Faust, Kepler grandioso

trabalharam té vencer!
60

mas embora tropeçassem

acurando os seus eventos,

tinham sempre tais portentos

a vontade por poder!...

Eia! sim! -p'ra Liberdade
65

irrompei qual verbo eterno,

como o -Fiat- superno

pelos ares a rolar!

Eia! sim! -que nossa pátria

só precisa -mas de bravos...
70

E em prol desses escravos

seu dever é trabalhar!!...

Somos filhos dessa gleba

majestosa aonde o gênio

como o astro do proscênio
75

solta as asas, mui febril!

Dos selvagens Tiaraiús

e dos brônzeos Guaicurus...

Somos filhos do Brasil!...

Esperemos, tudo embora!...
80

pois que a sã locomotiva,

do progresso imagem viva

não se fez a um sopro vão!

Aguardemos o momento

das mais altas epopéias,
85

quando o gládio das idéias

empunhar toda a nação!...

Esperemos mais um pouco

q'inda há almas brasileiras

que se lembrarão, sobranceiras,
90

que é preciso progredir!...

Inda há peitos valerosos

que combatem descobertos

por florestas, por desertos,

mas c'os olhos no porvir!...
95

Inda há lúcidas falanges

lutadores denodados

que se erguem transportados

burilando a sã razão!...

Inda há quem se recorde
100

do Egrégio Tiradentes

que do sangue as gotas quentes

derramou pela nação!!...

Já nas margens do Ipiranga

patrióticos acentos
105

vão alados como os ventos

pelos páramos azuis!!...

Vamos! Vamos! -eia! exulta,

jovem pátria dos renomes...

-Vibra a lira, Carlos Gomes!
110

Bocaiúva, espalha luz!!...


Três pensamentos

Nasceste no Brasil -filha d'América,

tu sabes conservar nas débeis veias

no lúcido pulmão

o sangue efervescente e purpurino

a força de subir ao céu da história.
5

às lutas da razão!...

Nasceste no Brasil -em meio às plagas

da grande natureza mais pujante

e cheia de arrebol!...

E sabes obumbrar os astros fulvos
10

e lanças raios mil por toda a parte,

soberba como o sol!...

Nasceste no Brasil e o eco ovante

das glórias sublimadas que tu colhes

por este céu azul,
15

vem férvido, viril e acentuado

assaz repercutir com mais verdade

aqui... aqui no sul!...


Sempre

Se é certo que o amor é um bem profundo

se é certo que o amor é um sol ardente,

eu hei de amar-te sempre neste mundo

e sempre, sempre, sempre -eternamente.


Beijos

Nesta Tebaida infinita

da vida, na sombra oculto,

eu gosto de olhar o vulto

de uma criança bonita.

Porque afinal as crianças,
5

como eu deslumbro-me ao vê-las,

cintilam como as estrelas,

florescem como esperanças.

Dentro de mim se projeta

a luz cambiante dos prismas
10

e batem asas as cismas

qual passarada irrequieta.

E batem asas e ruflam,

pelas artísticas plagas,

as auras que as grandes vagas
15

dos fundos mares insuflam.

E digo, ó mães, se uma aurora

fosse a minh'alma sincera,

os clarões todos eu dera

a uma criança que chora.
20

Porque se a luz fortalece

arbustos e as andorinhas,

também por certo às criancinhas

conforta, avigora, aquece.

E eu que aplaudo e que rimo
25

tudo isso que à luz se regre,

na vibração mais alegre

as criancinhas estimo.

Portanto, assim, sem refolhos

beijando a Olga, beijando
30

meus sonhos vão, irradiando,

se derramar em seus olhos!


Ser pássaro

Ah! Ser pássaro! ter toda a amplidão dos ares

para as asas abrir, ruflantes e nervosas,

dos parques através e dos moitais de rosas,

nos floridos jardins, nas hortas e pomares.

Ser pássaro, cantar, subir, voar na altura,
5

pelos bosques sem fim, perder-se nas florestas,

das folhagens do campo em meio da espessura,

das auroras de abril nas cristalinas festas.

Tecer no tronco seco ou no tronco viçoso

o quente lar do amor, o carinhoso ninho,
10

de onde sairá mais tarde o pipilar mavioso

de um outro mais gentil e meigo passarinho.

Não temer o verão e não temer o inverno

para tudo alcançar na leve subsistência,

no contínuo lidar, no labutar eterno,
15

que é talvez da alegria a mais feliz essência.

Viver, enfim, de luz e aromas delicados,

nascido dentre a luz, gerado dentre aromas,

sonorizando o azul, sonorizando os prados

e dormindo da flor sob as cheirosas comas.
20

Voar, voar, voar, voar eternamente,

extinguir-se a voar, no matinal gorjeio,

é ser pássaro, é ter em cada asa fremente

um sol para aquecer o frio de algum seio.


Saudação

Ao Liceu de Artes e Ofícios


Como esta luz é serena,

como esta luz é sincera;

como eu vejo a primavera

num lápis e numa pena.

Que prismas de luz ardente,
5

que prismas de luz suave;

como eu sinto um canto de ave

em cada boca inocente.

Sim! Que o estudo é como a aurora

que nos entra pela casa,
10

num vivo fulgor de brasa,

vibrante, alegre, sonora.

Ele rasga a treva espessa,

num só momento -cantando;

vai estrelas semeando
15

em cada tenra cabeça.

Tira os crânios do letargo

da ignorância -pois entra

como um sol e se concentra

num esplendor muito largo.
20

Quem, ó Arte imaculada,

medisse o ser da criança,

pela alma de uma esperança

pela alma de uma alvorada.

Quem aos páramos subindo,
25

eternamente pudesse,

dos astros a loura messe

arrancar -depois abrindo

os peitos das criancinhas

jogá-los dentro e beijá-las
30

cheias de pompa e das galas

que a luz concede às rainhas!...

Pois que a treva entre fulgores,

é como, dentre ataúdes,

rebentar como virtudes,
35

as mais simpáticas flores.

Ah! Ninguém sabe, por certo,

quanto é bom, quanto é saudável,

sentir a crença adorável

como um clarão sempre aberto.
40

Ver os germens do futuro

no campo eterno da escola,

brilhando como a corola

de um lírio cândido e puro.

Ver morrer -como uns invernos
45

da vida, os velhos colossos

e ver erguerem-se os moços

como verões sempiternos.

Mães, ó mães tão extremosas,

dos vossos ventres fecundos
50

saem todos esses mundos

das idéias fulgurosas.

Tudo isso quanto há escrito

de pensamento e crenças

saiu das fontes imensas
55

de um grande amor infinito.

E desde a escrita à leitura

e desde um livro a uma carta,

a bondade sempre farta

das mães -esplende e fulgura.
60

Bom dia ao mestre que é guia

das belas crianças louras!

Bom dia às mães porvindouras,

à mocidade -Bom dia!


Gusla da saudade

A Santos Lostada pela morte do seu velho pai


Nunca mais, nunca mais esses teus olhos

palpitarão nos olhos seus honestos

nem hão de vê-lo em ânsias por escolhos.

Ele morreu, morreu -e os mais funestos

lutos da dor feriram como abrolhos
5

teu lar e os teus -serenos e modestos.

Que incalculável explosão de prantos

não inundou as almas preciosas

dos teus irmãos, da tua mãe -uns santos.

Que peregrinam nestas lacrimosas
10

sendas da vida, em mágoas, sem encantos

como sem luz e sem orvalho as rosas.

Ah! formidável lei cruel da vida,

lei da matéria, da mudez das lousas,

da eterna noite atroz, indefinida;
15

tens o segredo intérmino das cousas,

e nessa dura e tenebrosa lida,

oh! nem sequer um dia só repousas.

Quem sabe, ó morte, ó lúgubre, quem sabe

o teu poder fatal, desapiedado
20

onde se oculta e se resume e cabe.

Pois nem que o céu puríssimo, azulado

cair aos pedaços, tombe e se desabe

na profundez do abismo ilimitado

e a crença humana espavorida, em gritos,
25

palpando o nada, esquálida, gemendo,

rasgue a amplidão de estranhos infinitos,

nunca da morte saberão o horrendo

mistério rijo e surdo dos granitos

os corações que vivem combatendo?!...
30

Não! A Ciência penetrou, o estudo

do pensador, abriu mais horizontes

nesse problema silencioso e mudo.

O pensamento constelou as frontes,

Deu à razão o mais brunido escudo
35

e construiu as luminosas pontes

de onde se vai, com grande olhar, seguro,

atravessar as regiões sonoras

dos Ideais que irrompem do Futuro;

e sem contar dos séculos as horas,
40

e sem temer as mil visões do Escuro,

alegremente ao fresco das auroras.

Mas entretanto, ó meu amigo, escuta,

toda a saudade, a grande nostalgia

nos deixa frios, mortos para a luta.
45

Porque, olha, a morte é sempre uma agonia!


Smorzando

O véu da tarde cai pelas quebradas

das serras altaneiras;

as aves condoreiras

rompem da mata em místicas risadas

o largo espaço intérmino cindindo.
5

A livre natureza,

humildemente, pura, vai caindo,

caindo de joelhos

como esse denso véu

cai na viril e rútila grandeza
10

do sol que desce em borbotões vermelhos

como uma mancha tropical no céu.

E vibra a Ave-Maria

como um soluço, estranho, indefinido;

talvez como um gemido
15

dentre a escalvada e agreste serrania.

E desce e desce e desce

de toda a imensidade

a salutar carícia de uma prece,

o eflúvio da saudade
20

que alaga o nosso peito heroicamente

como o luar de um treno

mavioso e emoliente,

mais doce que o sorrir do Nazareno.


Versos à infância

[I]

Nos roseirais, ao vir da madrugada,

desabrocham no val todas as rosas,

nos galhos cheios de uma luz doirada,

meigas e frescas, rubras, perfumosas,

nos roseirais, ao vir da madrugada.
5

Como em bocas cheirosas e vermelhas

pousam beijos de amor e de ventura,

o mel lhe sugam todas as abelhas

pousando em cima da corola pura

como em bocas cheirosas e vermelhas.
10

Desde os campos, o bosque, até aos montes

tudo renasce num jardim de flores;

e pelo azul do céu, nos horizontes,

há os mais vivos, raros esplendores,

desde os campos, o bosque, até aos montes.
15

Pelos ninhos sonoros, delicados,

cantam e trinam muitos passarinhos

nos altos arvoredos enflorados,

à margem verdejante dos caminhos,

pelos ninhos sonoros, delicados.
20

As borboletas brancas e amarelas,

azuis, cor de ouro, cor de prata e brasa,

leves, ligeiras, tênues e singelas,

abrem a fina talagarça da asa,

as borboletas brancas e amarelas.
25

Tudo no val acorda de desejos

à musica dos cantos mais risonhos;

e as aves soltas, peregrinos beijos,

dizem, cantando, que através de sonhos

tudo no val acorda de desejos.
30

II

Na alma da infância, tal e qual roseiras,

abrem festões de límpida fragrância

os sonhos e as quimeras passageiras

que são mais próprias do vergel da infância,

na alma da infância, tal e qual roseiras.
35

O pequenino coração ditoso

canta canções de uma ave pequenina;

e é um encanto ver assim radioso

no peito de uma cândida menina

o pequenino coração ditoso.
40

A existência de sol das criancinhas

lembra um pomar de frutas bem serenas,

por onde os colibris e as andorinhas

gozam amores sacudindo as penas,

a existência de sol das criancinhas.
45

Não sei dizer se adore mais crianças

ou mais também as flores de um arbusto;

nessas tão puras, castas semelhanças

eu, para ser bem carinhoso e justo,

não sei dizer se adore mais crianças.
50


(Desterro)

Triste

Em junho, que é mês do frio,

perdes todo o colorido,

tens um tom vago e sombrio

de dor, de mágoa e gemido.

Não sei que tristeza é essa
5

de tão doloroso cunho

que perdes a cor depressa

assim que vem vindo junho.

Ficas branca e desmaiada,

lembrando a lua serena,
10

fraca, pálida e gelada,

como frágil açucena.

Vão-se-te as rosas da face

emurchecendo e sumindo

num crepúsculo vivace
15

de tudo o que estás sentindo.

Ai! no entanto pelos prados

onde os dias resplandecem

risonhas como noivados

em junho as rosas florescem...
20


(Desterro)

Fonte de amor

Trago-a à tua presença

para que vejas a imensa

mágoa atroz que a devorou.

E saibas, ó flor das flores,

que a fonte dos seus amores
5

eternamente secou.

Foste à fonte buscar água

e tinha secado a fonte.

aí, flor azul do monte,

tiveste a primeira mágoa.
10

Porém se uma alma na frágua

das dores sem horizonte

queres ver, sentir defronte

dos olhos, manda que eu trago-a.


Castelã

Bela e mais encantadora

do que todas as belezas,

graça leve de pastora

que canta pelas devesas.

Enleios de passarinho
5

e brilhos de primavera,

com magnetismos de vinho

no olhar azul de quimera.

Feita de um jorro sadio

de auroras purpureadas
10

carne mais fresca que um rio

de frescas águas prateadas.

Tudo é frio e tudo é raso

para dizer-te a capricho

que és magnólia para um vaso,
15

que és arcanjo para um nicho.

És um mito da Alemanha

vivendo em montanha alpestre,

no castelo da montanha,

como ardente flor silvestre.
20

E tens as pomas à farta

polposas, cheias de aromas.

És assim a loura Marta

com abundância de pomas.

Esse príncipe que te ama,
25

cismando, trágico e grave,

quando o luar se derrama

cuida ouvir-te os vôos de ave.

Ele vive, airoso e belo,

como se vive num sonho,
30

no seu nevoento castelo

junto de um lago tristonho.

E através do pó flutuante

do luar saudoso e vago

julga que és a garça errante
35

das águas verdes do lago.


O sol e o coração

Sol, coração do Espaço que flamejas,

o coração é qual tu, sol de utopias...

Mas, coração, dize-me: -Que desejas?...

Foram-se já todas as alegrias,

ó; Sol! E tu, coração, que ainda adejas,
5

que fazes sobre as mortas fantasias?!...

Podes brilhar, ó Sol, vivo e fulgente!

E tu, coração, que me iludiste,

também podes bater, inutilmente.

Crença, Ilusão, Amor, já nada existe,
10

não mais levarás sobre a corrente

da tenebrosa dúvida mais triste.

Longe, mui longe, em regiões caladas,

emudecidos pelo Esquecimento,

estão hoje esses sonhos de alvoradas.
15

Foram-se, há muito, soltos pelo vento

entre as grandes ruínas derrocadas

do meu amargo e pobre pensamento,

Entre as profundas, tétricas ruínas

em que o doce fantasma desses sonhos
20

atravessou em lágrimas divinas.

Fantasma ideal, de cânticos risonhos

que da vida encontrei pelas colinas

e hoje vaga entre bulcões medonhos!

Fantasma que eu amei, visão errante
25

que sempre junto a mim vivia perto,

por mais longe que eu fosse e mais distante.

Visão que era como a água do deserto

para o meu coração sempre anelante,

sequioso de amor e sempre aberto...
30

Ó pobre coração, em vão te agitas,

em vão tu bates, coração estreito,

tal qual tu, Sol, nos páramos crepitas.

Nada mais, para mim, de satisfeito

brilha com o Sol nas plagas infinitas,
35

como não canta o coração no peito...

Podes, enfim, sumir-te nos Espaços

sol! E tu, coração, sempre batendo,

quebrar da terra os «Transitórios Laços»

eternamente desaparecendo!...
40


Cambiantes - sonetos e outros versos

Risadas

Às criaturas alegres


Fantasia, ó fantasia, tropo ardente

da aurora alegre undiflavando as bandas

do adamascado e rúbido oriente,

ó fantasia, águia das asas pandas.

Tu que os clarins do sonho mais fulgente
5

das Julietas, feres, nas varandas,

ó fantasia dos Romeus, ó crente,

por que países meridionais tu andas?!

Vem das esferas, entre os sons que vibras.

vem, que desejo emocionar as fibras,
10

quero sentir como este sangue impulsas.

Noiva do sol que os sóis preclaros gozas

para rimar umas canções de rosas,

como risadas de cristal, avulsas...


Ave! Maria...

Ave! Maria das Estrelas, Ave!

Cheia de graça do luar, Maria!

Harmonia de cântico suave,

das harpas celestiais branda harmonia...

Nuvem d'incensos através da nave
5

quando o templo de pompas irradia

e em prantos o órgão vai plangendo grave

a profunda e gemente litania...

Seja bendito o fruto do teu ventre,

Jesus, mais belo dentre os astros e entre
10

as mulheres judaicas mais amado...

Ó Luz! Eucaristia da beleza,

chama sagrada no Evangelho acesa,

maravilha do Amor e do Pecado!


Rir!

Rir! Não parece ao século presente

que o rir traduza, sempre, uma alegria...

Rir! Mas não rir como essa pobre gente

que ri sem arte e sem filosofia.

Rir! Mas com o rir atroz, o rir tremente,
5

com que André Gil eternamente ria.

Rir! Mas com o rir demolidor e quente

duma profunda e trágica ironia.

Antes chorar! Mais fácil nos parece.

porque o chorar nos ilumina e nos aquece
10

nesta noite gelada do existir.

Antes chorar que rir de modo triste...

pois que o difícil do rir bem consiste

só em saber como Henri Heine rir!...


Aspiração

Quisera ser a serpe astuciosa

que te dá medo e faz-te pesadelos

para esconder-me, ó flor luxuriosa,

na floresta ideal dos teus cabelos.

Quisera ser a serpe venenosa
5

para enroscar-me em múltiplos novelos,

para saltar-te aos seios cor-de-rosa.

E bajulá-los e depois mordê-los.

Talvez que o sangue impuro e rutilante

do teu divino corpo de bacante,
10

sangue febril como um licor do Reno

completamente se purificasse

pois que um veneno orgânico e vorace

para ser morto é bom outro veneno.


Sensibilidade

Como os audazes, ruivos argonautas,

intrépidos, viris e corajosos

que voltam dos orientes fantasiosos,

dos países de Núbios e Aranautas.

Como esses bravos, que por naus incautas,
5

regressam dos oceanos borrascosos,

indo encontrar nos lares harmoniosos

de luz, vinho e alegria as mesas lautas.

Tal o meu coração, quando aparece

a tua imagem, canta e resplandece,
10

sem lutas, sem paixões, livre de abrolhos.

A meu pesar, louco de ver-te, louco,

as lágrimas me correm pouco a pouco,

como o champanhe virginal dos olhos...


Glórias antigas

Rubras como gauleses arruivados,

voltam da guerra as hostes triunfantes,

trazem nas lanças d'aço lampejantes,

os louros das batalhas pendurados.

Os escudos e arneses dos soldados
5

rutilam como lascas de diamantes

e na armadura os músculos vibrantes,

rijos, palpitam, batem nervurados.

Dentre estandartes, flâmulas de cores,

trazem dos olhos rufos de tambores,
10

ruídos de alegria estranha e louca.

Chegam por fim, à pátria vitoriosa...

e então, da ardente glória belicosa,

há um grito vermelho em cada boca!


Magnólia dos trópicos

A Araújo Figueredo


Com as rosas e o luar, os sonhos e as neblinas,

ó magnólia de luz, cotovia dos mares,

formaram-te talvez os brancos nenúfares

da tua carne ideal, de correções felinas.

O teu colo pagão de virgens curvas finas
5

é o mais imaculado e flóreo dos altares,

donde eu vejo elevar-se eternamente aos ares

viáticos de amor e preces diamantinas.

Abre, pois, para mim os teus braços de seda

e do verso através a límpida alameda
10

onde há frescura e sombra e sol e murmurejo;

vem! com a asa de um beijo a boca palpitando,

no alvoroço febril de um pássaro cantando,

vem dar-me a extrema-unção do teu amor num beijo.


Supremo anseio

Esta profunda e intérmina esperança

na qual eu tenho o espírito seguro,

a tão profunda imensidade avança

como é profunda a idéia do futuro.

Abre-se em mim esse clarão, mais puro
5

que o céu preclaro em matinal bonança;

esse clarão, em que eu melhor fulguro,

em que esta vida uma outra vida alcança.

Sim! Inda espero que no fim da estrada

desta existência de ilusões cravada
10

eu veja sempre refulgir bem perto

esse clarão esplendoroso e louro

do amor de mãe -que é como um fruto de ouro,

da alma de um filho no eternal deserto.


Nerah

Inspirado no elegante conto de Virgílio Várzea

A Vítor Lobato


Nerah não brinca mais, não dança mais. -E agora

que vão-se apropinquando os tempos invernosos,

nerah traz uns receios tímidos, nervosos,

de quem teme mudar-se em noite, sendo aurora.

Seus sonhos de cristal, translúcidos, antigos
5

se vão embora, embora à vinda dos invernos,

seguindo em debandada os úmidos galernos-

-lembrando um roto bando informe de mendigos.

Não canta o sabiá que triste na gaiola,

parece, com o olhar, pedir-lhe a casta esmola
10

de um riso -aquela flor que esvai-se, branca e fria.

Em tudo a fina seta aguda de aflições!

Na própria atmosfera um caos de interjeições!

em tudo uma mortalha, em tudo uma agonia.


Amor

Nas largas mutações perpétuas do universo

o amor é sempre o vinho enérgico, irritante...

Um lago de luar nervoso e palpitante...

Um sol dentro de tudo altivamente imerso.

Não há para o amor ridículos preâmbulos,
5

nem mesmo as convenções as mais superiores;

e vamos pela vida assim como os noctâmbulos

à fresca exalação salúbrica das flores.

E somos uns completos, célebres artistas

na obra racional do amor -na heroicidade,
10

com essa intrepidez dos sábios transformistas.

Cumprimos uma lei que a seiva nos dirige

e amamos com vigor e com vitalidade,

a cor, os tons, a luz que a natureza exige!...


Filetes

A J. L.


De cravos, de rosas,

de lírios, perfumes,

de beijos, ciúmes,

de coisas formosas;

de cantos suaves
5

de músicas, vinhos

de aromas, arminhos

dos trinos das aves;

das cismas radiadas,

de esperanças aladas
10

por vagos escombros,

são feitos, são feitos

teus olhos perfeitos,

repletos de assombros.


Filetes

I

Ó pérola nitente,

ó pérola do amor,

ó imã redolente

das pétalas da flor;

ó lágrima sutil,
5

ó lágrima ideal,

do côncavo de anil

caída no cristal

do lago transparente,

harmoniosamente,
10

aos flocos do luar...

Tu és como as essências,

conheces as ciências

ocultas... de matar!

II

Cintila a estrela-d'alva
15

bem como o olhar do crente!

Perpassa no ambiente

o fresco olor da malva.

Um tic de lirismo,

simpático e harmônico,
20

derrama no sinfônico

riacho -um misticismo.

Há músicas supremas,

um mundo de problemas

nos montes seculares.
25

E como um lírio roxo,

a alma em canto frouxo

emigra para os ares.


(Desterro)

Arte

Como eu vibro este verso, esgrimo e torço,

tu, Artista sereno, esgrime e torce;

emprega apenas um pequeno esforço

mas sem que a Estrofe a pura idéia force.

Para que surja claramente o verso,
5

livre organismo que palpita e vibra,

é mister um sistema altivo e terso

de nervos, sangue e músculos, e fibra.

Que o verso parta e gire -como a flecha

que d'alto do ar, aves, além, derruba;
10

e como os leões, ruja feroz na brecha

da Estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.

Para que tenhas toda a envergadura

de asa e o teu verso, de ampla cimitarra

turca, apresente a lâmina segura,
15

poeta, é mister, como os leões, ter garra.

Essa bravura atlética e leonina

só podem ter artistas deslumbrados:

Que souberam sorver pela retina

a luz eterna dos glorificados.
20

Busca palavras límpidas e castas,

novas e raras, de clarões radiosos,

dentre as ondas mais pródigas, mais vastas

dos sentimentos mais maravilhosos.

Busca também palavras velhas, busca,
25

limpa-as, dá-lhes o brilho necessário

e então verás que cada qual corusca

com dobrado fulgor extraordinário.

Que as frases velhas são como as espadas

cheias de nódoa, de ferrugem, velhas
30

mas que assim mesmo estando enferrujadas

tu, grande Artista, as brunes e as espelhas.

Faz dos teus pensamentos argonautas

rasgando as largas amplidões marinhas,

soprando, à lua, peregrinas flautas,
35

louros pagãos sob o dossel das vinhas.

Assim, pois, saberás tudo o que sabe

quem anda por alturas mais serenas

e aprenderás então como é que cabe

a Natureza numa estrofe apenas.
40

Assim terás o culto pela Forma,

culto que prende os belos gregos da Arte

e levará no teu ginete, a norma

dessa transformação, por toda a parte.

Enche de estranhas vibrações sonoras
45

a tua Estrofe, majestosamente...

Põe nela todo o incêndio das auroras

para torná-la emocional e ardente.

Derrama luz e cânticos e poemas

no verso e torna-o musical e doce
50

como se o coração, nessas supremas

estrofes, puro e diluído fosse.

Que as águias nobres do teu verve esvoacem

alto, no Azul, por entre os sóis e as galas,

cantem sonoras e cantando passem
55

dos Anjos brancos através das alas...

E canta o amor, o sol, o mar e as rosas,

e da mulher a graça diamantina

e das altas colheitas luminosas

a lua, Juno branca e peregrine.
60

Vibra toda essa luz que do ar transborda

toda essa luz nos versos vai vibrando

e na harpa do teu Sonho, corda a corda,

deixa que as Ilusões passem cantando.

Na alma do artista, alma que trina e arrulha
65

que adora e anseia, que deseja e que ama

gera-se muita vez uma fagulha

que se transforma numa grande chama.

Faz estrofes assim! E após na chama

do amor, de fecundá-las e acendê-las,
70

derrama em cima lágrimas, derrama,

como as eflorescências das Estrelas...


Arte

[Variação]

Como eu vibro este verso, esgrimo e torço,

tu, ó poeta moderno, esgrime e torce;

emprega apenas um pequeno esforço

mas sem que nada a pura idéia force.

Para que saia vigoroso o verso,
5

como organismo que palpita e vibra,

é mister um sistema altivo e terso

de nervos, sangue e músculos e fibra.

Que o verso parta e gire como a flecha

que do alto do ar, aves, além, derruba
10

e como um leão ruja feroz na brecha

da estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.

Para que tenhas toda a envergadura

de asa, o teu verso, como a cimitarra

turca apresente a lâmina segura,
15

poeta, é mister como um leão, ter garra.

Essa bravura atlética e leonina

só podem ter artistas deslumbrados

que sorvem com lábios e retina

a luz do amor que os fez iluminados.
20

Nem é preciso, poeta, que te esbofes

para ferir um verso que fuzile;

põe a alma e muitas almas nas estrofes

e deixa, enfim, que o verso tamborile.

Busca palavras límpidas e novas,
25

resplandecentes como sóis radiosos

e sentirás como te surgem trovas

belas de madrigais deliciosos.

Busca também palavras velhas, busca,

limpa-as, dá-lhes o brilho necessário
30

e então verás que cada qual corusca,

com dobrado fulgor extraordinário.

Que as frases velhas são como as espadas

cheias de nódoas de ferrugem, velhas,

mas que assim mesmo estando enferrujadas
35

tu, grande artista, as brunes e as espelhas.

Que toda a vida e sensação de estilo

está na frase, quando se coloca,

antiga ou nova, mas trazendo aquilo

que soa como um tímpano que toca.
40

Como o escultor que apenas faz de um bloco

a estátua -com supremo e nobre afinco

estuda a natureza num só foco:

a prata, o bronze, o cobre, o ferro, o zinco.

Estuda dos rubis, estuda do ouro
45

e dos corais, da pérola e safira,

todo esse íris febril radiante e louro

que é a centelha de sol em toda a lira.

Estuda todos os metais, estuda,

desce à matéria prodigiosa e vasta,
50

estuda nela a natureza muda,

os veios de cristal da origem casta.

Estuda toda a intensa natureza

feita de aromas, de canções e de asas

e sente a luz da cor e da beleza
55

rir, flamejar e arder, iriar em brasas.

Faz dos teus pensamentos argonautas

rasgando as largas amplidões marinhas,

soprando, à lua, peregrinas flautas,

como os pagãos sob o dossel das vinhas.
60

Assim, pois, saberás tudo o que sabe

quem anda por alturas mais serenas

e aprenderás então como é que cabe

a natureza numa estrofe apenas.

Assim terás o culto pela forma,
65

culto que prende os belos gregos da arte

e levarás no teu ginete, a norma

dessa transformação por toda a parte.

Enche de alegres vibrações sonoras

a tua idéia pródiga e valente,
70

põe nela todo o incêndio das auroras

para torná-la emocional e ardente.

Derrama luz e cânticos e poemas

no verso e fá-lo musical e doce

como se o coração, nessas supremas
75

estrofes, puro e diluído fosse.

Que a abelha de ouro do teu verso esvoace,

fulja como um fuzil numa borrasca;

que o verso quando é bom por qualquer face

lembra um fruto saudável desde a casca.
80

Com arte, forma, cor, tudo isso em jogo,

engrinaldado e rútilo de crenças,

o sonho cresce -o pássaro de fogo

que habita as altas regiões imensas.

E canta o amor, o sol, o mar e o vinho,
85

as esperanças e o luar e os beijos

e o corpo da mulher -esse carinho-

canta melhor, vibra com mais desejo.

Canta-lhe a sinfonia dos olhares

a cálida magnólia austral das pomas,
90

e quando então tudo isso enfim cantares

em tudo põe a fluidez de aromas.

Vibra toda essa luz que do ar transborda

como todo o ar nos seres vai vibrando

e da harpa do teu sonho, corda a corda,
95

deixa que as ilusões passem cantando.

Na alma do artista, alma que trina e arrulha,

que adora e anseia, que deseja e ama,

gera-se muita vez uma fagulha

que explose e se abre numa grande chama.
100

Pois essa chama que a fagulha gera,

que enche e que acende o espírito de força,

sobe pela alma como primavera

de rosas sobe por coluna torsa.

Faz estrofes assim, de asas de rima,
105

depois de fecundá-las e acendê-las

de amor, de luz -põe lágrimas em cima,

como as eflorescências das estrelas.


O duque

Quando o duque voltava da caçada

alegre, num clarim d'aço vibrante

de alacridade moça e evigorada

dum ruidoso e trêfego estudante.

Quando ele vinha com seu ar bizarro
5

de atravessar os vales e as colinas,

sadio aspecto fresco como um jarro

cheio de leite às horas matutinas.

Em toda a aristocrática varanda

alta e vistosa, ampla, aberta em janelas,
10

ele vibrava, de uma e outra banda,

canções de amor, nostálgicas e belas.

Do salão nobre entre tapeçarias

de Gobelins, riquíssimas e raras,

iam vibrando aladas harmonias
15

da sua voz, esplêndidas e claras.

Todas as fluidas, leves, calmas, frescas

manhãs azuis, serenas e formosas,

loura mulher das regiões tudescas

o seu bom dia era mandar-lhe rosas.
20

Floria, é certo, em grande amor, floria

gerado pelo eflúvio dessas flores,

pois quando o duque não as recebia

era o mais infeliz dos caçadores.

Tão doce amor lembrava aquelas lendas
25

dos medievais castelos esquecidos,

quando visões de nuvens e de rendas

apareciam nos balcões floridos.

A caça, a caça, eternamente a caça!

Quanto melhor, mais fácil não lhe fora
30

a conquista das aves do que a graça

de conquistar essa beleza loura!

Para possuí-la como noiva amada,

aceso há muito nas paixões insanas,

arrostaria a caça mais ousada
35

dos javalis nas selvas africanas.

E sempre as lindas rosas matutinas

vinham-no perfumar todos os dias,

quando saltava aos vales e às colinas,

bizarro e são, dentre as tapeçarias.
40

Tempos passaram sobre tais amores!

Mas depois de casado fez surpresa

saber que o duque, o rei dos caçadores,

não tinha o mesmo amor pela duquesa.


A espada

I

Cavalheiros, os tempos já passados,

de pajens, de canzéis, de fidalguia,

de castelos, de reinos brasonados.

Ar cortesão de graça e fantasia

através dos olhares e dos beijos
5

-No silêncio de cada galeria...

Foi nesse bravo tempo dos lampejos

de espadas, de punhais e de couraças

por combater frementes de desejos.

No tempo dos floreios e das caças
10

dos assaltos alegres e bizarros

como as sonoras vibrações das taças.

Em que as almas airosas como jarros,

cheios de vinho espumejante e ardente

eram de glória vencedores carros!
15

Foi no tempo fidalgo e refulgente,

quando o heroísmo fantasioso amava

a linha e a chama de luzida gente,

que esta cena galharda se passava,

quando um donzel partia para guerra
20

como a nobreza do solar mandava.

O pai, um tronco transudando a terra,

forte e viril, presença de profeta

que no seu flanco a valentia encerra.

Barbas serenas de bondoso asceta
25

em cuja alvura doce e veneranda

vê-se a vontade e a intrepidez completa.

Fronte banhada de meiguice branda

a que o dever e os ríspidos conselhos

dão sempre a austeridade que age e manda.
30

Lembra um ocaso de clarões vermelhos,

musgoso, triste, desolado muro,

por onde o luar abre fulgor d'espelhos.

E esse semblante que parece duro,

áspero e torvo, trouxe-o dos combates,
35

do torvelinho do nevoeiro escuro.

Dos pelouros sangüíneos escarlates,

de fogo aberto em turbilhões, vorazes,

dos impulsivos, bélicos rebates.

Mas, bem olhadas, as feições audazes
40

desse velho patriarca destemido

tinha a suavidade dos lilases.

Nos olhos, um passado consumido

entre aventuras e colóquios belos

como que faz um verdadeiro ruído...
45

Sente-se neles noites de castelos

gozadas em amores dadivosos,

em madrigais, em íntimos desvelos.

Cavalgadas, torneios donairosos,

sonho feliz de rica mocidade,
50

requintes ideais, cavalheirosos.

Tudo se sente na tranqüilidade

desse deus varonil da força antiga

feito com o rijo bloco da Verdade.

Tudo se sente nessa paz amiga
55

que as crenças do passado às outras crenças

vagas, futuras, para sempre liga.

Tudo se sente vir das névoas densas

e da ridente e cândida meiguice

das suas barbas límpidas e imensas.
60

Sim! tudo da quase criancice

que dão aos homens esses tons nevoentos

da enregelada e trêmula velhice.

Porém, reatando aéreos pensamentos...

comecemos na cena detalhada
65

que já das eras se espalhou nos ventos.

É nada mais que a história duma espada,

história curta, mas interessante

duma espelhante lâmina timbrada.

Não é pelo aço ou lâmina espelhante
70

que irei contar, pois são comuns os aços,

mas pelo nobre e original rompante.

Pelo ardimento que os primeiros braços

que a manejaram com pujança e brio

nela gravaram, com profundos traços.
75

II

O velho, em pé, atlético e sombrio

diante do filho armado cavaleiro,

no aspecto dum leão ruivo e bravio.

Fala-lhe claro, d'alto e sobranceiro,

numa solene e enérgica atitude
80

de quem nos prélios sempre foi primeiro.

O filho, grave o escuta e atende a rude

lhanez estóica de palavra augusta

que dos lábios lhe sai, com tal saúde.

Calmo, sem se mover, firme a robusta
85

figura solarenga do estoicismo,

o velho disse esta nobreza justa:

«Aqui tens esta espada que o heroísmo

dos teus avós honrou nessas campanhas,

com o mais ousado, intrépido civismo.
90

Freme ainda hoje em convulsões estranhas,

palpita e anseia dentro da bainha

sonhando a luta, as implacáveis sanhas.

Tu, para a teres, como eu sempre a tinha,

num triunfo imortal, quase divino,
95

de gládio que o valor maior continha;

É necessário um grande ardor leonino,

que sejas bem idólatra do nome

que fez de mim o extremo paladino.

A ferrugem, tu vês, o aço consome...
100

porém, neste aço que ainda aqui fulgura,

se houver ferrugem, tira-a com o renome.

Aqui tens, pois, a lâmina segura,

alma e brasão da nossa velha casa

coberta de ovações, famosa e pura».
105

Calou-se um instante, como a ave que a asa

fechou no voar, já quase que abatida,

caindo exausta junto à moita rasa.

O filho, mudo e respeitoso, erguida

a valente cabeça leal de moço,
110

formoso estava, porejando vida.

E enquanto o velho, impávido colosso,

calara-se num momento, emocionado

ficara o filho em íntimo alvoroço.

Mas de repente, como iluminado
115

por um clarão de glórias já extintas,

tornou o velho, aos poucos transformado:

«Podes partir! Porém nunca desmintas

nas pelejas o dom da nossa fama,

por menos força que no peito sintas.
120

Como um clarim, por toda a parte aclama

o vigor deste ferro e do teu pulso

no combate que ruja, ulule e brama.»

E cada vez mais pálido e convulso,

mais nervoso e febril e mais altivo
125

bradou ainda, num tremendo impulso:

«Se tu, que és da minh'alma o exemplo vivo,

meu filho, tens de ser como um cobarde,

como um vilão abjeto e repulsivo;

não faças mais de fidalguia alarde,
130

pega esta espada, meu Afonso, pega

e quebra-a de uma vez, que não é tarde.

Pois em lugar de fazer dela entrega

aos sequiosos, feros inimigos

antes a quebre a cólera mais cega.
135

Ei-la, aqui tens, a leoa dos perigos,

que como outrora em minha mão lampeja

da bravura e da fama nos abrigos.

Se não a tens de honrar nessa peleja

escuta bem, ó meu amado filho,
140

quebra-a, e o teu nome nem manchado seja.

Como eu faria noutra idade e brilho,

com outras energias musculares,

segue-me tu no denodado trilho.»

E assim falando, em gestos singulares,
145

e agigantado corpo retesando

e um tom sinistro esparso nos olhares;

A cabeça nos ares agitando

numa alucinação, -enorme ereto,

como heróica visão, deblaterando...
150

Fitando bem o filho predileto,

como se de repente lhe brotasse

a força hercúlea dum poder secreto.

O velho, qual um templo que abalasse,

mão crispada, lívida e nervosa,
155

com todo o esforço a lhe afluir na face,

partiu no joelho a espada vitoriosa.


Desmoronamento

Dentro do coração, no côncavo do peito

choro a grande ilusão do amor, desfalecida,

dentre o gozo feliz, nostálgico da vida;

Já exangue, afinal, já morto, já desfeito.

Por visões que adorei num vago tempo incerto
5

não sei por que razão avivo agora as mágoas,

num pranto doloroso e triste, como as águas

do mar grosso a bater sobre o costão deserto.

Tu, ó doce visão de perfumosas tranças,

todo o meu puro e terno sentimento invades
10

e eu não sei o que fiz das minhas esperanças

que de longe que vão parecem mais saudades.

Tudo o que houve em meu ser de compaixão e crença

para sempre secou, secou já como um rio;

para sempre também subi ao escombro frio
15

da dúvida mortal, avassalante, imensa.

Para sempre me achei sem bússola e sem rumo

no fundo de regiões estranhas e afastadas...

As almas que eu amei, vi mudas e apagadas,

vi tudo se sumir numa espiral de fumo.
20

Bem depressa fiquei como um ermo remoto

como torvo areal sem plantas e sem fontes,

donde apenas se vê rasgar a terra o broto

do cardo retorcido e áspero dos montes.

Muitas vezes, porém, como entre os arvoredos
25

onde juntas, no val, todas as aves cantam

no meio do rumor, de sombras e segredos,

sinto dentro de mim que uns sonhos se levantam.

Borboleteio, a rir, por entre os sons e as flores,

como um pássaro azul de uma plumagem linda
30

e canto alegremente a canção dos amores,

que este peito viril sabe cantar ainda.

Lembro então corações que já me abandonaram,

que eu senti palpitar, por sobre o meu pulsando,

que vão hoje através das afeições chorando,
35

que sofreram comigo e que comigo amaram.

Entretanto a minh'alma em vôo largo e ufano,

de repente triunfal, de súbito gloriosa,

tem a pompa de sol, vermelha e luminosa,

da púrpura esvoaçante e aberta de um romano.
40

E esse fulgor, que vem dos meus sonhos dispersos

na névoa do passado, errantes e dolentes;

dá-me ardidos corcéis fogosos e frementes

para atrelar, jungir ao carro destes versos.

Claramente recordo e penso nas estradas
45

que percorri, que andei às ilusões, sozinho,

vendo que todo o amor das virginais amadas,

tinha a mesma fatal embriaguez do vinho.

Quantos entes febris, que o amor embriaga e ofusca

assim, durante a vida, ansiosamente exaustos,
50

não encontram, talvez, dessas visões em busca,

as Margaridas vãs dos ilusórios Faustos!


Clarões apagados

Flor de planta aromática, sinistra,

nascida nas inóspitas geleiras,

célebre flor que o meu Ideal registra,

trepadeira das raras trepadeiras.

Serpe nervosa entre as nervosas serpes,
5

carnívora bromélia da luxúria

de gozo tetaniza como as herpes

da tua boca a polpa atra e purpúrea.

O teu amor, que lembra vinhos de Hebe

e essa áspera feição do abeto fusco,
10

como um réptil que salta numa sebe,

saltou-me ao peito, impetuoso e brusco.

Eu ia por estranhos descampados,

por extensos desertos impassíveis,

na trágica visão dos naufragados
15

perdidos entre os temporais terríveis.

Sem rumo certo, num sombrio inferno,

sozinho, sobre a desolada areia

arrastando a existência, de onde, eterno

um sapo coaxa e um rouxinol gorjeia.
20

Quando tu de repente, então surgiste

beleza das belezas redentoras,

tendo essa meiga formosura triste

das formosas e flébeis pecadoras.

Fosse talvez uma tremenda insânia
25

tão alta erguer o meu amor, tão alto;

mas este coração frio, da Ucrânia,

anelava galgar o céu de um salto.

E fui, galguei, subi, voei na altura,

além dos verdes píncaros do monte,
30

donde resplende a tua formosura

no clarão das estrelas do horizonte.

Foi o mesmo que se eu num templo entrasse

e aí num formidável sacrilégio,

as angélicas vestes arrancasse
35

das santas de áureo diadema régio.

Como um leão sem juba e garra, preso,

na indiferença, já morreu comigo

todo esse amor profundamente aceso

na ideal constelação de um sonho antigo.
40

Apenas pelo Saara imorredouro

do longínquo passado, ergue, altaneira,

majestosa folhagem no sol d'ouro,

dessas recordações a alta palmeira...


Asas perdidas

A Carlos Jansen Júnior


Afora, pelo azul indefinido e largo,

passam asas sutis, pelo éter, longe, afora,

como que a demandar outra mais doce aurora

que a desta vida atroz, toda veneno amargo.

Não as asas assim, bem longe, pela curva,
5

no Vago, na Amplidão, perdidas pelos ares

até virem caindo os véus crepusculares,

toda a angústia do Ocaso, emocional e turva.

E diante dessa dor das tardes que esmaecem

as asas, pelo Azul, em vôos desgarrados
10

como a oração final dos tristes naufragados,

longinquamente, além, tênues desaparecem

cai então de uma vez a sombra dos Segredos...

E na serena paz das noites adormidas,

entre o fundo chorar dos calmos arvoredos,
15

ninguém verá jamais essas asas perdidas.

E as asas o que são no firmamento errantes,

perdidas pelo Tempo, esparsas pelas Eras,

senão os sonhos vãos, Mundos alucinantes

cheios do resplendor das flóreas primaveras?!
20

Por isso, eu quando o Azul repleto de asas vejo,

muito alto, céu acima, os páramos rasgando,

toda a minh'alma oscila e treme num desejo

em busca das regiões da Dúvida, chorando!


Anjo Gabriel

Na calma irradiação das noites estreladas

alto e claro aparece, alto, aparece, claro,

alvo, claro, no luar das estrelas prateadas,

no triunfal esplendor celestemente raro.

O seu busto de Excelso, a sua graça fina,
5

a linha de harpa ideal do seu perfil augusto,

estremecem de luz, de uma luz peregrina,

do secreto fulgor de um sentimento justo.

Serenidade e glória e paz do Paraíso

flutuam-lhe na face alvorecida e doce
10

e quando ele sorri é como se o sorriso

claros astros semear por todo o espaço fosse.

Leve, loura,.radial, a soberba cabeça

eleva-se da flor do níveo colo louro

e não há outro sol que tanto resplandeça
15

como o sol virginal dessa cabeça de ouro.

As mãos esculturais, de ebúrnea transparência,

de divina feitura e de divino encanto,

lembram flores sutis de sonhadora essência

da etérea languidez e de etéreo quebranto.
20

Das madeixas reais largo deslumbramento

num flavo jorro cai, com sagrado abandono...

E sai do Anjo o quer que é de vago e de nevoento

que lembra o despertar sonâmbulo de um sono...

De alto a baixo, do Azul, desfilando das brumas,
25

abre todo ele em flor como nevado lírio,

belo, branco, eteral, do candor das espumas,

banhado nos clarões e cânticos do Empíreo.

Maravilhoso e nobre ergue no braço ovante

um gládio singular que rútilo cintila...
30

Enquanto o seu olhar de mágico diamante

aflora em plenilúnio através da pupila.

Que o seu olhar, então, esse, recorda tudo

o quanto há de tranqüilo e luminoso e casto.

maio de ouro a florir meigos céus de veludo
35

e a neve a cintilar sobre o monte mais vasto.

Do puro albor astral das asas majestosas,

desprendem-se no Azul mistérios de harmonia...

Entre as angelicais suavidades radiosas

parece o Anjo Gabriel o alto Enviado do Dia!
40

Na chama virginal de tão rara beleza

brilha a força de um Deus e a mística doçura...

E sai das seduções de tamanha pureza

toda a melancolia errante da ternura.

Do suntuoso agitar das delicadas vestes
45

tecidas de jasmins, de rosas, de açucenas,

vem o aroma cristão dos aromas celestes,

todas as imortais emanações serenas...

Transfigurado, excelso, agigantado, imenso,

na candidez hostial das formas impecáveis,
50

fica parado no ar, levemente suspenso

de raios siderais, de fluidos inefáveis.

Mas quando o seu perfil nas amplidões floresce

e das asas se lhe ouve a música sonora

quando ele agita o gládio e as madeixas, parece
55

que vai noctambular pelo Infinito afora.

E alto, branco, de pé, destacado no Espaço,

eleito das Regiões de estranhas Primaveras,

traça, com o gládio no ar, alevantando o braço,

uma cruz de Perdão na mudez das Esferas!
60


O cego do harmonium

Esse cego do harmonium me atormenta

e atormentando me seduz, fascina.

A minh'alma para ele vai sedenta

por falar com a sua alma peregrina.

O seu cantar nostálgico adormenta
5

como um luar de mórbida neblina.

o harmonium geme certa queixa lenta,

certa esquisita e lânguida surdina.

Os seus olhos parecem dois desejos

mortos em flor, dois luminosos beijos
10

fanados, apagados, esquecidos...

Ah! eu não sei o sentimento vário

que prende-me a esse cego solitário,

de olhos aflitos como vãos gemidos!


Ocasos

Morrem no Azul saudades infinitas,

mistérios e segredos inefáveis...

Ah! Vagas ilusões imponderáveis,

esperanças acerbas e benditas.

Ânsias das horas místicas e aflitas,
5

de horas amargas das intermináveis

cogitações e agruras insondáveis

de febres tredas, trágicas, malditas.

Cogitações de horas de assombro e espanto

quando das almas num relevo santo
10

fulgem de outrora os sonhos apagados.

E os bracos brancos e tentaculosos

da Morte, frios, álgidos, nervosos,

abrem-se pare mim torporizados.


Naufrágios

I

O mar! O mar! Quem nunca viajasse...

Quem nunca dentre dúvidas sentisse

o coração e ai, nunca embarcasse.

Oh! quem do mar as cóleras punisse!

Ora o mar é sereno, é calmo, é manso,
5

as vagas são melódicos arpejos

dando à embarcação leve balanço,

como um afago maternal de beijos.

Ora o mar franco, livre e transparente,

tão tranqüilo que está, tão brando, rindo,
10

que até parece, que até cuida a gente

que os corações podem boiar, dormindo.

Ora ferve, rebenta, estoura, estala,

rude, feroz, em convulsões, profundo,

abrindo a corpos pavorosa vala
15

e mundos de agonia num só mundo!

II

Filho! Filho! Adeus, querido,

vou viajar para além,

sejas de Deus protegido...

Que sempre me queiras bem.
20

Vou deixar-te nesta terra,

entregue aos destinos teus;

filho, o que este adeus encerra

só o pode saber Deus.

Levo as crenças em pedaços,
25

como pedaços de céus.

Vou ver mar, vou ver espaços

ver temporais, escarcéus.

Filho amado, vou deixar-te

cá na terra, pelo mar;
30

porem, crê, de qualquer parte,

crê, meu filho, hei de voltar.

III

Adeus, noiva, vou-me embora,

vou-me com Deus, é preciso.

Que colhas em cada aurora
35

muita messe de sorriso.

Sou soldado, o meu destino

é viver bem longe, é certo,

longe do canto divino

da tua voz, sol aberto.
40

Custa bem esta partida

a mim que entanto sou forte.

Ninguém sabe o que é a vida

para quem vive da morte.

Da morte, sim, pomba amada;
45

que as minhas crenças já mortas

tu, com essa alma estrelada

sem tu sequer me confortas.

Perdi pai, perdi carinhos

de mãe, de irmãos e de todos.
50

Eu sou como a flor de espinhos

nascida por entre lodos.

Tu vieste, ó noiva, apenas,

como um íris de esperanças,

dar-me alvoradas serenas,
55

encher-me de confianças.

Só em ti confio, espero

com ardor, com fé veemente,

pomba de luz que eu venero,

doce vésper do oriente.
60

Adeus, pois chegou a hora,

vou-me com Deus, minha filha;

não chores, que o mar não chora:

-Olha, vê que canta e brilha.

IV

Adeus, esposa extremosa,
65

vou-me, não sei para quando

voltar -minh'alma saudosa

por meus filhos vai chorando.

Ficam-te eles no entretanto

pra tirarem-te os pesares,
70

para enxugarem-te o pranto

que há de ser maior que os mares.

Maior que os mares, não minto,

não exagero tão pouco,

porque ai, só tu e só eu sinto
75

o nosso amor como é louco.

Vou-me às viagens, aos dias

passados entre horizontes

e mares e ventanias

sem arvoredos, sem montes.
80

Os dias de céus eternos

e de mar ilimitado,

com tempo de atroz infernos

com tempo de sol doirado.

Adeus! Cá dentro do peito
85

há dois corações unidos;

sobre um -o mar tem direito,

sobre outro -os filhos queridos.

V

Eis as canções e adeuses de saudade

que as desgraçadas almas palpitantes
90

soluçam na sombria imensidade

desta vida de angústias lacerantes.

Ao mar! Ao mar! Frescas aragens puras

aflam nas ondas maviosamente.

Que balada de plácidas venturas,
95

que sinfonias, que gemer dolente!

Os céus abertos, claros, luminosos

lembram a candidez branda das virgens.

Vítreos ares, magníficos, radiosos

onde o sol arde em férvidas vertigens.
100

Lindíssimos painéis, bela paisagem

abre na vista do viajante o ouro

da luz que salta como uma homenagem

de oriental, esplêndido tesouro.

Vai bem, vai muito bem, mesmo, o navio.
105

as vagas desenrolam-se de leve.

Parece um berço por de sobre um rio

manso, prateado, espúmeo, cor de neve.

Vive-se a bordo como em terra. -As vagas

nunca foram tão doces e tão meigas,
110

como em desertas, viridentes plagas

é doce e meigo o mole chão das veigas.

Viver assim, na realidade, é gozo

que até parece não haver na terra!

Tão belo é o mar, tão calmo e bonançoso,
115

tal confiança nos semblantes erra!

Vogando assim a embarcação, quem pensa

ir acordado afora pela Vida?!

Tudo é um sonho de esperança imensa

um bom sonho de aurora indefinida.
120

VI

Súbito os ares enchem-se de noite

e grita e zune, zargunchando o vento

que esbraveja, morde com rijo açoite

o mar que espuma e empola num momento.

Não estrugem os raios pela treva
125

não há trovões bravios rebentando

como canhões que estouram, -mas se eleva

do oceano um vendaval que vai urrando

Com fúrias e com cóleras enormes

como potros sanhudos relinchando
130

em pinotes e berros desconformes.

Caiu talvez no mar o etéreo espaço,

toda a cúpula azul tombou, quem sabe?

Céus! há lutas ali, de braço a braço.

Horror! Crível será que o mundo acabe?
135

Ninguém calcula o que será tudo isso...

Mas os ventos elétricos, largados

nas amplidões do mar antes submisso,

rugindo vão como desesperados.

Deus, ó meu Deus, todas as bocas gritam,
140

e se afervora mais e mais a crença.

Mas, onde os astros muita vez palpitam

no céu, há noite cada vez mais densa.

Ah! que mudez de túmulo nos ares.

Nada responde, oh! nada então responde;
145

mas onde está o grande Deus dos mares

e da terra, onde está, aonde, aonde?

Tudo está mudo -a natureza inteira,

tudo emudece e não responde nada;

e só os vendavais têm a maneira
150

de responder dando uma gargalhada.

Gargalhada de lágrimas atrozes,

de lágrimas de morte e de agonia

que abafa e extingue na garganta as vozes,

gera a coragem que é a luz do dia.
155

O valentes e rudes marinheiros

vindos da pátria para pátria nova,

que sepultais amores verdadeiros

do tão profundo coração na cova;

ó viajantes de longe, de países
160

onde a vida cintila e canta alerta

como um turbilhão de aves felizes

numa campina de rosais, deserta;

ó vós todos que vindes lá do oceano,

entre as mais bruscas e hórridas tormentas.
165

Lá do mar alto, à vela, a todo o pano,

com as almas ansiosas e sedentas

De chegar cedo ao porto desejado,

calculai, calculai o quanto é triste

ver dar à praia um pobre desgraçado
170

em cuja carne a podridão existe!

À praia! À praia! Dai à praia, morto,

rejeitado por ondas convulsivas,

indo encontrar na sepultura o porto,

deixando ao mundo as ilusões mais vivas.
175

O eterno amor de mãe, de filho, esposa,

tanta fé, tanto riso de alegria,

tanta coisa dourada, ai tanta coisa

que ao recordar toda a nossa alma esfria.

Morrer no mar, os nervos contraídos,
180

numa asfixia atroz, cerrando os dentes,

num abismo de dores e gemidos,

de maldições e de uivos de descrentes;

morrer no mar, sem o farol amigo,

esse farol que os náufragos anima,
185

fora de proteção, fora de abrigo,

sem sequer uma luz no espaço, em cima;

morrer no mar, sem astros no infinito,

na solidão das águas, fria, imensa,

enquanto a treva dura de granito,
190

ri-se de tudo, com indiferença;

morrer no mar, só e desamparado

e num terror que não acaba nunca,

vendo rasgar o corpo enregelado

o desespero como garra adunca.
195

É horrível! Bem sei! Mas ai daqueles

que morrem mesmo assim lá no mar fundo

sem ter alguém que ao menos neste mundo

derrame uma só lágrima por eles!


(Desterro)

Poesias para um livro derradeiro

Violinos

Pelas bizarras, góticas janelas

de um templo medieval o sol ondula:

Nunca os vitrais viram visões mais belas

quando, no ocaso, o sol os doura e oscula...

Doces, multicores aquarelas
5

sobre um saudoso céu que além se azula...

calma, serena, divinal, entre elas,

a pomba ideal dos Ângelus arrula...

Rezam de joelhos anjos de mãos postas

através dos vitrais, e nas encostas
10

dos montes sobe a claridade ondeando...

É a lua de Deus, que as curvas meigas

foi ondular pelos vergéis e veigas

magnólias e lírios desfolhando...


Na fonte

Bem ao lado da gruta a fonte corre

trepidamente, as águas encrespando,

em murmúrios crebros, levantando

uns chamalotes prateados -morre

no monte o sol que a luz no oceano escorre
5

e ainda eu vejo, as sombras afrontando,

uma mulher que lava, mesmo quando

o sol mais rubro, mais vermelho jorre.

-É num sítio afastado, um sítio ermo...

Pássaros cortam vastidões sem termo,
10

borboletas azuis roçam nas águas.

-E a mulher lava, enrubescida a face;

lava, cantando, como se lavasse

as suas tristes e profundas mágoas.


[A fonte de águas cristalina corre]

A fonte de águas cristalinas corre

chamalotes de prata levantando,

e através de arvoredos murmurando,

entre arvoredos murmurando morre...

No ocaso, o sol, a luz no oceano escorre
5

e sempre vejo, as sombras afrontando,

uma mulher que canta e ri, lavando,

mesmo que o sol muito abrasado jorre.

É verde o campo, deleitável e ermo.

Pássaros cortam vastidões sem termo,
10

borboletas azuis roçam nas águas.

E cantando, a mulher, a rir a face,

lava cantando como se lavasse

as suas grandes e profundas mágoas.


Plenilúnio

Vês este céu tão límpido e constelado

e este luar que em fúlgida cascata,

cai, rola, cai, nuns borbotões de prata...

Vês este céu de mármore azulado...

Vês este campo intérmino, encharcado
5

da luz que a lua aos páramos desata...

vês este véu que branco se dilata

pelo verdor do campo iluminado...

Vês estes rios, tão fosforescentes,

cheios duns tons, duns prismas reluzentes,
10

vês estes rios cheios de ardentias...

Vês esta mole e transparente gaze...

pois é, como isso me parecem quase

iguais, assim, às nossas alegrias!


Manhã

Alta alvorada. -Os últimos nevoeiros

a luz que nasce levemente espalha;

move-se o bosque, a selva que farfalha

cheia da vida dos clarões primeiros.

da passarada os vôos condoreiros,
5

os cantos e o ar que as árvores ramalha

lembram combate, estrídula batalha

de elementos contrários e altaneiros.

Vozes, trinados, vibrações, rumores

crescem, vão se fundindo aos esplendores
10

da luz que jorra de invisível taça.

E como um rei num galeão do Oriente

o sol põe-se a tocar bizarramente

fanfarras marciais, trompas de caça.


Hóstias

A Emílio de Menezes


Nos arminhos das nuvens do infinito

vamos noivar por entre os esplendores,

como aves soltas em vergéis de flores,

ou penitentes de um estranho rito.

Que seja nosso amor -sidério mito!-
5

o límpido turíbulo das dores,

derramando o incenso dos amores

por sobre o humano coração aflito.

Como num templo, numa clara igreja,

que o sonho nupcial gozado seja,
10

que eu durma e sonhe nos teus níveos flancos.

Contigo aos astros fúlgidos alado,

que sejam hóstias para o meu noivado

as flores virgens dos teus seios brancos!


Boca imortal

Abre a boca mordaz num riso convulsivo

ó fera sensual, luxuriosa fera!

Que essa boca nervosa, em riso de pantera,

quando ri para mim lembra um capro lascivo.

Teu olhar dá-me febre e dá-me um brusco e vivo
5

tremor às carnes, que eu, se ele em mim reverbera,

fico aceso no horror da paixão que ele gera,

inflamada, fatal, dum sangue rubro e ativo.

Mas a boca produz tais sensações de morte,

o teu riso, afinal, é tão profundo e forte
10

e tem de tanta dor tantas negras raízes;

rigolboche do tom, ó flor pompadouresca!

Que és, para mim, no mundo, a trágica e dantesca

imperatriz da Dor, entre as imperatrizes!


Psicologia humana

A Santos Lostada


Por trás de uns vidros d'óculos opacos

muita vez um leão e um tigre rugem,

e como um surdo temporal estrugem

os ódios dos covardes e dos fracos.

Partir pudesses, ó poeta, em cacos,
5

vidros que ocultam almas de ferrugem,

que espumam de ira, tenebrosas mugem,

mugem como de dentro de uns buracos.

Que essas sombrias, dúbias almas foscas

que parecem, no entanto, como moscas,
10

inofensivas, babam como as lesmas.

Mas tu, em vão, tais vidros partirias,

pois que no mundo, eternamente, as frias

almas humanas serão sempre as mesmas!


Os mortos

Ao menos junto dos mortos pode a gente

crer e esperar n'alguma suavidade:

crer no doce consolo da saudade

e esperar do descanso eternamente.

Junto aos mortos, por certo, a fé ardente
5

não perde a sua viva claridade;

cantam as aves do céu na intimidade

do coração o mais indiferente.

Os mortos dão-nos paz imensa à vida,

dão a lembrança vaga, indefinida
10

dos seus feitos gentis, nobres, altivos.

Nas lutas vãs do tenebroso mundo

os mortos são ainda o bem profundo

que nos faz esquecer o horror dos vivos.


Verônica

Não a face do Cristo, a macilenta

face do Cristo, a dolorosa face...

O martírio da Cruz passou fugace

e este Martírio, esta Paixão é lenta.

Um vivo sangue a face te ensangüenta,
5

mais vivo que se o Deus o derramasse;

porque esta vã paixão, para que passe,

é mister dos Titãs a luta incruenta.

Se tu, Visão da Luz, Visão sagrada

queres ser a Verônica sonhada,
10

consoladora dessa dor sombria

impressa ficará no teu sudário

não a face do Cristo do Calvário

mas a face convulsa da Agonia!


Símiles

Pedro traiu a fé do Apostolado.

Madalena chorou de arrependida;

e nessa mágoa triste e indefinida

havia ainda uns laivos de pecado.

Tudo que a Bíblia tinha decretado,
5

tudo o que a lenda humilde e dolorida

de Jesus Cristo apregoou na vida,

cumpriu-se à risca, foi executado.

O filho-Deus da cândida Maria,

da flor de Jericó, na cruz sombria
10

os seus dias amáveis terminou.

Pedro traiu a fé dos companheiros.

Madalena chorou sob os olmeiros

Jesus Cristo sofreu e... perdoou.


(Desterro)

Exilada

Bela viajante dos países frios

não te seduzam nunca estes aspectos

destas paisagens tropicais. Secretos,

os teus receios devem ser sombrios.

És branca e és loura e tens os amavios
5

os incógnitos filtros prediletos

que podem produzir ondas de afetos

nos mais sensíveis corações doentios.

Loura Visão, Ofélia desmaiada,

deixa esta febre de ouro, a febre ansiada
10

que nos venenos deste sol consiste.

Emigra destes cálidos países,

foge de amargas, fundas cicatrizes,

das alucinações de um vinho triste...


A freira morta

Muda, espectral, entrando as arcarias

da cripta onde ela jaz eternamente

no austero claustro silencioso -a gente

desce com as impressões das cinzas frias...

Pelas negras abóbadas sombrias
5

donde pende uma lâmpada fulgente,

por entre a frouxa luz triste e dormente

sobem do claustro as sacras sinfonias.

Uma paz de sepulcro após se estende...

e no luar da lâmpada que pende
10

brilham clarões de amores condenados...

Como que vem do túmulo da morta

um gemido de dor que os ares corta,

atravessando os mármores sagrados!


(Desterro)

Claro e escuro

Dentro -os cristais dos tempos fulgurantes,

músicas, pompas, fartos esplendores,

luzes, radiando em prismas multicores,

jarras formosas, lustres coruscantes,

púrpuras ricas, galas flamejantes,
5

cintilações e cânticos e flores;

promiscuamente férvidos odores,

mórbidos, quentes, finos, penetrantes,

por entre o incenso, em límpida cascata,

dos siderais turíbulos de prata,
10

das sedas raras das mulheres nobres;

clara explosão fantástica de aurora,

deslumbramentos, nos altares! -Fora,

uma falange intérmina de pobres.


Horas de sombra

Horas de sombra, de silêncio amigo

quando há em tudo o encanto da humildade

e que o anjo branco e belo da saudade

roga por nós o seu perfil antigo.

Horas que o coração não vê perigo
5

de gozar, de sentir com liberdade...

Horas da asa imortal da Eternidade

aberta sobre tumular jazigo.

Horas da compaixão e da clemência,

dos segredos sagrados da existência,
10

de sombras de perdão sempre benditas.

Horas fecundas, de mistério casto,

quando dos céus desce, profundo e vasto,

o repouso das almas infinitas.


Aleluia! Aleluia!

Dentre um cortejo de harpas e alaúdes

ó Arcanjo sereno, Arcanjo níveo,

baixas-te à terra, ao mundanal convívio...

Pois que a terra te ajude, e tu me ajudes.

Que tu me alentes nas batalhas rudes,
5

que me tragas a flor de um doce alívio

aos báratros, às brenhas, ao declívio

deste caminho de ânsias e ataúdes...

Já que desceste das regiões celestes,

nesse clarão flamívomo das vestes,
10

através dos troféus da Eternidade,

traz-me a Luz, traz-me a Paz, traz-me a Esperança

para a minh'alma que de angústias cansa,

errando pelos claustros da Saudade!


Rosa negra

Nervosa Flor, carnívora, suprema,

flor dos sonhos da Morte, Flor sombria,

nos labirintos da tu'alma fria

deixa que eu sofra, me debata e gema.

Do Dante o atroz, o tenebroso lema
5

do Inferno à porta em trágica ironia,

eu vejo, com terrível agonia,

sobre o teu coração, torvo problema.

Flor do delírio, flor do sangue estuoso

que explode, porejando, caudaloso,
10

das volúpias da carne nos gemidos.

Rosa negra da treva, Flor do nada,

dá-me essa boca acídula, rasgada,

que vale mais que os corações proibidos!


Vozinha

Velha, velhinha, da doçura boa

de uma pomba nevada, etérea, mansa.

Alma que se ilumina e se balança

dentre as redes da Fé que nos perdoa.

Cabeça branca de serena leoa,
5

carinho, amor, meiguice que não cansa,

coração nobre sempre como a lança

que não vergue, não fira e que não doa.

Olhos e voz de castidades vivas,

pão ázimo das Páscoas afetivas,
10

simples, tranqüila, dadivosa, franca.

Morreu tal qual vivera, mansamente,

na alvura doce de uma luz algente,

como que morta de uma morte branca.


No egito

Sob os ardentes sóis do fulvo Egito

de areia estuosa, de candente argila,

dos sonhos da alma o turbilhão desfila,

abre as asas no páramo infinito.

O Egito é sempre o antigo, o velho rito
5

onde um mistério singular se asila

e onde, talvez mais calma, mais tranqüila

a alma descansa do sofrer prescrito.

Sobre as ruínas d'ouro do passado,

no céu cavo, remoto, ermo e sagrado,
10

torva morte espectral pairou ufana...

E no aspecto de tudo em torno, em tudo,

árido, pétreo, silencioso, mudo,

parece morta a própria dor humana!


Repouso

A cabeça pendida docemente

em sonhos, sonha o sonhador inquieto,

repousa e nesse repousar discreto

é sempre o sonho o seu bordão clemente.

Cego desta Prisão impenitente
5

da Terra e cego do profundo Afeto,

o sonho é sempre o seu bordão secreto,

o seu guia divino e refulgente.

Nem no repouso encontra a paz que espera,

para lhe adormecer toda a quimera,
10

os círculos fatais do seu Inferno.

Entre a calma aparente, a estranha calma,

o seu repouso é sempre a febre d'alma,

o seu repouso é sonho, e sonho eterno.


Requiescat...

Grande, grande Ilusão morta no espaço,

perdida nos abismos da memória,

dorme tranqüila no esplendor da glória,

longe das amarguras do cansaço...

Ilusão, Flor do sol, do morno e lasso
5

sonho da noite tropical e flórea,

quando as visões da névoa transitória

penetram na alma, num lascivo abraço...

Ó Ilusão! Estranha caravana

de águias, soberbas, de cabeça ufana,
10

de asas abertas no clarão do Oriente.

Não me persiga o teu mistério enorme!

Pelas saudades que me aterram, dorme,

dorme nos astros infinitamente...


Doce abismo

Coração, coração! a suavidade,

toda a doçura do teu nome santo

é como um cálix de falerno e pranto,

de sangue, de luar e de saudade.

Como um beijo de mágoa e de ansiedade,
5

como um terno crepúsculo d'encanto,

como uma sombra de celeste manto,

um soluço subindo à Eternidade.

Como um sudário de Jesus magoado,

lividamente morto, desolado,
10

nas auréolas das flores da amargura.

Coração, coração! onda chorosa,

sinfonia gemente, dolorosa,

acerba e melancólica doçura.


Harpas eternas

Hordas de Anjos titânicos e altivos,

serenos, colossais, flamipotentes,

de grandes asas vívidas, frementes,

de formas e de aspectos expressivos.

Passam, nos sóis da Glória redivivos,
5

vibrando as de ouro e de Marfim dolentes,

finas harpas celestes, refulgentes,

da luz nos altos resplendores vivos.

E as harpas enchem todo o imenso espaço

de um cântico pagão, lascivo, lasso,
10

original, pecaminoso e brando...

E fica no ar, eterna, perpetuada

a lânguida harmonia delicada

das harpas, todo o espaço avassalando.


Dupla via-láctea

Sonhei! Sempre sonhar! No ar ondulavam

os vultos vagos, vaporosos, lentos,

as formas alvas, os perfis nevoentos

dos Anjos que no Espaço desfilavam.

E alas voavam de Anjos brancos, voavam
5

por entre hosanas e chamejamentos...

Claros sussurros de celestes ventos

dos Anjos longas vestes agitavam.

E tu, já livre dos terrestres lodos,

vestida do esplendor dos astros todos,
10

nas auréolas dos céus engrinaldada

dentre as zonas de luz flamo-radiante,

na cruz da Via-Láctea palpitante

apareceste então crucificada!


Titãs negros

Hirtas de Dor, nos áridos desertos,

formidáveis fantasmas das Legendas,

marcham além, sinistras e tremendas,

as caravanas, dentre os céus abertos...

Negros e nus, negros Titãs, cobertos
5

das bocas vis, das chagas vis e horrendas,

marcham, caminham por estranhas sendas,

passos vagos, sonâmbulos, incertos...

Passos incertos e os olhares tredos,

na convulsão de trágicos segredos,
10

de agonias mortais, febres vorazes...

Têm o aspecto fatal das feras bravas

e o rir pungente das legiões escravas,

de dantescos e torvos Satanases!...


Entre chamas...

Sonhei que de astros no Infinito presa

vagavas, brandamente adormecida,

nas chamas siderais resplandecida,

a carne, em chamas, no Infinito, acesa...

E eu pasmava de encanto e de surpresa
5

vendo a constelação indefinida

da tua carne flamejando vida,

dentre os íris radiantes da beleza...

E o teu corpo, nas chamas palpitando,

os astros em redor maravilhando,
10

por entre a auréola dos clarões cantava...

Então, de sonho em sonho, absorto, mudo,

eu senti alastrar, vibrar por tudo

toda a infinita sensação da lava!...


O anjo da redenção

Soberbo, branco, etereamente puro,

na mão de neve um grande facho aceso,

nas nevroses astrais dos sóis surpreso,

das trevas deslumbrando o caos escuro.

Portas de bronze e pedra, o horrendo muro
5

da masmorra mortal onde estás preso

desce, penetra o Arcanjo branco, ileso

do ódio bifronte, torto, torvo e duro.

Maravilhas nos olhos e prodígios

nos olhos, chega dos azuis litígios,
10

desce à tua caverna de bandido.

E sereno, agitando o estranho facho,

põe-te aos pés e à cabeça, de alto a baixo,

auréolas imortais de Redimido!


Salve! Rainha!...

Ó sempre virgem Maria,
concebida sem pecado original,
desde o primeiro instante do teu ser...


Mãe de Misericórdia, sem pecado

original, desde o primeiro instante!

Salve! Rainha da Mansão radiante,

Virgem do Firmamento constelado...

Teu coração de espadas lacerado,
5

sangrando sangue e fel martirizante,

escute a minha Dor, a torturante,

a Dor do meu soluço eternizado.

A minha Dor, a minha Dor suprema,

a Dor estranha que me prende, algema
10

neste Vale de lágrimas profundo...

Salve! Rainha! por quem brado e clamo

e brado e brado e com angústia chamo,

chamo, através das convulsões do mundo!...


Mendigos

Mendigos! Ah! são mendigos

que voltam de vãos caminhos,

que atravessaram perigos,

urzes, pântanos, espinhos.

Que chegam desiludidos
5

das portas a que bateram:

Humanos, grandes gemidos

que nos tempos se perderam.

Que voltam como partiram,

com mais amargor na volta
10

e mais sonhos que se abriram

das estrelas na recolta.

Mendigos ricos no entanto,

das pompas da natureza

e das auréolas do Encanto,
15

os vinhos da sua mesa.

Mendigos que o sol, apenas,

torna nababos felizes,

torna um pouco mais serenas

as convulsas cicatrizes.
20

Mendigos que acham requinte

na fumaça de um cachimbo,

deixando que labirinte

o sonho em tão leve nimbo.

Mendigos da luz da aurora
25

cantando celestemente,

fresca, límpida, sonora,

pelas fanfarras do Oriente.

Mendigos de áureas estradas,

de sonâmbulas veredas,
30

de riquezas encantadas,

sem pedrarias e sedas.

Mendigos d'estranho aspecto

e sempiterna vigília,

filhos nômades, sem teto,
35

de milenária Família.

Mendigos que erram eternos

sem fadigas e sem sono,

sob o augúrio dos Infernos,

das Ilusões sobre o trono.
40

Mendigos de plaga nova,

de novas terras e mares,

divinizados na cova

como as hóstias nos altares.

Mendigos da grande esmola
45

da luz das estrelas nobres,

que fulge e dos altos rola,

entre as suas mãos tão pobres!

Mendigos de céus remotos,

de sóis dos mais velhos ouros;
50

com a sua fé e os seus votos

e os seus secretos tesouros.

Mendigos de olhar severo,

boca murcha, meio amarga...

Tendo um vago reverbero
55

de sonhos na fronte larga.

Mendigos de ínvias florestas

e de bosques fabulosos,

de melancólicas sestas

nos crepúsculos brumosos.
60

Mendigos da Eternidade,

tremendo dos sóis, dos frios,

nas mortalhas da Saudade

amortalhados sombrios.

Mendigos dos Infinitos,
65

das Esferas inefáveis,

noctambulando malditos

nos rumos imponderáveis.

Mendigos de fome e sede

de água e pão de outros mundos,
70

embalados pela rede

dos Idealismos profundos.

Mendigos do azul Mistério,

cuja alma -nívea sereia-

fica saciada no aéreo
75

pão branco da lua cheia!


[QUANDO EU PARTIR] ou [ESFUMINHAMENTO]

Quando eu partir, que eterna e que infinita

há de crescer-me a dor de tu ficares;

quanto pesar e mesmo que pesares,

que comoção dentro desta alma aflita.

Por nossa vida toda sol, bonita,
5

que sentimento, grande como os mares,

que sombra e luto pelos teus olhares

onde o carinho mais feliz palpita...

Nesse teu rosto da maior bondade

quanta saudade mais, que atroz saudade...
10

Quanta tristeza por nós ambos, quanta,

qando eu tiver já de uma vez partido,

o meu amor, ó meu muito querido

amor, meu bem, meu tudo, ó minha santa!


Sempre e... sempre

A M. B. Augusto Varela


Sempre se amando, sempre se querendo.

Oliveira Paiva



De longe ou perto, juntas, separadas,

olhando sempre os mesmos horizontes,

presas, unidas nossas duas fontes

gêmeas, ardentes, novas, inspiradas;

vendo cair as lágrimas prateadas,
5

sentindo o coro harmônico das fontes,

sempre fitando a cúspide dos montes

e o rosicler das frescas alvoradas;

sempre embebendo os límpidos olhares

na claridão dos humildes luares,
10

no loiro sol das crenças se embebendo,

vão nossas almas brancas e floridas

pelo futuro azul das nossas vidas,

sempre se amando, sempre se querendo.


O órgão

Um largo e lento vento dormente

taciturnas lágrimas sonâmbulas, sinfônicas

um esquecimento amargo

uma sombria clausura de almas

suspirando e gemendo solitárias harmonias
5

vago luar de esquecimento e prece,

dessa melancolia que anda errando

no mar e nas estrelas ondulando,

pela minh'alma etereamente desce.

Na minh'alma, dos Sonhos anoitece
10

o Sentimento que ando transformando

em hóstia de ouro

sombra e silêncio