Visor de obras.
Ao decênio de Castro Alves
Quem sempre vence é o porvir!
Pergunta a onda: -Quem é?...
Responde o brado: -Sou eu!
Eu sou a Fama, que venho
c'roar o vate, o Criseu!
Dormi, meu Deus, por dez anos
15
e da natura os arcanos
não posso todos saber!
Mas como ouvisse louvores
de glória, gritos, clamores,
também vim louros trazer.
20
Fatalidade! -Desgraça!
Fatalidade, meu Deus!
Passou-se um gênio tão cedo,
sumiu-se um astro nos céus!
As catadupas d'idéias,
25
de pensamento epopéias
rolaram todas no chão!
Saindo a alma pra glória
bradou pra pátria -vitória!
já sou de vultos irmão!
30
Foi Deus que disse: -Poeta,
vem decantar a meus pés.
Na eternidade há mais luz,
dão mais valor ao que és.
Se lá na terra tens louros,
35
receberás cá tesouros
de muitas glórias até!
Terás a lira adorada
c'o divo plectro afinado
de Dante, Tasso e Garret!
40
Então na terra sentiu-se
um grande acorde final!
O belo vate brasílio
pendeu a fronte imortal!
O negro espaço rasgou-se
45
e aquele gênio internou-se
na sempiterna mansão.
A sua fronte brilhava
e o áureo livro apertava
sereno e ledo na mão...
50
E o mundo então sobre os eixos
ouviu-se logo rodar!
É que ele mesmo estremece
a ver um vulto tombar.
É que na queda dos entes
55
que são na vida potentes,
que têm nas veias ardor,
há cataclismos medonhos
que só sentimos em sonhos
mas que nos causam terror!...
60
E o coração s'estortega
e s'entibia a razão!
No peito o sangue enregela
e logo a história diz: -Não!
Não chore a pátria esse filho,
65
se procurou outro trilho
também mais glórias me deu!
E quando os séculos passarem
se hão de tristes curvarem
enquanto alegre só eu?...
70
Oh! Basta! Basta! Silêncio!
repousa, vate, nos Céus!
Que muito além dos espaços
os cantos subam dos teus!
Se nesta vida d'enganos
75
não são bastante os humanos
pra te render ovações!
Perdoa os fracos, ó gênio,
que pra cantar teu decênio
somente Elmano ou Camões!
80
Entre luz e sombra
Ao dia 7 de Setembro
Libertas Lux Dei!!...
Eram só cinéreas nuvens
os brasílios horizontes!
10
Curvadas todas as frontes
caminhavam no descrer!-
As brisas nem murmuravam...
Os bosques nem soluçavam...
Os peitos nem se arroubavam...
15
-Estava tudo a morrer!...
De repente, o sol formoso
vai as nuvens esgarçando.
as almas vão palpitando,
cintilam magos clarões!...
20
E o Índio fraco, indolente
fazendo esforço potente
dos pulsos quebra a corrente,
biparte os acres grilhões!...
Por terra tomba gemendo
25
o vão, atroz servilismo...
Rui a dobrez no abismo...
Eis a verdade de pé!...
Enfim!... exclama o silvedo
enfim!... lá diz quase a medo
30
selvagem, nu Aimoré!...
Assim, brasília coorte,
falange excelsa de obreiros,
soberbos, almos luzeiros
de nossa gleba gentil,
35
quebrai os elos d'escravos
que vivem tristes, ignavos,
Ffrmando delas uns bravos
-P'ra glória mais do Brasil!...
Lançai a luz nesses crânios
40
que vão nas trevas tombando
e ide assim preparando
uns homens mais p'ro porvir!
Fazei dos pobres aflitos
sem crenças, lares, proscritos,
45
uns entes puros, benditos
que saibam ver e sentir!...
Do carro azul do progresso
fazei girar essa mola!
Prendei-os sim, -mas à escola
50
matai-os sim, -mas na luz!
e então tereis trabalhado
o negro abismo sondado
e em nossos ombros levado
ao seu destino essa cruz!!...
55
Fazei do gládio alavanca
e tudo ireis derribando;
dormi, co'a pátria sonhando
e tudo a flux se erguerá!
E a funda treva cobarde
60
sentindo homérico alarde,
embora mesmo que tarde
curvada assim fugirá!...
Enfim!... os vales soluçam
enfim!... os mares rebramam
65
enfim!... os prados exclamam
já somos livre nação!!...
Quebrou-se a estátua de gesso...
Enfim!... -mas não... estremeço,
vacilo... caio, emudeço...
70
Enfim de tudo inda não!!...
Sete de setembro
As colinas, prados, montes,
as florestas seculares
10
-os sertões, os próprios mares
exultaram com fervor!
E os brados retumbaram
pela lúcida devesa,
pela virgem natureza
15
com homérico clangor!...
Qual artista consumado,
qual um velho estatuário
do Brasil no azul sacrário,
essa data vos traçou,
20
-o triunfo mais pujante,
a eleita das idéias,
a maior das epopéias
-q'inda igual não se gerou!...
Mas embora, meus senhores
25
se festeje a Liberdade,
a gentil Fraternidade
não raiou de todo, não!...
E a pátria dos Andradas
dos -Abreu, Gonçalves Dias
30
inda vê nuvens sombrias,
vê no céu fatal bulcão!...
Muito embora Rio Branco,
esse cérebro profundo
que passou por entre o mundo,
35
do Brasil como um Tupá!...
Muito embora em catadupas
derramasse o verbo augusto,
da nação no enorme busto
inda a mancha existe, há!...
40
É preciso com esforço,
colossal, estranho, ingente,
ir o cancro, de repente
esmagar que nos corrói!...
É preciso que essa Deusa,
45
a excelsa Liberdade,
raie enfim na Imensidade
mais altiva como sói!...
Sai da larva a borboleta
com as asas auriazuis
50
e um disco vai -de luz
a deixar onde passou!
No entanto o grande berço
das façanhas de Cabrito
inda espera um novo grito
55
como o -Basta- de Waterloo!...
Eu bem sei que Guttemberg
que esse Fulton primoroso
Faust, Kepler grandioso
trabalharam té vencer!
60
mas embora tropeçassem
acurando os seus eventos,
tinham sempre tais portentos
a vontade por poder!...
Eia! sim! -p'ra Liberdade
65
irrompei qual verbo eterno,
como o -Fiat- superno
pelos ares a rolar!
Eia! sim! -que nossa pátria
só precisa -mas de bravos...
70
E em prol desses escravos
seu dever é trabalhar!!...
Somos filhos dessa gleba
majestosa aonde o gênio
como o astro do proscênio
75
solta as asas, mui febril!
Dos selvagens Tiaraiús
e dos brônzeos Guaicurus...
Somos filhos do Brasil!...
Esperemos, tudo embora!...
80
pois que a sã locomotiva,
do progresso imagem viva
não se fez a um sopro vão!
Aguardemos o momento
das mais altas epopéias,
85
quando o gládio das idéias
empunhar toda a nação!...
Esperemos mais um pouco
q'inda há almas brasileiras
que se lembrarão, sobranceiras,
90
que é preciso progredir!...
Inda há peitos valerosos
que combatem descobertos
por florestas, por desertos,
mas c'os olhos no porvir!...
95
Inda há lúcidas falanges
lutadores denodados
que se erguem transportados
burilando a sã razão!...
Inda há quem se recorde
100
do Egrégio Tiradentes
que do sangue as gotas quentes
derramou pela nação!!...
Já nas margens do Ipiranga
patrióticos acentos
105
vão alados como os ventos
pelos páramos azuis!!...
Vamos! Vamos! -eia! exulta,
jovem pátria dos renomes...
-Vibra a lira, Carlos Gomes!
110
Bocaiúva, espalha luz!!...
Três pensamentos
Nasceste no Brasil -em meio às plagas
da grande natureza mais pujante
e cheia de arrebol!...
E sabes obumbrar os astros fulvos
10
e lanças raios mil por toda a parte,
soberba como o sol!...
Nasceste no Brasil e o eco ovante
das glórias sublimadas que tu colhes
por este céu azul,
15
vem férvido, viril e acentuado
assaz repercutir com mais verdade
aqui... aqui no sul!...
Sempre
Beijos
Porque afinal as crianças,
5
como eu deslumbro-me ao vê-las,
cintilam como as estrelas,
florescem como esperanças.
Dentro de mim se projeta
a luz cambiante dos prismas
10
e batem asas as cismas
qual passarada irrequieta.
E batem asas e ruflam,
pelas artísticas plagas,
as auras que as grandes vagas
15
dos fundos mares insuflam.
E digo, ó mães, se uma aurora
fosse a minh'alma sincera,
os clarões todos eu dera
a uma criança que chora.
20
Porque se a luz fortalece
arbustos e as andorinhas,
também por certo às criancinhas
conforta, avigora, aquece.
E eu que aplaudo e que rimo
25
tudo isso que à luz se regre,
na vibração mais alegre
as criancinhas estimo.
Portanto, assim, sem refolhos
beijando a Olga, beijando
30
meus sonhos vão, irradiando,
se derramar em seus olhos!
Ser pássaro
Ser pássaro, cantar, subir, voar na altura,
5
pelos bosques sem fim, perder-se nas florestas,
das folhagens do campo em meio da espessura,
das auroras de abril nas cristalinas festas.
Tecer no tronco seco ou no tronco viçoso
o quente lar do amor, o carinhoso ninho,
10
de onde sairá mais tarde o pipilar mavioso
de um outro mais gentil e meigo passarinho.
Não temer o verão e não temer o inverno
para tudo alcançar na leve subsistência,
no contínuo lidar, no labutar eterno,
15
que é talvez da alegria a mais feliz essência.
Viver, enfim, de luz e aromas delicados,
nascido dentre a luz, gerado dentre aromas,
sonorizando o azul, sonorizando os prados
e dormindo da flor sob as cheirosas comas.
20
Voar, voar, voar, voar eternamente,
extinguir-se a voar, no matinal gorjeio,
é ser pássaro, é ter em cada asa
fremente
um sol para aquecer o frio de algum seio.
Saudação
Ao Liceu de Artes e Ofícios
Que prismas de luz ardente,
5
que prismas de luz suave;
como eu sinto um canto de ave
em cada boca inocente.
Sim! Que o estudo é como a aurora
que nos entra pela casa,
10
num vivo fulgor de brasa,
vibrante, alegre, sonora.
Ele rasga a treva espessa,
num só momento -cantando;
vai estrelas semeando
15
em cada tenra cabeça.
Tira os crânios do letargo
da ignorância -pois entra
como um sol e se concentra
num esplendor muito largo.
20
Quem, ó Arte imaculada,
medisse o ser da criança,
pela alma de uma esperança
pela alma de uma alvorada.
Quem aos páramos subindo,
25
eternamente pudesse,
dos astros a loura messe
arrancar -depois abrindo
os peitos das criancinhas
jogá-los dentro e beijá-las
30
cheias de pompa e das galas
que a luz concede às rainhas!...
Pois que a treva entre fulgores,
é como, dentre ataúdes,
rebentar como virtudes,
35
as mais simpáticas flores.
Ah! Ninguém sabe, por certo,
quanto é bom, quanto é saudável,
sentir a crença adorável
como um clarão sempre aberto.
40
Ver os germens do futuro
no campo eterno da escola,
brilhando como a corola
de um lírio cândido e puro.
Ver morrer -como uns invernos
45
da vida, os velhos colossos
e ver erguerem-se os moços
como verões sempiternos.
Mães, ó mães tão extremosas,
dos vossos ventres fecundos
50
saem todos esses mundos
das idéias fulgurosas.
Tudo isso quanto há escrito
de pensamento e crenças
saiu das fontes imensas
55
de um grande amor infinito.
E desde a escrita à leitura
e desde um livro a uma carta,
a bondade sempre farta
das mães -esplende e fulgura.
60
Bom dia ao mestre que é guia
das belas crianças louras!
Bom dia às mães porvindouras,
à mocidade -Bom dia!
Gusla da saudade
A Santos Lostada pela morte do seu velho pai
Ele morreu, morreu -e os mais funestos
lutos da dor feriram como abrolhos
5
teu lar e os teus -serenos e modestos.
Que incalculável explosão de prantos
não inundou as almas preciosas
dos teus irmãos, da tua mãe -uns santos.
Que peregrinam nestas lacrimosas
10
sendas da vida, em mágoas, sem encantos
como sem luz e sem orvalho as rosas.
Ah! formidável lei cruel da vida,
lei da matéria, da mudez das lousas,
da eterna noite atroz, indefinida;
15
tens o segredo intérmino das cousas,
e nessa dura e tenebrosa lida,
oh! nem sequer um dia só repousas.
Quem sabe, ó morte, ó lúgubre, quem
sabe
o teu poder fatal, desapiedado
20
onde se oculta e se resume e cabe.
Pois nem que o céu puríssimo, azulado
cair aos pedaços, tombe e se desabe
na profundez do abismo ilimitado
e a crença humana espavorida, em gritos,
25
palpando o nada, esquálida, gemendo,
rasgue a amplidão de estranhos infinitos,
nunca da morte saberão o horrendo
mistério rijo e surdo dos granitos
os corações que vivem combatendo?!...
30
Não! A Ciência penetrou, o estudo
do pensador, abriu mais horizontes
nesse problema silencioso e mudo.
O pensamento constelou as frontes,
Deu à razão o mais brunido escudo
35
e construiu as luminosas pontes
de onde se vai, com grande olhar, seguro,
atravessar as regiões sonoras
dos Ideais que irrompem do Futuro;
e sem contar dos séculos as horas,
40
e sem temer as mil visões do Escuro,
alegremente ao fresco das auroras.
Mas entretanto, ó meu amigo, escuta,
toda a saudade, a grande nostalgia
nos deixa frios, mortos para a luta.
45
Porque, olha, a morte é sempre uma agonia!
Smorzando
A livre natureza,
humildemente, pura, vai caindo,
caindo de joelhos
como esse denso véu
cai na viril e rútila grandeza
10
do sol que desce em borbotões vermelhos
como uma mancha tropical no céu.
E vibra a Ave-Maria
como um soluço, estranho, indefinido;
talvez como um gemido
15
dentre a escalvada e agreste serrania.
E desce e desce e desce
de toda a imensidade
a salutar carícia de uma prece,
o eflúvio da saudade
20
que alaga o nosso peito heroicamente
como o luar de um treno
mavioso e emoliente,
mais doce que o sorrir do Nazareno.
Versos à infância
[I]
Como em bocas cheirosas e vermelhas
pousam beijos de amor e de ventura,
o mel lhe sugam todas as abelhas
pousando em cima da corola pura
como em bocas cheirosas e vermelhas.
10
Desde os campos, o bosque, até aos montes
tudo renasce num jardim de flores;
e pelo azul do céu, nos horizontes,
há os mais vivos, raros esplendores,
desde os campos, o bosque, até aos montes.
15
Pelos ninhos sonoros, delicados,
cantam e trinam muitos passarinhos
nos altos arvoredos enflorados,
à margem verdejante dos caminhos,
pelos ninhos sonoros, delicados.
20
As borboletas brancas e amarelas,
azuis, cor de ouro, cor de prata e brasa,
leves, ligeiras, tênues e singelas,
abrem a fina talagarça da asa,
as borboletas brancas e amarelas.
25
Tudo no val acorda de desejos
à musica dos cantos mais risonhos;
e as aves soltas, peregrinos beijos,
dizem, cantando, que através de sonhos
tudo no val acorda de desejos.
30
II
Na alma da infância, tal e qual roseiras,
abrem festões de límpida fragrância
os sonhos e as quimeras passageiras
que são mais próprias do vergel da
infância,
na alma da infância, tal e qual roseiras.
35
O pequenino coração ditoso
canta canções de uma ave pequenina;
e é um encanto ver assim radioso
no peito de uma cândida menina
o pequenino coração ditoso.
40
A existência de sol das criancinhas
lembra um pomar de frutas bem serenas,
por onde os colibris e as andorinhas
gozam amores sacudindo as penas,
a existência de sol das criancinhas.
45
Não sei dizer se adore mais crianças
ou mais também as flores de um arbusto;
nessas tão puras, castas semelhanças
eu, para ser bem carinhoso e justo,
não sei dizer se adore mais crianças.
50
(Desterro)
Triste
Não sei que tristeza é essa
5
de tão doloroso cunho
que perdes a cor depressa
assim que vem vindo junho.
Ficas branca e desmaiada,
lembrando a lua serena,
10
fraca, pálida e gelada,
como frágil açucena.
Vão-se-te as rosas da face
emurchecendo e sumindo
num crepúsculo vivace
15
de tudo o que estás sentindo.
Ai! no entanto pelos prados
onde os dias resplandecem
risonhas como noivados
em junho as rosas florescem...
20
(Desterro)
Fonte de amor
E saibas, ó flor das flores,
que a fonte dos seus amores
5
eternamente secou.
Foste à fonte buscar água
e tinha secado a fonte.
aí, flor azul do monte,
tiveste a primeira mágoa.
10
Porém se uma alma na frágua
das dores sem horizonte
queres ver, sentir defronte
dos olhos, manda que eu trago-a.
Castelã
Enleios de passarinho
5
e brilhos de primavera,
com magnetismos de vinho
no olhar azul de quimera.
Feita de um jorro sadio
de auroras purpureadas
10
carne mais fresca que um rio
de frescas águas prateadas.
Tudo é frio e tudo é raso
para dizer-te a capricho
que és magnólia para um vaso,
15
que és arcanjo para um nicho.
És um mito da Alemanha
vivendo em montanha alpestre,
no castelo da montanha,
como ardente flor silvestre.
20
E tens as pomas à farta
polposas, cheias de aromas.
És assim a loura Marta
com abundância de pomas.
Esse príncipe que te ama,
25
cismando, trágico e grave,
quando o luar se derrama
cuida ouvir-te os vôos de ave.
Ele vive, airoso e belo,
como se vive num sonho,
30
no seu nevoento castelo
junto de um lago tristonho.
E através do pó flutuante
do luar saudoso e vago
julga que és a garça errante
35
das águas verdes do lago.
O sol e o coração
Foram-se já todas as alegrias,
ó; Sol! E tu, coração, que ainda
adejas,
5
que fazes sobre as mortas fantasias?!...
Podes brilhar, ó Sol, vivo e fulgente!
E tu, coração, que me iludiste,
também podes bater, inutilmente.
Crença, Ilusão, Amor, já nada existe,
10
não mais levarás sobre a corrente
da tenebrosa dúvida mais triste.
Longe, mui longe, em regiões caladas,
emudecidos pelo Esquecimento,
estão hoje esses sonhos de alvoradas.
15
Foram-se, há muito, soltos pelo vento
entre as grandes ruínas derrocadas
do meu amargo e pobre pensamento,
Entre as profundas, tétricas ruínas
em que o doce fantasma desses sonhos
20
atravessou em lágrimas divinas.
Fantasma ideal, de cânticos risonhos
que da vida encontrei pelas colinas
e hoje vaga entre bulcões medonhos!
Fantasma que eu amei, visão errante
25
que sempre junto a mim vivia perto,
por mais longe que eu fosse e mais distante.
Visão que era como a água do deserto
para o meu coração sempre anelante,
sequioso de amor e sempre aberto...
30
Ó pobre coração, em vão te
agitas,
em vão tu bates, coração estreito,
tal qual tu, Sol, nos páramos crepitas.
Nada mais, para mim, de satisfeito
brilha com o Sol nas plagas infinitas,
35
como não canta o coração no peito...
Podes, enfim, sumir-te nos Espaços
sol! E tu, coração, sempre batendo,
quebrar da terra os «Transitórios
Laços»
eternamente desaparecendo!...
40
Risadas
Às criaturas alegres
Tu que os clarins do sonho mais fulgente
5
das Julietas, feres, nas varandas,
ó fantasia dos Romeus, ó crente,
por que países meridionais tu andas?!
Vem das esferas, entre os sons que vibras.
vem, que desejo emocionar as fibras,
10
quero sentir como este sangue impulsas.
Noiva do sol que os sóis preclaros gozas
para rimar umas canções de rosas,
como risadas de cristal, avulsas...
Ave! Maria...
Nuvem d'incensos através da nave
5
quando o templo de pompas irradia
e em prantos o órgão vai plangendo grave
a profunda e gemente litania...
Seja bendito o fruto do teu ventre,
Jesus, mais belo dentre os astros e entre
10
as mulheres judaicas mais amado...
Ó Luz! Eucaristia da beleza,
chama sagrada no Evangelho acesa,
maravilha do Amor e do Pecado!
Rir!
Rir! Mas com o rir atroz, o rir tremente,
5
com que André Gil eternamente ria.
Rir! Mas com o rir demolidor e quente
duma profunda e trágica ironia.
Antes chorar! Mais fácil nos parece.
porque o chorar nos ilumina e nos aquece
10
nesta noite gelada do existir.
Antes chorar que rir de modo triste...
pois que o difícil do rir bem consiste
só em saber como Henri Heine rir!...
Aspiração
Quisera ser a serpe venenosa
5
para enroscar-me em múltiplos novelos,
para saltar-te aos seios cor-de-rosa.
E bajulá-los e depois mordê-los.
Talvez que o sangue impuro e rutilante
do teu divino corpo de bacante,
10
sangue febril como um licor do Reno
completamente se purificasse
pois que um veneno orgânico e vorace
para ser morto é bom outro veneno.
Sensibilidade
Como esses bravos, que por naus incautas,
5
regressam dos oceanos borrascosos,
indo encontrar nos lares harmoniosos
de luz, vinho e alegria as mesas lautas.
Tal o meu coração, quando aparece
a tua imagem, canta e resplandece,
10
sem lutas, sem paixões, livre de abrolhos.
A meu pesar, louco de ver-te, louco,
as lágrimas me correm pouco a pouco,
como o champanhe virginal dos olhos...
Glórias antigas
Os escudos e arneses dos soldados
5
rutilam como lascas de diamantes
e na armadura os músculos vibrantes,
rijos, palpitam, batem nervurados.
Dentre estandartes, flâmulas de cores,
trazem dos olhos rufos de tambores,
10
ruídos de alegria estranha e louca.
Chegam por fim, à pátria vitoriosa...
e então, da ardente glória belicosa,
há um grito vermelho em cada boca!
Magnólia dos trópicos
A Araújo Figueredo
O teu colo pagão de virgens curvas finas
5
é o mais imaculado e flóreo dos altares,
donde eu vejo elevar-se eternamente aos ares
viáticos de amor e preces diamantinas.
Abre, pois, para mim os teus braços de seda
e do verso através a límpida alameda
10
onde há frescura e sombra e sol e murmurejo;
vem! com a asa de um beijo a boca palpitando,
no alvoroço febril de um pássaro cantando,
vem dar-me a extrema-unção do teu amor num
beijo.
Supremo anseio
Abre-se em mim esse clarão, mais puro
5
que o céu preclaro em matinal bonança;
esse clarão, em que eu melhor fulguro,
em que esta vida uma outra vida alcança.
Sim! Inda espero que no fim da estrada
desta existência de ilusões cravada
10
eu veja sempre refulgir bem perto
esse clarão esplendoroso e louro
do amor de mãe -que é como um fruto de ouro,
da alma de um filho no eternal deserto.
Nerah
Inspirado no elegante conto de Virgílio Várzea
A Vítor Lobato
Seus sonhos de cristal, translúcidos, antigos
5
se vão embora, embora à vinda dos invernos,
seguindo em debandada os úmidos galernos-
-lembrando um roto bando informe de mendigos.
Não canta o sabiá que triste na gaiola,
parece, com o olhar, pedir-lhe a casta esmola
10
de um riso -aquela flor que esvai-se, branca e fria.
Em tudo a fina seta aguda de aflições!
Na própria atmosfera um caos de
interjeições!
em tudo uma mortalha, em tudo uma agonia.
Amor
Não há para o amor ridículos
preâmbulos,
5
nem mesmo as convenções as mais superiores;
e vamos pela vida assim como os noctâmbulos
à fresca exalação salúbrica das
flores.
E somos uns completos, célebres artistas
na obra racional do amor -na heroicidade,
10
com essa intrepidez dos sábios transformistas.
Cumprimos uma lei que a seiva nos dirige
e amamos com vigor e com vitalidade,
a cor, os tons, a luz que a natureza exige!...
Filetes
A J. L.
de cantos suaves
5
de músicas, vinhos
de aromas, arminhos
dos trinos das aves;
das cismas radiadas,
de esperanças aladas
10
por vagos escombros,
são feitos, são feitos
teus olhos perfeitos,
repletos de assombros.
Filetes
II
Cintila a estrela-d'alva
15
bem como o olhar do crente!
Perpassa no ambiente
o fresco olor da malva.
Um
tic de lirismo,
simpático e harmônico,
20
derrama no sinfônico
riacho -um misticismo.
Há músicas supremas,
um mundo de problemas
nos montes seculares.
25
E como um lírio roxo,
a alma em canto frouxo
emigra para os ares.
(Desterro)
Arte
Para que surja claramente o verso,
5
livre organismo que palpita e vibra,
é mister um sistema altivo e terso
de nervos, sangue e músculos, e fibra.
Que o verso parta e gire -como a flecha
que d'alto do ar, aves, além, derruba;
10
e como os leões, ruja feroz na brecha
da Estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.
Para que tenhas toda a envergadura
de asa e o teu verso, de ampla cimitarra
turca, apresente a lâmina segura,
15
poeta, é mister, como os leões, ter garra.
Essa bravura atlética e leonina
só podem ter artistas deslumbrados:
Que souberam sorver pela retina
a luz eterna dos glorificados.
20
Busca palavras límpidas e castas,
novas e raras, de clarões radiosos,
dentre as ondas mais pródigas, mais vastas
dos sentimentos mais maravilhosos.
Busca também palavras velhas, busca,
25
limpa-as, dá-lhes o brilho necessário
e então verás que cada qual corusca
com dobrado fulgor extraordinário.
Que as frases velhas são como as espadas
cheias de nódoa, de ferrugem, velhas
30
mas que assim mesmo estando enferrujadas
tu, grande Artista, as brunes e as espelhas.
Faz dos teus pensamentos argonautas
rasgando as largas amplidões marinhas,
soprando, à lua, peregrinas flautas,
35
louros pagãos sob o dossel das vinhas.
Assim, pois, saberás tudo o que sabe
quem anda por alturas mais serenas
e aprenderás então como é que cabe
a Natureza numa estrofe apenas.
40
Assim terás o culto pela Forma,
culto que prende os belos gregos da Arte
e levará no teu ginete, a norma
dessa transformação, por toda a parte.
Enche de estranhas vibrações sonoras
45
a tua Estrofe, majestosamente...
Põe nela todo o incêndio das auroras
para torná-la emocional e ardente.
Derrama luz e cânticos e poemas
no verso e torna-o musical e doce
50
como se o coração, nessas supremas
estrofes, puro e diluído fosse.
Que as águias nobres do teu verve esvoacem
alto, no Azul, por entre os sóis e as galas,
cantem sonoras e cantando passem
55
dos Anjos brancos através das alas...
E canta o amor, o sol, o mar e as rosas,
e da mulher a graça diamantina
e das altas colheitas luminosas
a lua, Juno branca e peregrine.
60
Vibra toda essa luz que do ar transborda
toda essa luz nos versos vai vibrando
e na harpa do teu Sonho, corda a corda,
deixa que as Ilusões passem cantando.
Na alma do artista, alma que trina e arrulha
65
que adora e anseia, que deseja e que ama
gera-se muita vez uma fagulha
que se transforma numa grande chama.
Faz estrofes assim! E após na chama
do amor, de fecundá-las e acendê-las,
70
derrama em cima lágrimas, derrama,
como as eflorescências das Estrelas...
Arte
[Variação]
Para que saia vigoroso o verso,
5
como organismo que palpita e vibra,
é mister um sistema altivo e terso
de nervos, sangue e músculos e fibra.
Que o verso parta e gire como a flecha
que do alto do ar, aves, além, derruba
10
e como um leão ruja feroz na brecha
da estrofe, alvoroçando a cauda e a juba.
Para que tenhas toda a envergadura
de asa, o teu verso, como a cimitarra
turca apresente a lâmina segura,
15
poeta, é mister como um leão, ter garra.
Essa bravura atlética e leonina
só podem ter artistas deslumbrados
que sorvem com lábios e retina
a luz do amor que os fez iluminados.
20
Nem é preciso, poeta, que te esbofes
para ferir um verso que fuzile;
põe a alma e muitas almas nas estrofes
e deixa, enfim, que o verso tamborile.
Busca palavras límpidas e novas,
25
resplandecentes como sóis radiosos
e sentirás como te surgem trovas
belas de madrigais deliciosos.
Busca também palavras velhas, busca,
limpa-as, dá-lhes o brilho necessário
30
e então verás que cada qual corusca,
com dobrado fulgor extraordinário.
Que as frases velhas são como as espadas
cheias de nódoas de ferrugem, velhas,
mas que assim mesmo estando enferrujadas
35
tu, grande artista, as brunes e as espelhas.
Que toda a vida e sensação de estilo
está na frase, quando se coloca,
antiga ou nova, mas trazendo aquilo
que soa como um tímpano que toca.
40
Como o escultor que apenas faz de um bloco
a estátua -com supremo e nobre afinco
estuda a natureza num só foco:
a prata, o bronze, o cobre, o ferro, o zinco.
Estuda dos rubis, estuda do ouro
45
e dos corais, da pérola e safira,
todo esse íris febril radiante e louro
que é a centelha de sol em toda a lira.
Estuda todos os metais, estuda,
desce à matéria prodigiosa e vasta,
50
estuda nela a natureza muda,
os veios de cristal da origem casta.
Estuda toda a intensa natureza
feita de aromas, de canções e de asas
e sente a luz da cor e da beleza
55
rir, flamejar e arder, iriar em brasas.
Faz dos teus pensamentos argonautas
rasgando as largas amplidões marinhas,
soprando, à lua, peregrinas flautas,
como os pagãos sob o dossel das vinhas.
60
Assim, pois, saberás tudo o que sabe
quem anda por alturas mais serenas
e aprenderás então como é que cabe
a natureza numa estrofe apenas.
Assim terás o culto pela forma,
65
culto que prende os belos gregos da arte
e levarás no teu ginete, a norma
dessa transformação por toda a parte.
Enche de alegres vibrações sonoras
a tua idéia pródiga e valente,
70
põe nela todo o incêndio das auroras
para torná-la emocional e ardente.
Derrama luz e cânticos e poemas
no verso e fá-lo musical e doce
como se o coração, nessas supremas
75
estrofes, puro e diluído fosse.
Que a abelha de ouro do teu verso esvoace,
fulja como um fuzil numa borrasca;
que o verso quando é bom por qualquer face
lembra um fruto saudável desde a casca.
80
Com arte, forma, cor, tudo isso em jogo,
engrinaldado e rútilo de crenças,
o sonho cresce -o pássaro de fogo
que habita as altas regiões imensas.
E canta o amor, o sol, o mar e o vinho,
85
as esperanças e o luar e os beijos
e o corpo da mulher -esse carinho-
canta melhor, vibra com mais desejo.
Canta-lhe a sinfonia dos olhares
a cálida magnólia austral das pomas,
90
e quando então tudo isso enfim cantares
em tudo põe a fluidez de aromas.
Vibra toda essa luz que do ar transborda
como todo o ar nos seres vai vibrando
e da harpa do teu sonho, corda a corda,
95
deixa que as ilusões passem cantando.
Na alma do artista, alma que trina e arrulha,
que adora e anseia, que deseja e ama,
gera-se muita vez uma fagulha
que explose e se abre numa grande chama.
100
Pois essa chama que a fagulha gera,
que enche e que acende o espírito de força,
sobe pela alma como primavera
de rosas sobe por coluna torsa.
Faz estrofes assim, de asas de rima,
105
depois de fecundá-las e acendê-las
de amor, de luz -põe lágrimas em cima,
como as eflorescências das estrelas.
O duque
Quando ele vinha com seu ar bizarro
5
de atravessar os vales e as colinas,
sadio aspecto fresco como um jarro
cheio de leite às horas matutinas.
Em toda a aristocrática varanda
alta e vistosa, ampla, aberta em janelas,
10
ele vibrava, de uma e outra banda,
canções de amor, nostálgicas e belas.
Do salão nobre entre tapeçarias
de Gobelins, riquíssimas e raras,
iam vibrando aladas harmonias
15
da sua voz, esplêndidas e claras.
Todas as fluidas, leves, calmas, frescas
manhãs azuis, serenas e formosas,
loura mulher das regiões tudescas
o seu bom dia era mandar-lhe rosas.
20
Floria, é certo, em grande amor, floria
gerado pelo eflúvio dessas flores,
pois quando o duque não as recebia
era o mais infeliz dos caçadores.
Tão doce amor lembrava aquelas lendas
25
dos medievais castelos esquecidos,
quando visões de nuvens e de rendas
apareciam nos balcões floridos.
A caça, a caça, eternamente a caça!
Quanto melhor, mais fácil não lhe fora
30
a conquista das aves do que a graça
de conquistar essa beleza loura!
Para possuí-la como noiva amada,
aceso há muito nas paixões insanas,
arrostaria a caça mais ousada
35
dos javalis nas selvas africanas.
E sempre as lindas rosas matutinas
vinham-no perfumar todos os dias,
quando saltava aos vales e às colinas,
bizarro e são, dentre as tapeçarias.
40
Tempos passaram sobre tais amores!
Mas depois de casado fez surpresa
saber que o duque, o rei dos caçadores,
não tinha o mesmo amor pela duquesa.
A espada
I
Ar cortesão de graça e fantasia
através dos olhares e dos beijos
5
-No silêncio de cada galeria...
Foi nesse bravo tempo dos lampejos
de espadas, de punhais e de couraças
por combater frementes de desejos.
No tempo dos floreios e das caças
10
dos assaltos alegres e bizarros
como as sonoras vibrações das taças.
Em que as almas airosas como jarros,
cheios de vinho espumejante e ardente
eram de glória vencedores carros!
15
Foi no tempo fidalgo e refulgente,
quando o heroísmo fantasioso amava
a linha e a chama de luzida gente,
que esta cena galharda se passava,
quando um donzel partia para guerra
20
como a nobreza do solar mandava.
O pai, um tronco transudando a terra,
forte e viril, presença de profeta
que no seu flanco a valentia encerra.
Barbas serenas de bondoso asceta
25
em cuja alvura doce e veneranda
vê-se a vontade e a intrepidez completa.
Fronte banhada de meiguice branda
a que o dever e os ríspidos conselhos
dão sempre a austeridade que age e manda.
30
Lembra um ocaso de clarões vermelhos,
musgoso, triste, desolado muro,
por onde o luar abre fulgor d'espelhos.
E esse semblante que parece duro,
áspero e torvo, trouxe-o dos combates,
35
do torvelinho do nevoeiro escuro.
Dos pelouros sangüíneos escarlates,
de fogo aberto em turbilhões, vorazes,
dos impulsivos, bélicos rebates.
Mas, bem olhadas, as feições audazes
40
desse velho patriarca destemido
tinha a suavidade dos lilases.
Nos olhos, um passado consumido
entre aventuras e colóquios belos
como que faz um verdadeiro ruído...
45
Sente-se neles noites de castelos
gozadas em amores dadivosos,
em madrigais, em íntimos desvelos.
Cavalgadas, torneios donairosos,
sonho feliz de rica mocidade,
50
requintes ideais, cavalheirosos.
Tudo se sente na tranqüilidade
desse deus varonil da força antiga
feito com o rijo bloco da Verdade.
Tudo se sente nessa paz amiga
55
que as crenças do passado às outras
crenças
vagas, futuras, para sempre liga.
Tudo se sente vir das névoas densas
e da ridente e cândida meiguice
das suas barbas límpidas e imensas.
60
Sim! tudo da quase criancice
que dão aos homens esses tons nevoentos
da enregelada e trêmula velhice.
Porém, reatando aéreos pensamentos...
comecemos na cena detalhada
65
que já das eras se espalhou nos ventos.
É nada mais que a história duma espada,
história curta, mas interessante
duma espelhante lâmina timbrada.
Não é pelo aço ou lâmina
espelhante
70
que irei contar, pois são comuns os aços,
mas pelo nobre e original rompante.
Pelo ardimento que os primeiros braços
que a manejaram com pujança e brio
nela gravaram, com profundos traços.
75
II
O velho, em pé, atlético e sombrio
diante do filho armado cavaleiro,
no aspecto dum leão ruivo e bravio.
Fala-lhe claro, d'alto e sobranceiro,
numa solene e enérgica atitude
80
de quem nos prélios sempre foi primeiro.
O filho, grave o escuta e atende a rude
lhanez estóica de palavra augusta
que dos lábios lhe sai, com tal saúde.
Calmo, sem se mover, firme a robusta
85
figura solarenga do estoicismo,
o velho disse esta nobreza justa:
«Aqui tens esta espada que o heroísmo
dos teus avós honrou nessas campanhas,
com o mais ousado, intrépido civismo.
90
Freme ainda hoje em convulsões estranhas,
palpita e anseia dentro da bainha
sonhando a luta, as implacáveis sanhas.
Tu, para a teres, como eu sempre a tinha,
num triunfo imortal, quase divino,
95
de gládio que o valor maior continha;
É necessário um grande ardor leonino,
que sejas bem idólatra do nome
que fez de mim o extremo paladino.
A ferrugem, tu vês, o aço consome...
100
porém, neste aço que ainda aqui fulgura,
se houver ferrugem, tira-a com o renome.
Aqui tens, pois, a lâmina segura,
alma e brasão da nossa velha casa
coberta de ovações, famosa e pura».
105
Calou-se um instante, como a ave que a asa
fechou no voar, já quase que abatida,
caindo exausta junto à moita rasa.
O filho, mudo e respeitoso, erguida
a valente cabeça leal de moço,
110
formoso estava, porejando vida.
E enquanto o velho, impávido colosso,
calara-se num momento, emocionado
ficara o filho em íntimo alvoroço.
Mas de repente, como iluminado
115
por um clarão de glórias já extintas,
tornou o velho, aos poucos transformado:
«Podes partir! Porém nunca desmintas
nas pelejas o dom da nossa fama,
por menos força que no peito sintas.
120
Como um clarim, por toda a parte aclama
o vigor deste ferro e do teu pulso
no combate que ruja, ulule e brama.»
E cada vez mais pálido e convulso,
mais nervoso e febril e mais altivo
125
bradou ainda, num tremendo impulso:
«Se tu, que és da minh'alma o exemplo vivo,
meu filho, tens de ser como um cobarde,
como um vilão abjeto e repulsivo;
não faças mais de fidalguia alarde,
130
pega esta espada, meu Afonso, pega
e quebra-a de uma vez, que não é tarde.
Pois em lugar de fazer dela entrega
aos sequiosos, feros inimigos
antes a quebre a cólera mais cega.
135
Ei-la, aqui tens, a leoa dos perigos,
que como outrora em minha mão lampeja
da bravura e da fama nos abrigos.
Se não a tens de honrar nessa peleja
escuta bem, ó meu amado filho,
140
quebra-a, e o teu nome nem manchado seja.
Como eu faria noutra idade e brilho,
com outras energias musculares,
segue-me tu no denodado trilho.»
E assim falando, em gestos singulares,
145
e agigantado corpo retesando
e um tom sinistro esparso nos olhares;
A cabeça nos ares agitando
numa alucinação, -enorme ereto,
como heróica visão, deblaterando...
150
Fitando bem o filho predileto,
como se de repente lhe brotasse
a força hercúlea dum poder secreto.
O velho, qual um templo que abalasse,
mão crispada, lívida e nervosa,
155
com todo o esforço a lhe afluir na face,
partiu no joelho a espada vitoriosa.
Desmoronamento
Por visões que adorei num vago tempo incerto
5
não sei por que razão avivo agora as
mágoas,
num pranto doloroso e triste, como as águas
do mar grosso a bater sobre o costão deserto.
Tu, ó doce visão de perfumosas tranças,
todo o meu puro e terno sentimento invades
10
e eu não sei o que fiz das minhas esperanças
que de longe que vão parecem mais saudades.
Tudo o que houve em meu ser de compaixão e
crença
para sempre secou, secou já como um rio;
para sempre também subi ao escombro frio
15
da dúvida mortal, avassalante, imensa.
Para sempre me achei sem bússola e sem rumo
no fundo de regiões estranhas e afastadas...
As almas que eu amei, vi mudas e apagadas,
vi tudo se sumir numa espiral de fumo.
20
Bem depressa fiquei como um ermo remoto
como torvo areal sem plantas e sem fontes,
donde apenas se vê rasgar a terra o broto
do cardo retorcido e áspero dos montes.
Muitas vezes, porém, como entre os arvoredos
25
onde juntas, no val, todas as aves cantam
no meio do rumor, de sombras e segredos,
sinto dentro de mim que uns sonhos se levantam.
Borboleteio, a rir, por entre os sons e as flores,
como um pássaro azul de uma plumagem linda
30
e canto alegremente a canção dos amores,
que este peito viril sabe cantar ainda.
Lembro então corações que já me
abandonaram,
que eu senti palpitar, por sobre o meu pulsando,
que vão hoje através das afeições
chorando,
35
que sofreram comigo e que comigo amaram.
Entretanto a minh'alma em vôo largo e ufano,
de repente triunfal, de súbito gloriosa,
tem a pompa de sol, vermelha e luminosa,
da púrpura esvoaçante e aberta de um romano.
40
E esse fulgor, que vem dos meus sonhos dispersos
na névoa do passado, errantes e dolentes;
dá-me ardidos corcéis fogosos e frementes
para atrelar, jungir ao carro destes versos.
Claramente recordo e penso nas estradas
45
que percorri, que andei às ilusões, sozinho,
vendo que todo o amor das virginais amadas,
tinha a mesma fatal embriaguez do vinho.
Quantos entes febris, que o amor embriaga e ofusca
assim, durante a vida, ansiosamente exaustos,
50
não encontram, talvez, dessas visões em busca,
as Margaridas vãs dos ilusórios Faustos!
Clarões apagados
Serpe nervosa entre as nervosas serpes,
5
carnívora bromélia da luxúria
de gozo tetaniza como as herpes
da tua boca a polpa atra e purpúrea.
O teu amor, que lembra vinhos de Hebe
e essa áspera feição do abeto fusco,
10
como um réptil que salta numa sebe,
saltou-me ao peito, impetuoso e brusco.
Eu ia por estranhos descampados,
por extensos desertos impassíveis,
na trágica visão dos naufragados
15
perdidos entre os temporais terríveis.
Sem rumo certo, num sombrio inferno,
sozinho, sobre a desolada areia
arrastando a existência, de onde, eterno
um sapo coaxa e um rouxinol gorjeia.
20
Quando tu de repente, então surgiste
beleza das belezas redentoras,
tendo essa meiga formosura triste
das formosas e flébeis pecadoras.
Fosse talvez uma tremenda insânia
25
tão alta erguer o meu amor, tão alto;
mas este coração frio, da Ucrânia,
anelava galgar o céu de um salto.
E fui, galguei, subi, voei na altura,
além dos verdes píncaros do monte,
30
donde resplende a tua formosura
no clarão das estrelas do horizonte.
Foi o mesmo que se eu num templo entrasse
e aí num formidável sacrilégio,
as angélicas vestes arrancasse
35
das santas de áureo diadema régio.
Como um leão sem juba e garra, preso,
na indiferença, já morreu comigo
todo esse amor profundamente aceso
na ideal constelação de um sonho antigo.
40
Apenas pelo Saara imorredouro
do longínquo passado, ergue, altaneira,
majestosa folhagem no sol d'ouro,
dessas recordações a alta palmeira...
Asas perdidas
A Carlos Jansen Júnior
Não as asas assim, bem longe, pela curva,
5
no Vago, na Amplidão, perdidas pelos ares
até virem caindo os véus crepusculares,
toda a angústia do Ocaso, emocional e turva.
E diante dessa dor das tardes que esmaecem
as asas, pelo Azul, em vôos desgarrados
10
como a oração final dos tristes naufragados,
longinquamente, além, tênues desaparecem
cai então de uma vez a sombra dos Segredos...
E na serena paz das noites adormidas,
entre o fundo chorar dos calmos arvoredos,
15
ninguém verá jamais essas asas perdidas.
E as asas o que são no firmamento errantes,
perdidas pelo Tempo, esparsas pelas Eras,
senão os sonhos vãos, Mundos alucinantes
cheios do resplendor das flóreas primaveras?!
20
Por isso, eu quando o Azul repleto de asas vejo,
muito alto, céu acima, os páramos rasgando,
toda a minh'alma oscila e treme num desejo
em busca das regiões da Dúvida, chorando!
Anjo Gabriel
O seu busto de Excelso, a sua graça fina,
5
a linha de harpa ideal do seu perfil augusto,
estremecem de luz, de uma luz peregrina,
do secreto fulgor de um sentimento justo.
Serenidade e glória e paz do Paraíso
flutuam-lhe na face alvorecida e doce
10
e quando ele sorri é como se o sorriso
claros astros semear por todo o espaço fosse.
Leve, loura,.radial, a soberba cabeça
eleva-se da flor do níveo colo louro
e não há outro sol que tanto
resplandeça
15
como o sol virginal dessa cabeça de ouro.
As mãos esculturais, de ebúrnea
transparência,
de divina feitura e de divino encanto,
lembram flores sutis de sonhadora essência
da etérea languidez e de etéreo quebranto.
20
Das madeixas reais largo deslumbramento
num flavo jorro cai, com sagrado abandono...
E sai do Anjo o quer que é de vago e de nevoento
que lembra o despertar sonâmbulo de um sono...
De alto a baixo, do Azul, desfilando das brumas,
25
abre todo ele em flor como nevado lírio,
belo, branco, eteral, do candor das espumas,
banhado nos clarões e cânticos do
Empíreo.
Maravilhoso e nobre ergue no braço ovante
um gládio singular que rútilo cintila...
30
Enquanto o seu olhar de mágico diamante
aflora em plenilúnio através da pupila.
Que o seu olhar, então, esse, recorda tudo
o quanto há de tranqüilo e luminoso e casto.
maio de ouro a florir meigos céus de veludo
35
e a neve a cintilar sobre o monte mais vasto.
Do puro albor astral das asas majestosas,
desprendem-se no Azul mistérios de harmonia...
Entre as angelicais suavidades radiosas
parece o Anjo Gabriel o alto Enviado do Dia!
40
Na chama virginal de tão rara beleza
brilha a força de um Deus e a mística
doçura...
E sai das seduções de tamanha pureza
toda a melancolia errante da ternura.
Do suntuoso agitar das delicadas vestes
45
tecidas de jasmins, de rosas, de açucenas,
vem o aroma cristão dos aromas celestes,
todas as imortais emanações serenas...
Transfigurado, excelso, agigantado, imenso,
na candidez hostial das formas impecáveis,
50
fica parado no ar, levemente suspenso
de raios siderais, de fluidos inefáveis.
Mas quando o seu perfil nas amplidões floresce
e das asas se lhe ouve a música sonora
quando ele agita o gládio e as madeixas, parece
55
que vai noctambular pelo Infinito afora.
E alto, branco, de pé, destacado no Espaço,
eleito das Regiões de estranhas Primaveras,
traça, com o gládio no ar, alevantando o
braço,
uma cruz de Perdão na mudez das Esferas!
60
O cego do harmonium
O seu cantar nostálgico adormenta
5
como um luar de mórbida neblina.
o
harmonium geme certa queixa lenta,
certa esquisita e lânguida surdina.
Os seus olhos parecem dois desejos
mortos em flor, dois luminosos beijos
10
fanados, apagados, esquecidos...
Ah! eu não sei o sentimento vário
que prende-me a esse cego solitário,
de olhos aflitos como vãos gemidos!
Ocasos
Ânsias das horas místicas e aflitas,
5
de horas amargas das intermináveis
cogitações e agruras insondáveis
de febres tredas, trágicas, malditas.
Cogitações de horas de assombro e espanto
quando das almas num relevo santo
10
fulgem de outrora os sonhos apagados.
E os bracos brancos e tentaculosos
da Morte, frios, álgidos, nervosos,
abrem-se pare mim torporizados.
Naufrágios
I
Ora o mar é sereno, é calmo, é manso,
5
as vagas são melódicos arpejos
dando à embarcação leve
balanço,
como um afago maternal de beijos.
Ora o mar franco, livre e transparente,
tão tranqüilo que está, tão brando,
rindo,
10
que até parece, que até cuida a gente
que os corações podem boiar, dormindo.
Ora ferve, rebenta, estoura, estala,
rude, feroz, em convulsões, profundo,
abrindo a corpos pavorosa vala
15
e mundos de agonia num só mundo!
II
Filho! Filho! Adeus, querido,
vou viajar para além,
sejas de Deus protegido...
Que sempre me queiras bem.
20
Vou deixar-te nesta terra,
entregue aos destinos teus;
filho, o que este adeus encerra
só o pode saber Deus.
Levo as crenças em pedaços,
25
como pedaços de céus.
Vou ver mar, vou ver espaços
ver temporais, escarcéus.
Filho amado, vou deixar-te
cá na terra, pelo mar;
30
porem, crê, de qualquer parte,
crê, meu filho, hei de voltar.
III
Adeus, noiva, vou-me embora,
vou-me com Deus, é preciso.
Que colhas em cada aurora
35
muita messe de sorriso.
Sou soldado, o meu destino
é viver bem longe, é certo,
longe do canto divino
da tua voz, sol aberto.
40
Custa bem esta partida
a mim que entanto sou forte.
Ninguém sabe o que é a vida
para quem vive da morte.
Da morte, sim, pomba amada;
45
que as minhas crenças já mortas
tu, com essa alma estrelada
sem tu sequer me confortas.
Perdi pai, perdi carinhos
de mãe, de irmãos e de todos.
50
Eu sou como a flor de espinhos
nascida por entre lodos.
Tu vieste, ó noiva, apenas,
como um íris de esperanças,
dar-me alvoradas serenas,
55
encher-me de confianças.
Só em ti confio, espero
com ardor, com fé veemente,
pomba de luz que eu venero,
doce vésper do oriente.
60
Adeus, pois chegou a hora,
vou-me com Deus, minha filha;
não chores, que o mar não chora:
-Olha, vê que canta e brilha.
IV
Adeus, esposa extremosa,
65
vou-me, não sei para quando
voltar -minh'alma saudosa
por meus filhos vai chorando.
Ficam-te eles no entretanto
pra tirarem-te os pesares,
70
para enxugarem-te o pranto
que há de ser maior que os mares.
Maior que os mares, não minto,
não exagero tão pouco,
porque ai, só tu e só eu sinto
75
o nosso amor como é louco.
Vou-me às viagens, aos dias
passados entre horizontes
e mares e ventanias
sem arvoredos, sem montes.
80
Os dias de céus eternos
e de mar ilimitado,
com tempo de atroz infernos
com tempo de sol doirado.
Adeus! Cá dentro do peito
85
há dois corações unidos;
sobre um -o mar tem direito,
sobre outro -os filhos queridos.
V
Eis as canções e adeuses de saudade
que as desgraçadas almas palpitantes
90
soluçam na sombria imensidade
desta vida de angústias lacerantes.
Ao mar! Ao mar! Frescas aragens puras
aflam nas ondas maviosamente.
Que balada de plácidas venturas,
95
que sinfonias, que gemer dolente!
Os céus abertos, claros, luminosos
lembram a candidez branda das virgens.
Vítreos ares, magníficos, radiosos
onde o sol arde em férvidas vertigens.
100
Lindíssimos painéis, bela paisagem
abre na vista do viajante o ouro
da luz que salta como uma homenagem
de oriental, esplêndido tesouro.
Vai bem, vai muito bem, mesmo, o navio.
105
as vagas desenrolam-se de leve.
Parece um berço por de sobre um rio
manso, prateado, espúmeo, cor de neve.
Vive-se a bordo como em terra. -As vagas
nunca foram tão doces e tão meigas,
110
como em desertas, viridentes plagas
é doce e meigo o mole chão das veigas.
Viver assim, na realidade, é gozo
que até parece não haver na terra!
Tão belo é o mar, tão calmo e
bonançoso,
115
tal confiança nos semblantes erra!
Vogando assim a embarcação, quem pensa
ir acordado afora pela Vida?!
Tudo é um sonho de esperança imensa
um bom sonho de aurora indefinida.
120
VI
Súbito os ares enchem-se de noite
e grita e zune, zargunchando o vento
que esbraveja, morde com rijo açoite
o mar que espuma e empola num momento.
Não estrugem os raios pela treva
125
não há trovões bravios rebentando
como canhões que estouram, -mas se eleva
do oceano um vendaval que vai urrando
Com fúrias e com cóleras enormes
como potros sanhudos relinchando
130
em pinotes e berros desconformes.
Caiu talvez no mar o etéreo espaço,
toda a cúpula azul tombou, quem sabe?
Céus! há lutas ali, de braço a
braço.
Horror! Crível será que o mundo acabe?
135
Ninguém calcula o que será tudo isso...
Mas os ventos elétricos, largados
nas amplidões do mar antes submisso,
rugindo vão como desesperados.
Deus, ó meu Deus, todas as bocas gritam,
140
e se afervora mais e mais a crença.
Mas, onde os astros muita vez palpitam
no céu, há noite cada vez mais densa.
Ah! que mudez de túmulo nos ares.
Nada responde, oh! nada então responde;
145
mas onde está o grande Deus dos mares
e da terra, onde está, aonde, aonde?
Tudo está mudo -a natureza inteira,
tudo emudece e não responde nada;
e só os vendavais têm a maneira
150
de responder dando uma gargalhada.
Gargalhada de lágrimas atrozes,
de lágrimas de morte e de agonia
que abafa e extingue na garganta as vozes,
gera a coragem que é a luz do dia.
155
O valentes e rudes marinheiros
vindos da pátria para pátria nova,
que sepultais amores verdadeiros
do tão profundo coração na cova;
ó viajantes de longe, de países
160
onde a vida cintila e canta alerta
como um turbilhão de aves felizes
numa campina de rosais, deserta;
ó vós todos que vindes lá do oceano,
entre as mais bruscas e hórridas tormentas.
165
Lá do mar alto, à vela, a todo o pano,
com as almas ansiosas e sedentas
De chegar cedo ao porto desejado,
calculai, calculai o quanto é triste
ver dar à praia um pobre desgraçado
170
em cuja carne a podridão existe!
À praia! À praia! Dai à praia, morto,
rejeitado por ondas convulsivas,
indo encontrar na sepultura o porto,
deixando ao mundo as ilusões mais vivas.
175
O eterno amor de mãe, de filho, esposa,
tanta fé, tanto riso de alegria,
tanta coisa dourada, ai tanta coisa
que ao recordar toda a nossa alma esfria.
Morrer no mar, os nervos contraídos,
180
numa asfixia atroz, cerrando os dentes,
num abismo de dores e gemidos,
de maldições e de uivos de descrentes;
morrer no mar, sem o farol amigo,
esse farol que os náufragos anima,
185
fora de proteção, fora de abrigo,
sem sequer uma luz no espaço, em cima;
morrer no mar, sem astros no infinito,
na solidão das águas, fria, imensa,
enquanto a treva dura de granito,
190
ri-se de tudo, com indiferença;
morrer no mar, só e desamparado
e num terror que não acaba nunca,
vendo rasgar o corpo enregelado
o desespero como garra adunca.
195
É horrível! Bem sei! Mas ai daqueles
que morrem mesmo assim lá no mar fundo
sem ter alguém que ao menos neste mundo
derrame uma só lágrima por eles!
(Desterro)
Poesias para um livro derradeiro
Violinos
Doces, multicores aquarelas
5
sobre um saudoso céu que além se azula...
calma, serena, divinal, entre elas,
a pomba ideal dos Ângelus arrula...
Rezam de joelhos anjos de mãos postas
através dos vitrais, e nas encostas
10
dos montes sobe a claridade ondeando...
É a lua de Deus, que as curvas meigas
foi ondular pelos vergéis e veigas
magnólias e lírios desfolhando...
Na fonte
no monte o sol que a luz no oceano escorre
5
e ainda eu vejo, as sombras afrontando,
uma mulher que lava, mesmo quando
o sol mais rubro, mais vermelho jorre.
-É num sítio afastado, um sítio ermo...
Pássaros cortam vastidões sem termo,
10
borboletas azuis roçam nas águas.
-E a mulher lava, enrubescida a face;
lava, cantando, como se lavasse
as suas tristes e profundas mágoas.
[A fonte de águas cristalina corre]
No ocaso, o sol, a luz no oceano escorre
5
e sempre vejo, as sombras afrontando,
uma mulher que canta e ri, lavando,
mesmo que o sol muito abrasado jorre.
É verde o campo, deleitável e ermo.
Pássaros cortam vastidões sem termo,
10
borboletas azuis roçam nas águas.
E cantando, a mulher, a rir a face,
lava cantando como se lavasse
as suas grandes e profundas mágoas.
Plenilúnio
Vês este campo intérmino, encharcado
5
da luz que a lua aos páramos desata...
vês este véu que branco se dilata
pelo verdor do campo iluminado...
Vês estes rios, tão fosforescentes,
cheios duns tons, duns prismas reluzentes,
10
vês estes rios cheios de ardentias...
Vês esta mole e transparente gaze...
pois é, como isso me parecem quase
iguais, assim, às nossas alegrias!
Manhã
da passarada os vôos condoreiros,
5
os cantos e o ar que as árvores ramalha
lembram combate, estrídula batalha
de elementos contrários e altaneiros.
Vozes, trinados, vibrações, rumores
crescem, vão se fundindo aos esplendores
10
da luz que jorra de invisível taça.
E como um rei num galeão do Oriente
o sol põe-se a tocar bizarramente
fanfarras marciais, trompas de caça.
Hóstias
A Emílio de Menezes
Que seja nosso amor -sidério mito!-
5
o límpido turíbulo das dores,
derramando o incenso dos amores
por sobre o humano coração aflito.
Como num templo, numa clara igreja,
que o sonho nupcial gozado seja,
10
que eu durma e sonhe nos teus níveos flancos.
Contigo aos astros fúlgidos alado,
que sejam hóstias para o meu noivado
as flores virgens dos teus seios brancos!
Boca imortal
Teu olhar dá-me febre e dá-me um brusco e vivo
5
tremor às carnes, que eu, se ele em mim reverbera,
fico aceso no horror da paixão que ele gera,
inflamada, fatal, dum sangue rubro e ativo.
Mas a boca produz tais sensações de morte,
o teu riso, afinal, é tão profundo e forte
10
e tem de tanta dor tantas negras raízes;
rigolboche do tom, ó flor pompadouresca!
Que és, para mim, no mundo, a trágica e
dantesca
imperatriz da Dor, entre as imperatrizes!
Psicologia humana
A Santos Lostada
Partir pudesses, ó poeta, em cacos,
5
vidros que ocultam almas de ferrugem,
que espumam de ira, tenebrosas mugem,
mugem como de dentro de uns buracos.
Que essas sombrias, dúbias almas foscas
que parecem, no entanto, como moscas,
10
inofensivas, babam como as lesmas.
Mas tu, em vão, tais vidros partirias,
pois que no mundo, eternamente, as frias
almas humanas serão sempre as mesmas!
Os mortos
Junto aos mortos, por certo, a fé ardente
5
não perde a sua viva claridade;
cantam as aves do céu na intimidade
do coração o mais indiferente.
Os mortos dão-nos paz imensa à vida,
dão a lembrança vaga, indefinida
10
dos seus feitos gentis, nobres, altivos.
Nas lutas vãs do tenebroso mundo
os mortos são ainda o bem profundo
que nos faz esquecer o horror dos vivos.
Verônica
Um vivo sangue a face te ensangüenta,
5
mais vivo que se o Deus o derramasse;
porque esta vã paixão, para que passe,
é mister dos Titãs a luta incruenta.
Se tu, Visão da Luz, Visão sagrada
queres ser a Verônica sonhada,
10
consoladora dessa dor sombria
impressa ficará no teu sudário
não a face do Cristo do Calvário
mas a face convulsa da Agonia!
Símiles
Tudo que a Bíblia tinha decretado,
5
tudo o que a lenda humilde e dolorida
de Jesus Cristo apregoou na vida,
cumpriu-se à risca, foi executado.
O filho-Deus da cândida Maria,
da flor de Jericó, na cruz sombria
10
os seus dias amáveis terminou.
Pedro traiu a fé dos companheiros.
Madalena chorou sob os olmeiros
Jesus Cristo sofreu e... perdoou.
(Desterro)
Exilada
És branca e és loura e tens os amavios
5
os incógnitos filtros prediletos
que podem produzir ondas de afetos
nos mais sensíveis corações doentios.
Loura Visão, Ofélia desmaiada,
deixa esta febre de ouro, a febre ansiada
10
que nos venenos deste sol consiste.
Emigra destes cálidos países,
foge de amargas, fundas cicatrizes,
das alucinações de um vinho triste...
A freira morta
Pelas negras abóbadas sombrias
5
donde pende uma lâmpada fulgente,
por entre a frouxa luz triste e dormente
sobem do claustro as sacras sinfonias.
Uma paz de sepulcro após se estende...
e no luar da lâmpada que pende
10
brilham clarões de amores condenados...
Como que vem do túmulo da morta
um gemido de dor que os ares corta,
atravessando os mármores sagrados!
(Desterro)
Claro e escuro
púrpuras ricas, galas flamejantes,
5
cintilações e cânticos e flores;
promiscuamente férvidos odores,
mórbidos, quentes, finos, penetrantes,
por entre o incenso, em límpida cascata,
dos siderais turíbulos de prata,
10
das sedas raras das mulheres nobres;
clara explosão fantástica de aurora,
deslumbramentos, nos altares! -Fora,
uma falange intérmina de pobres.
Horas de sombra
Horas que o coração não vê perigo
5
de gozar, de sentir com liberdade...
Horas da asa imortal da Eternidade
aberta sobre tumular jazigo.
Horas da compaixão e da clemência,
dos segredos sagrados da existência,
10
de sombras de perdão sempre benditas.
Horas fecundas, de mistério casto,
quando dos céus desce, profundo e vasto,
o repouso das almas infinitas.
Aleluia! Aleluia!
Que tu me alentes nas batalhas rudes,
5
que me tragas a flor de um doce alívio
aos báratros, às brenhas, ao declívio
deste caminho de ânsias e ataúdes...
Já que desceste das regiões celestes,
nesse clarão flamívomo das vestes,
10
através dos troféus da Eternidade,
traz-me a Luz, traz-me a Paz, traz-me a Esperança
para a minh'alma que de angústias cansa,
errando pelos claustros da Saudade!
Rosa negra
Do Dante o atroz, o tenebroso lema
5
do Inferno à porta em trágica ironia,
eu vejo, com terrível agonia,
sobre o teu coração, torvo problema.
Flor do delírio, flor do sangue estuoso
que explode, porejando, caudaloso,
10
das volúpias da carne nos gemidos.
Rosa negra da treva, Flor do nada,
dá-me essa boca acídula, rasgada,
que vale mais que os corações proibidos!
Vozinha
Cabeça branca de serena leoa,
5
carinho, amor, meiguice que não cansa,
coração nobre sempre como a lança
que não vergue, não fira e que não doa.
Olhos e voz de castidades vivas,
pão ázimo das Páscoas afetivas,
10
simples, tranqüila, dadivosa, franca.
Morreu tal qual vivera, mansamente,
na alvura doce de uma luz algente,
como que morta de uma morte branca.
No egito
O Egito é sempre o antigo, o velho rito
5
onde um mistério singular se asila
e onde, talvez mais calma, mais tranqüila
a alma descansa do sofrer prescrito.
Sobre as ruínas d'ouro do passado,
no céu cavo, remoto, ermo e sagrado,
10
torva morte espectral pairou ufana...
E no aspecto de tudo em torno, em tudo,
árido, pétreo, silencioso, mudo,
parece morta a própria dor humana!
Repouso
Cego desta Prisão impenitente
5
da Terra e cego do profundo Afeto,
o sonho é sempre o seu bordão secreto,
o seu guia divino e refulgente.
Nem no repouso encontra a paz que espera,
para lhe adormecer toda a quimera,
10
os círculos fatais do seu Inferno.
Entre a calma aparente, a estranha calma,
o seu repouso é sempre a febre d'alma,
o seu repouso é sonho, e sonho eterno.
Requiescat...
Ilusão, Flor do sol, do morno e lasso
5
sonho da noite tropical e flórea,
quando as visões da névoa transitória
penetram na alma, num lascivo abraço...
Ó Ilusão! Estranha caravana
de águias, soberbas, de cabeça ufana,
10
de asas abertas no clarão do Oriente.
Não me persiga o teu mistério enorme!
Pelas saudades que me aterram, dorme,
dorme nos astros infinitamente...
Doce abismo
Como um beijo de mágoa e de ansiedade,
5
como um terno crepúsculo d'encanto,
como uma sombra de celeste manto,
um soluço subindo à Eternidade.
Como um sudário de Jesus magoado,
lividamente morto, desolado,
10
nas auréolas das flores da amargura.
Coração, coração! onda chorosa,
sinfonia gemente, dolorosa,
acerba e melancólica doçura.
Harpas eternas
Passam, nos sóis da Glória redivivos,
5
vibrando as de ouro e de Marfim dolentes,
finas harpas celestes, refulgentes,
da luz nos altos resplendores vivos.
E as harpas enchem todo o imenso espaço
de um cântico pagão, lascivo, lasso,
10
original, pecaminoso e brando...
E fica no ar, eterna, perpetuada
a lânguida harmonia delicada
das harpas, todo o espaço avassalando.
Dupla via-láctea
E alas voavam de Anjos brancos, voavam
5
por entre hosanas e chamejamentos...
Claros sussurros de celestes ventos
dos Anjos longas vestes agitavam.
E tu, já livre dos terrestres lodos,
vestida do esplendor dos astros todos,
10
nas auréolas dos céus engrinaldada
dentre as zonas de luz flamo-radiante,
na cruz da Via-Láctea palpitante
apareceste então crucificada!
Titãs negros
Negros e nus, negros Titãs, cobertos
5
das bocas vis, das chagas vis e horrendas,
marcham, caminham por estranhas sendas,
passos vagos, sonâmbulos, incertos...
Passos incertos e os olhares tredos,
na convulsão de trágicos segredos,
10
de agonias mortais, febres vorazes...
Têm o aspecto fatal das feras bravas
e o rir pungente das legiões escravas,
de dantescos e torvos Satanases!...
Entre chamas...
E eu pasmava de encanto e de surpresa
5
vendo a constelação indefinida
da tua carne flamejando vida,
dentre os íris radiantes da beleza...
E o teu corpo, nas chamas palpitando,
os astros em redor maravilhando,
10
por entre a auréola dos clarões cantava...
Então, de sonho em sonho, absorto, mudo,
eu senti alastrar, vibrar por tudo
toda a infinita sensação da lava!...
O anjo da redenção
Portas de bronze e pedra, o horrendo muro
5
da masmorra mortal onde estás preso
desce, penetra o Arcanjo branco, ileso
do ódio bifronte, torto, torvo e duro.
Maravilhas nos olhos e prodígios
nos olhos, chega dos azuis litígios,
10
desce à tua caverna de bandido.
E sereno, agitando o estranho facho,
põe-te aos pés e à cabeça, de alto a
baixo,
auréolas imortais de Redimido!
Salve! Rainha!...
Ó sempre virgem Maria,
concebida sem pecado original,
desde o primeiro instante do teu ser...
Teu coração de espadas lacerado,
5
sangrando sangue e fel martirizante,
escute a minha Dor, a torturante,
a Dor do meu soluço eternizado.
A minha Dor, a minha Dor suprema,
a Dor estranha que me prende, algema
10
neste Vale de lágrimas profundo...
Salve! Rainha! por quem brado e clamo
e brado e brado e com angústia chamo,
chamo, através das convulsões do mundo!...
Mendigos
Que chegam desiludidos
5
das portas a que bateram:
Humanos, grandes gemidos
que nos tempos se perderam.
Que voltam como partiram,
com mais amargor na volta
10
e mais sonhos que se abriram
das estrelas na recolta.
Mendigos ricos no entanto,
das pompas da natureza
e das auréolas do Encanto,
15
os vinhos da sua mesa.
Mendigos que o sol, apenas,
torna nababos felizes,
torna um pouco mais serenas
as convulsas cicatrizes.
20
Mendigos que acham requinte
na fumaça de um cachimbo,
deixando que labirinte
o sonho em tão leve nimbo.
Mendigos da luz da aurora
25
cantando celestemente,
fresca, límpida, sonora,
pelas fanfarras do Oriente.
Mendigos de áureas estradas,
de sonâmbulas veredas,
30
de riquezas encantadas,
sem pedrarias e sedas.
Mendigos d'estranho aspecto
e sempiterna vigília,
filhos nômades, sem teto,
35
de milenária Família.
Mendigos que erram eternos
sem fadigas e sem sono,
sob o augúrio dos Infernos,
das Ilusões sobre o trono.
40
Mendigos de plaga nova,
de novas terras e mares,
divinizados na cova
como as hóstias nos altares.
Mendigos da grande esmola
45
da luz das estrelas nobres,
que fulge e dos altos rola,
entre as suas mãos tão pobres!
Mendigos de céus remotos,
de sóis dos mais velhos ouros;
50
com a sua fé e os seus votos
e os seus secretos tesouros.
Mendigos de olhar severo,
boca murcha, meio amarga...
Tendo um vago reverbero
55
de sonhos na fronte larga.
Mendigos de ínvias florestas
e de bosques fabulosos,
de melancólicas sestas
nos crepúsculos brumosos.
60
Mendigos da Eternidade,
tremendo dos sóis, dos frios,
nas mortalhas da Saudade
amortalhados sombrios.
Mendigos dos Infinitos,
65
das Esferas inefáveis,
noctambulando malditos
nos rumos imponderáveis.
Mendigos de fome e sede
de água e pão de outros mundos,
70
embalados pela rede
dos Idealismos profundos.
Mendigos do azul Mistério,
cuja alma -nívea sereia-
fica saciada no aéreo
75
pão branco da lua cheia!
[QUANDO EU PARTIR] ou [ESFUMINHAMENTO]
Por nossa vida toda sol, bonita,
5
que sentimento, grande como os mares,
que sombra e luto pelos teus olhares
onde o carinho mais feliz palpita...
Nesse teu rosto da maior bondade
quanta saudade mais, que atroz saudade...
10
Quanta tristeza por nós ambos, quanta,
qando eu tiver já de uma vez partido,
o meu amor, ó meu muito querido
amor, meu bem, meu tudo, ó minha santa!
Sempre e... sempre
A M. B. Augusto Varela
Sempre se amando, sempre se querendo.
Oliveira Paiva
vendo cair as lágrimas prateadas,
5
sentindo o coro harmônico das fontes,
sempre fitando a cúspide dos montes
e o rosicler das frescas alvoradas;
sempre embebendo os límpidos olhares
na claridão dos humildes luares,
10
no loiro sol das crenças se embebendo,
vão nossas almas brancas e floridas
pelo futuro azul das nossas vidas,
sempre se amando, sempre se querendo.
O órgão
um esquecimento amargo
uma sombria clausura de almas
suspirando e gemendo solitárias harmonias
5
vago luar de esquecimento e prece,
dessa melancolia que anda errando
no mar e nas estrelas ondulando,
pela minh'alma etereamente desce.
Na minh'alma, dos Sonhos anoitece
10
o Sentimento que ando transformando
em hóstia de ouro
sombra e silêncio