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Angélica e Firmino

Comédia em cinco atos

Manuel de Araújo Porto Alegre

INTERLOCUTORES



FIRMINO.
ANGÉLICA.
DONA CLARA.
CÂNDIDA.
GUSTAVO.
ANTÔNIO.
ADOLFO.
MIRABEAU.
DIONÍSIO.
POMPEU.
CRIADO.
TIBÉRIO.
BARÃO.
CATÃO.
ARNAUD.
MÉDICO VELHO.
Uma mucamba.

Sala com uma janela à direita, que deita para o mar; duas portas no fundo que dão ingresso para a alcova de Firmino, à esquerda, e para sua biblioteca, à direita. No meio da sala uma grande banca com lampião de globo, muitos livros, brochuras, mapas, papéis espalhados, instrumentos de física, tudo formando uma pitoresca desordem. É noite.

Cena I

FIRMINO, abrindo a janela.

FIRMINO.-Que formoso luar! Como é límpida a atmosfera dos trópicos! Como brilha o Cruzeiro do Sul entre essas miríadas de sóis que iluminam o trono do Senhor, e como tudo na terra se prepara para embalsamar o coração no mais suave perfume! Tudo dorme e se refocila para a continuação da obra que hoje findou. A ampulheta diária renovará as mesmas cenas no dia de manhã; o círculo de luz que começa na aurora e acaba com as trevas se fechará sem lançar um raio no futuro, nesse futuro imenso, aonde dorme o gigante do Equador, e em cujo trono virá um dia assentar-se a nobre civilização, escoltada do seu séquito sublime, e avultar no mundo quanto o Amazonas avulta sobre todos os rios da Terra. Ó minha pátria, minha querida pátria! Um sagrado delírio nos faz estremecer todas as fibras e eleva o meu pensamento à morada dos sonhos elísios; uma doce prelibação fruo na taça das delícias quando te contemplo! A árvore da vida, que em ti se agiganta com triplicada beleza, com força desusada, ainda cresce para muitos como a túbera nas entranhas da terra, em trevas profundas. Não, apesar de tudo a humanidade há de marchar, mesmo em despeito do fatal exemplo da prosperidade do vício, da elevação da mediocridade e do triunfo da impunidade. (Senta-se à mesa.) A palavra neste século deve substituir a espada; o prelo, o campo de batalha e as idéias, o indivíduo. Avante, que a conquista é bela e o futuro, imenso. Mais bela seria, mais rápida, mais sublime, se o capricho não substituísse a razão, e... Sensualismo, sensualismo puro! Orgia de sibaritas, que semeiam flores no túmulo da pátria, que em pleno dia caminham às apalpadelas, que na hora em que o chão fumega com o ardor do sol olham para o céu e não encontram o rei dos astros, porque para os seus sentidos o mundo é uma habitação de trevas, onde só brilha o moribundo farol do interesse particular. Ó mocidade, mocidade, fênix das nações, esperança de... (Ouve tocar dentro uma campainha.) O que será? Creio que Angélica precisa de alguma coisa, Desgraçada menina! Que paixão oculta lhe fermenta no peito! A flama que a nutre é a mesma que a devora; eu não ouso perguntar-lho, e nem suspeito por quem ao certo. Que coração tão nobre, que alma tão grande, que imaginação tão sublime!... Talvez que algum desses monstros filhos da beleza física, algum extravagante encoberto, desses profanadores, dissipadores, que têm por ofício o ócio e por glória o escândalo... Talvez que algum desses saltimbancos seja a causa do seu definhamento. Sensível, apreensiva, daquela casta de gênios os mais felizes e os mais infelizes, vai sofrendo em silêncio suas mágoas enquanto os outros irmãos rolam nas futilidades. Vamos a trabalhar, vamos mostrar, sem os atavios da eloqüência mas com a razão e com os exemplos, os males incalculáveis da impunidade e das calúnias da imprensa. (Principia a escrever; ouve passos na biblioteca.) Quem está aí? Minha tia já veio do baile, ou chegam agora?

ANGÉLICA.- (Dentro.) Sou eu, meu primo, que procuro um livro. Não dá licença?

FIRMINO.- Coitadinha! (Para ANGÉLICA.) Que livro quer, que eu lho vou dar? (Levanta-se e vai à porta.) Prima Angélica, não faça imprudências; ler a esta hora?!

ANGÉLICA.- (Dentro.) Não se incomode, já o achei; aqui está.

Cena II

ANGÉLICA e FIRMINO.

ANGÉLICA.- O meu favorito, Werther, que sublime obra!

FIRMINO.- Werther! Werther sublime para vós?! Como é possível casar a fantasia de uma virgem com a de um insensato, que progressivamente se vai amortalhando em vida com o negro fel que lhe insufla o gênio do mal, para destruir uma existência que só pertence a Deus? Que idéias são essas, minha prima? A rosa não parece mais bela e mais odorosa quando vegeta num vaso de alabastro do que na sepultura de um finado?

ANGÉLICA.- Eu não simpatizo com Werther, mas sim com o seu imortal autor. Decerto que a alma de Goethe se achava contristada no apogeu da dor quando debuxou este lúgubre painel. (Mostrando o livro.) A rosa que vegeta entre ciprestes, que se emaranha por entre túmulos, acaso perde o seu aroma e a sua beleza? Porventura achais uma profanação do sublime o perfume que derrama a flor sobre a campa da inocência? Não será esse perfume uma espécie de substituição às penas da vida mundana, um hino da poesia da natureza, um retrato daquela alma que vagou entre nós e que desperta uma saudade, um suspiro no semblante melancólico e contemplativo de outra vítima, que desperta mesmo um sorriso, que salpica em suas faces esse toque sublime do pincel da natureza, quando retrata os extremos? Primo, bem vos conheço; acaso não tenho lido as vossas produções e seguido vossa alma nos vôos ardentes do entusiasmo, acompanhado no mundo e nos céus a abalada do vosso gênio?

FIRMINO.- Se me conheceis, basta. Mas só vos direi uma coisa: as aparências não são sempre realidades. O mundo interno do coração é mui diverso daquele em que vivemos.

ANGÉLICA.- É isso mesmo que eu vos queria dizer. O vosso frio envoltório é denunciado por essas páginas vulcânicas com que cada dia mimoseias a pátria com o pseudônimo de Brasílio Elísio.

FIRMINO.- Minha prima, como soubestes esse segredo, que só eu e meu livreiro sabemos, e mais meu tio?...

ANGÉLICA.- E eu, que o adivinhei, e arranquei-o de meu pai.

FIRMINO.- Mas sabeis que ele importa uma vitória ou uma desgraça?!

ANGÉLICA.- Apesar de mulher, tenho um túmulo para guardar o que devo. Ai... ando tão fraca, (Senta-se perto da janela, olhando para o mar.) a vida me parece um fardo pesado. Como o reflexo da lua pinta sobre as ondas de um combate de serpentes de fogo, e como o mar se estende tão suave que parece um chamalote de azul e prata! Como as montanhas de Niterói se ocultam no mistério da noite! Esta hora, primo, é esposa da meditação. Vossa imaginação deve inflamar-se à vista da sublimidade desta baía, vós que vistes toda a Europa, que sois poeta, que sois filósofo...

FIRMINO.- Médico, médico nesta terra; um mau médico, se quiserdes.

ANGÉLICA.- Cirurgião, cirurgião, para mim: médico... duvido.

FIRMINO.- E por quê? Pois ainda há pouco me dizíeis...

ANGÉLICA.- Que tínheis talento, imaginação, entusiasmo, amor da pátria... Mas a medicina tem alguma coisa de mais sublime ainda, alguma coisa de divino, e que está muito acima do estudo das escolas. A medicina deve ter sempre duas boticas, uma em casa do farmacêutico e outra na alma do médico. Os médicos gostam muito da primeira, e eu acho que a segunda pode operar curas muito mais milagrosas.

FIRMINO.- Tendes muita razão, mas, para obtê-la, não bastam as cãs e o estudo dos livros. É necessário uma longa prática, ou ter nascido para decifrar esses mistérios que encobrem a palidez do rosto e a magreza das formas. As mágoas são um verdadeiro proteu do nosso físico. Efeitos materiais, causas misteriosas, véu de dissimulação, aparências ocultando realidades, eis o mundo... Mas nesta regra geral há honrosas exceções. Ainda se encontra a verdade.

ANGÉLICA.- E infeliz da humanidade, se assim não fosse. Há outra casta de médicos ainda, que curam radicalmente muitos males: eles aplicam à alma um bálsamo consolador e a guiam para essa senda divina que não acaba neste mundo. Quando a vida se converte em trevas, e erra a esperança no centro de uma caverna escura; quando os passos da insensibilidade e a celeuma da indiferença fazem o círculo da existência, a religião é o único remédio, e a morte, a verdadeira felicidade. Homens de espírito conheço eu de perto, com brilhantes ademãs, mas com uma imaginação que lhes destrói a estrada do coração.

FIRMINO.- Engano! A razão... (Sorrindo-se com ironia.) Entendo perfeitamente. Ora bem. Se eu pedir-vos que depositeis em vossos lábios esse coração atormentado por um suplício oculto; se o vosso médico, porque o sou, vos rogar que com toda a singeleza...

ANGÉLICA.- Uma estrela nebulosa cintila em minha alma, e seus pálidos raios perdem-se na escuridão do futuro... Ah! que se um astro benéfico me derramasse aqui outra torrente de luz, quanto seria eu feliz!

FIRMINO.- Angélica, desconfiais do vosso médico e dais armas, ao mesmo tempo, para combater vitoriosamente todos os vossos ditames. Seja como for, desprezai o médico e substituí-o pelo parente ou pelo amigo.

ANGÉLICA.- Sois meu amigo? (Levanta-se precipitadamente.) Dizei-me outra vez essa palavra, que encerra uma idéia tão sublime quanto rara.

FIRMINO.- Por que duvidais?! Quando à aliança do sangue vem a do coração unir-se com as suas homenagens sagradas, a amizade toma esse caráter augusto que beatifica a existência. (Olha para ela fixamente.) Angélica, de duas coisas uma: ou vossa imaginação é o algoz de vossa vida, ou um grande combate se trava em vossa alma. Tendes um amor secreto que vos atormenta, ou uma dessas ilusões romanescas que esvoaçam na mente de algumas donzelas e se emaranham em outras ilusões... Vós amais.

ANGÉLICA.- (Perturbada um tanto.) Algum saltimbanco da moda, algum espartilhado... não é assim, meu primo e senhor doutor?

FIRMINO.- Longe a dissimulação feminina. Muito tenho visto e muito observado. Teoria e experiência tenho do mundo, e a minha penetração leu agora em vossos olhos, em vossas palavras, o interior do coração.

ANGÉLICA.- Se a vossa ciência é tão sublime, escusado é interrogar-me.

FIRMINO.- A fisionomia representa a alma, como a sombra de um corpo ao clarão do archote, mas não distingue as cores e as particularidades do objeto que se pinta na parede.

ANGÉLICA.- Resquício que não recebe o clarão da verdade, centelha da vaidade humana. A sombra não é o objeto: nas formas e no colorido está a alma da pintura.

FIRMINO.- Mas a sombra acompanha todos os movimentos do corpo, assim como a fisionomia os da alma. Basta de imagens. Dizei-me francamente: por que vos desagrada o futuro? Não é ele fluente e risonho para os sonhos de vossas esperanças?

ANGÉLICA.- Não.

FIRMINO.- Não! E por quê?...

ANGÉLICA.- Chegou minha mãe... Vou recebê-la.

FIRMINO.- Acabai, senhora.

ANGÉLICA.- É cedo; mais tarde o sabereis, sem ser de mim.

FIRMINO.- Quem prolonga a esperança, nela morre. (Senta-se à banca e Angélica retira-se. Prepara-se para escrever.) Eu hei de descobrir este segredo, é do meu dever. (Ouve vozeria e o rodar de uma berlinda.) Aí chegou minha tia, e para cá se dirigem.

Cena III

FIRMINO, DONA CLARA, CÂNDIDA e GUSTAVO.

DONA CLARA.- Como vimos luz no seu quarto, para cá nos dirigimos. Então, doutor, ainda se estuda a estas horas?

FIRMINO.- A noite está belíssima, e vosmecês vieram muito cedo. Então, Candinha, belas modas, bons refrescos, boa música, boa companhia... e muito cansaço, naturalmente.

CÂNDIDA.- Estou que não posso. Sete valsas e dez contradanças! A última e o galope geral mataram-me. O doutor Leiria valsa divinamente; foi meu par efetivo, e hoje ninguém nos levou a palma.

GUSTAVO.- E eu então que figura fiz no baile? Porventura aonde estou eu alguém põe pé adiante? Fora, senhora pachola.

DONA CLARA.- Cala-te, Gustavo, já começas.

GUSTAVO.- Eu estou calado desde que entrei, mas não posso aturar gabolices, nem ouvir a senhora pacholar, tendo dançado com me um gafanhoto engravatado.

DONA CLARA.- Cala-te, já te disse. Cândida, é preciso moderar isso, porque nesta terra basta um moço dançar três vezes com uma menina para já se improvisar um romance, ou casamento. E se acaso for uma noite tomar chá em casa dos pais... os mosquitos se transformam em elefantes, e surgem cenas aí mui desagradáveis. As meninas de hoje, quando vão aos bailes, não fazem reflexões. Estas danças de agora são terríveis. No meu tempo havia o minuete da corte, o afandangado, a gavota, mas hoje...

FIRMINO.- Debaixo da zona tórrida valsa-se como lá na Alemanha ou na Rússia, e finalmente veio a galopada, que mais parece uma bacanal do que um deleite para o corpo.

CÂNDIDA.- A dona Leonor diz que dá um ano de vida por uma noite de baile. É uma senhora de muito vivo espírito.

GUSTAVO.- Apoiadíssimo.

DONA CLARA.- Essa é como boneca de cabeleireiro, que se enfeita numa hora para andar à roda o resto do dia.

FIRMINO.- Bravíssimo, minha tia. É das tais que têm a cabeça de pião e trazem corrupio no juízo.

GUSTAVO.- Não apoiado, retire a expressão.

CÂNDIDA.- Ande lá, senhor doutor, que vosmecê também é tão bom como os outros: à vista, muitas amabilidades, e na ausência, sátiras a centos. (Senta-se.)

DONA CLARA.- Firmino não é como Jerônimo e os outros.

CÂNDIDA.- Aquele monstro, que durante a cantoria de d. Ana levou a coçar as orelhas e a dizer, em voz inteligível, «maçada, maçada» e logo que ela saiu do piano, foi ao seu encontro ao meio da sala, batendo palmas e rendendo-lhe mil finezas.

DONA CLARA.- Sirva-te isso de lição, porque estes bonecos da moda calçam todos pela mesma forma.

GUSTAVO.- Não há homem mais desgraçado no universo do que eu.

DONA CLARA.- Não eras tu desgraçado há pouco.

GUSTAVO.- Se soubesse o que se fazia no outro mundo, matava-me agora mesmo. Agora é que eu dou todo o peso àquelas terríveis palavras...

FIRMINO.- Pelo que vejo, o motivo é gravíssimo.

GUSTAVO.- (Chorando.) O mais grave que há no universo inteiro. (Atira com o chapéu de pasta no chão.) Assim pudesse eu vingar-me.

DONA CLARA.- Claro está que o não ganhaste com o teu suor.

GUSTAVO.- Minha mãe, vosmecê não sabe os motivos secretos que tenho para conspirar-me contra o universo inteiro, e até contra mim mesmo. Mas eu já jurei, e quando juro... antes quebrar que torcer, como diz o primo.

DONA CLARA.- Mas o ano passado juraste de estudar, e nada de novo, segundo penso.

GUSTAVO.- Isto agora é matéria séria, coisa muito grave, não são bagatelas de livros. Veja, meu primo, se eu tenho razão do conspirar-me contra o universo e contra mim mesmo. Estava assim, (Figura a sua posição em uma contradança francesa.) não sei se me entende, com o meu par à direita... Vem cá, Candinha, para eu melhor figurar a posição. Vem cá, não me desesperes.

CÂNDIDA.- Pois o primo não sabe o que é uma contradança?

GUSTAVO.- Este é dos que foram à Europa e veio pior do que foi. Não sei o que lá foi fazer. Nem já dança o ril, anda à jarreta como um ginja.

DONA CLARA.- Logo que um moço sério se afasta aí do biquinho virado, da correntinha ou outra qualquer coisinha, já é uma jarreta e entra na classe dos inválidos.

GUSTAVO.- Os moços que se casam com os livros dão baixa no livro mestre do bom-tom. Ficam estúpidos e ignorantes das delícias da bela sociedade. Se o primo soubesse o que era uma contradança, mandava toda esta tarecada de livros e instrumentos para a casa do belchior e não perdia um só baile.

FIRMINO.- Tendes toda a razão. A folhinha das bagatelas não me serve de calendário. Já dancei em outros tempos, e ainda dançarei quando houver falta de gente, porém hoje subiu-me o talento das pernas para a cabeça, e cuido em vez de saltinhar.

DONA CLARA.- Firmino, não te ocupes com esse tolo, que não sabe o que diz. Ora, teu tio está tardando. Quando vamos em duas seges é sempre isto, e fica-me com a chave de cima.

FIRMINO.- Enquanto ele não vem, ouçamos meu primo.

GUSTAVO.- Muito bem. Vem cá, Candinha.

CÂNDIDA.- Deixa-me, que estou morta com um calo.

GUSTAVO.- Sapatos pequenos não fazem o pé pequeno. Se fosse o... o... saltava como um tico-tico.

DONA CLARA.- Já começas com os teus despropósitos?

GUSTAVO.- Pois sem ele, eu já lhes mostro. Afastem-se. (Põe-se em atitude de dança.) En avant seul, grita o mestre-sala. O Belmiro rompe o passo, (Canta.) «volta à esquerda, volta à direita... um, dois, três...» assim com um encadeamento de tercinas batidas; «balancê volta; aos seus lugares». Eu, que queria metê-lo no chinelo, principio o meu solo por um encadeamento de quartas batidas para todos os lados, e eis que, pirueteando para com graça dar a mão ao meu par, cai-me o sapato e rebentam-se os suspensórios. Ah, todo o fogo do inferno subiu-me à cabeça; moças, cadeiras, vasos, sofás, tudo se transformou em vagalumes... tremeram-me tanto as pernas que de repente fiquei petrificado, fiquei imóvel, imóvel... como... imóvel como um macaco pintado. (Gargalhada geral.) Não se riam da minha dor, nem me desesperem.

DONA CLARA.- A comparação que procuraste é que faz rir.

GUSTAVO.- Pois então não falemos mais nela. Primo, a coragem é das almas nobres! Continuo a dançar, sem o sapato, bem entendido, pois que o galope geral o enviou para o palácio de algum rato. Felizmente a meia era nova, não tinha dias-santos, e na confusão geral safei-me, apesar de estar «enganjado» com D. Zoé do Beco dos Aflitos, e...

DONA CLARA.- Mas eu te vi até nos virmos embora! E como estás tu calçado?

GUSTAVO.- Esta minha cachola, esta minha cabeça é um tesouro que não troco por nada deste mundo. Não há dia em que eu não fique admirado, embasbacado das lembranças que eu mesmo tenho!... Idéia de mestre: chego à porta, grito pela sege, grito segunda vez, grito terceira, nem pajem nem boleeiro... Desesperado, tiro a meia de seda, corro à porta de um sapateiro, de dois, e ninguém me quer vender um sapato, pagando eu o valor do par todo; respondem-me que não vendiam um sapato.

FIRMINO.- E por que não lhe comprava o par, se lhes dava por um o preço de dois?

GUSTAVO.- Porque não queria perder o que estava no pé. (Risadas.) Mas achei um homem de bem. Entro-lhe na tenda, explico-lhe naquela hora a minha desventura, e quando procuro a meia na algibeira... achei-me mamado! (Risadas.) Não se riam de um caso tão sério... Compro-lhe as meias da mulher, e para isso empenhei o meu botão de brilhantes.

DONA CLARA.- Doido! E tu conheces esse homem?

GUSTAVO.- Homem que trabalha àquelas horas é homem de bem. Volto ao baile, e dona Zoé diz-me mui secamente: «Um cavalheiro que abandona a sua dama, e a priva de dançar, não é homem de bom-tom». (Gargalhadas.) Não se riam da minha dor. O meu plano está feito: hei de amarrar doravante os sapatos com fio sutilíssimo de seda e pôr suspensórios elásticos, para me não expor a outro escândalo, antes que vá para a Europa gozar das delícias lá de Paris.

DONA CLARA.- Para a Europa! Como? Quando? E que vais fazer?!

GUSTAVO.- O que vou fazer?! Ser diplomata.

DONA CLARA.- Pois que estudos tens tu para isso?

GUSTAVO.- Tenho tudo o que é preciso: um bom empenho, sei dançar, trajo à moda e arranho o meu francês.

FIRMINO.- Ótimo predicamento para o começo, mas falta-lhe o principal.

GUSTAVO.- O mais eu aprenderei com a prática e com o tempo.

FIRMINO.- São dois grandes mestres, é verdade, mas um bom diplomata de ar profético e olhar misterioso tem muito que estudar.

DONA CLARA.- E quem é teu padrinho?

GUSTAVO.- O deputado Gregório, que inda ontem me disse que não dava o seu voto no orçamento dos estrangeiros se eu não fosse despachado agora para Paris. A única condição que ele me impõe é que eu não falhe um só paquete de lhe mandar os figurinos das últimas modas.

DONA CLARA.- Mas esse bonequinho de modas nunca fala!... Não te fies em cupidos velhos, porque Gregório é...

FIRMINO.- É um Cícero num parlamento de mudos. Excelente, excelente: dá o seu voto, não fala, não rouba tempo, deixa trabalhar e evita dizer asneiras em público.

GUSTAVO.- Fala-se agora de reformas, de mudanças, e como tenho o meu padrinho, vou batizar-me.

FIRMINO.- Na pia do tesouro nacional, e abrir assentamento na folha dos ordenados.

GUSTAVO.- Ailurui! Se eu soubesse bem francês, ia de secretário, ou talvez subisse mais um furo. Quando o empenho é bom, tudo são asas...

DONA CLARA.- Estes rapazes de hoje, mal sabem ler, já se cuidam aptos para todos os altos empregos. Logo que um ministro severo os manda bugiar, ei-los engrossando as fileiras dos agitadores...

FIRMINO.- Ou vão escrever folhas incendiárias. Substituem o raciocínio pela declamação, os argumentos por libelos e erguem o pelourinho da infâmia, aonde o sacrário das famílias é despedaçado e a honra do cidadão espicaçada a golpes de calúnia; e no publicar de suas orgias zombam de tudo... Mas o nosso Gustavo está livre disso, porque ele aborrece escrever.

GUSTAVO.- Para dizer nuas e cruas, não é preciso ir a Coimbra.

DONA CLARA.- Valha-me Deus com teu tio. Ficou amarrado em alguma premissa de voltarete, e nos faz esperar aqui. Ainda é bom o termos tido esta comédia.

GUSTAVO.- Ah, se me pilho com uma fardinha bordada, e se danço uma contradança em Paris... posso morrer, porque vou direitinho para o céu. O meio de me conservar por lá é que é um pouco difícil, segundo ouço dizer; mas enquanto o pau vai e vem, folgam as costas.

FIRMINO.- Não há nada mais fácil do que isso. Com uma pequena esperteza por lá se fica muitos anos, e até se adquire nome de literato. Pode-se chegar à fama de uma notabilidade e, no meio de tudo, de todos os prazeres, até enriquecer.

GUSTAVO.- Que está dizendo, meu primo!

DONA CLARA.- Ora, desejava ver isso em pratos limpos. E teu tio ainda não chega.

FIRMINO.- Pois eu a satisfaço em duas palavras. Grudado o homem a um dos alcatruzes da nora parlamentar, fazendo parte da cauda elástica e vacilante dos candidatos perpétuos dos seis escabelos, constituído um realejo de amizades, uma máquina de entusiasmo, um mourão do andaime, uma trolha para todos os emboços, um verdadeiro sino pronto a repicar e dobrar a todas as vitórias e revezes, o caminho da prosperidade aplana-se, é a vida um jardim de flores. Quantos cepos de carniceiro, à força de serem lavados em águas turvas, de mau pau que eram, se transformaram em ouro puríssimo, que é o do quilate milionário!

DONA CLARA.- Para um simples adido não precisa de uma cartilha tão longa.

FIRMINO.- É verdade que abrangi as alturas da questão, mas foi porque tenho sempre em vista que o romano que toma prima tonsura está na estrada da púrpura, e pode intentar um santo assalto à majestade da tiara.

GUSTAVO.- Para minha mãe tudo são dúvidas. Gosto desta gente que vê tudo em ponto pequeno. Eu cá não tenho medo de nada. Acabe, acabe meu primo, com esse seu belo discurso, e reduza-me tudo isso a cobres miúdos. Diga-me como pode esta pessoinha (Apontando para si.) chegar a ser rico, e passar por um literato de muita ronha. Gosto desta palavra, «ronha»: é sonora, brilhante e respeitável... Vamos, simplifique-nos tudo isso.

FIRMINO.- Quem sabe se isto cansa a minha tia?

DONA CLARA.- Pelo contrário, é uma fortuna. Teu tio nos prendeu aqui e tem consigo as chaves dos nossos quartos. Continua, que nos dás prazer.

FIRMINO.- Um meio simples e que quase sempre é coroado pela vitória nos países novos como este nosso, é escrever de lá a todas as influências, quer conhecidas quer desconhecidas. Cartas com um ar inspiratório, e nelas uns ressaibos de altas relações; um trecho, traduzido dos jornais, sobre a política do dia, e uma espécie de denúncia de idéias latentes da futura marcha dos negócios, segundo a interpretação dos mesmos jornais, mas dando tudo como coisa ouvida nas salas do parlamento.

DONA CLARA.- Isso está muito escuro para Gustavo.

GUSTAVO.- Está claro como a luz do dia; continue.

FIRMINO.- Duas regrinhas acompanhadas de um folheto político, científico ou literário, dizendo que leu aquela obra e que não dá o seu parecer por submetê-la ao sagaz critério de Sua Excelência, cujos talentos, já conhecidos na Europa, lhe auguram um reto juízo. A outros mandam-se-lhes belas edições destes livros modernos que os pintores e gravadores escrevem e que são ilustrados por penas espirituosas, e recheados de arabescos e vinhetas, com soberba encadernação, com o que muito se decide do mérito da obra; e se lhes endereçam, rogando-lhes que aceitem semelhante lembrança como amadores das belas-artes e das letras. Sempre Excelência, e sempre com épico respeito; e quando se dirija a pessoa influente e sem instrução, deve vir a carta com letra pintada, em papel velino de primeira sorte, e abarrotada de palavras campanudas. Um bom calígrafo vence às vezes mais que um pensador. Nunca se devem desprezar, e deixar de empregar dez ou vinte vezes, os termos de protocolos, gabinetes, conferências, planos secretos de tais cortes, com o nome estrangeiro do palácio real; falar em santa aliança, propagandas, missões secretas, credenciais, notas reversivas, recredenciais, muito do Oriente, seitas, partidos, facções, asseclas do despotismo, sombra da inquisição, clubes, verdades do século, locomoções, reações de idealistas e muita economia política, que é a ciência da moda.

DONA CLARA.- Isso é uma trovoada para Gustavo.

GUSTAVO.- É um céu sereno; quero aprender tudo de cor.

FIRMINO.- Ainda há mais um furo secreto, que é a compra de algum manuscrito, e dá-lo como seu. Bacon, que era mestre em letras e tretas, aconselha o plágio como caminho curto para o céu da glória contemporânea e, por conseqüência, breve para o inferno da posteridade.

GUSTAVO.- Que me importa bem o que acontecerá depois da minha morte? Tenha eu prazer, role em belas carruagens. Cara de defunto não tem nojo de escarros.

DONA CLARA.- Ótimo pensar! E ele não é só. De que te serve toda esta turbulência, este desejo, se tu nunca poderás arranjar essa patacoada com a habilidade de um nobre charlatão?

FIRMINO.- Nem tudo o que luz é ouro. Em tempos nublados, os areais confundem-se ao longe com as campinas.

GUSTAVO.- Bravíssimo, meu primo; escreva-me tudo isso num papel, para eu estudar na viagem. Em paga, vou cabalar para o senhor.

FIRMINO.- Muito obrigado. A minha carreira está feita; tenho nobres ambições, é verdade, mas para ser útil à minha pátria não preciso das cabalas.

GUSTAVO.- Olhe que, com os meus, somos capazes de passar três mil listas em uma noite. Não brinque com o segredinho.

FIRMINO.- Não quero louros por semelhantes assaltos. Adoro o sol, nasci com natureza de pássaro. Os canais subterrâneos são contrários à minha natureza.

GUSTAVO.- Pois a vosmecê nunca há de ser nada.

DONA CLARA.- Pois tu também te envolves nestas coisas?

FIRMINO.- Estes seguram na rede e sujam-se; os outros recolhem o peixe e engordam. A pérola nunca orna o colo do mergulhador, nem o diamante o dedo do mineiro. Meu primo, veja se em prêmio de seus serviços obtém um lugarzinho de adido, e, se algum dia for alguma coisa mais, trate de arranjar-se. Maré perdida, viagem atrasada.

GUSTAVO.- Amanhã há de me dar uma nota dos livros onde se aprende tudo isso, e, se os têm aqui, emprestemos já.

FIRMINO.- O livro de observação anda com o homem. É um patuá que engrossa com o tempo e que se compra muito caro.

GUSTAVO.- Não entendo bem.

DONA CLARA.- Estuda, estuda, é o que diz teu primo.

GUSTAVO.- Nunca vi anunciar nos jornais obras sobre a ronha, se não tinha-as lido dia e noite. Ronha... oh! Se me chamassem ronha, que prazer! Ronha... que felicidade!

FIRMINO.- Também serve, e serve de muito. Casada com a ambição, ensina a pedir uma demissão a tempo, com estrondo ou sem ele; ensina a quebrar para grudar com visgo mais forte; a encolher-se para dar o bote. Mas, para alcançá-la no último grau é necessário, além das disposições naturais, viver com a ampulheta do egoísmo na mão e saber enfiar-se por todos os orifícios da fieira de satanás.

GUSTAVO.- Essa sua teoria está muito misteriosa.

DONA CLARA.- Graças a Deus que chegou teu tio.

Cena IV

ANTÔNIO, FIRMINO, GUSTAVO, DONA CLARA, CÂNDIDA e ANGÉLICA.

GUSTAVO.- Boas-noites, meus senhores e senhoras, até amanhã.

ANTÔNIO.- Aonde vais com tanta fúria?

GUSTAVO.- Vou pensar, vou estudar; tenho muito que pensar agora. (Vai-se.)

ANTÔNIO.- Chegaria alguma nova moda?... Ainda por aqui?

DONA CLARA.- Estava à sua espera para me dar a chave. Angélica, por que não vais dormir, minha filha? Tu não és obrigada a esperar por teu pai.

ANGÉLICA.- Estou muito melhor, estou quase boa.

ANTÔNIO.- Doutor, é vossa obra esta cura maravilhosa. Depois que temos seguido as vossas observações, ela vai muito bem. (Para ANGÉLICA.) Então, segundo o teu prognóstico, terás de ir cedo a alguma função ver as tuas amigas.

CÂNDIDA.- Todas elas me perguntaram hoje pela saúde de Angélica.

ANGÉLICA.- Agradeço. Se esses bailes estrondosos se acabassem, não me deixavam saudades!... Irei por acompanhar meus pais.

ANTÔNIO.- Eu também, se os freqüento, é para evitar a boca do mundo, porque não faltarão epítetos para lhe coroarem a maledicência. Se escapo do partido dissipador, caio no partido sovina: ambos eles murmuram com igual razão... Mas, como as letras pagam-se à risca, os navios são velozes, a carga vendida e a prosperidade me acompanha, tudo vai bem.

FIRMINO.- E este vosso século, que não indaga meios e só saúda a prosperidade...

ANTÔNIO.- Já que a noite está perdida, tenho que vos dizer duas palavras, meu sobrinho. Senhora, aqui está a sua chave.

TODOS.- Boas-noites.

Cena V

ANTÔNIO e FIRMINO.

ANTÔNIO.- Sentai-vos, quero ser lacônico. Sabeis que Angélica está contratada com o meu guarda-livros Arnaud. Consinto nesta aliança, porque este rapaz é um estrangeiro sem pai e quase sem pátria. Sabeis a sua história.

FIRMINO.- Sim senhor.

ANTÔNIO.- Sabeis que tenho outra filha e que desejo empregá-la o mais cedo possível. Ela já me tem sido solicitada muitas vezes, mas os pretendentes não me agradam. Desejo aumentar a minha família, mas não quero genros às minhas sopas. Firmino, sois um rapaz completo; amo-vos como meu filho e queria trocar o nome de sobrinho por este que me é mais caro, completando destarte umlaço que será o mais grato para o resto da minha vida. Desejo que entreis na grande família para preencher a mais sublime missão do homem: o ser pai e cidadão honesto.

FIRMINO.- Meu caro tio, os vossos desejos são ordens sagradas para mim, porque, depois de Deus, eu não conheço outro ente acima de vós. Mas se a vossa bondade, depois de tanta grandeza e de tanta generosidade, me permitisse uma pequena reflexão...

ANTÔNIO.- O amor que vos consagro não permite que eu vos violente na mais pequena coisa. Se outra simpatia, se algum empenho antigo vos força a recusar a minha oferta, aceito a vossa escusa com o mesmo amor e com a mesma sinceridade de todo o passado.

FIRMINO.- Nem uma nem outra coisa, senhor. O meu coração, até hoje, não tem tido outra paixão senão a do estudo. Os delírios da meditação, os encantos da natureza e a minha gratidão para convosco são as harmonias de minha alma. Mas há um contrato sagrado assinado por uma mão oculta, entre mim e a pátria, que me obriga a declarar-vos, por ora, uma repugnância total ao estado de casado. A parcela de liberdade sacrificada perante o altar no momento do consórcio é tão grande que ela me impediria a execução de um dever de cidadão, a missão de um filósofo e o complemento de um sonho de glória.

ANTÔNIO.- Respeito todos os vossos desejos cada vez mais, porém todos os vossos votos serão realizados de uma maneira mais suave logo que na vossa vida não apareça a necessidade do pão. Os sonhos de um literato, quando são entrecortados pelas precisões...

FIRMINO.- E vós, senhor, não me destes uma profissão tão nobre?

ANTÔNIO.- Sim... Enfim, pela parte da discussão serei sempre vencido, porque tendes talentos brilhantes, mas este meu negocio é de coração, e o coração somente me pede que vos rogue para que sejais meu filho. Seria pior que a morte o ver-vos ausente de minha casa. Não descerei contente à sepultura se a vossa mão não me fechar as pálpebras. Quero conservar comigo o retrato de meu caro irmão física e moralmente, daquele irmão cujos talentos e virtudes fazem o meu orgulho, e que tu... (Soluça.)

FIRMINO.- Por piedade, senhor... por piedade, consolai-vos, (Levanta-se.) enxugai esse pranto. Eu dou por uma lágrima vossa tudo o que tenho de mais caro, porque tudo vos devo. A minha vida, a minha liberdade, estão sujeitas à vossa vontade. Pronunciai, senhor, pronunciai o meu destino, que a tudo me submeto.

ANTÔNIO.- Inda não é isso que eu desejo. Já triunfei do teu coração, mas quero de tua boca uma palavra que derrame o bálsamo sagrado e que cicatrize a chaga do meu coração.

FIRMINO.- E que mais quereis, meu tio?

ANTÔNIO.- Oh! não me chames assim...

FIRMINO.- Meu pai...

(ANTÔNIO o abraça e chora.)

ANTÔNIO.- Chama-me pai, chama-me pai sempre, que não há nada mais sonoro aos meus ouvidos, que não há nada mais grato ao meu coração. Sim, eu sou teu pai...

FIRMINO.- Meu caro pai...

(Ouve-se um grande ruído dentro e uma voz que imita tambores e trombetas.)

ADOLFO.- (Dentro.) Levantem-se, mandriões, que ainda é cedo para se deitarem. Mandem-me fazer café, que venho cansado; quero água, quero uma cama e, depois, arranjem-se como quiserem.

ANTÔNIO.- Esta voz é a do mano Adolfo... (Limpa as lágrimas.)

FIRMINO.- É ele que chegou da fazenda...

ANTÔNIO.- Mano Adolfo, venha para cá e deixe sua mana dormir. Venha para cá...

ADOLFO.- (Dentro.) Espere lá, que já acordei tudo, e tudo lá vai comigo.

FIRMINO.- Sempre jovial, sempre contente.

ANTÔNIO.- É o temperamento mais feliz que se pode desejar.

Cena VI

ANTÔNIO, FIRMINO, ADOLFO, DONA CLARA e ANGÉLICA.

ADOLFO.- Ora vivam, meus senhores. O que é isto? Vais ou vens de algum baile, porque te vejo em trajes de requife...

ANTÔNIO.- Vim, e estava conversando com o nosso Firmino.

ADOLFO.- Com o doutor Firmino, meu irmão. Ora toque, senhor doutor. (FIRMINO beija-lhe a mão.) Então, como lhe vai de saúde e de interesses?

FIRMINO.- De ambas as coisas, otimamente.

DONA CLARA.- Seu mano, em pegando do gamão ou de uma conversinha, fica eternamente amarrado...

ANTÔNIO.- Todos lá por casa estão [bem] de saúde?

ADOLFO.- Todos, exceto eu, que estou moído como tinta de pintor. O macho ganhou novas manhas, e não volto mais nele.

ANTÔNIO.- Então, o que vos trouxe à corte? Inda que mal pergunto.

ADOLFO.- Venho fugindo das eleições. Se não tomo este expediente, fico mal com Deus e tenho o diabo por inimigo. São tantos os pretendentes, que era necessário uma câmara do tamanho do Campo de Santana para acomodar tanta gente. Todos alegam mil razões de arromba, planos capazes de confundir um Montesquieu. Fora as que deixei na fazenda, já recebi estas no caminho.

(Mostra um maço de cartas em cada mão.)

ANTÔNIO.- Apre lá! A atividade é grande desta feita.

ADOLFO.- Não se fala em outra coisa! E andam os homens tão desconfiados uns com os outros que já desapareceu aquela antiga urbanidade, aquela expansão franca do outro tempo. Tem-me dado na mania fingir-me maluco, para escapar desta praga interminável de chapas e cabalas.

FIRMINO.- O futuro de nossa pátria depende de uma boa lei de eleições e mais nada. Destruída a estrada que dá ingresso à mediocridade, no panteão augusto só penetrarão os homens de probidade, de saber e, sobretudo, independentes.

ANTÔNIO.- Mano Adolfo, eu quero que antes de dormir sejas sabedor da nova mais grata que pode haver para o meu coração: Firmino casa com a minha Cândida.

TODOS.- (Exceto ANGÉLICA.) Isso era de esperar...

DONA CLARA.- Um abraço, meu filho... (Abraçam-se.)

ADOLFO.- Venha também, que muito estimo...

ANTÔNIO.- Angélica, abraça teu novo irmão...

(ANGÉLICA chega-se a ele e quer abraçá-lo, mas desmaia.)

DONA CLARA.- O que é isto?

ANTÔNIO.- Alegria... Os extremos tocam-se.

ADOLFO.- Viva Santo Antônio!

(Atira com as cartas e chapas pelo ar e pelo tablado fora.)

FIM DO ATO I

Sala com trastes ricos dando ingresso a um salão nobre, que deixa ver pela abertura das janelas o morro do Castelo.

ANGÉLICA sentada à direita, a bordar uns suspensórios, e GUSTAVO do lado oposto, defronte de um espelho, a escovar suas botas.

Uma mucamba sentada no chão, a coser.

Cena I

ANGÉLICA e GUSTAVO.

ANGÉLICA.- Uma silva de amores-perfeitos, rematada por uma saudade em cada ponta, fará um lindo efeito. O outro par, hei de bordá-lo com rosas; o aroma desta flor exprime tudo o que há de mais suave e de mais grato em nossa alma. Estes explicam-se pelo seu próprio nome. (Suspira.) Parece-me um sonho o acontecimento de ontem à noite!... Todos... todos inocentes, e eu só criminosa, e criminosa para comigo mesma! O coração das mulheres ainda não foi aprofundado pelos homens; esta mistura de fraqueza e de força, esta tendência que nós temos todas a felicitar os entes que nos rodeiam... este heroísmo que se assenta entre a brandura e a constância... que...

GUSTAVO.- (Defronte do espelho.) Digam lá o que quiserem os senhores jarretas; um homem de barbas naturais é sempre mais nobre e mais grave. Que mania, querer meu pai que eu ande fora da moda, como se eu fosse algum traste de belchior! Hei de mandar fazer umas barbas postiças, para ver como me assentam. Este diabo de primo que, por mais que procure, não acho um pé para ficar mal com ele, é a causa de tudo isto. Foi à França para entrar em casa de livreiros e cortar defuntos, e voltou para nos entulhar a casa de alfarrábios... É o maior protetor da traça e do bicho que eu conheço. Tais sujeitos morriam de fome no meu quarto...

ANGÉLICA.- No que se ocupa aquela alma de manhã até a noite! Se ao menos ele conciliasse com uma hora de estudo todas as suas parvoíces...

GUSTAVO.- Estes estrangeiros têm lembranças admiráveis! Pintarem um gato brigando com uma bota, ou um homem a fazer a barba diante de um botim! Eu acho nisto uma graça, um não-sei quê... Enfim, o doutor Sandelico é que diz bem: em tudo há poesia nos estrangeiros. A transparência no sabão, a ponta virada das escovinhas, as pinturas das pomadas, o arredondado das casacas modernas, o nome das cores... ventre de bicha, cor de meteoro, azul Carolina, verde Zoé e amarelo tebetino. O pai dele, ao menos, deixa-lhe criar, cortar, mudar as barbas e os cabelos como quer. Aqui nesta casa nem um homem é senhor de suas barbas.

ANGÉLICA.- (Para a mucamba.) Vai buscar os diários, que meu tio não tarda a chegar. ([Para Gustavo.]) O vosso amigo Sandelico parece-me que está isento de produzir uma Eneida ou uma Ilíada. Creio mesmo que não inventará o telescópio.

GUSTAVO.- É porque não quer, é porque não precisa trabalhar, e faz ele muito bem. Isso é bom para quem é pobre. Angélica, vai lá dentro do meu quarto buscar-me um pouco de kirsch, que não posso acabar bem estas botas. Está em cima de minha psichê, ao pé daqueles dois potes de óleo de urso dos Pirineus.

ANGÉLICA.- Será isso alguma nova composição para lustrar?

GUSTAVO.- Nada! É um licor novo, chegado agora da Alemanha, que, tomado em jejum, depois de fumado um charuto de Havana, deixa um gostinho mui particular na boca. É coisa delirante.

ANGÉLICA.- Ora, mano, para que corromper a saúde com bebidas espirituosas e cigarrar tanto? A vossa roupa, todo o vosso quarto, parecem de sarro de fumo. Parece que habitais dentro de um cachimbo de cozinheira. Toda esta mocidade que vos cerca toma hoje uns ares que certamente não prometem um futuro lisonjeiro para o país.

GUSTAVO.- Estás muito retórica, estás uma doutora... Serão isso lições do meu belo doutor, que se devia chamar frei Firmino. É moléstia que pega com facilidade, esta de sermões de lágrimas. Podiam ambos ir para a catequese dos botocudos. Pregas num deserto, minha amiga; já estou petrificado para ti e para os mais. Vai buscar o kirsch... e tomaras tu um fumista: havias de te lamber como macaco por banana.

ANGÉLICA.- Não vou. Se a sorte me der um esposo fumista, fica certo que ele possui alguma qualidade nobre e que é um homem superior a ti, cuja glória se funda no ócio e no charuto.

GUSTAVO.- (Com raiva.) Tomara já ver-me livre desta casa, onde ninguém me obedece, sendo eu o filho mais velho.. Depois me vingarei.

ANGÉLICA.- O que estás dizendo, mano? Perdoa-me se te ofendi.

GUSTAVO.- (Com raiva.) O dia em que eu deixar esta terra não me verá uma lágrima. Tudo me persegue. Até não tenho quem saiba lustrar umas botas!! Assim como mando vir o meu fato de Inglaterra, também hei de mandar vir um criado inglês para me servir. Tenho duas irmãs que não sabem dobrar uma gravata... E querem casar! Com quem? Só se for com algum carne-seca. Se algum dia fizer essa asneira, não quero mulher retórica, que saiba línguas estrangeiras, leia livros e garganteie como um castrado da capela.

ANGÉLICA.- Está bom, meu irmão... Para que tanta algazarra?

GUSTAVO.- Vocês ainda me hão de perder.

(Atira com as botas e vai-se. ANGÉLICA as vai apanhar.)

Cena II

ANGÉLICA, DONA CLARA, FIRMINO e ADOLFO.

DONA CLARA.- Não precisa muito para se saber se Gustavo está em casa. É como o mar, nunca está calado.

ANGÉLICA.- A menor observação o põe como um rojão: sobe às estrelas e estoura uma descarga de destampatórios.

DONA CLARA.- Parece que há instintos no homem que o fazem pender para as más inclinações, e que a educação se esforça em vão para modificar. Este rapaz tem-me feito criar cabelos brancos. Teu tio já não pode com ele. Mandou-o para a Índia, e nada obteve.

FIRMINO.- Decerto que nada. A culpa não é dele, nem sua, minha tia. A culpa existe na organização social que até hoje tem olhado levemente para a educação da mocidade. Façam-se leis para um povo, e não se espere um povo para essas leis. Se alguns pais quisessem lançar mão de um meio enérgico para corrigir seus filhos, não faltariam filantropos de encomenda que tomassem a defesa da oprimida mocidade e levantassem uma barreira de palavrões campanudos para protegerem essa diminuta parcela que rodeia Gustavo e que se intitula hoje a esperança da pátria, como se os destinos do futuro fossem dirigidos pelos alfaiates e cabeleireiros. Talvez ele queira seguir a carreira das armas, e que a disciplina militar o corrija de todo. É uma carreira tão nobre e tão prezada em todos os tempos!

DONA CLARA.- Qual, meu sobrinho! O seu amor por pistolas, espadas e bacamartes é uma mania de moda. Gustavo seria ruim militar; não tem coragem e padece muito dos nervos. A luta dele com teu tio para trazer bigodes é porque é moda.

ADOLFO.- Esta terra está muito mudada. Estes quatro anos têm sido de grande progresso; creio que arribou uma colônia de orangotangos, porque nunca vi tanto bicho de casaca como hoje. Cada pedaço de barbadinho que encontrei, que metia medo. Outros com cabeleiras de madalenas, outros de casacas arredondadas como cauda de ponche; umas bengalas de castão de vice-rei e um charuto maior que um tubo de barca a vapor. Esta moda é de cá da terra?

DONA CLARA.- Nada, meu irmão, esta praga veio-nos não sei donde, e Gustavo vive muito apaixonado por lhe não consentirmos cauda no queixo, gravata encarnada e gadelha de Madalena.

FIRMINO.- A mocidade da Europa anda quase toda assim, principalmente nas universidades da Alemanha e França. As barbas representam a seita romântica e marcam a separação do mundo clássico. São dois exércitos que representam dois séculos: um, acampado nas ruínas da antiga Grécia e adorando os seus deuses, o outro perlustrando os campos da natureza. Ainda tenho saudades da luta. Grandes revelações, grandes idéias, dois partidos combatendo nobremente e produzindo monumentos de glória. Quem dera que as barbas aqui representassem o mesmo papel! Amanhã deixava crescer as minhas.

DONA CLARA.- Se assim fosse, declarava-me perfume das barbas idealistas e tesoura das materiais.

ANGÉLICA.- Eu acho um não-sei-que de grave, uma nobreza natural, acho uma perfeita harmonia na divisão que a natureza fez do homem e da mulher. Há um caráter nobre e que faz reviver esses tempos heróicos do cavalheirismo, em que os homens preferiam a morte à fuga, a sepultura ao desdouro... Mas esses tempos só se acham hoje nas velhas crônicas, nos pincéis do Ariosto, do Tasso e de Walter Scott.

ADOLFO.- Bravo! como se esquenta a menina, como se exalta, como ficou com os olhos que pareciam dois sóis! Ora vamos a entrar nos tempos de Palmeirim e vermos Tancredo, Orlando, Roldão e Oliveiros, de loja ou a plantar café... Aonde está o Jornal do Commercio?

ANGÉLICA.- Aqui estão todos. (Oferece-lhe um grande maço de jornais.)

ADOLFO.- Guarde para lá tudo isso, que não quero ficar doido, e nem andar suspeitoso com os meus velhos amigos, que sempre conheci por homens honrados.

FIRMINO.- Pois a mim essa leitura me rouba bastante tempo. Todos eles têm mais ou menos razão, e alguns escrevem, além de [com] decência, com muita arte e sagacidade. Artigos tenho lido que invejariam os mais acreditados jornais da Europa.

ADOLFO.- Pois eu, meu sobrinho, vivo mais tranqüilo depois que deixei de os ler, porque nunca soube quem ateava o incêndio e quem tocava a bomba para o apagar. Que há briga por amor da escada, isso é certo, porque vejo todos quererem subir. Ora vamos a ler o Palmeirim do café e do açúcar.

FIRMINO.- E eu vou preparar-me para uma operação e tomar algumas notas.

DONA CLARA.- Fique lendo em paz o seu Palmeirim. Vamos.

Cena III

ADOLFO.

ADOLFO.-Ora vamos a isto. Tenho achado os homens muito corteses aqui dentro; figurões dando já o braço a certa gente... e gente que eu nunca vi nem conheci cumprimentar-me com uma urbanidade e submissão extraordinárias. Se são pretendentes, estão bem aviados. (Senta-se.) Câmbios... vai mal. Parte oficial... Ministério... Interior, Rio de Janeiro... Câmara dos senhores deputados... Meu Deus, que longos discursos, que torrente de declamações! Seria melhor que este senhor que aqui faz a sua biografia a mandasse publicar em algum jornal literário. Este nega pão e água ao governo e ainda não nos fez a descoberta de se administrar um país sem governo e sem meios. Cá estão dois oradores de mão-cheia, concisos, nervosos e este até eloqüente. São dos meus, preferem os interesses de seis milhões de homens ao interesse individual. Isto é para saborear depois da leitura geral. Meu Deus quantas chapas! Tudo gente nova, exceto este marreco que há três meses vem sempre em todas. Cheira-me isto a especulação de finório. Reina agora uma urbanidade que encanta deveras. As classes estão confundidas: vejo figurões feito plebeus, plebeus feito figurões, influências com nulidades, nulidades com influência, turbulentos com pacatos e um nevoeiro de morcegos furta-cores esvoaçando pelas ruas, contradançando às cortesias pelas tendas e tabernas. Sociedades instaladas e até ateus de patente com uma religião e carolismo iguais aos de um trapista. Vamos a ler. Praça... o mercado está muito frouxo... (Batem palmas.) Quem é que está aí?

MIRABEAU.- (Dentro.) Um criado de Vossa Senhoria. Dá licença, meu senhor?

ADOLFO.- Pode entrar, esta casa é sua.

Cena IV

ADOLFO e MIRABEAU.

MIRABEAU.- Vossa Senhoria é o ilustríssimo senhor Adolfo José da Silva? Vossa Senhoria há de perdoar-me este incômodo, mas a pátria requer um grande sacrifício... O país está à borda de um precipício, e Vossa Senhoria o pode salvar com o seu acrisolado patriotismo, influindo para que se coloquem no timão do Estado homens cujos talentos e virtudes são conhecidos e cuja pureza de sentimentos auguram o mais brilhante futuro para esta pátria, esta nossa pátria que eu adoro mais que à própria vida.

ADOLFO.- (À parte.) Apre com o recado estudado. E como me sabe o nome?! Tem faro!

MIRABEAU.- Salve, senhor Adolfo, salve o nosso país...

ADOLFO.- Meu caro senhor, agradeço-lhe muito a opinião que faz de mim, mas eu nada posso fazer mais do que faço. Trabalho de manhã até a noite, não devo nada a ninguém, não brigo com ninguém e só aspiro a aumentar os meus bens por meio de um trabalho honesto. (À parte.) Como diabo adivinharia ele que cheguei esta noite?! E eu que o não conheço...

MIRABEAU.- Assim deve obrar o cidadão honesto, mas está chegada a hora de Vossa Senhoria, com o seu voto, vir engrossar a opinião do país, que é toda do meu lado, e pretende fazer uma oposição imparcial e justa... Aqui tem esta lista... Digne-se a ler esses nomes, veja quantas ilustrações, quanto futuro encerram estes heróis... estes firmes baluartes... Escreva, senhor Adolfo, empenhe-se com aquela gente de fora, e vamos salvar o país. Aqui estão estas cartas de um seu velho amigo e de seu mano.

ADOLFO.- Pois Vossa Senhoria é conhecido de meu irmão?

MIRABEAU.- Não, senhor, mas uma pessoa do meu lado, que se dá com outra pessoa mui digna e de grande influência, pediu a outra pessoa de sua amizade para que esta me obtivesse por interposta pessoa uma carta de seu honrado irmão, o senhor Antônio José da Silva.

ADOLFO.- (À parte.) Que labirinto cabalatório, que jogo de caramboladas! (Lendo as cartas.) Meu senhor, esta de meu irmão é válida, mas esta, já não me lembra do sujeito que me escreve.

MIRABEAU.- Um seu antigo amigo, que negociou muito noutro tempo com Vossa Senhoria, e depois foi síndico de certa ordem, morou no Beco dos Cachorros e agora está no dos Aflitos.

ADOLFO.- Ah, sim!... O Elesbão!... Pois ele também anda metido nesta bolandeira?! Devia passar para os veteranos e cuidar de emendar o passado.

MIRABEAU.- É um dos mais firmes atletas do nosso lado. À sua atividade se deve quase a certeza do triunfo... É um homem de raros talentos e digno de não ser atirado para um canto.

ADOLFO.- Pois meu senhor... fique já certo [de] que farei tudo quanto estiver ao meu alcance, prevenindo-o, contudo, [de] que hei de tirar dois nomes desta lista, porque estou empenhado...

MIRABEAU.- Pelo amor de Deus, meu rico senhor, nem meio. Não destrua a unidade de pensamento nesta obra, que é o monumento político mais perfeito que tem que executar-se. Quantas reformas!... Que reformas!... Há de ser uma limpa geral.

ADOLFO.- (Em tom sério.) Homem... já estou cansado de reformas, e vejo que elas dão quase todas em droga.

MIRABEAU.- São reformas pessoais, meu amigo e senhor. Havemos de fazer uma limpa, isto é, algumas demissões, e Vossa Senhoria disponha do seu escravo... porque a gratidão...

ADOLFO.- (À parte.) Apre com o tal planista. Meu rico senhor Mirabeau, é este bem o seu nome...

MIRABEAU.- Um seu humilde criado...

ADOLFO.- O senhor é estrangeiro, ou de origem estrangeira?

MIRABEAU.- Nem uma nem outra coisa, mas chamo-me Mirabeau.

ADOLFO.- Não tem nome de batismo?

MIRABEAU.- Não, senhor. A mesma impressão que Vossa Senhoria tem é geral, de maneira que me acho quase sempre obrigado a explicar-me, no que tenho particular satisfação, pois que falo em meu pai.

ADOLFO.- E o padre que o batizou não fez objeção?

MIRABEAU.- Nenhuma; era um sacerdote raro e amicíssimo de meu pai, ambos entusiastas de toda aquela gente, daqueles astros da liberdade. Meu pai, vendo em mim copiosas disposições para a oratória, deu-me o nome desse célebre orador quando me batizei, raspando a longa perlenga de sobrenomes de família, palhaçadas antigas e restos do caruncho da velha Europa. Dizia ele que um grande homem deve ter um nome só, por exemplo: Demóstenes, Bruto, Graco, Cícero, Catão...

ADOLFO.- Alexandre, Napoleão... E não esperar pela posteridade?

MIRABEAU.- Isso foram déspotas...

ADOLFO.- Então, pelo que vejo, Vossa Senhoria foi batizado já um pouco taludinho?

MIRABEAU.- Já sabia latim.

ADOLFO.- E como era então conhecido?

MIRABEAU.- Em casa por sinhozinho, e fora pelo nome de meu pai, que era um espírito forte, ermo de preconceitos, o protótipo dos pais. Se nos mandou batizar foi por condescendência com minha santa mãe e seus parentes, porque lá para si aquele grande homem repetia muitas vezes que era o maior dos despotismos forçar um filho a seguir uma religião que talvez não lhe conviesse, e podendo escolhê-la assim como escolhe uma profissão e terra para viver.

ADOLFO.- E o senhor é casado?

MIRABEAU.- (Espantado.) Eu, senhor?!

ADOLFO.- (À parte.) Espera pelo maometismo, ou é sansimoniano. (Para ele.) O senhor seu pai devia ser eterno, era um homem singular.

MIRABEAU.- Em 1822 desprezaram os seus conselhos. Não teria hoje o país dado tantas cabeçadas, e havia de representar um papel único no mundo.

ADOLFO.- Decerto que cheiraria hoje bastante a rosas. (Com ironia.) Pois simpatizei com o senhor! No começo estava assim, assim... mas agora estou decidido. Vamos a salvar a pátria, porque a vejo à borda do abismo.

MIRABEAU.- Dê-me um abraço. Achei um homem que me compreendesse, um verdadeiro herói... Mas, caríssimo irmão, não abandonemos a presa, nem mudemos de linguagem... o país ainda está com muito caruncho, ainda se arrepia...

ADOLFO.- Vamos dourando a pílula...

MIRABEAU.- Outro abraço... Adeus, que já vou ver o Elesbão e, transportado de júbilo, contar-lhe tudo...

ADOLFO.- Não lhe fale por ora em mim, porque sou seu credor e não de pequena soma; isso o vexará.

MIRABEAU.- Conte-se o milagre sem se nomear o santo.

(Vai-se.)

Cena V

ADOLFO.

ADOLFO.-Apre, que este é de papo encarnado! O Elesbão! O Elesbão, que depois de uma bancarrota fraudulenta e escandalosa, foi-se meter carola de irmandades... e agora é uma influência política... Bem me disse o tal senhor Mirabeau que o país está à borda de um precipício. Ora, vamos a ler. Consulado... Preços correntes... O mercado tem estado... um pouco frouxo...

GUSTAVO.- (Dentro, gritando.) Minha mãe, mande buscar dez negros armados de vergalhos para esfolar esta negra, senão mato-a com este bacamarte... Isto nunca foi colarinho, é um pau-ferro, e uma serra que me corta o pescoço... olhe esta gravata! (Muito forte.) Dá-me o colete preto, que não quero esta porcaria! Dá cá a água-da-colônia. Os diabos te levem! Isso é macaçá, negra... Vai-te... vai-te, se não mato-te.

ADOLFO.- Eu aqui estou mal situado... Vou para outro lugar, vou lá mais para longe... (Vai indo e batem palmas.) Quem está aí?

Cena VI

ADOLFO e DIONÍSIO.

DIONÍSIO.- (Entrando.) O doutor Dionísio Ourique de Aljubarrota... É um criado do ilustríssimo senhor Adolfo... e estima que Sua Senhoria viesse com perfeita saúde.

ADOLFO.- Muito boa, obrigadíssimo, para o seu serviço.

DIONÍSIO.- O excelentíssimo senhor conde de Sapucaia me manda aos pés de Vossa Senhoria entregar-lhe esta carta. Mas antes de tudo quereria saber, se é possível, o que veio fazer este herói que acabou de sair daqui...

ADOLFO.- (Depois de ler a carta.) A mesma coisa que Vossa Senhoria.

DIONÍSIO.- E Vossa Senhoria está disposto a servi-lo?

ADOLFO.- Meu senhor, eu ainda não pensei sobre o caso. Demais, ele me vem recomendado por pessoas tão ilustres, que... (À parte.) Vamos a ver este de que cor é, e para onde pende.

DIONÍSIO.- Pelo amor de Deus, senhor Adolfo... Salve o país das garras destes anarquistas. Tire-o da borda do abismo em que o tem precipitado esta gente. O seu acrisolado patriotismo pode influir para que se coloquem no timão do Estado homens cujas opiniões e cuja pureza de sentimentos auguram um futuro brilhante para a pátria. Veja todas essas ilustrações... A opinião geral do país aí se acha representada; ela é toda do meu lado, senhor Adolfo, porque queremos a paz, e nada de reformas. O país fica sossegado e contentíssimo dando-se ainda algumas demissões somente, e a minha gente, a nossa gente, é toda deste lote. (Dá-lhe um maço de chapas.) Isto é só mandá-las... mas recomende-as a essa gente de fora... e diga-lhe que estas listas encerram a sua prosperidade futura, a segurança de suas propriedades, a estabilidade do país.

ADOLFO.- O senhor conde de Sapucaia me honra agora muito... e...

DIONÍSIO.- Sim, senhor. Ele me disse tudo e confessou-me que, iludido, em outro tempo... que intrigas o fizeram afastar de Vossa Senhoria, mas que logo que se realize a eleição, ele mesmo, em pessoa, assim como nós todos, havemos de vir graciosamente a seus pés agradecer-lhe o ter salvado a pátria, porque é por ela que nós trabalhamos, por esta pátria que eu idolatro mais que a própria vida...

ADOLFO.- Senhor doutor, pode ir descansado que, pela minha parte, farei o que puder. Conheço todos esses manejos... e há pouco saiu daqui um sujeito que...

DIONÍSIO.- Que é um herói... Mas como eu me acho debaixo do seu império, não quero preveni-lo contra ninguém... nem dizer mal desses malandrins, que só pretendem pescar em águas turvas e empoleirar-se à custa dos homens de bem. Se eu fosse um homem maldizente, dir-lhe-ia que muitos destes heróis são dignos de inscrever o seu nome no livro áureo do Aljube.

ADOLFO.- Já não tenho ilusões, senhor doutor, discursos não me enganam. Eu conheço a gente boa do país, e por ela sempre estarei.

DIONÍSIO.- Beijo-lhe as mãos pelo seu patriotismo...

ADOLFO.- São mãos puras, trabalham de manhã até a noite. Vá descansado, que o bom lado há de triunfar. (Batem palmas.) Entre, quem é...

Cena VII

POMPEU entra e encontra com DIONÍSIO; fazem-se grandes barretadas, apertam as mãos e despedem-se com grandes cortesias, dizendo:

DIONÍSIO.- Adeus, amorzinho. Como estás bem disposto!

POMPEU.- Não mangues, ingrato... já não fazes caso da gente.

DIONÍSIO.- Tu é que foges. Não te queres desenganar.

POMPEU.- E tu para que andas pairando?

DIONÍSIO.- Adeus, adeus; estás muito enganado.

POMPEU.- Adeus, amorzinho.

(Vai-se.)

POMPEU e ADOLFO [e um CRIADO].

POMPEU.- Vossa Senhoria dá licença a este seu criado? Pompeu Caio do Equador.

ADOLFO.- (Atirando com o jornal e fechando os óculos.) Pode entrar, meu senhor... (À parte.) Estou com o correio em asa!

POMPEU.- Não é um procedimento insólito que me guia à sua amável presença, pois que sendo Vossa Senhoria conhecido de todo o mundo como um modelo de virtude, também é conhecido meu, e por isso, sem constrangimento, aqui venho pedir-lhe cinco minutos de conferência para trabalharmos, não de coisas peculiares a este seu criado, mas sim da causa comum, de um fato que tende somente à questão de vida e de morte da pátria. Esta carta do senhor capitão Manuel Jequitibá Dendé Anhanguara, pessoa muito ilustre e muito da sua amizade...

ADOLFO.- (Como recordando-se.) Ah, sim! Conheço-o de vista... se é a pessoa que me parece ser. Pois muito bem, eu mandarei a resposta. Sou um seu criado...

POMPEU.- Veio aberta, e o particular é breve...

ADOLFO.- (Põe os óculos com raiva.) «Ami amásio deferenças banais xofram soticapa. Vejo-me neste alfoufe como um triário singrando e refrangendo contra os cachões do refoucinhado destino. Premado de afãs, vanguejo esta nebulosa ilusão gregotil das vascas extremas: sempre pela pátria». (Respira fortemente.) Graças a Deus que já entendi uma frase. «Ignóbeis mandis alrotam heráldicos vanilóquios e vapulam-me como anafil de seu gasnete, a reio, reguçados dilemas, manipulados garabulhosamente por socarrões movéis, que coacervam nefelinas triscas, que anaçam a solércia do alborque eleitoral!» Faz ponto de admiração! (Durante esta leitura, POMPEU calcula votos.) «Esses que esbarram», vai melhor agora, «no sáfio alquicé de antecucos», pior vai ela, «que aljamia modularam em suas priscas tribos, anadéis, e que ostentam na anacefaleose de seu protomartírio gualdripados repostes e verberam a vilificante lauréola de inspissado renome...». Senhor Pompeu, este senhor capitão está bom, e de saúde perfeita?

POMPEU.- (Calculando baixo.) Irajá, vinte e dois; Ilha Grande, seis; Macaé, quatorze; e... meu senhor? Ah, sim! Muito bem disposto. Escreve noite e dia, e bem cedo honrará a pátria com uma torrente de produções que causarão inveja à carunchosa Europa.

ADOLFO.- Tomara eu cá o caruncho, esse maldito caruncho... Inda que mal pergunto, o senhor é amigo íntimo deste senhor que daqui saiu há pouco?

POMPEU.- Senhor Adolfo, eu sou homem franco. O ouro não se liga com o zinco.

ADOLFO.- Como os vi cordialmente cumprimentarem-se, apertarem a mão e, sobretudo, tratarem-se por tu... chacotearem... pensei...

POMPEU.- Já trabalhamos juntos, já fomos amigos íntimos, porém ele mudou; e embora mudasse mas não me perseguisse, e mais aos seus antigos colegas... tem sido feliz... tem sabido aproveitar-se...

ADOLFO.- Pois meu rico senhor... (Toca a campainha, vem um CRIADO à porta.) A sege está pronta?

CRIADO.- Sim senhor.

ADOLFO.- Pois meu rico senhor, vou sair. Venha outro dia por cá, porque então terei tido tempo de traduzir este sarambeque obsoleto do nosso... amigo, que o diabo custa a entender.

POMPEU.- Escreve divinamente, tem um estilo único, é mestre. Agora está ele acabando um poema, e todo nesta mesma linguagem. Tem versos que... que a gente fica no ar... suspensa... e não sabe verdadeiramente como sair do meio de tanta pompa!

ADOLFO.- Concebo, no ar, suspensa!... E sem mais saída!...

POMPEU.- É um poema de estrondo! É preciso pôr livros abaixo, folhear noite e dia para apreciá-lo, não é destes d'água doce.

ADOLFO.- (Pegando no chapéu.) Pois meu senhor, até outro dia.

POMPEU.- Posso contar com o patriotismo de Vossa Senhoria.

ADOLFO.- Eu lhe juro, por tudo o que há de mais sagrado, que pode contar com ele, e que nunca hei de abandonar o país.

POMPEU.- Exulta, pátria... que ainda tens heróis!...

Cena VIII

ADOLFO vai saindo e vêm-lhe ao encontro, batendo palmas, TIBÉRIO, BARÃO de Jenipapo, CATÃO e GUSTAVO.

GUSTAVO.- Meu tio, para onde vai? Se é para o lado do Catete, leve-me em sua companhia.

ADOLFO.- Justamente. Meus senhores, eu sou um seu muito humilde criado e sinto muito não poder cumprir com o meu dever agora, porque devo sair já e tenho apenas tempo para chegar ao prazo dado.

BARÃO.- Adolfo... é só um momento, um minuto, meu rico amigo. Dá-me uma palavra em particular, porque já te deixo livre. Tu sabes que eu não sou macista e que tenho um laconismo nos meus discursos e negócios, uma conhecida brevidade nas minhas palavras e na exposição de todas as minhas idéias, enfim, que aquilo que os outros dizem em duas horas, ou mais tempo, eu emprego sempre dois segundos unicamente, pouco mais ou menos, e algumas vezes muito menos tempo, porque certamente não há neste mundo coisa mais insuportável do que um macista, um roubador de tempo, como aquele que encontrei na sexta-feira passada, e cuja história contarei com a minha costumada brevidade.

CATÃO.- O meu nome é Catão Goiaba de Urucu Sapé; sou também lacônico como o antigo herói e em meio segundo avio o maior dos meus particulares. Espero da delicadeza de Vossa Senhoria que me escutará. (Vai-lhe pegando no braço.)

TIBÉRIO.- Eu e o meu amigo barão de Jenipapo viemos primeiro, e o que um disser, diz o outro. Demais, somos pessoas ocupadas e não temos tempo que perder nestes dias.

BARÃO.- O meu amigo tem muitíssima razão, tem razão às carradas, e certamente isto é assim. (Pega-lhe no braço.) Vem, que eu acabo o meu particular... tu já adivinhas... mas antes de o dizer, quero contar-te uma história muito interessante que me aconteceu antes de ontem.

ADOLFO.- Venham em outra ocasião... estou com muita pressa, tenho agora muito que fazer.

TIBÉRIO.- Vamos, barão, que o senhor quer vender-se caro. (Pega no braço do BARÃO.)

ADOLFO.- Meus senhores, estão à minha espera e o negócio é meu, e importa muito ser agora mesmo. Vamos, Gustavo...

BARÃO.- Também é meu. (Pega-lhe no braço.) Tu bem sabes que não sou macista.

TIBÉRIO.- Se nos é contrário, diga... (Pega-lhe no outro braço.)

CATÃO.- Basta de importunar. Os senhores são dois, ficam depois de mim.

(Vai para ADOLFO, e GUSTAVO segura-o.)

GUSTAVO.- Os senhores querem devorar meu tio?

(Batem palma na escada, sobem mais outros pretendentes perguntando pelo senhor ADOLFO. Ouve-se na rua passar tropa com música. DONA CLARA, CÂNDIDA e ANGÉLICA atravessam a sala. Os cabalistas largam ADOLFO e vão, com muita cortesia, cumprimentar as senhoras, e enquanto elas fazem mesuras e recebem, ADOLFO e GUSTAVO safam-se. Os cabalistas ficam olhando uns para os outros, e muito embaraçados, depois que as senhoras se ausentam. ANGÉLICA volta a sentar-se, depois que se não ouve mais a música do batalhão, e o BARÃO ainda lhe faz mil barretadas, como querendo pregar-lhe uma maçada. Ela nada diz; o barão vai saindo muito calado com os outros, que olham para os lados da casa como para verem se ADOLFO escondeu-se. Ouve-se rodar a sege de ADOLFO e eles sacodem os ombros.)

Cena IX

ANGÉLICA.

ANGÉLICA.-Se os homens pensassem na morte a todas as horas, não haviam de representar estas cenas tão burlescas e ridículas. Todos estes ambiciosos são como os limonadeiros: espremem o fruto enquanto há sumo, depois lançam-no na estrada e são os primeiros a pisá-lo. Se meu tio não fosse tão rico, se não tivesse tantas relações, vivia mais sossegado. (Borda.)

Cena X

ANGÉLICA e FIRMINO.

(ANGÉLICA sente um grande sobressalto vendo FIRMINO, mas abaixa os olhos e trabalha.)

FIRMINO.- Bravíssimo! Que linda obra! Está bem debuxada: graça, harmonia, e uma perfeita execução! Para quem é esse mimo tão gracioso?

ANGÉLICA.- Para uma pessoa, que o saberá quando lho ofertar.

FIRMINO.- Quando um mistério se envolve em amores perfeitos, é digno de toda a veneração... Vamos a ver o pulso. (Pega-lhe no pulso.) Está agitado, vá passear no jardim. Por que não foi ouvir a música? Largue o trabalho.

ANGÉLICA.- (Fixando-o por algum tempo.) Primo, em que mundo vive essa cabeça?

FIRMINO.- No passado e no futuro.

ANGÉLICA.- E o presente?

FIRMINO.- Nesse vivo alguns instantes, porque é o ponto médio que separa o passado do futuro. O presente é pouca coisa.

ANGÉLICA.- Entre o túmulo e a esperança paira vossa alma. Os vivos, conforme a vossa opinião, não são mais que autômatos que se movem segundo o seu instinto horário.

FIRMINO.- Prima, as ilusões acabaram-se na minha idade. A minha profissão é um livro que encerra as páginas do desengano. À roda da vossa fronte giram mil sonhos, cadenciam-se mil silfos, que entoam uma melodia suave e linsonjeira; o mundo para vós é ainda uma estátua onde o belo ideal embutiu suas divinas formas. Mas, para mim, é um moribundo que se debate entre a vida e a morte.

ANGÉLICA.- Se eu fosse homem... se eu tivesse liberdade de águia! Mas nós somos um espelho que se embaça com o hálito de umsuspiro, e se o dedo da maledicência o toca, ei-lo despedaçado para sempre. Ditosa França, aonde as mulheres podem largar a redoma de vidro em que as colocaram os homens... ditosas aquelas cuja sociedade não lhe[s] oferece a prevenção antes do juízo, o sarcasmo antes do apreço e o esquecimento antes do prêmio. Se eu pudesse escrever...

FIRMINO.- E por que não?

ANGÉLICA.- Para que lançar uma folha ao vento, onde depositei o sacrário de minha alma? Seria o outono da vida moral. Estas abóbadas invertem os sons da mais pura melodia. Um olho que vê de través, um tímpano caduco, são barreiras inflexíveis contra uma alma contemplativa e sentimental.

FIRMINO.- Os romances, minha prima, eu os considero como uma flor do gênio da poesia, como criações de uma fantasia que oscila em toda[s] as escalas. Colho deles o que é belo, justo e honesto, mas nunca o extravagante. Lembrai-vos somente que uma vida perfumada de ilusões sentimentais é um suplício, um sonho tormentoso que nunca se realiza.

ANGÉLICA.- (Levantando-se.) Primo, você nunca olhou para o sol?

FIRMINO.- Mil vezes. Por quê?

ANGÉLICA.- E o que é que lhe fica na vista?

FIRMINO.- A impressão forte da luz, muitas manchas que mudam de cor e que se antepõe[m] aos objetos.

ANGÉLICA.- Essas manchas são a imagem do remorso. Sua variedade e cor representam a metamorfose de uma mente atribulada. No meio de um riso, nas mais doces efusões de nossa alegria, elas nos perseguem; na folha a mais pura de um lírio elas se mostram tintas de sangue e de luto... até mesmo na cor preta... e ainda mesmo com os olhos fechados não se evitam... sempre nos perseguem! Manchas d'alma... ah, nem mesmo o sono as evita!

FIRMINO.- O que é isso, minha amiga! Acaso algum remorso, talvez...

ANGÉLICA.- Calai-vos, não é o que pensais. Longe de mim o crime que vos enegrece agora a mente!... Meu coração está puríssimo, mas meus lábios me condenaram ao suplício. A minha resolução está tomada: transforme-se numa coroa de martírio a grinalda do himeneu. Co'a fronte ensangüentada, arrastada por uma mão de ferro, converterei o tálamo numa fogueira e minhas cinzas, trituradas com o furor dos ventos, irão ululando pelos ares e amedrontando as virgens e matronas! Aquele astro que no albor da vida me fascinou com seus raios lisonjeiros, que magnetizou minha existência com a magia de sua luz, quanto mais me aproximo dele... tanto mais se escurece... uma invencível cadeia tecida pelos anéis do inferno... uma serpente invisível me comprime o coração... Oh, que cilício horrível me estrangula! (Baixo.) Uma palavra proferiu minha sentença... outra me despenha o cutelo...

FIRMINO.- O médico e o confessor são os depositários do que pode haver de mais sagrado no ádito d'alma... Uma palavra somente... A nossa memória recebe a página do infeliz, e o nosso dever passa-lhe a esponja do esquecimento depois do remédio. Confiai num homem de bem, num médico.

ANGÉLICA.- Senhor, se o vosso santuário não é profanado pela indiscrição, peca por efêmero. Infeliz da humanidade se a esponja da indiferença limpasse a ardósia das consternações humanas. Que lições teriam os vindouros?

FIRMINO.- A imaginação é o algoz da vossa existência. Vós cuidais que eu olho para as mulheres como ecos de uma quimera, como entes desprovidos de heroísmo e de sentimento? Não lhes confiou Deus a maternidade?...

(FIRMINO olha fixamente para ela, como querendo ler no fundo de sua alma.)

ANGÉLICA.- (Com ironia.) As mulheres são inconstantes e caprichosas...

FIRMINO.- Não sejais injusta. Eu nunca confundirei um desejo efêmero com uma paixão, nem um pirilampo com um astro... Angélica, vós estais arrependida do sim que destes a Arnaud. (ANGÉLICA abaixa os olhos. Grande silêncio.) Todo o envoltório que encobria a história desse rapaz, eu o descobri. É de uma família ilustre: o pai ganhou seus títulos no campo de batalha. Napoleão, o próprio Napoleão, com a sua augusta mão, condecorou os ombros e o peito do guerreiro. Foi-lhe fiel. A restauração matou-o... não é ele uma nobre vítima de sua constância e de sua gratidão? Não é também nobre o filho que na terra estranha amassa com as lágrimas do exílio o pão que o nutre? Uma educação completa adorna todos estes predicados. Quantos conheço eu que, em idênticas circunstâncias, se honrariam mais de serem...

ANGÉLICA.- Tudo isso é verdade, e tudo isso nele reconheço.

FIRMINO.- Será o que diz o leviano Gustavo? É estrangeiro?!...

ANGÉLICA.- Eu não sou dessas mulheres que se nutrem de migalhas. A honra, o gênio, pertencem ao universo. Ambos têm seu prêmio no código da moral eterna. Mas essa educação brilhante, é ela sancionada pela efusão do coração, pelo êxtase do gênio?

FIRMINO.- O gênio é um mimo que a Providência distribui com avareza a certos homens. É um cometa luminoso que passa e desaparece, brilhando em relação àqueles que o contemplam. O homem de gênio possui na verdade essa efusão de amor ao ponto de delírio, mas depois do delírio os órgãos se enfraquecem e a convalescença é longa. O dia em que um sorriso não aparece em seus lábios é um dia de luto para sua esposa. Ele vive numa contínua oscilação do movimento à apatia, e isto desagrada as esposas, porque...

ANGÉLICA.- Porque muitas não compreendem essa sublime pêndula, que se candencia da terra aos céus.

FIRMINO.- Vós sois capaz de o apreciar. Mas, minha prima, todos esses meteoros são como os sonhos da esperança; todas essas belezas, toda essa sublime poesia, todos esses simulacros se transfiguram em descanados esqueletos dentro das quatro paredes de uma casa.

ANGÉLICA.- Vós considerais a mulher como uma árvore destinada a produzir frutos, e sem participar da natureza do fruto... Doutor, vós não sois coerente neste momento com as vossas opiniões.

Cena XI

FIRMINO, ANGÉLICA e CÂNDIDA.

CÂNDIDA.- (Correndo com uns livros.) Aqui estão... aqui estão estas músicas, e a última edição de Byron, ilustrada com lindas gravuras. Estás contente?

ANGÉLICA.- Byron, o cisne de Albion, a glória última de Inglaterra! Que dias felizes vou passar!

FIRMINO.- Gênio, fúria e extravagância... Entre Werther e Byron não vejo unidade de sentimentos...

ANGÉLICA.- Foi infeliz... (Baixo.) Amou sem ser amado...

FIRMINO.- (Baixo para consigo mesmo.) Amou sem ser amado!! (Fica pensativo.)

Cena XII

FIRMINO, ANGÉLICA, CÂNDIDA e ADOLFO.

ADOLFO.- (Entrando.) Meus senhores, vou despir-me, esperem um pouco. (Para os de casa.) Aquele Gustavo é um maluco, sai comigo e na porta desaparece; olho para o relógio e era passada uma hora do prazo dado. Fiquei mal com o meu homem, só por aturar os importunos, e foi-me preciso voltar.

CÂNDIDA.- No momento de descer a escada, esqueceu-se do que ajustou e seguiu para outro rumo imediatamente. Anda agora muito distraído. Creio que a moléstia pega, porque aqui o doutor também está na mesma...

ADOLFO.- As reflexões deste são mais sérias. Olha, Firmino... já estão aí quatro cabalistas novos. Existem mais de nove chapas diversas, e passando pelas ruas não se vêem senão ajuntamentos falando em chapas, cabalas, votos, colégios... A estatística eleitoral está na última perfeição.

FIRMINO.- E o correio quadruplica as suas rendas nesta época...

ADOLFO.- E eu vou-me transformar em Assuero: vou já fazer nova viagem, porque apenas me demorarei o tempo necessário para meus negócios. Adeus, vou à praça ver o mercado.

Cena XIII

ANTÔNIO, FIRMINO, ADOLFO e ANGÉLICA.

ANTÔNIO.- Grande novidade! Está tudo em movimento! Houve uma revolução na França: o povo combateu três dias e três noites e Carlos X fugiu. Desordens na Itália, na Polônia e na Bélgica.

ADOLFO.- Seria essa a causa principal dos grupos que vi na rua! E quem vos deu essa nova?

ANTÔNIO.- Foi Arnaud. Está o rapaz num delírio de prazer e já me pediu licença para amanhã ir jantar com muitos dos seus patrícios. O pior é que vejo um não-sei-quê que me desagrada.

ADOLFO.- A febre imitativa é uma peste invisível que se propaga com a velocidade do raio.

FIRMINO.- Pois então chegou o momento de propor-me para candidato; ajudem-me, meus tios, que eu sou um homem necessário.

ADOLFO.- Para ti estou pronto.

ANTÔNIO.- Embarco-me contigo, sigo os teus pressentimentos.

FIRMINO.- A tempestade vai engrossar; o vulcão vai despejar a lava e cobrir a terra de um flagelo que o homem só conhece depois de duras provas: tudo vai estremecer. Sinto abalados os alicerces do futuro. Ah, se eu tivesse um braço de gigante para amparar o dique horrível que se vai romper sobre nossas cabeças, ou desviá-lo! Se eu fosse uma águia para arrebatar o cordeiro e guardá-lo nas nuvens, abrigado da tempestade mundana; se eu fosse um anjo para salvar a arca da aliança, o paládio de nossas esperanças, de nossa grandeza!... Vamos, meus tios, vamos a segurar o baluarte e suspender na borda do abismo as relíquias sagradas que o anjo das trevas intenta rojar em sua fúria satânica. Quero ser candidato, quero ser deputado. A pátria reclama o meu braço.

ANTÔNIO.- Faremos o que pudermos. Não há mais tempo que perder. Empregue-se tudo: amizades, favores, dinheiro, tudo, tudo.

ADOLFO.- Este rapaz me faz virar de bordo inteiramente. Ora vá, desta vez vou-me enterrar até o pescoço.

ANGÉLICA.- (À parte.) Meu Deus, meu Deus, todas as minhas esperanças se desvanecem... O demônio da ambição veio de assalto apoderar-se de sua alma, devastar-lhe toda a poesia do coração e torná-lo insensível como um ambicioso. Eu tremo! Não vá ele sacrificar uma vida tão cheia de virtudes a uma hora de elevação. Ai de mim, infeliz, que não tenho mais luz!

(Vai-se.)

Cena XIV

ANTÔNIO, ADOLFO, FIRMINO, BARÃO, POMPEU e MIRABEAU.

BARÃO.- Amigo Adolfo, ainda estás muito ocupado e disposto a mangar comigo? Aquela tua fugida ao som da música me faz lembrar uma história muito engraçada e que faz rir as pedras. Mas sentemo-nos primeiro, porque a quero contar com todos os ff e rr.

ADOLFO.- Fica para logo. Meus senhores, vamos a trabalhar.

POMPEU.- Prontíssimo. Aqui está a chapa da nossa gente.

MIRABEAU.- Guardem lá isso; agora estamos nós de cima, e o senhor Adolfo me entende.

ADOLFO.- (Chama MIRABEAU de parte, fala-lhe ao ouvido, e este vem muito seguro de si para a cena.) Percebe, senhor Mirabeau, eu cá sou assim.

MIRABEAU.- A sua vontade é uma lei para mim.

ANTÔNIO.- Se for preciso dinheiro, estou pronto.

MIRABEAU.- Não há de ser preciso grande coisa; falaremos logo nisso.

ADOLFO.- (Chama o BARÃO e POMPEU de parte e fala-lhe[s] ao ouvido.) Eu só proponho uma transação. Tenho um candidato e dou por ele vinte e dois colégios.

BARÃO.- Vinte e dois colégios! E quem é ele, como se chama esse filho da vitória?

ADOLFO.- É o senhor doutor Firmino.

MIRABEAU.- E quem é o senhor doutor Firmino? Que títulos apresenta a nossa simpatia?

BARÃO.- Quem é o senhor doutor Firmino?

FIRMINO.- O autor de todas as obras de Brasílio Elísio.

BARÃO.- Homem, a descoberta desta incógnita me faz agora lembrar um caso que não posso deixar de contar. Na cidade de Antuérpia, em Flandres...

ANTÔNIO.- Não há tempo que perder. Vamos, senhores, para o meu escritório.

MIRABEAU.- O senhor doutor é que é o autor daquele opúsculo sobre a harmonia das leis?

FIRMINO.- Sim, senhor.

POMPEU.- E aquela obra sobre a Colônia, Reino e Império de Santa Cruz, também é de sua pena?

FIRMINO.- Sim, senhor.

BARÃO.- E esta última, que me disseram, sobre a necessidade das colônias, e qual o futuro da nossa agricultura?

FIRMINO.- Também é minha.

ADOLFO.- Pois tu é que escreveste as obras de Brasílio Elísio?

FIRMINO.- Sim, senhor.

ADOLFO.- Não precisas de mais títulos, nem de outros serviços.

TODOS.- Viva o nobre deputado!

BARÃO.- Viva, viva! Mas escutem uma nova historiazinha que agora me caiu entre os dentes: no incomparável parlamento das Ilhas...

FIRMINO.- Aceito e prometo cumprir com os deveres de um verdadeiro representante da nação brasileira. Tudo pelo Brasil e para o Brasil!

TODOS.- Viva o nosso deputado!

FIM DO ATO II

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