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Clara dos Anjos

Lima Barreto

- I -

O carteiro Joaquim dos Anjos não era homem de serestas e serenatas; mas gostava de violão e de modinhas. Ele mesmo tocava flauta, instrumento que já foi muito estimado em outras épocas, não o sendo atualmente como outrora. Os velhos do Rio de Janeiro, ainda hoje, se lembram do famoso Calado e das suas polcas, uma das quais -«Cruzes, minha prima!»- é uma lembrança emocionante para os cariocas que estão a roçar pelos setenta. De uns tempos a esta parte, porém, a flauta caiu de importância, e só um único flautista dos nossos dias conseguiu, por instantes, reabilitar o mavioso instrumento -delícia, que foi, dos nossos pais e avós. Quero falar do Patápio Silva. Com a morte dele a flauta voltou a ocupar um lugar secundário como instrumento musical, a que os doutores em música, quer executantes, quer os críticos eruditos, não dão nenhuma importância. Voltou a ser novamente plebeu.

Apesar disso, na sua simplicidade de nascimento, origem e condição, Joaquim dos Anjos acreditava-se músico de certa ordem, pois, além de tocar flauta, compunha valsas, tangos e acompanhamentos de modinhas.

Uma polca sua -«Siri sem unha»- e uma valsa -«Mágoas do coração»- tiveram algum sucesso, a ponto de vender ele a propriedade de cada uma, por cinqüenta mil-réis, a uma casa de músicas e pianos da Rua do Ouvidor.

O seu saber musical era fraco; adivinhava mais do que empregava noções teóricas que tivesse estudado.

Aprendeu a «artinha» musical na terra do seu nascimento, nos arredores de Diamantina, em cujas festas de igreja a sua flauta brilhara, e era tido por muitos como o primeiro flautista do lugar. Embora gozando desta fama animadora, nunca quis ampliar os seus conhecimentos musicais. Ficara na «artinha» de Francisco Manuel, que sabia de cor; mas não saíra dela, para ir além.

Pouco ambicioso em música, ele o era também nas demais manifestações de sua vida. Desgostoso com a existência medíocre na sua pequena cidade natal, um belo dia, aí pelos seus vinte e dois anos, aceitara o convite de um engenheiro inglês que, por aquelas bandas, andava a explorar terras e terrenos diamantíferos. Todos julgavam que o «seu» mister andasse fazendo isso; a verdade, porém, é que o sábio inglês fazia estudos desinteressados. Fazia puras e platônicas pesquisas geológicas e mineralógicas. O diamante não era o fim dos seus trabalhos; mas o povo, que teimava em ver, pelos arredores da cidade, o ventre da terra cheio de diamantes, não podia supor que um inglês que levava a catar pedras, pela manhã e até à noite, tomando notas e com uns instrumentos rebarbativos, não estivesse com tais gatimonhas a caçar diamantes. Não havia meio do mister convencer à simplória gente do lugar que ele não queria saber de diamantes; e dia não havia em que o súdito de Sua Graciosa Majestade não recebesse uma proposta de venda de terrenos, em que forçosamente havia de existir a preciosa pedra abundantemente, por tais ou quais indícios, seguros aos olhos de «garimpeiro» experimentado.

Logo ao chegar o geólogo, Joaquim empregou-se como seu pajem, guia, encaixotador, servente, etc., e tanto foi obediente e serviu a contento o sábio, que este, ao dar por terminadas as suas pesquisas, o convidou a vir ao Rio de Janeiro, encarregando-se de movimentar a sua pedregulhenta ou pedregosa bagagem, até que ela fosse posta a bordo. O sábio comprometeu-se a pagar-lhe a estadia no Rio, o que fez, até embarcar-se para a Europa.

Deu-lhe dinheiro para voltar, um chapéu de cortiça, umas perneiras, um cachimbo e uma lata de fumo Navy Cut; Joaquim já se havia habituado ao Rio de Janeiro, no mês e pouco em que estivera aqui, a serviço do Senhor John Herbert Brown, da Real Sociedade de Londres; e resolveu não voltar para Diamantina. Vendeu as perneiras num belchior e o chapéu de cortiça também; e pôs-se a fumar o saboroso fumo inglês no cachimbo que lhe fora ofertado, passeando pelo Rio, enquanto teve dinheiro. Quando acabou, procurou conhecidos que já tinha; e, em breve, entrou para o serviço de empregado de escritório de um grande advogado, seu patrício, isto é, mineiro.

-Não te darei coisa que valha a pena -disse-lhe logo o doutor- mas aqui irás travando conhecimentos e podes arranjar coisa melhor mais tarde.

Viu bem que o «doutor» lhe falava a verdade, e toda sua ambição se cifrou em obter um pequeno emprego público que lhe desse direito a aposentadoria e a montepio, para a família que ia fundar. Conseguira, ao fim de dois anos de trabalho, aquele de carteiro, havia bem quatro lustros, com o qual estava muito contente e satisfeito da vida, tanto mais que merecera sucessivas promoções.

Casara meses depois de nomeado; e, tendo morrido sua mãe, em Diamantina, como filho único, herdara-lhe a casa e umas poucas terras em Inhaí, uma freguesia daquela cidade mineira. Vendeu a modesta herança e tratou de adquirir aquela casita nos subúrbios em que ainda morava e era dele. O seu preço fora módico, mas, mesmo assim, o dinheiro da herança não chegara, e pagou o resto em prestações. Agora, porém, e mesmo há vários anos, estava em plena posse do seu «buraco», como ele chamava a sua humilde casucha. Era simples. Tinha dois quartos; um que dava para a sala de visitas e outro para a sala de jantar, aquele ficava à direita e este à esquerda de quem entrava nela. À de visitas, seguia-se imediatamente a sala de jantar. Correspondendo a pouco mais de um terço da largura total da casa, havia, nos fundos, um puxadito, onde estavam a cozinha e uma despensa minúscula. Comunicava-se esse puxadito com a sala de jantar por uma porta; e a despensa, à esquerda, apertava o puxado, a jeito de um curto corredor, até à cozinha, que se alargava em toda a largura dele. A porta que o ligava à sala de jantar ficava bem junto daquela, por onde se ia dessa sala para o quintal. Era assim o plano da propriedade de Joaquim dos Anjos.

Fora do corpo da casa, existia um barracão para banheiro, tanque, etc., e o quintal era de superfície razoável, onde cresciam goiabeiras, dois pés ou três de laranjeiras, um de limão-galego, mamoeiros e um grande tamarineiro copado, bem aos fundos.

A rua em que estava situada a sua casa se desenvolvia no plano e, quando chovia, encharcava e ficava que nem um pântano; entretanto, era povoada e se fazia caminho obrigado das margens da Central para a longínqua e habitada freguesia de Inhaúma. Carroções, carros, autocaminhões que, quase diariamente, andam por aquelas bandas a suprir os retalhistas de gêneros que os atacadistas lhes fornecem, percorriam-na do começo ao fim, indicando que tal via pública devia merecer mais atenção da edilidade.

Era uma rua sossegada e toda ela, ou quase toda, edificada ao gosto antigo do subúrbio, ao gosto do chalet. Estava povoada e edificada quase inteiramente, de um lado e de outro. Dela, descortinava-se um lindo panorama de montanhas de cores cambiantes, conforme fosse a hora do dia e o estado da atmosfera. Ficavam-lhe muito distantes, mas pareciam cercá-la, e ela, a rua, ser o eixo daquele redondel de montes, em que, pelo dia em fora, pareciam ser iluminados por projeções luminosas, revestindo-se de toda a gama do verde, de tons azuis; e, pelo crepúsculo, ficavam cobertos de ouro e púrpura.

Além dos clássicos chalets suburbanos, encontravam-se outros tipos de casas. Algumas relativamente recentes, uns certos requififes e galanteios modernos, para lhes encobrir a estreiteza dos cômodos e justificar o exagero dos aluguéis. Havia, porém, uma casa digna de ser vista. Erguia-se quase ao centro de uma grande chácara e era a característica das casas das velhas chácaras dos outros tempos; longa fachada, pouco fundo, teto acaçapado, forrada de azulejos até a metade do pé direito. Um tanto feia, é verdade, que ela era, sem garridice; mas casando-se perfeitamente com as mangueiras, com as robustas jaqueiras e os coqueiros petulantes e com todas aquelas grandes e pequenas árvores avelhantadas, que, talvez, os que as plantaram não as tivessem visto frutificar. Por entre elas, onde se podiam ver vestígios do antigo jardim, havia estatuetas de louça portuguesa, com letreiros azuis. Uma era a «Primavera»; outra era a «Aurora»; quase todas, porém, estavam mutiladas; umas, num braço; outras não tinham cabeça, e ainda outras jaziam no chão, derrubadas dos seus toscos suportes.

Os muros que cercavam a casa, a razoável distância, e mesmo aquele em que se apoiava o gradil de ferro da frente do imóvel, estavam cobertos de hera, que os envolvia em todo ou em parte, não como um sudário, mas como um severo, cerimonioso e vivo manto de outras épocas e de outras gentes, a provocar saudades e evocações, animando a ruína. Hoje, é raro ver-se, no Rio de Janeiro, um muro coberto de hera; entretanto, há trinta anos, nas Laranjeiras, na Rua Conde de Bonfim, no Rio Comprido, no Andaraí, no Engenho Novo, enfim, em todos os bairros que foram antigamente estações de repouso e prazer, encontravam-se, a cada passo, longos muros cobertos de hera, exalando melancolia e sugerindo recordações.

Joaquim dos Anjos ainda conhecera a «chácara» habitada pelos proprietários respectivos; mas, ultimamente, eles se tinham retirado para fora e alugado aos «bíblias». Os seus cânticos, aos sábados (era o seu dia da semana de descanso sagrado), entoados quase de hora em hora, enchiam a redondeza e punham na sua audiência uma soturna sombra de misticismo. O povo não os via com hostilidade, mesmo alguns humildes homens e pobres raparigas dos arredores freqüentavam-nos, já por encontrar nisso um sinal de superioridade intelectual sobre os seus iguais, já por procurarem, em outra casa religiosa que não a tradicional, lenitivo para suas pobres almas alanceadas, além das dores que seguem toda e qualquer existência humana.

Alguns, entre os quais o João Pintor, justificavam freqüentar os «bíblias», porque estes -dizia ele- não eram como os padres, que, para tudo, querem dinheiro.

Esse João Pintor trabalhava nas oficinas do Engenho de Dentro, no ofício de que proviera o seu apelido. Era um preto retinto, grossos lábios, malares proeminentes, testa curta, dentes muito bons e muito claros, longos braços, manoplas enormes, longas pernas e uns tais pés, que não havia calçado, nas sapatarias, que coubessem neles. Mandava-os fazer de encomenda; mas assim mesmo, mal os punha hoje, no dia seguinte tinha que os retalhar à navalha, se queria dar alguns passos e manquejar menos até o «Mafuá».

Dizia o «Turuna», adepto do Padre Sodré, capelão do Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, que João Pintor se metera com os «bíblias», porque estes lhe haviam dado um quarto, na chácara, para ele morar de graça, com certas obrigações pequenas a cumprir. João Pintor contestava com veemência; o certo, porém, é que ele morava na «chácara».

Chefiava os protestantes um americano, Mr. Quick Shays, homem tenaz e cheio de uma eloqüência bíblica, que devia ser magnífica em inglês; mas que, no seu duvidoso português, se tornava simplesmente pitoresca. Era Shays Quick ou Quick Shays daquela raça curiosa de yankees fundadores de novas seitas cristãs. De quando em quando, um cidadão protestante dessa raça que deseja a felicidade de nós outros, na terra e no céu, à luz de uma sua interpretação de um ou mais versículos da Bíblia, funda uma novíssima seita, põe-se a propagá-la e logo encontra dedicados adeptos, os quais não sabem muito bem por que foram para tal novíssima religiãozinha e qual a diferença que há entre esta e a de que vieram.

Lá, na sua terra, como aqui, esses pequenos luteros fazem prosélitos; lá, mais do que aqui. Mr. Shays obtinha, nas vizinhanças do carteiro Joaquim dos Anjos, não prosélitos, mas muitos ouvintes, dos quais uma quinta parte afinal se convertia. Quando se tratava de iniciar uma turma, os noviços dormiam em barracas de campanha, erguidas ao redor da casa, nos vãos existentes entre as velhas árvores da chácara, maltratada e desprezada.

As cerimônias preparatórias à iniciação, na religião de Mr. Quick Shays, duravam uma semana, farta de jejuns e cânticos religiosos, cheios de unção e apelos contritos a Deus, Nosso Pai; e a velha propriedade de recreio, com as barracas militares e salmodias contínuas, adquiria um aspecto esquisito e imprevisto, o de convento ao ar livre, mascarado por uma rebarbativa carranca de acampamento guerreiro. Dir-se-ia um destacamento de uma ordem de cavalaria monástico-guerreira, que se preparava para combater o turco ou o mouro infiel, na Palestina ou em Marrocos.

Da redondeza, não eram muitos os adeptos ortodoxos à doutrinação religiosa de Mr. Shays; entretanto, além das espécies que já foram aludidas, havia as daqueles que assistiam às suas prédicas, por mera curiosidade ou para deliciar-se com a oratória do pastor americano. O templo estava sempre cheio, nos seus dias solenes.

Os freqüentadores dessa ou daquela natureza lá iam sem nenhuma repugnância, pois é próprio do nosso pequeno povo fazer uma extravagante amálgama de religiões e crenças de toda a sorte, e socorrer-se desta ou daquela, conforme os transes e momentâneas agruras de sua existência. Se se trata de afastar atrasos de vida, apela para a feitiçaria; se se trata de curar uma moléstia tenaz e renitente, procura o espírita; mas não falem à nossa gente humilde em deixar de batizar o filho pelo sacerdote católico, porque não há, dentre ela, quem não se zangue: «Está doido! Meu filho ficar pagão! Deus me defenda!».

Joaquim dos Anjos não freqüentava Mr. Shays nem o reverendo Padre Sodré, do Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, pois, apesar de ter nascido numa cidade embalsamada de incenso e plena de ecos sonoros de litanias e o contínuo repicar de sinos festivos, não era animado de grande fervor religioso. Sua mulher, Dona Engrácia, porém, o era em extremo, embora fosse pouco à igreja, devido às suas obrigações caseiras. Ambos, porém, estavam de acordo num ponto religioso católico-romano: batizar quanto antes os filhos, na Igreja Católica Apostólica Romana. Foi assim que procederam, não só com a Clara, o único filho sobrevivente, como com os demais, que haviam morrido.

Eram casados há quase vinte anos, e esta Clara, sua filha, sendo o segundo filho do casal, orçava pelos seus dezessete anos.

Era tratada pelos pais com muito desvelo, recato e carinho; e, a não ser com a mãe ou pai, só saía com Dona Margarida, uma viúva muito séria, que morava nas vizinhanças e ensinava a Clara bordados e costuras.

No mais, isto era raro e só acontecia aos domingos, Clara deixava, às vezes, a casa paterna, para ir ao cinema do Méier ou Engenho de Dentro, quando a sua professora de costuras se prestava a acompanhá-la, porque Joaquim não se prestava, pois não gostava de sair aos domingos, dia escolhido a fim de se entregar ao seu prazer predileto de jogar o solo com os companheiros habituais; e sua mulher não só não gostava de sair aos domingos, como em outro dia da semana qualquer. Era sedentária e caseira.

Os companheiros habituais do solo com Joaquim eram quase sempre estes dois: o Senhor Antônio da Silva Marramaque, seu compadre, pois era padrinho de sua filha única; e o Senhor Eduardo Lafões. Não variavam. Todos os domingos, aí pelas nove horas, lá batiam à porteira da casa do «postal»; não entravam no corpo da habitação e, pelo corredor que mediava entre ela e a vizinha, dirigiam-se ao grande tamarineiro, aos fundos do quintal, debaixo do qual estava armada a mesa, com os seus tentos, vermelhos e pupilas negras, de grão de aroeira, o seu baralho, os seus pires, um cálice e um litro de parati, ao centro, muito pimpão e arrogante, impondo um cínico desafio às conveniências protocolares.

Joaquim dos Anjos já esperava, lendo o jornal de sua predileção. Mal chegavam, trocavam algumas palavras, sentavam-se, «molhavam a palavra», no litro de cachaça, e punham-se a jogar. Ficha a vintém.

Horas e horas, esperando o «ajantarado», que quase sempre ia para a mesa à hora do jantar habitual, deixavam-se ficar jogando, bebericando aguardente, sem dar uma vista d'olhos sobre as montanhas circundantes, nuas e pedroucentas, que recortavam o alto horizonte.

De quando em quando, mas sem grandes espaços, Joaquim gritava para a cozinha:

-Clara! Engrácia! Café!

De lá, respondiam, com algum amuo na voz:

-Já vai!

É que as duas mulheres, para preparar o café, tinham que retirar, de um dos dois fogareiros de carvão vegetal, uma panela do «ajantarado» que aprontavam, a fim de aquecer o café reclamado; e isto lhes atrasava o jantar.

Enquanto esperavam o café, os três suspendiam o jogo e conversavam um pouco. Marramaque era e sempre havia sido mais ou menos político, a seu modo.

Embora atualmente fosse um simples contínuo de ministério, em que não fazia o serviço respectivo, nem outro qualquer, devido a seu estado de invalidez, de semi-aleijado e semiparalítico do lado esquerdo, tinha, entretanto, pertencido a uma modesta roda de boêmios literatos e poetas, na qual, a par da poesia e de coisas de literatura, se discutia muita política, hábito que lhe ficou. Quando veio a revolta de 93, a roda se dissolveu. Uns foram acompanhar o Almirante Custódio; e outros, o Marechal Floriano. Marramaque foi um destes e até obteve as honras de alferes do Exército. Por aí é que teve a primeira congestão, isto é, nos fins do governo do marechal, em 94.

A sua roda não tinha ninguém de destaque, mas alguns eram estimáveis. Mesmo alguns de rodas mais cotadas procuravam a dele.

Quando narrava episódios dessa parte de sua vida, tinha grande garbo e orgulho em dizer que havia conhecido Paula Nei e se dava com Luís Murat. Não mentia, enquanto não confessasse a todos em que qualidade fizera parte do grupo literário. Os que o conheciam, daquela época, não ocultavam o título com que partilhava a honra de ser membro de um cenáculo poético. Tendo tentado versejar, o seu bom senso e a integridade de seu caráter fizeram-lhe ver logo que não dava para a coisa. Abandonou e cultivou as charadas, os logogrifos, etc. Ficou sendo um hábil charadista e, como tal, figurava quase sempre como redator ou colaborador dos jornais, que os seus companheiros e amigos de boêmia literária, poetas e literatos, improvisavam do pé para a mão, quase sempre sem dinheiro para um terno novo. Envelhecendo e ficando semi-inutilizado, depois de dois ataques de apoplexia, foi obrigado a aceitar aquele humilde lugar de contínuo, para ter com que viver. Os seus méritos e saber, porém, não estavam muito acima do cargo. Aprendera muita coisa de ouvido e, de ouvido, falava de muitas delas. Tivera, em moço, uma boa convivência. Estava aí o segredo de sua ilustração. Marramaque, apesar de tudo, do seu estado de saúde, da sua dificuldade de locomover-se, não deixava a mania inócua da política e ia votar, com risco de se ver envolvido num barulho de sufrágio universal, puxado a navalha, rabo-de-arraia, cabeçadas, tiros de revólver e outras eloqüentes manifestações eleitorais, das quais, em razão do seu precário estado de pernas, não poderia fugir com segurança e a necessária rapidez.

Tendo vivido em rodas de gente fina -como já vimos- não pela fortuna, mas pela educação e instrução; tendo sonhado outro destino que não o que tivera; acrescendo a tudo isto o seu aleijamento, Marramaque era naturalmente azedo e oposicionista. Naquele domingo, ele o tirara para falar mal do doutor Saulo de Clapin.

-Vocês vão ver: o Clapin está aí, está morto na política. Teve o topete de ir contra a corrente popular, espetou-se. Quem ganhou foi o barbudo Melo Brandão, esse judeu mestiçado. É um safadão, mas é mestre na política.

Joaquim se interessava mediocremente por essa história de política: mas Lafões tinha as suas paixões no negócio e acudiu:

-Qual o quê! Então você pensa, Marramaque, que um homem inteligente, tão superior, como o doutor Clapin, vai deixar-se embrulhar por um trapaceiro de atas e coisas piores como o Melo Brandão! Qual o quê! Demais, o operariado...

-O que é que ele tem feito pelo operariado? -pergunta Marramaque.

-Muito.

Lafões não era operário, como se poderia pensar. Era guarda das obras públicas. Português de nascimento, viera menino para o Brasil, isto há mais de quarenta anos; entrara muito cedo para a repartição de águas da cidade, chamara a atenção dos seus superiores pelo rigor de sua conduta; e, aos poucos, fizeram-no chegar a seu generalato de guarda de encanamentos e de torneiras que vazassem nos tanques de lavagem das casas particulares. Vivia muito contente com a sua posição, a sua portaria de nomeação, a sua carta de naturalização, e, talvez, não estivesse tanto, se tivesse enriquecido de centenas de contos de réis. Assim tudo fazia crer, pois era de ver a importância ingênua do campônio que se faz qualquer coisa do Estado, e a solenidade de maneiras com que ele atravessava aquelas virtuais ruas dos subúrbios.

Trazia sempre a farda de cáqui e o boné com as iniciais da repartição; um chapéu-de-sol de cabo, que, quando não o trazia aberto, a protegê-lo contra os raios do sol, manejava como a bengala de um vigário de aldeia portuguesa, furando o chão e levantando-o, para pousá-lo de novo, à medida que executava as suas longas passadas.

Lafões respondeu assim a Marramaque:

-Muito. Em todas as comissões por que o doutor Clapin tem passado, sempre procura dar trabalho ao maior número de operários.

-Grande serviço! Arrebenta as verbas; no fim de dois ou três meses, despede mais da metade... Isto não se chama proteger; chama-se engazopar.

-Seja, mas ele ainda faz isso, e os outros? Não fazem nada. De resto, é um homem democrata. Desde muito que se bate pela igualdade entre os servidores da nação. Não quer distinção entre funcionários públicos e jornaleiros. Quem serve à nação, seja em que serviço for, é funcionário público.

-Honrarias! Isto não enche barriga! Por que ele não trabalha para diminuir a carestia da vida e dos aluguéis de casa?

-Homessa, Marramaque! Você não leu o projeto dele sobre construção de casas para famílias pobres e modestas? Você não leu, Joaquim?

O carteiro, que vinha ouvindo a conversa sem dar opinião, à interpelação de Lafões, interveio:

-Li, de fato; mas li também que ele havia aumentado os aluguéis de suas casas, que são inúmeras, de quarenta por cento.

-É isto! -acudiu com pressa Marramaque-. Clapin é muito generoso com o dinheiro dos outros, do Estado. Com o dele, é de uma sovinice de judeu e de uma ganância de agiota. Jesuíta!

Felizmente Clara chegava com o café. A conversa apaixonada cessava, e os dois convivas de Joaquim recebiam os cumprimentos da menina:

-A bênção, meu padrinho; bom-dia, Seu Lafões.

Eles respondiam e punham-se a pilheriar com Clara.

Dizia Marramaque:

-Então, minha afilhada, quando se casa?

-Nem penso nisso -respondia ela, fazendo um trejeito faceiro.

-Qual! -observa Lafões-. A menina já tem algum de olho. Olhe, no dia dos seus anos... É verdade, Joaquim: uma coisa.

O carteiro descansou a xícara e perguntou:

-O que é?

-Queria pedir a você autorização para cá trazer, no dia dos anos, aqui da menina, um mestre do violão e da modinha.

Clara não se conteve e perguntou apressada:

-Quem é?

Lafões respondeu:

-É o Cassi. A menina...

O guarda das obras públicas não pôde acabar a frase. Marramaque interrompeu-o furioso:

-Você dá-se com semelhante pústula? É um sujeito que não pode entrar em casa de família. Na minha, pelo menos...

-Por quê? -indagou o dono da casa.

-Eu direi, daqui a pouco; eu direi por quê -fez Marramaque transtornado.

Acabaram de tomar café. Clara afastou-se com a bandeja e as xícaras, cheia de uma forte, tenaz e malsã curiosidade:

-Quem seria esse Cassi?

- II -

Quem seria esse Cassi? Quem era Cassi?

Cassi Jones de Azevedo era filho legítimo de Manuel Borges de Azevedo e Salustiana Baeta de Azevedo. O Jones é que ninguém sabia onde ele o fora buscar, mas usava-o, desde os vinte e um anos, talvez, conforme explicavam alguns, por achar bonito o apelido inglês. O certo, porém, não era isso. A mãe, nas suas crises de vaidade, dizia-se descendente de um fantástico Lord Jones, que fora cônsul da Inglaterra, em Santa Catarina; e o filho julgou de bom gosto britanizar a firma com o nome do seu problemático e fidalgo avô.

Era Cassi um rapaz de pouco menos de trinta anos, branco, sardento, insignificante, de rosto e de corpo; e, conquanto fosse conhecido como consumado «modinhoso», além de o ser também por outras façanhas verdadeiramente ignóbeis, não tinha as melenas do virtuose do violão, nem outro qualquer traço de capadócio. Vestia-se seriamente, segundo as modas da Rua do Ouvidor; mas, pelo apuro forçado e o dégagé suburbanos, as suas roupas chamavam a atenção dos outros, que teimavam em descobrir aquele aperfeiçoadíssimo «Brandão», das margens da Central, que lhe talhava as roupas. A única pelintragem, adequada ao seu mister, que apresentava, consistia em trazer o cabelo ensopado de óleo e repartido no alto da cabeça, dividido muito exatamente ao meio -a famosa «pastinha». Não usava topete, nem bigode. O calçado era conforme a moda, mas com os aperfeiçoamentos exigidos por um elegante dos subúrbios, que encanta e seduz as damas com o seu irresistível violão.

Era bem misterioso esse seu violão; era bem um elixir ou talismã de amor. Fosse ele ou fosse o violão, fossem ambos conjuntamente, o certo é que, no seu ativo, o Senhor Cassi Jones, de tão pouca idade, relativamente, contava perto de dez defloramentos e a sedução de muito maior número de senhoras casadas.

Todas essas proezas eram quase sempre seguidas de escândalo, nos jornais, nas delegacias, nas pretorias; mas ele, pela boca dos seus advogados, injuriando as suas vítimas, empregando os mais ignóbeis meios da prova de sua inocência, no ato incriminado, conseguia livrar-se do casamento forçado ou de alguns anos na correção.

Quando a polícia ou os responsáveis pelas vítimas, pais, irmãos, tutores, punham-se em campo para processá-lo convenientemente, ele corria à mãe, Dona Salustiana, chorando e jurando a sua inocência, asseverando que a tal fulana -qualquer das vítimas- já estava perdida, por esse ou por aquele; que fora uma cilada que lhe armaram, para encobrir um mal feito por outrem, e por o saberem de boa família, etc., etc.

Em geral, as moças que ele desonrava eram de humilde condição e de todas as cores. Não escolhia. A questão é que não houvesse ninguém, na parentela delas, capaz de vencer a influência do pai, mediante solicitações maternas.

A mãe recebia-lhe a confissão, mas não acreditava; entretanto, como tinha as suas presunções fidalgas, repugnava-lhe ver o filho casado com uma criada preta, ou com uma pobre mulata costureira, ou com uma moça branca lavadeira e analfabeta.

Graças a esses seus preconceitos de fidalguia e alta estirpe, não trepidava em ir empenhar-se com o marido, a fim de livrar o filho da cadeia ou do casamento pela polícia.

-Mas é a sexta moça, Salustiana!

-Qual o quê! Calunia-se muito...

-Qual calúnia, qual nada! Este rapaz é um perverso, é sem-vergonha. Eu sei o nome das outras. Olhe: a Inês, aquela crioulinha que foi nossa copeira e criada por nós; a Luísa, que era empregada do doutor Camacho; a Santinha, que ajudava a mãe a costurar para fora e morava na Rua Valentim; a Bernarda, que trabalhava no «Joie de Vivre»...

-Mas tudo isto já passou, Maneco. Você quer que o seu filho vá para a cadeia? Porque, casar com essas biraias, ele não se casa. Eu não quero.

-Era preferível que ele fosse para a cadeia, ao menos não estava desmoralizando todo o dia a casa.

-Pois você faça o que quiser. Se você não der os passos, eu dou. Vou procurar o meu irmão, o doutor Baeta Picanço -rematava a mulher com orgulho.

O pai desse Cassi era verdadeiramente um homem sério. Estreito de idéias, familiarizado no emprego público, que, há cerca de trinta anos, exercia, ele tinha profundos sentimentos morais, que lhe guiavam a conduta no seu comércio com os filhos. Nunca fora afetuoso: evitava até todas as exibições e exageros sentimentais; era, porém, capaz de estimá-los profundamente, amá-los, sem abdicar, entretanto, do dever paterno de julgá-los lucidamente e puni-los consoante a natureza das suas respectivas faltas.

Era homem de pouca altura, trazia a cabeça sempre erguida, testa reta e alta, queixo forte e largo, olhar firme, debaixo do seu pince-nez de aros de ouro. Conquanto alguma coisa obeso, era deveras um velho simpático e respeitável; e, apesar da sua imponência de antigo burocrata, dos seus modos um tanto ríspidos e secos, todos o estimavam na proporção em que seu filho era desprezado e odiado. Tinham até pena dele, confrontando a severidade de sua vida com a crapulice de Cassi.

Sua mulher não era lá muito querida, nem prezada. Tinha fumaças de grande dama, de ser muito superior às pessoas de sua vizinhança e mesmo às dos seus conhecimentos. O seu orgulho provinha de duas fontes: a primeira, por ter um irmão médico do Exército, com o posto de capitão; e a segunda, por ter andado no Colégio das Irmãs de Caridade.

Quando se lhe perguntava, seu pai, o que era?, Dona Salustiana respondia: era do Exército; e torcia a conversa. Não era seu pai exatamente do Exército. Fora simplesmente escriturário do Arsenal de Guerra. Com muito sacrífício e graças a uma pequena fortuna que lhe viera ter por acaso às mãos, pudera educar melhorzinho os dois únicos filhos que tivera.

A vaidade de Dona Salustiana não deixava que ela confessasse isso; e tanto era contagioso esse seu sentimento, no que tocava a seu pai, que as suas duas filhas, Catarina e Irene, sempre se referiam ao avô, como se fosse de verdade um general do Paraguai. Eram menos vaidosas do que a mãe; mas muito mais ambiciosas, em matéria de casamento. Dona Salustiana casara-se com o Manuel, quando este ainda era praticante e revia provas, à noite, nos jornais, para acudir às despesas da casa. Catarina e Irene sonhavam casar com doutores, bem empregados ou ricos, porque elas se julgavam prestes a se «formar», a primeira em música e piano, pelo trampolineiro Instituto Nacional de Música; e a segunda, pela indigesta Escola Normal desta Capital.

Escusado é dizer que ambas tinham um grande desprezo pelo irmão, não só pela baixeza de sua conduta moral -o que era merecido- mas, também, pela sua ignorância cavalar e absoluta falta de maneiras e modos educados.

Em começo, o pai consentia, apesar de tudo, que Cassi, o ínclito Cassi, tomasse parte na mesa familiar. Ninguém lhe dirigia a palavra, a não ser a mãe. As moças conversavam com o pai ou com a mãe, ou entre si; e, se ele se animava a dizer qualquer coisa, o velho Manuel olhava-o severamente e as filhas calavam-se.

Houve um acontecimento doloroso, provocado pela perversidade de Cassi, que fez o pai tomar a deliberação extrema de expulsá-lo de casa e da mesa doméstica. Não foi expulso de todo, devido à intervenção de Dona Salustiana; mas o foi em meio.

Entre as relações de suas irmãs, havia uma moça muito pobre, que morava na redondeza. Sua mãe era viúva de um capitão do Exército, e ela, a Nair, era filha única. Com auxílio de alguns parentes, a viúva ia encaminhando a filha, nos estudos próprios de seu sexo. Ela tinha tendência para música e procurou aproximar-se de Catarina, para explicar-lhe a matéria. Contava dezoito anos, muito risonha, de um amorenado sombrio, cabelos muito negros, pequenina e viva, com os seus olhinhos irrequietos e luminosos.

Cassi a viu e logo a teve como boa presa, apesar de não ser totalmente sem apoio. Quis entabular namoro, na própria casa do pai, quando Nair vinha receber lições da irmã dele. Esta, porém, percebendo a manobra, proibiu-lhe, sob ameaça de contar ao pai, que ele viesse à sala, quando estivesse dando lição a Nair. O nome do pai apavorava Cassi, não que o estimasse e, por isso, o respeitasse deveras; mas porque «o velho», severo como era, bem podia pô-lo de vez na rua. Se isso viesse a acontecer, não teria para onde ir, e o pouco que ganhava, no jogo, em brigas de galos e em comissões de agente de empréstimos, etc., seria absorvido para a casa e comida, pouco ou quase nada sobrando para roupas, sapatos e gravatas. Ele, sem isto tudo, estava perdido. Adeus amor! Se o quisesse, tinha que pagar...

Considerando tal hipótese, não relutou em obedecer à irmã; mas começou a cercar Nair «por fora». Quando ela ia sair, precedia-a, ficava na porta da padaria, cumprimentava. Afinal, pôde conversar e declarar-se com a fatídica carta, que era a reprodução de um modelo que lhe dera um companheiro de malandragem, o Ataliba do Timbó, o qual, por sua vez, tinha obtido de um poeta «porrista» que morava na Piedade. Esse poeta, a quem o «intruso» Ataliba qualificava tão superiormente e de tal maneira, era o célebre Leonardo Flores, que o Brasil todo conhece e viveu uma vida pura, inteiramente de sonhos.

Enfim, a pequena Nair, inexperiente, em plena crise de confusos sentimentos, sem ninguém que lhe pudesse orientar, acreditou nas lábias de Cassi e deu o passo errado. A mãe veio a descobrir-lhe a falta, que se denunciava pelo estado do seu ventre. Correu ao Senhor Manuel, que não estava. Falou a Dona Salustiana e esta, empertigando-se toda, disse secamente:

-Minha senhora, eu não posso fazer nada. Meu filho é maior.

-Mas, se a senhora o aconselhasse como mãe que é, e de filhas, talvez obtivesse alguma coisa. Tenha piedade de mim e da minha, minha senhora.

E pôs-se a chorar e a soluçar.

Dona Salustiana respondeu amuada, sem demonstrar o mínimo enternecimento por aquela dor inqualificável:

-Não posso fazer nada, no caso, minha senhora. Já lhe disse. A senhora recorra à justiça, à polícia, se quiser. É o único remédio.

A mãe de Nair acalmou-se um pouco e observou:

-Era o que eu queria evitar. Será uma vergonha para mim e para a senhora e família.

-Nós nada temos com o que Cassi faz. Se fosse nossa filha...

Não acabou a indireta injuriosa; levantou-se e estendeu a mão à desolada mãe, como que a despedindo.

A viúva saiu cabisbaixa; e, dali, foi à audiência do delegado distrital e expôs tudo. O delegado disse-lhe:

-Apesar de estar ainda não há seis meses neste distrito, sei bem quem é esse patife de Cassi. O meu maior desejo era embrulhá-lo num bom e sólido processo; mas não posso, no seu caso. A senhora não é miserável, possui as suas pensões de montepio e meio soldo; e eu só posso tomar a iniciativa do processo quando a vítima é filha de pais miseráveis, sem recursos.

-Mas, não há remédio, doutor?

-Só a senhora constituindo advogado.

-Ah! Meu Deus! Onde vou buscar dinheiro para isso? Minha filha, desgraçada, meu Deus!

E pôs-se a chorar copiosamente. Quando serenou, o delegado mandou que um empregado da delegacia acompanhasse a senhora até em casa e ficou a pensar nas baixezas, nas dores, nas misérias que as casas encobrem e que, todo o dia, descobria, por dever de ofício.

No dia seguinte, a mãe de Nair suicidava-se com lisol. Os jornais esgravataram o acontecimento e contaram as causas do suicídio com todos os pormenores. Manuel de Azevedo, o pai de Cassi, quando leu no trem o jornal, saltou na primeira estação, voltou e entrou pela casa adentro que nem um furacão, transtornado de fisionomia, com ríctus de ódio que o fazia outro homem muito diferente daquele reservado, bondoso e simpático burocrata que era.

-Quedê ele?

-Quem? -perguntou-lhe a mulher.

-Ele, esse Cassi -fez ele com os punhos cerrados, a errar o olhar desvairado, pelos quatro cantos da sala.

-Mas que há, homem? -fez a mulher assustada.

-Lê isto.

Deu-lhe o jornal, apontando o local do suicídio.

-Mas que culpa tem...

Não acabou a frase, Dona Salustiana; o marido logo a interrompeu:

-Culpa! Esse biltre sem senso moral algum; esse assassino, esse desgraçado que leva a corromper todas as moças e senhoras que lhe passam debaixo dos olhos, não o quero mais aqui, não o quero mais na minha mesa. Diga-lhe isto, Salustiana; diga-lhe isto, enquanto não o mato.

As filhas tinham chegado e adivinharam a causa daquela explosão de ódio e raiva, coisa rara no pai. Procuraram acalmá-lo:

-Sossegue, papai; sossegue.

Catarina, que passara os olhos pelo jornal, muito sofreu com a desonra de Nair. Lamentou sinceramente o trágico desfecho da mãe da sua discípula gratuita; e assim falou ao pai:

-Olhe, papai; eu me sinto em alguma coisa culpada, porque trouxe Nair para aqui, a fim de estudar música comigo.

Depois de uma pausa acrescentou:

-Que se há de fazer? É a fatalidade.

-Não o quero mais aqui -repetiu o chefe da família.

Os jornais não se deixaram ficar na simples notícia do suicídio. Revolveram a vida de Cassi; contaram-lhe as proezas; e ele, a conselho de sua mãe, foi passar uns tempos na casa do tio, o doutor, que tinha uma fazendola em Guaratiba. Pela narração dos quotidianos, pôde-se organizar toda a rede de insídias, de cavilosas mentiras, de falsas promessas, com que ele tinha cercado a pobre e ingênua vítima, cuja desonra determinou o suicídio da mãe. Ele, como de hábito, não falava de seus namoros a ninguém, muito menos a seu pai e a sua mãe; entretanto, para ganhar a confiança da pobre menina, dizia na carta que dissera à mãe que muito a amava ou textualmente: «confessei a mamãe que lhe amava loucamente» e avisava-lhe: «privino-lhe que não ligues ao que lhe disserem, por isso pesso-te que preze bem o meu sofrimento»; e, assim nessa ortografia e nessa sintaxe, acabava: «Pense bem e veja se estás resolvida a fazer o que diçestes na tua cartinha», etc. Confessava-se um infeliz «que tanto lhe adora» e lamentava não ser correspondido.

Em outra, mostrava-se interessado pela saúde de Nair; e, depois de dar instruções como devia deixar a janela para que ele a pulasse, contava: «tão de pressa soube que estavas de cama fui ao doutor R. S. saber o que você tinha, ele disse-me que você tinha feito a loucura de molhar os peis na água fria», etc., etc. Nessa altura, entrava em detalhes secretos da vida feminina e aduzia: «foi uma grande tristeza em saber que o doutor R. S. sabe de teus particulares moral» (sic).

No fim da missiva, ou quase, dizia: «enfim que eu devo fazer 'se você não quer ser inteiramente minha' como eu sou teu».

Não se demorou muito na casa do tio. O doutor, orgulho de sua irmã Salustiana e protetor sempre por ela posto em foco para as despudoradas aventuras do sobrinho, desconfiando que este tramava uma das suas, nos arredores do seu sítio, sem mais detença, embarcou-o para a casa da irmã, mãe de Cassi, dizendo-lhe que ficasse com o filho, porque sobrinho como aquele, ele, doutor Baeta Picanço, desejava nunca tê-lo em casa.

Não foi logo diretamente para a casa paterna, que era numa das primeiras estações de quem vem da Central. Ficou pelo Engenho de Dentro, de onde mandou, por Ataliba do Timbó, um bilhete à mãe, pedindo instruções. A mãe respondeu-lhe que viesse para casa; mas evitasse, por todos os meios, encontrar-se com o pai. Tinha ela arranjado as coisas, e ele teria sempre onde comer e dormir.

Foi-lhe reservado o porão, na parte dos fundos, e a chácara, como recreio, onde raramente o pai ia. Jantava, almoçava e tomava café, no compartimento do porão onde morava. Logo na primeira manhã que despertou no seu humilhante aposento familiar, pensou logo em ir ver as suas gaiolas de galos de briga -o bicho mais hediondo, mais antipático, mais repugnantemente feroz que é dado a olhos humanos ver. Estavam em ordem; sua mãe cuidara deles, como lhe pedira.

Galos de briga eram a força de suas indústrias e do seu comércio equívocos. Às vezes, ganhava bom dinheiro nas apostas de rinhadeiro, o que vinha ressarcir os prejuízos que, porventura, anteriormente houvesse tido nos dados; e, assim, conseguia meios para saldar o alfaiate ou comprar sapatos catitas e gravatas vistosas. Com os galos, fazia todas as operações possíveis, a fim de ganhar dinheiro; barganhava-os, com «volta», vendia-os, chocava as galinhas, para venda dos frangos a criar e educar, presenteava pessoas importantes, das quais supusesse, algum dia, precisar do auxílio e préstimos delas, contra a polícia e a justiça.

Incapaz de um trabalho continuado, causava pasmo vê-lo cuidar todas as manhãs daqueles horripilantes galináceos, das ninhadas, às quais dava milho moído, triguilho, examinando os pintainhos, um por um, a ver se tinham bouba ou gosma.

Fosse se deitar a que hora fosse, pela manhã lá estava ele atrapalhado com os galos malaios e a sua descendência de frangos e pintos.

Nunca suportara um emprego, e a deficiência de sua instrução impedia-o que obtivesse um de acordo com as pretensões de muita coisa que herdara da mãe; além disso, devido à sua educação solta, era incapaz para o trabalho assíduo, seguido, incapacidade que, agora, roçava pela moléstia. A mórbida ternura da mãe por ele, a que não eram estranhas as suas vaidades pessoais, junto à indiferença desdenhosa do pai, com o tempo, fizeram de Cassi o tipo mais completo de vagabundo doméstico que se pode imaginar. É um tipo bem brasileiro.

Se já era egoísta, triplicou de egoísmo. Na vida, ele só via o seu prazer, se esse prazer era o mais imediato possível. Nenhuma consideração de amizade, de respeito pela dor dos outros, pela desgraça dos semelhantes, de ditame moral o detinha, quando procurava uma satisfação qualquer. Só se detinha diante da força, da decisão de um revólver empunhado com decisão. Então, sim...

Algumas boas lhe aconteceram. Tinha ele notado que uma moçoila com livros e attirail de normalista, na viagem de trem, o olhava muito.

Marcou-lhe a fisionomia e, ao dia seguinte, à mesma hora, pôs-se, na estação, à espera dela; não veio. Esperou outro trem, não veio. Assim, esperou diversos. No outro dia, após esse, foi mais feliz; ela veio. Procurou lugar conveniente e pôs-se a fazer trejeitos. A moça não lhe deu importância. Durante dias, insistiu. Um belo dia, ele vai muito calmo, à cata da ingrata, quando ela apareceu acompanhada de um rapaz, que, pela intimidade com que a tratava e pela idade que revelava à primeira vista, parecia ser irmão ou marido da moça. Habituado a lidar com parentes dessa natureza, mas fracos, não se intimidou. Os dois no banco, ao lado dele, seguem viagem, palestrando calmamente. Cassi os olha insistentemente. Chegam à Central, e o rapaz despede-se da moça, que segue para a sua escola. Volta-se o cavalheiro e procura com o olhar o Senhor Cassi.

-É o senhor?

Cassi Jones responde:

-Sou eu.

-Desejava muito falar-lhe. Vamos à confeitaria; é coisa particular, e nós lá estaremos à vontade tomando um vermouth.

Cassi fica com a pulga atrás da orelha e acompanha o desconhecido, que, com ar risonho e caminhando, vai dizendo:

-O senhor talvez não me conheça. Porém eu, meu caro senhor, o conheço muito bem. Nos subúrbios, todos conhecem as suas habilidades, Senhor Cassi Jones; e, embora esteja lá morando há pouco, já tive notícias do seu valimento.

Cassi assustava-se com a calma do rapaz e pôs-se a medir-lhe os músculos. Não trouxera a navalha, porque tinha medo de ser preso, por causa do negócio da Nair e do suicídio da mãe dela; e armado... Mediu a musculatura do desconhecido. Era antes fraco do que forte, mas parecia disposto. Chegaram à confeitaria e sentaram-se. O caixeiro serviu vermouth; e, quando iam em meio, o outro disse ex-abrupto para Cassi:

-O senhor sabe quem é aquela moça que vinha a meu lado?

Colhido de surpresa, não pôde tergiversar e disse prontamente:

-Não sei absolutamente.

-É minha irmã -afirmou o desconhecido.

-Também não sabia -respondeu docilmente o terrível Cassi.

-Não podia saber naturalmente -justificou o rapaz-. Saio cedo de casa para o escritório e volto tarde, pois janto e almoço na cidade. Agora, eu chamei o senhor para lhe dizer uma coisa: se o senhor continua a perseguir minha irmã, meto-lhe cinco tiros na cabeça.

Ao dizer isto, foi tirando dos bolsos de dentro do paletó um magnífico Smith & Wesson, muito reluzente e com um luxuoso cabo de madrepérola.

Cassi redobrou o esforço para não denunciar o susto e, simulando calma, disse:

-Mas, meu caro senhor, creio que nunca faltei com o respeito devido à senhora sua irmã.

-É verdade; mas é preciso deixar de persegui-la -confirmou o outro e logo acrescentou, como que dando por acabada a entrevista-. Quer tomar alguma coisa mais?

-Não; muito obrigado.

Despediram-se, sem se apertarem as mãos; e Cassi foi para a sua roda de Ataliba do Timbó, Zezé Mateus, Franco Sousa e Arnaldo.

Um deles perguntou-lhe:

-O que queria aquele sujeito contigo?

-Nada. É meu vizinho e, sabendo que sou morador antigo, pediu-me que lhe arranjasse um cavalo para vender, que ele me dava uma comissão.

Cassi era assim e assim mantinha a sua fama de valente. Não julguem que tinha estima e amizade por esses rapazes que andavam sempre com ele. Ele não os amava, como não amava ninguém e com ninguém simpatizava. Era uma coorte digna dele, que o iludia do vácuo feito em torno dele, por todos os rapazes daquelas bandas.

Ataliba do Timbó era um mulato claro, faceiro, bem-apessoado, mas antipático pela sua falsa arrogância e fatuidade. Havia sido operário em uma oficina do Estado. Meteu-se com Cassi e, aos poucos, abandonou o emprego, abandonou a mãe, de quem era único arrimo, e quis imitar o mestre até o fim. Foi infeliz. Arranjou uma complicação policial e matrimonial de donzelas, nas quais Cassi era useiro e vezeiro, e saiu-se mal. Obrigaram-no a casar; mas teve a hombridade de ficar com a mulher, embora, resignadamente, ela sofresse toda a espécie de privações, no horrível subúrbio de Dona Clara, enquanto ele andava sempre muito suburbanamente elegante e tivesse vários uniformes de football.

Tirava proventos do jogo de dados ou campista, e também do football, em que era considerado bom jogador -«plêiel», como dizem lá.

De vários clubes, havia sido expulso ou se havia demitido voluntariamente, porque os companheiros suspeitavam-no ser peitado pelos adversários, para facilitar estes fazer pontos. Ultimamente, era agente de jogo de bicho, e sua mulher viera gozar de mais algum conforto.

Pobre Ernestina! Era tão alegre, tão tagarela, era moça, e bonitinha, na sua fisionomia miúda e na sua tez pardo-clara, um tanto baça, é verdade, mas não a ponto de enfeá-la, quando conheceu Ataliba; e hoje? Estava escanzelada, cheia de filhos, a trair sofrimentos de toda a espécie, sempre mal calçada, quando, nos tempos de solteira, o seu luxo eram os sapatos! Quem te viu e quem te vê!

Zezé Mateus era um verdadeiro imbecil. Não ligava duas idéias; não guardava coisa alguma dos acontecimentos que assistia. A sua única mania era beber e dizer-se valente. Topava todos os ofícios; capinava, vendia peixe e verdura, com cesto à cabeça; era servente de pedreiro, apanhava e vendia passarinhos, como criança; e tinha outras habilidades desse jaez.

Era branco, com uma fisionomia empastada, cheia de rugas precoces, sem dentes, todo ele mole, bambo. A sua testa era deprimida, e era longo e estreito o seu crânio, do feitio daqueles a que o povo chama «cabeça de mamão-macho».

Totalmente inofensivo, quase inválido pela sua imbecilidade nativa e pela bebida, uma família a quem ele prestava pequenos serviços -ir às compras, ao açougue, lavar a casa- dava-lhe um barracão na chácara, onde dormia, e comida, se estivesse presente às refeições. Encontrava-se nessa ruína humana o melhor da turma e o único que não tinha maldade no coração. Era um ex-homem e mais nada.

O Franco Sousa, este, era um malandro mais apurado, que, uma vez ou outra, aderia ao grupo de Cassi. Intitulava-se advogado e vivia de embrulhar os crédulos clientes que lhe caíam nas mãos. Todos sabiam que ele não tratava de coisa alguma, pois não podia absolutamente tratar, já por não saber coisa alguma das tricas forenses, já por não ser, de verdade, advogado. Assim mesmo, sempre apareciam ingênuos roceiros, simplórias viúvas, que, no pressuposto de que os seus serviços, na justiça, sobre a demarcação de terras litigiosas ou despejos de inquilinos relapsos, fossem mais baratos, procuravam-no. Ele recebia os adiantamentos e, em seguida, mais algum dinheiro, conforme a ingenuidade e a falta de experiência do cliente, e não fazia nada. Entretanto, vivia muito decentemente com a mulher, filhos e filhas. Cassi não lhe pisava em casa, e, aos poucos, foi se afastando do violeiro, a conselho da mulher, que zelava extremamente pela reputação das filhas, que se faziam moças.

O último dos asseclas do modinheiro era um tal Arnaldo, Arnaldo tout court. Nele, talvez houvesse tipo mais nojento do que mesmo em Cassi. A sua profissão consistia em furtar, no trem, chapéus-de-sol, bengalas, embrulhos dos passageiros que estivessem a dormitar ou distraídos. De tarde, ele fazia a especialidade dos embrulhos; e, à noite, às vezes, a altas horas, postava-se na beira da plataforma de estação pouco freqüentada e, quando o trem tomava movimento e impulso, arrebatava rapidamente os chapéus dos passageiros, através da portinhola, principalmente se de palha e novos. Vendia-os, no dia seguinte, como vendia os chapéus-de-sol, as bengalas e o conteúdo dos embrulhos, se fosse de coisa vendável; roupas de lã ou branca, livros, louça, talheres, etc.

Se fossem, porém, doces, frutas, queijos, biscoitos, grãos, ele levava para a casa e contava à mulher que só arranjara dinheiro para comprar aquelas guloseimas para as crianças. Usava dos mais imprevistos estratagemas, para não pagar a casa de sua moradia. Numa, tendo ficado a dever oito meses, apresentando-se-lhe o cobrador com os recibos, pediu-os para examiná-los e ficou com eles, alegando que ia consultar pessoa competente em matéria de selo, porquanto as estampilhas não lhe pareciam legais. Nunca mais os devolveu; e, apesar de todas as ameaças, ainda ficou morando na casa quatro meses. Os seus vizinhos contavam que ele tinha também o hábito de arrebatar as notas do Tesouro das mãos das crianças, quando as encontrava sós também a caminho das vendas, onde iam fazer compras para as casas paternas, levando-as à mostra, na imprevidência natural de crianças.

Inútil é repetir que Cassi não tinha nenhuma espécie de amizade por esses rapazes, não pela baixeza de caráter e de moral deles, no que ele sobrelevava a todos; mas pela razão muito simples de que a sua natureza moral e sentimental era sáfara e estéril. A seus pais e às suas irmãs, não o prendia nenhuma dose de afeição, por mais pequena que fosse. Mesmo com sua mãe, que o tinha retirado muitas vezes dos xadrezes policiais, em vésperas de seguir para a detenção, ele só tinha manifestações de ternura, quando estava às voltas com a polícia ou com os juízes. O seu fundo e os seus princípios explicavam de algum modo essa sua aridez moral e sentimental.

A sua educação e instrução foram deveras descuradas. Primeiro nascido do casal, quando as exigências da manutenção da família obrigavam seu pai a trabalhar dia e noite, não pôde este, pois poucas horas passava em casa, vigiá-las convenientemente. Rebelde, desde tenra idade, a doçura para com ele, por parte de sua mãe, e os prejuízos dela impediram-na que o corrigisse convenientemente, assiduamente, no tempo próprio. Não ia ao colégio; fazia «gazeta», correndo pelas matas das cercanias da residência dos pais, então em Itapiru, com outros garotos. O que faziam, pode-se bem adivinhar; mas a mãe fingia não perceber, passava a mão pela cabeça do filho querido, nada dizia ao pai, que quase mourejava durante as vinte e quatro horas do dia. Cresceu assim, sem nenhuma força moral que o comprimisse; e o pai seria a única.

Ao melhorarem as suas condições financeiras, com uma promoção a propósito e a compra daquela casa, na estação do Rocha, com o produto de uma herança que tocara à mulher, Manuel de Azevedo veio encontrar, aos treze anos, o filho completamente viciado, fumando às escâncaras, mal lendo, aos gaguejos, e escrevendo ainda muito pior. Pô-lo nos «Salesianos» de Niterói. As informações semanais eram péssimas; e, ao fim de três ou quatro meses de colégio, não sabemos que torpeza cometeu no colégio que, uma bela tarde, acompanhado de um padre magro, com uma cortante figura angulosa de asceta, veio a ser entregue Cassi ao pai, em casa. Falou-lhe o reverendo em particular, e Manuel de Azevedo, quase chorando, despediu-se do reverendo, que insistia nas desculpas, e respondendo deste único feitio ao eclesiástico:

-Os senhores têm razão, muita razão. Eu é que me sinto infeliz por ter um filho bastante mau e vicioso com tão pouca idade. Que castigo, meu Deus!

A mulher quis saber o motivo da expulsão, mas a dignidade e a vergonha de pai fizeram que nem mesmo à sua mulher ele o dissesse.

Propôs, dias depois, à sua esposa, que pusesse o rapazola a aprender um ofício, a fim de discipliná-lo. Dona Salustiana revoltou-se e esbravejou:

-Meu filho aprender um ofício, ser operário! Qual! Ele é sobrinho de um doutor e neto de um homem que prestou muitos serviços ao país.

Sempre lembrado dos seus duros começos em que ela muito o ajudara e o animara, Manuel tinha, pela mulher, uma grande e sincera afeição, evitando o quanto possível contrariá-la, e, por isso, não teimou dessa feita. Meses depois, porém, logo que chegou em casa, a mulher e as filhas, chorando, pedem que vá soltar Cassi, que estava preso em uma delegacia. O menino já roçava pelos dezesseis anos e mostrava-se assim precoce na carreira de falcatruas. Havia sido preso, pelo respectivo vigia, no interior de uma casa vazia, quando procurava arrancar encanamentos de chumbo para vender.

O pai, então, voltou à idéia de pô-lo em uma oficina, a ver se o trabalho manual, já pelo cansaço, já pela convivência com pessoas honestas e de trabalho, desviava-o do mau caminho que ele estava iniciando. A mãe acedeu com grande repugnância, e ele foi ser aprendiz de tipógrafo.

No fim de um mês, porém, era despedido, porque, tendo ido receber uma conta de cartões de visitas, uns cinco mil-réis ou pouco mais do que isso, voltara sem dinheiro, dizendo que o tinha perdido. Revistado convenientemente, foi-lhe o dinheiro encontrado quase intacto entre a botina e a meia.

A fascinação pelo dinheiro e sua absorção nele eram o seu fraco. Queria-o; mas sem trabalho e para ele só. As menores dívidas que fazia, não pagava; não oferecia nada a ninguém. Houve quem o conhecendo e sabendo dessa sua sovinice doentia explicasse os seus desvirginamentos seguidos e as suas constantes seduções a raparigas casadas, como sendo a resultante da aridez de dinheiro, que o encaminhava a amores gratuitos; e de uma atividade sexual levada ao extremo, que a sua estupidez explicava.

Seja devido a esta ou aquela causa, a este ou aquele motivo, o certo é que nele não havia nevrose ou qualquer psicopatia que fosse. Não cedia a impulsos de doença; fazia tudo muito calculadamente e com todo o vagar. Muito estúpido para tudo o mais, entretanto, ele traçava os planos de sedução e desonra com a habilidade consumada dos scrocs de outras naturezas. Tudo ele delineava lucidamente e previamente removia os obstáculos que antevia.

Escolhia bem a vítima, simulava amor, escrevia detestavelmente cartas langorosas, fingia sofrer, empregava, enfim, todo o arsenal do amor antigo, que impressiona tanto a fraqueza de coração das pobres moças daquelas paragens, nas quais a pobreza, a estreiteza de inteligência e a reduzida instrução concentram a esperança de felicidade num Amor, num grande e eterno Amor, na Paixão correspondida.

Sem ser psicólogo nem coisa parecida, inconscientemente, Cassi Jones sabia aproveitar o terreno propício desse mórbido estado d'alma de suas vítimas, para consumar os seus horripilantes e covardes crimes; e, quase sempre, o violão e a modinha eram seus cúmplices...

- III -

Marramaque, apesar de sua instrução defeituosa, senão rudimentar, tinha vivido em roda de pessoas de instrução desenvolvida e educação, e convivido em todas as camadas. Era de uma cidadezinha do Estado do Rio, nas proximidades da Corte, como se dizia então. Feito os seus estudos primários, os pais empregaram-no num armazém da cidade. Estávamos em plena escravatura, se bem que nos fins, mas a antiga Província do Rio de Janeiro era próspera e rica, com as suas rumorosas fazendas de café, que a escravaria negra povoava e penava sob os açoites e no suplício do tronco.

O armazém em que Marramaque era empregado havia de tudo: ferragens, roupas feitas, isto é, camisas, calças, ceroulas grosseiras, para trabalhadores; armas, louças, etc., etc. Comprava diretamente nos atacadistas da Corte; além disso, o seu proprietário era intermediário entre os pequenos lavradores e as grandes casas da Capital do Império, isto é, comprava as mercadorias àqueles, por conta destas, com o que ganhava comissão.

Marramaque era contemplativo e melancólico, e vivia, debruçado ao balcão do armazém, ouvindo os tropeiros e peões contar histórias de todo o gênero: façanhas de valentia, maus encontros pelos caminhos desertos, proezas de desafio à viola e de amor roceiro.

No gênio, não saía ao pai, que era um minhoto ativo, trabalhador, reservado e econômico. Em poucos anos de Brasil, conseguiu ajuntar dinheiro, comprar um sítio em que cultivava os chamados «gêneros de pequena lavoura», aipim, batata-doce, abóboras, tomates, quiabos, laranja, caju e melancia, dando-lhe esta última cultura, pelos fins do ano e começo do seguinte, lucros razoáveis. Com o correr do tempo, comprara um bote; e, duas vezes por semana, acompanhado de um companheiro a quem pagava, trazia ele mesmo os produtos de sua lavoura, navegando por um pequeno rio, mais ou menos canalizado, atravessando a Guanabara até o Mercado. Vinha com o «terral» e voltava com a «viração».

O filho não seria capaz dessas proezas; mas, como sua mãe, que, embora quase branca, tinha ainda evidentes traços de índio, seria capaz de cantar o dia inteiro modinhas lânguidas e melancólicas.

Havia, quando rapazola, muitas névoas na sua alma, um diluído desejo de vazar suas mágoas e os sonhos, no papel, em verso ou fosse como fosse; e um forte sentimento de justiça. O espectro da escravidão, com todo o seu cortejo de infâmias, causava-lhe secretas revoltas.

Certo dia, um viajante, que pousara no armazém, deixara, por esquecimento, na mesa do quarto em que fora hospedado, um volume das Primaveras, de Casimiro de Abreu.

Ele nunca havia lido versos seguidamente. Nos jornais que lhe caíam à mão, mesmo nos retalhos deles e em páginas soltas de revistas que vinham parar ao armazém para embrulho, é que lera alguns. Dessa forma, encontrando, no seu natural melancólico, cheio de uma doce tristeza e de um obscuro sentimento da mesquinhez do seu destino, terreno propício, o livro de Casimiro de Abreu caiu-lhe n'alma como uma revelação de novas terras e novos céus. Chorou e sonhou com os doridos queixumes do sabiá de São João da Barra e não deixou de notar que, entre ele e o poeta das Primaveras, havia a semelhança de começarem ambos sendo caixeiros de uma casa de negócio da roça. Cristalizada a emoção profunda que lhe causara a leitura dos versos do gaturamo fluminense, Marramaque resolveu agir, isto é, instruir-se, educar-se e... fazer versos também. Para isso, precisava sair dali, ir para a Corte.

De quando em quando, pousavam no armazém, onde dormia também, caixeiros-viajantes de grandes casas da Corte que tinham negócios com o Senhor Vicente Aires, patrão de Marramaque. O seu natural bom, prestativo, a sua irradiação simpática, provinda dos seus sonhos vagos e amontoados, faziam-no estimado deles todos. Havia um, entretanto, que ele estimava mais. Era um rapaz português, o Senhor Mendonça, Henrique de Mendonça Souto. Em tudo, ele era o contrário do pobre Marramaque. Era alegre, folgazão, palrador, bebia o seu bocado; mas sempre honesto, leal e franco.

Certa noite, estando ele hospedado nos fundos do armazém do Senhor Vicente Aires, de volta de uma partida de «manilha», na casa do sacristão da Matriz, o alegre «cometa» veio a encontrar o caixeiro Marramaque lendo o volume de Casimiro de Abreu. Era alta noite, passava da meia: e, como o caixeiro tinha que se erguer às cinco da manhã, para abrir o armazém e atender a tropeiros e viajantes em preparativos de partida, tal fato causou pasmo a «Seu» Mendonça:

-Ainda lês, menino! E não te lembras que, daqui a pouco, deves estar de pé, filho de Deus!

-Esperava o senhor.

-E mais esta! Então tu pensas que eu mesmo não sabia despir-me e meter-me à cama? Que lês?

-Primaveras, de Casimiro de Abreu.

O caixeiro-viajante acabou de vestir-se e deitou-se. Depois de cobrir-se, perguntou a Marramaque:

-Tu gostas de versos, rapaz?

Hesitou em responder, mas Mendonça fez rispidamente:

-Dize lá, rapaz; porque nisto não vai crime algum. Está a ver-se, rapaz! Dize!

-Gosto, sim senhor -fez o caixeiro timidamente.

-Pois deves ir para o Rio -acudiu Mendonça com pressa-, estudar e... quem sabe lá?

-Se eu arranjasse um emprego na Corte...

Mendonça pensou um pouco e disse:

-Na casa, não te serve. Há muito serviço e tu não te acostumas... És aprendiz de poeta, tens inclinação para essas coisas de versos e te aborrecias. O que te serve, era trabalhar numa farmácia. Fala a teu pai que eu te arranjo a coisa. Escrevo-te logo que chegar ao Rio.

Mendonça cumpriu a palavra, e o pai consentiu que ele viesse para o Rio. Marramaque foi trabalhar numa farmácia; e, à noite, ia completando a sua instrução, conforme podia, nas instituições filantrópicas de instrução que existiam no tempo.

Logo, tratou de fazer versos; e, certa vez, foi surpreendido por um dos habitués da farmácia, compondo uma poesia. As farmácias, naquele tempo, eram o lugar de encontro de pessoas graves e sisudas da vizinhança, que, à tarde, após o jantar, iam a elas espairecer e conversar. Quem surpreendeu o jovem Marramaque, fazendo versos, foi o Senhor José Brito Condeixa, segundo oficial da Secretaria de Estrangeiros, poeta também, mas, de uns tempos para cá, somente festivo e comemorativo. Além de publicar, nos dias de gala, sonetos e outras espécies de poesias alusivas à festa, não se esquecia nunca de comemorar as datas domésticas da família imperial, em versos de um lavor chinês. Esperava o hábito da Rosa; mas, só veio a ter no fim do Império, quando retirou da Imprensa Nacional o terceiro volume da Sinópsis da Legislação Nacional, na parte que se refere ao Ministério de Estrangeiros.

Lendo os versos do adolescente, Brito Condeixa gostou e jurou que havia de proteger o caixeirozinho. Falou ao patrão, e ele foi se empregar numa papelaria-livraria, na Rua da Quitanda. Freqüentada por poetas e literatos que ensaiavam os primeiros passos, nos últimos quinze anos do Império, com eles se relacionou e sempre era escolhido para secretário, gerente, tesoureiro, de suas efêmeras publicações. Deixou o emprego da papelaria, sem zanga; e atirou-se às refregas e às decepções da pequena imprensa, com ardor e entusiasmo, sangue republicano e abolicionista, sobretudo abolicionista.

Esse jornalismo contrário e efêmero pouco ou quase nada lhe dava para a sua manutenção. Vivia uma vida de privações e necessidades prementes. Sem deixar os companheiros poetas, escritores, parodistas, artistas, ele se improvisou guarda-livros ambulante, fazendo escritas aqui e ali, com o que ganhava para ter casa, comida, roupa e até, às vezes, socorrer os camaradas. Manteve-se sempre absolutamente solteiro.

Guardava, da sua vida de acólito da boêmia literária, recordações muito vivas, que gostava de contar, ensopando-as de comovida saudade. Anedotas deste, casos com aquele, expedientes daquele outro, ele narrava com chiste e firmeza de lembrança; mas, ao que parece, a figura de seu tempo que mais o impressionou foi a de um pequeno poeta, que nunca teve seu quarto de hora de celebridade e hoje está totalmente esquecido. A respeito dele, Marramaque se referia com o sentimento profundo de quem se lembra de um irmão muito amado:

-Ah! O Aquiles! Que alma! Que poeta! O senhor -dirigindo ao interlocutor ocasional- não o conheceu?

-Não; não me recordo.

-Nem de nome? Ele deixou obras.

O outro com quem conversava, por delicadeza, respondia:

-De nome, pois não, pois não!

-Que alma era esse Aquiles Varejão! Morreu há pouco tempo, em 94 ou 95; e, se não me falha a memória, na Santa Casa. Morreu na maior miséria; entretanto, tudo o que ganhava -ele era tipógrafo- estava sempre disposto a distribuir com os amigos. Não pude ir vê-lo... Tinha tido o primeiro ataque e estava em tratamento. Lembro-me, porém, do seu último soneto que a Gazeta publicou. Que lindeza! Aquilo era um poeta que não forçava, nem tinha compasso e régua. Ouça só!

E, com uma voz difícil, devido à semiparalisia da parte esquerda da boca, esbugalhando os olhos, devido ao esforço para pronunciar bem as palavras, recitava:

Prostrado nesta enxerga, sinto a vida

Ir, pouco e pouco, procurando o nada;

Pra mim não há mais sol de madrugada,

Mas sim tremor da luz amortecida.

Prazeres onde estais? Longa avenida

De amores, que trilhei nesta jornada?

Tudo acabou. É justa esta pousada,

Antes que dobre o sino da partida.

Feliz quem tem família! Tem carinho

De mãe, de esposa, e, em derredor do leito,

Não sofre o horror de achar-se tão sozinho.

Porém ao meu destino estou sujeito;

Devo, batendo as asas, sem ter ninho,

Buscar, quem sabe? um mundo mais perfeito?



O Marramaque, quase sempre, acabava de recitar os versos do amigo com os olhos úmidos; e o ouvinte, não só pela dor demonstrada pelo declamador, mas também pelo tom elegíaco do soneto, comovia-se também e, antes de qualquer pergunta, comentava:

-É bonito! É mesmo lindo.

Marramaque, poeta raté, tinha uma grande virtude, como tal: não denegrir os companheiros que subiram nem os que ganharam celebridade. A todos gabava, sem que, por isso, não lhes notasse as falhas de caráter.

Tendo vivido assim, em vários e diferentes meios, ganhando experiência e conhecimento dos homens e das coisas da vida, estava apto para julgar bem quem era Cassi Jones. Demais, devido à sua convivência com literatos, poetas e escritores, adquirira o hábito tirânico de ler diariamente todos os jornais que apanhava na repartição, e não fazia lá outra coisa, devido a seu estado de saúde.

De quando em quando, ele encontrava notícias mais que escabrosas, às vezes sangrentas mesmo, em que estava envolvido o nome do famigerado violeiro. De umas delas, ele se lembrava perfeitamente, porque lhe havia causado, na sua alma retardada de idealista e sonhador, de poeta que quis ser amoroso e cavalheiresco, a maior revolta e um movimento de nojo irreprimível. Joaquim dos Anjos não estava a par dela, pois não tinha hábito de ler jornais e pouco tagarelava com as pessoas de suas bandas suburbanas. Marramaque apoiou-se em contador e por alto.

Num dos subúrbios, na proximidade da casa de Cassi, veio a residir um casal. A mulher era moça, fruída de carnes, alta, louçã, grandes olhos negros, um tipo do Sul, ao que parece do Rio Grande. O marido, que era oficial de Marinha, maquinista, era amorenado, tirando a mulato, baixo, sempre triste, curvado e pensativo. Apesar da diferença de gênios, que se percebia, e de idade, que estava à mostra, pareciam viver bem. Quase sempre saíam à tarde, iam a festas, a teatros; aos domingos, procuravam visitar os arrabaldes pitorescos e voltavam à noite. Tomavam comida fora e só tinham uma rapariguita preta, de uns dezesseis anos, para os serviços leves da casa. Não se sabe como, Cassi conseguiu conhecer a gaúcha e seduzi-la. Mal o marido saía, ele se metia em casa da moça com violão e tudo. A vizinhança murmurava contra aquela pouca-vergonha. Fosse de que fonte fosse, o marido veio a saber e um dia, de revólver em punho, furioso, fora de si, louco, totalmente louco, penetrava na casa e alvejou a mulher com dois tiros de revólver, de cujos ferimentos veio a morrer horas depois. Após ter alvejado mortalmente a mulher, correu em perseguição de Cassi, que, descalço, de calças e em mangas de camisa, saltava cercas e muros, para se pôr fora do alcance do marido indignado.

Entregando-se à prisão, o oficial maquinista contou toda a sua desdita e o causador dela. O delegado mandou procurar Cassi e conseguiu pilhá-lo à noite. Os agentes deram uma batida nos matos, e o galã fugitivo foi preso e recolhido à enxovia.

Por ocasião dessa prisão foi que ele veio a conhecer Lafões. Tinha este sido detido e recolhido ao xadrez, por ter feito um distúrbio, num botequim, onde tomara uma carraspana, em comemoração ao ter acertado uma centena no bicho.

Quando Cassi foi recolhido, já Lafões estava no xadrez, havia quatro horas.

Cassi, que fugira do revólver do oficial, sem paletó e sem colete, em cujas algibeiras estava o seu dinheiro, não pudera comprar cigarros; mas Lafões os tinha. O profissional da sedução pediu-lhe um, que lhe foi dado. Disse, então, para Lafões:

-Vou te soltar, meu velho. Tu és uma bela alma.

-Por que vosmecê está preso, meu caro senhor?

Cassi respondeu com muita calma e indiferença, como se tratasse de um acontecimento vulgar:

-Por nada. Coisas de mulheres, meu velho. É o meu fraco.

Pela grade do xadrez, dirigiu-se a um soldado, a quem conhecia, e falou-lhe baixo qualquer coisa. Em breve, foi a praça substituída por outra. Vendo isso Cassi, disse para o velho Lafões:

-Estás aqui, estás na rua. Mandei o soldado falar ao meu chefe político: e ele vai interessar-se para seres solto.

-E vosmecê?

-Não te importes comigo. Tenho que depor...

Na verdade, Lafões foi solto; não houve, porém, qualquer intervenção do chefe político de Cassi. Libertou-o o próprio comissário que o prendera e o conhecia como homem morigerado e qualificado.

Entretanto, o guarda das obras públicas sempre supôs que a sua libertação tivesse sido obra de Cassi, por isso lhe era grato e o defendia com todo o ardor.

Lafões era um homem simplório, que só tinha agudeza de sentidos para o dinheiro que vencia. Vivendo sempre em círculos limitados, habituado a ver o valor dos homens nas roupas e no parentesco, ele não podia conceber que torvo indivíduo era o tal Cassi; que alma suja e má era a dele, para se interessar generosamente por alguém.

Muito diferente do guarda era Marramaque, cujo âmbito de vida sempre fora mais amplo e mais variado. Abraçava um maior horizonte de existência humana...

Quando aquele lembrou que se convidasse o celebrizado violeiro, o contínuo viu logo os perigos que a presença do profissional da desonra das famílias podia trazer à paz e ao sossego que reinavam na casa de Joaquim dos Anjos.

Além de compadre, Marramaque era profundamente amigo do carteiro, que o auxiliava nos seus transes de toda a ordem: um pouco, originados pelos hábitos boêmios que, de todo, não perdera; um pouco, pela exigüidade de seus vencimentos, com os quais sustentava uma irmã viúva e dois filhos dela, ainda menores, com os quais morava, nas proximidades de Joaquim.

Na sua vida, tão agitada e tão variada, ele sempre observou a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do nascimento e da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que se têm as suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas; e tudo e todos pareciam condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social.

Se assim acontecia com as honestas, como não pensaria sobre o mesmo tema um malandro, um valdevinos, um inconsciente, um vagabundo cínico, como ele sabia ser o tal Cassi?

Durante o jantar, ainda se falou muito a respeito, mas com as reservas que a assistência de uma moça pedia fossem tomadas.

-Vamos experimentar, meu caro Marramaque. «Ele» sabe com quem se mete...

-Eu cá, por mim, nada tenho a dizer dele. Sempre me tratou muito bem e sou-lhe grato.

-É que você, Lafões, não lê os jornais.

-Qual jornais! Qual nada! Tudo que lá vem neles é mentira.

Clara ouvia esse diálogo com muita atenção e forte curiosidade. Num dado momento, não se conteve e perguntou:

-O que é que esse Cassi faz, padrinho?

A mãe acudiu ríspida, dizendo:

-Não é de tua conta, bisbilhoteira!

A única filha do carteiro, Clara, fora criada com o recato e os mimos que, na sua condição, talvez lhe fossem prejudiciais. Puxava a ambos os pais. O carteiro era pardo-claro, mas com cabelo ruim, como se diz; a mulher, porém, apesar de mais escura, tinha o cabelo liso.

Na tez, a filha tirava ao pai; e no cabelo, à mãe.

Joaquim era alto, bem alto, acima da média, ombros quadrados e rija musculatura; a mãe, não sendo muito baixa, escapava à média da altura de nossas mulheres em geral. Tinha ela uma fisionomia medida, de traços breves, mas regular; o que não acontecia com o marido, que era possuidor de um grosso nariz, quase chato, e malares salientes. A filha, a Clara, havia ficado em tudo entre os dois; média deles, dos seus pais, era bem exatamente a filha de ambos.

Habituada às musicatas do pai e dos amigos, crescera cheia de vapores de modinhas e enfumaçara a sua pequena alma de rapariga pobre e de cor com os dengues e o simplório sentimentalismo amoroso dos descantes e cantarolas populares.

Raramente saía, a não ser para ir bem perto, à casa de Dona Margarida, aprender a bordar e a costurar, ou com esta ir ao cinema e a compras de fazendas e calçado. A casa dessa senhora ficava a quatro passos de distância da do carteiro. Apesar de ser uso, nos subúrbios, irem as senhoras e moças às vendas fazer compras, Dona Engrácia, sua mãe, nunca consentiu que ela o fizesse, embora de sua casa se avistasse tudo o que se passava, no armazém do «Seu» Nascimento, fornecedor da família.

Essa clausura mais alanceava sua alma para sonhos vagos, cuja expansão ela encontrava nas modinhas e em certas poesias populares.

Com esse estado de espírito, o seu anseio era que o pai consentisse na visita do famoso violeiro, cuja má fama ela não conhecia nem suspeitava, devido ao cerco desvelado que a mãe lhe punha à vida; entretanto, supunha que ele tirava do violão sons mágicos e cantava coisas celestiais.

Joaquim dos Anjos, afinal, tendo o assentimento da mulher e também curioso de conhecer as habilidades de Cassi, no violão e na trova popular, consentiu que Lafões o trouxesse em sua casa, no dia do aniversário de Clara. Viria aquela vez e não viria mais...

Lafões acolheu a resposta com viva alegria e tratou de entender-se com o tocador mal-afamado. Fez. Quando os seus companheiros de vagabundagem souberam, comentaram cinicamente o convite:

-Conheço bem esse carteiro. Ele não trabalha aqui; mas na cidade, na zona dos bancos. Deve ter dinheiro. Tem um pancadão de filha, meu Deus! Que torrão de açúcar!

-Então estás feito, hein, Cassi? -fez alvarmente Zezé Mateus, àquela tendenciosa observação de Ataliba do Timbó.

Cassi, o mestre suburbano do violão, o dedo da modinha, fingiu-se aborrecido e retrucou com fingido desgosto:

-Vocês mesmo é que me desacreditam. Dizem coisas que não fiz e não faço, e todo mundo me enche de desprezo, senão de ódio. Não sou essas coisas que dizem de mim.

Timbó teve vontade de rir à vontade, mas, embora mais forte do que Cassi, tinha este sobre ele um ascendente moral que não se explicava. Zezé Mateus, porém, com o seu peculiar meio-riso de imbecil, fez:

-Estou brincando, meu «nego». Sou teu amigo, tu sabes.

Eles conversavam sempre de pé, parados pelas esquinas. Raramente, sentavam-se a uma mesa de café. Aquela intempestiva observação do Ataliba, seguida do comentário de Zezé Mateus, arrefecera a palestra da sociedade. Despediram-se, e cada um foi para o seu lado.

Cassi, que fingira aborrecer-se com a tendenciosa notícia de Timbó e o comentário de Zezé, ficou, ao contrário, muito contente com ela. Tinha resolvido não ir à tal festa; mas, pelo que informara Ataliba, talvez não tivesse nada a perder. Experimentaria.

Mordeu os lábios e seguiu para o clube, com a consciência leve e o coração alegre...

- IV -

Veio o dia da festa; a pequena casa regurgitava; e -coisa curiosa- havia mais convidados de idade meã que moças e rapazes. Isto se explicava pela estreiteza de relações de Clara e dos seus pais, devido à vida que levavam. Entre as moças, havia duas ou três colegas de Clara, a filha de Lafões, uma sobrinha solteirona, Hermengarda, de Dona Engrácia, e poucas mais. Entre os rapazes, havia dois jovens colegas de Joaquim, Sabino e Honório; um irmão de Hermengarda e um afilhado de Lafões, que era vigia do cais do porto. Em compensação, as senhoras, mães de família, eram inúmeras. Destacava-se muito Dona Margarida Weber Pestana, pelo seu ar varonil, tendo sempre ao lado o filho único, de quatorze anos, fardado com uma fardeta de colegial. Tinha, essa senhora, um temperamento de heroína doméstica. Viera muito cedo para o Brasil, com o pai, que era alemão; ela, porém, havia nascido em Riga, russa portanto, como sua mãe o era. Antes dos dezesseis anos, ficara órfã de mãe. Seu pai emigrara para o Brasil, contratado a trabalhar no acabamento das obras da Candelária. Era estucador, marmorista, um pouco escultor; enfim, um operário fino, para essas obras especiais de revestimento e decoração interna de edifícios suntuosos.

Bem cedo, mostrou ela inclinação por um tipógrafo que comia na «pensão» que havia montado, na Rua da Alfândega, e dirigia ativamente. Casaram-se, e ele morreu dois anos depois, após o casamento, de tuberculose pulmonar, deixando-lhe o filho, o Ezequiel, que não a largava. Ano e meio depois, morreu-lhe o pai, de febre amarela. Continuou com a «pensão»; mas bem cedo vendeu-a e comprou uma casita nos subúrbios, aquela em que morava, quase junto de Joaquim. Costurava para fora, bordava, criava galinhas, patos e perus, e mantinha-se serenamente honesta. O Senhor Ataliba do Timbó deu em certa ocasião em persegui-la com ditinhos de amor chulo. Certo dia, ela não teve dúvidas: meteu-lhe o guarda-chuva com vigor. À noite, no intuito de defender as suas galinhas da sanha dos ladrões, de quando em quando, abria um postigo, que abrira na janela da cozinha, e fazia fogo de revólver. Era respeitada pela sua coragem, pela sua bondade e pelo rigor de sua viuvez. O Ezequiel, seu filho, puxara muito ao pai, Florêncio Pestana, que era mulato, mas tinha os olhos glaucos, translúcidos, de sua mãe meio eslava, meio alemã, olhos tão estranhos -olhos tão estranhos a nós e, sobretudo, ao sangue dominante no pequeno.

Afora Dona Margarida Pestana, notava-se Dona Laurentina Jácome, uma velha, sempre metida com rezas e padres, pensionista do ex-Imperador e empregada numa capelinha da vizinhança, de cuja limpeza era encarregada, inclusive da lavagem das toalhas dos altares. Não podia conversar outra coisa que não fossem acontecimentos eclesiásticos e, quase sempre, os de sua igreja:

-A senhora não sabe, Dona Engrácia, de uma coisa?

-O que é?

-O Padre Santos, este mês, disse mais de vinte missas e só recebeu cinco. Pobre Padre Santos! É mesmo um santo!

E contraía a fisionomia enrugada e, erguendo-a um pouco, apertava as mãos ao jeito de quem reza.

Além desta, havia uma digna de nota: era Dona Vicência. Morava na vizinhança também e vivia de deitar cartas e cortar «coisas-feitas». O seu procedimento era inatacável e exercia a sua profissão de cartomante com toda a seriedade e convicção.

Havia outras sem nada de notável, como entre os cavalheiros só havia um que se destacava. Convém não esquecer que Lafões e Marramaque lá estavam a postos. O cavalheiro digno de nota era um preto baixo, um tanto corcunda, com o ombro direito levantado, uma enorme cabeça, uma testa proeminente e abaulada, a face estreitante até acabar num queixo formando, queixo e face, um V monstruoso, na parte anterior da cabeça; e, na posterior, no occipital desmedido, acaba o seu perfil monstruoso. Chamava-se Praxedes Maria dos Santos; mas gostava de ser tratado por doutor Praxedes.

A monstruosidade de sua cabeça o pusera a perder. Por tê-la assim, julgou-se uma inteligência, um grande advogado, e pôs a freqüentar cartórios, servindo de testemunha, quando era preciso, indo comprar estampilhas, etc., etc.

Com o tempo, tomou algumas luzes e atirou-se a tratar de papéis de casamento e organizou uma biblioteca particular de manuais jurídicos, de índices de legislação, etc., etc. Vestia-se sempre de fraque, botinas de verniz ou gaspeadas, e não dispensava a pasta indicadora de homens de leis. Quando foi moda ser de rolo, ele a usou assim; quando veio a moda de ser em saco, como a trazem agora os advogados, ele comprou uma luxuosa de marroquim com fechos de prata.

Não falava senão em leis e decretos: «porque -dizia ele- a Lei 1857, de 14 de outubro de 1879, diz que a mulher casada, no regime do casamento, não pode dispor dos seus bens, ter dinheiro em bancos, na Caixa Econômica; entretanto, o Decreto 4572, de 24 de julho de 1899, determina...».

Afora o seu amor a esse embrulho legislativo, gostava de versos; mas não de modinha.

Era este o cavalheiro mais notável que havia vindo ao baile de anos de Clara. É que até àquele momento, com grande desgosto para as moças, o trovador Cassi não havia ainda aparecido.

Clara não ocultava o seu desapontamento; e uma de suas colegas lhe dizia em confidência:

-Clara, toma cuidado. Este homem não presta.

A moça não respondia, encaminhava-se para a sala de jantar, a fim de disfarçar a emoção, simulando ir beber água.

Clara estava bem vestidinha. Era inteiramente de crepom o seu vestido, com guarnição de renda de indústria caseira, mas bonita e bem trabalhada; o pescoço saía-lhe nu e a gola do casaco terminava numa pala debruada de rendas. Calçava sapatos de verniz e meias. Nas orelhas tinha grandes africanas e penteara-se de bandós, rematando o penteado para trás, na altura do pescoço, um coque, fixado por um grande pente de tartaruga ou coisa parecida.

Quando ela foi beber água, seguiu-lhe a sua amiga Etelvina, uma crioulinha espevitada, sua antiga colega do colégio. Vestia-se esta com um mau gosto de aborrecer. Todo o vestido era azul-celeste, com rendas pretas; os sapatos amarelos e as meias cor de abóbora. Ao redor da cabeça, dividindo a testa ao meio, uma fita vermelha, de um vermelho muito berrante. Os gregos chamavam este adorno feminino de stephané; e, ao que parece, as portadoras não eram lá tidas como virtuosas.

Essa Etelvina era a primeira dançarina do baile, não tinha até ali perdido uma contradança.

A orquestra era composta de flauta, cavaquinho e violão -um «terno», como denominam os seresteiros.

O baile ia adiantado, quando a filha de Lafões veio correndo do portão do mimoseado jardim que enfrentava a casa, anunciando alegre:

-Ê vem aí, «Seu» Cassi.

Entrou. Houve um estremecimento que percorreu os convivas, como um choque elétrico. Todas as moças, das mais diferentes cores, que, ali, a pobreza e a humildade de condição esbatiam e harmonizavam, logo o admiraram na sua insignificância geral, tão poderosa é a fascinação da perversidade nas cabeças femininas. Nem César Bórgia, entrando mascarado, num baile à fantasia, dado por seu pai, Alexandre VI, no Vaticano, causaria tanta emoção. Se não disseram: «É César! É César!», codilharam: «É ele! É ele!».

Os rapazes, porém, não ficaram contentes, pressentindo essa satisfação das damas; e, entre eles, puseram-se a contar a biografia escabrosa do modinheiro.

Apresentado, por Lafões, aos donos da casa, e à filha, ninguém lhe notou o olhar guloso de grosseiro sibarita sexual que deitou para os seios empinados de Clara.

O baile continuou animado; Cassi, porém, não dançava e foi reforçar o terno de cavaquinho, flauta e violão, com o seu instrumento.

Dona Margarida, com o seu porte severo, olhava as damas, sentada ao sofá austríaco, tendo ao lado o filho. A polca era a dança preferida, e todos quase a dançavam com requebros próprios de samba. Os convidados que não dançavam se haviam espalhado por várias partes da casa. Joaquim, Lafões e Marramaque ouviam o doutor Praxedes explicar o que era um habeas corpus preventivo.

-Exemplifico -dizia o doutor Praxedes, erguendo a mão direita catedraticamente, com o indicador apontado para o teto-. É uma medida perfeitamente jurídica de profilática, porque...

Nisto acode o «doutor» Meneses, um velho hidrópico, com a mania de saber todas as ciências, vivendo na maior miséria, apesar de exercer clandestinamente a profissão de dentista.

-Doutor Praxedes -acudia o doutor Meneses- não julgo a comparação própria. Cada ciência tem seu campo próprio...

A discussão tomava vulto e Joaquim se levantou. Sempre que ele fazia isto, Meneses seguia com os olhos o carteiro, a ver se ele ia até a cozinha mandar pôr a ceia. O sábio dentista viera à última hora, na esperança que a houvesse. Não lograra dinheiro para tomar um caldo. Joaquim, porém, aborrecido com a discussão, fora simplesmente até à sala de visitas convidar:

-Quem quiser tomar alguma coisa, comer biscoitos, é só vir cá dentro. Não façam cerimônia.

Toda a vez que o anfitrião dizia isso, Meneses comia duas empadas e quatro sandwiches e bebia uma boa «talagada» de parati.

O dono da casa convidava Cassi especialmente; mas este não bebia, não gostava. Não era esse o seu prazer...

De uma feita, indo à sala, Joaquim convidou-o:

-Por que não canta, «Seu» Cassi?

Até ali, não se falara nisso, e, repinicando as cordas do violão, não deixava o famoso mestre violeiro de devorar sorrateiramente com o olhar lascivo os bamboleios de quadris de Clara, quando dançava.

Ninguém se atrevia a convidá-lo; todos esperavam que o dono da casa o fizesse. Feito o convite, ele respondeu cheio de uma cerimônia afetada:

-Estou sem voz: esfalfei-me muito ontem, no baile do doutor Raposo e...

Vendo que seu pai o havia convidado, Clara animou-se:

-Por que não canta, «Seu» Cassi? Dizem que o senhor canta tão bem...

Esse «tão bem» foi alongado maciamente. Cassi concertou, com apurada pelintragem e com ambas as mãos, a pastinha oleosa; limpou, em seguida, os dedos no lenço e respondeu dengoso:

-Qual, minha senhora! São bondades dos camaradas...

Clara insistiu:

-Cante, «Seu» Cassi! Vá!

Ele, então, torcendo a cabeça para o lado esquerdo, cuja mão espalmada abria para o alto, e fingindo constrangimento, respondeu:

-Já que a senhora manda, vou cantar.

Marramaque, que tinha ouvido tudo, ficou espantado com o desembaraço da afilhada. «Diabo!», fez ele de si para si.

O violeiro, com todo o dengue, agarrou o violão, fez estalar as cordas e avisou:

-Vou cantar uma modinha velha, mas muito gentil e literária, «Na Roça».

Muitos circunstantes ficaram desapontados, porque já a conheciam; mas outros gostavam muito da modinha e aprovaram a escolha.

Cassi começou:

«Mostraram-me um dia

Na roça dançando

Mestiça formosa

De olhar azougado...».



Isto tudo era dito quase aos poucos, sem modulação alguma, enquanto o violão repinicava as mesmas notas, numa indigência musical, numa monotonia de sons, que dava sono. Quando chegava ao estribilho:

«Sorria a mulata

Por quem o feitor

Diziam que andava

Perdido de amor».



Por aí ele empregava o seu tic invencível de tocador de violão e cantor de modinha. Cantando, revirava os olhos e como que os deixava morrer. O Cardeal de Retz diz, nas suas famosas Memórias, que Mme. de Montayon, ou uma outra qualquer duquesa, ficava mais bela quando os seus olhos morriam. Cassi talvez ficasse mais, se ele tivesse alguma beleza; entretanto, esse seu tic impressionava as damas.

Clara, que sempre a modinha a transfigurava, levando-a a regiões de perpétua felicidade, de amor, de satisfação, de alegria, a ponto de quase ela suspender, quando as ouvia, a vida de relação, ficar num êxtase místico, absorvida totalmente nas palavras sonoras da trova, impressionou-se profundamente com aquele jogo de olhar, com que Cassi comentava os versos da modinha. Ele sofria, por força, senão não punha tanta expressão de mágoa, quando cantava, pensava ela.

Tão embevecida estava, tão longe pairava o seu pensamento que, quando Cassi acabou, se esqueceu de aplaudir o troveiro que, para o seu rudimentar gosto, lhe tinha proporcionado tão forte prazer artístico.

Comentava-se ainda a execução do maestro Cassi; e ele ao lado percebia os gabos e críticas. Por esse tempo, como uma aparição em alçapão de mágica, surgiu repentinamente, no centro da sala, o «doutor» Praxedes, célebre advogado nos auditórios suburbanos. Iniciou:

-Minhas senhoras e meus senhores. Peço-lhes a devida vênia, para recitar uma mimosa poesia de um nosso patrício. É uma obra-prima de chiquismo e de moralidade. O seu autor é o Major Urbano Duarte, que morreu, se não me falha a memória, general-de-brigada. Vou recitá-la, se me permitem. Chama-se «A Lágrima».

Dizendo isto, o seu todo grotesco ainda mais grotesco ficava, com a gesticulação desordenada dos braços, que rodavam, duros e hirtos, em torno dos ombros, de cima para baixo. Pareciam asas de um antigo moinho de vento. Começou gritando a primeira estrofe e já se babando pelos cantos dos seus lábios violáceos:

«Cismava à beira-mar, a linda Marieta,

Seguindo tristemente o sulco do vapor,

O qual, fugindo além, sumiu-se no horizonte,

Levando a longe terra o seu primeiro amor».



O seu gritar, o seu babujar, o seu gesticular foram crescendo. Quando chegou ao primeiro terceto do soneto, quase não tinha mais voz. Da assistência, apossara-se uma louca vontade de rir; muitos se contiveram; outros, porém, se retiraram para gargalhar longe. O doutor Praxedes nada via e continuava impertérrito; afinal acabou:

«Depois, quando o luar banhando a natureza

Em pálidos clarões de luz misteriosa,

Eu vi no arrebentar do mar embravecido

A lágrima a boiar na pétala de rosa».



Ao terminar, recebeu palmas, e, sentando-se, cansado de tão estúrdio esforço muscular, ainda disse:

-Essa lágrima é a da Marieta de que «o verso» fala no começo. É preciso que os senhores e as senhoras não se esqueçam desse pormenor.

Marramaque, que até ali, sem ser notado, seguira a insistência com que o trovador Cassi olhava Clara, resolveu pregar-lhe uma peça. Apoiado na sua bengala amiga, com a perna esquerda encolhida, devido aos ataques, e o respectivo braço fixado em ângulo reto, conseqüência também dos ataques, encaminhou-se para o centro da sala, capengando, a fim de recitar, por sua vez. A parte esquerda da boca era defeituosa também, e isso provocava-lhe muito esforço para pronunciar bem as palavras.

Não atendeu a nenhuma consideração e pôs-se em pé para recitar.

Assim é que ia fazer; deu o título da poesia, «Persistência», e começou naturalmente, como quem já soubera recitar com relativa perfeição, quando estava são. Recitando, olhava sempre para Cassi, que, calado, numa reserva de moço bem-comportado, ficara de pé, encostado ao vão da janela de frente.

Marramaque atacou os versos, saltitando na sala:

«Se às vezes contigo esbarro

e grito, esperneio e berro,

que me traz de há muito zarro

a paixão que aqui encerro,

Tu foges. E a ti me agarro,

cismando: (e nisto não erro)

Se eu tenho uma alma de barro,

tu mostras que a tens de ferro.

E se nada mais espirro

é porque, então, se não corro,

a coisa já cheira a esturro.

Que queres? Eu próprio embirro

com este amor por que morro,

mas é que sou muito burro».



O final causou uma franca hilaridade na assistência, e até Clara riu-se a perder; mas ninguém perguntou quem era o autor; e, se lhe perguntassem, Marramaque não lhe sabia o nome. Era a poesia sem assinatura, num jornal antigo, gostara dela e a decorara.

O povo é avesso a guardar os nomes dos autores, mesmo os dos romances, folhetins que custam dias e dias de leitura. A obra é tudo, para o pequeno povo; o autor, nada.

Cassi, que, logo, antipatizara com Marramaque, percebeu que a coisa era com ele. Perceberia outro mais burro do que o gabado artista da modinha, tanto era a teimosia com que o velho aleijado o olhava. Cassi pensou, de si para si: «Este pobre-diabo me paga».

O que espantava, na ação de Marramaque, era a sua coragem. Ele, semi-aleijado, velho, pobre, lançava um solene desafio àquele valdevinos forte, são, habituado a rolos e rixas.

Cassi não se demorou mais por muito tempo. Pediu o chapéu, despediu-se dos donos da casa e da filha destes, fez um cumprimento em roda e, quando deu com o rosto de Marramaque, com os olhos estranhamente fixos nele, a boca semi-aberta, o braço esquerdo fixado em ângulo reto, pela moléstia, arrastou-se. Parecia uma aparição... Deixara de ser o contínuo aleijado que ele antes tinha visto; era outra coisa, mais do que o simples Marramaque, que o espantava e o fazia tremer.

Com a atitude desassombrada daquele velho aleijado em face dele e que havia adivinhado, não sabia ele como, os seus maus propósitos em relação à Clara, Cassi sentiu, apesar do seu quase congênito embotamento moral, que havia na vida, ou, por outra, nas relações entre os homens, um guia silencioso e secreto, que pesava os nossos atos e pedia, para dar-lhes apoio e encaminhar-nos para uma paz interior e um contentamento conosco mesmos, o emprego, em todas as nossas ações, do Justo, do Leal, do Verdadeiro e do Generoso; e esse guia -ele via agora com o caso de Marramaque- dava forças aos fracos, coragem aos tímidos e uma seráfica e íntima satisfação, quando cumpríamos o nosso dever com honra e dignidade. Esse guia era a Consciência.

Confusamente, ele pensou isso; mas, ao passar o terror, o pavor, que lhe causara o olhar fixo, vitrificado, sobrenatural do velho Marramaque; olhar que o fizera um instante voltar-se para dentro de si mesmo e examinar-se, tornou com pressa ao que era e, fazendo um desdenhoso «ora!», repetiu de si para si a ameaça que já fizera: «Aquele boneco de engonço me paga».

Depois da saída de Cassi, ainda se bailou até os primeiros albores da aurora. Meneses, que tinha cochilado bastante, pôde, afinal, pela madrugada, comer um pouco de galinha assada e porco, que havia sobrado do jantar; mas não encetou discussão mais alguma com o doutor Praxedes; mesmo porque este já se havia despedido, por ter de comparecer muito cedo à audiência de um pretor, a fim de inquirir testemunhas num feito importante em que funcionava como advogado.

Quando todos se foram e Clara recolheu-se a seu quarto, que dava para a sala de jantar, Joaquim e a mulher ficaram nela, comendo ainda alguma coisa que sobrara. Foi então que Engrácia disse para o marido:

-Tudo foi muito bem. Todos se portaram decentemente, com respeito; mas uma coisa não quero mais.

-O que é?

-É que esse Cassi venha mais aqui. Dona Margarida me disse que ele é, é um devasso. Você não vê como ele canta indecentemente, revirando os olhos... Não o quero mais aqui; se ele vier...

-Não é preciso você se zangar, Engrácia; não gostei também dele e não porá mais os pés na minha casa.

Clara, que, deitada, no quarto, havia ouvido toda a conversa, pôs-se, em silêncio, a chorar.

- V -

Quem conhecesse intimamente Engrácia, havia de ficar espantado com a atitude decisiva que tomou em relação à visita de Cassi. O seu temperamento era completamente inerte, passivo. Muito boa, muito honesta, ativa no desempenho dos trabalhos domésticos; entretanto, era incapaz de tomar uma iniciativa em qualquer emergência. Entregava tudo ao marido, que, a bem dizer, era quem dirigia a casa. Rol de compras a fazer na venda do «Seu» Nascimento, diariamente, e também o de legumes e verduras, quem os organizava era o marido, especificando tudo por escrito e deixando o dinheiro para o quitandeiro, todas as manhãs, quando ia para o trabalho. De caminho, deixava a lista de gêneros no «Seu» Nascimento, onde pagava tudo por mês.

Qualquer acontecimento inesperado que lhe surgisse no lar, punha-a tonta e desvairada. Quando ainda tinham a velha preta Babá, que a criara na casa dos seus protetores e antigos senhores de sua avó, talvez um deles, pai dela, ficou Engrácia quase doida, ao ser a velha Babá acometida de um ataque súbito. Não sabia o que fazer. Foi preciso que Dona Margarida interviesse, mandasse chamar o médico, fizesse aviar a receita, tomasse, enfim, as providências que o caso exigia. A velha morreu daí a pouco, de embolia cerebral. Muito Engrácia sofreu com essa morte, pois, não tendo conhecido sua mãe, que lhe morrera aos sete anos, fora Babá que a criara. Os seus protetores tinham sido abastados; eram descendentes de um alferes de milícias, que tinha terras, para as bandas de São Gonçalo, em Cubandê. Pouco depois da Maioridade, com a morte do chefe da casa, filhos e filhas se transportaram para a Corte, procurando aqueles empregaram-se nas repartições do governo. Um dos irmãos já habitava a capital do Império e era cirurgião do Exército, tendo chegado a cirurgião-mor, gozando de grande fama. Para a cidade não trouxeram nenhum escravo. Venderam a maioria e os de estimação libertaram. Com eles, só vieram os libertos que eram como da família. Pelo tempo do nascimento de Engrácia, havia poucos deles e delas em casa. Só a Babá, sua mãe e um preto ainda estavam sob o teto patriarcal dos Teles de Carvalho.

Engrácia foi criada com mimo de filha, como os outros rapazes e raparigas, filhos de antigos escravos, nascidos em casa dos Teles.

Por isso, corria, de boca em boca, serem filhos dos varões da casa. O cochicho não era destituído de fundamento, naquela família, composta de irmãs e irmãos, ainda abastada, que se comprazia, tanto uns como as outras, em tratar filialmente aquela espécie de ingênuos, que viam a luz do dia, pela primeira vez, em sua casa. As senhoras, então, eram de uma meiguice de verdadeiras mães.

Engrácia recebeu boa instrução, para a sua condição e sexo; mas, logo que se casou -como em geral acontece com as nossas moças-, tratou de esquecer o que tinha estudado. O seu consórcio com Joaquim, ela o efetuara na idade de dezoito anos.

Fosse a educação mimosa que recebera, fosse uma fatalidade de sua compleição individual, o certo é que, a não ser para os serviços domésticos, Engrácia evitava todo o esforço de qualquer natureza.

Não saía quase. Era regra que só o fizesse duas vezes por ano: no dia 15 de agosto, em que subia o outeiro da Glória, a fim de deixar uma espórtula à Nossa Senhora de sua íntima devoção; e, no dia de Nossa Senhora da Conceição, em que se confessava. Levava sempre a filha e não a largava de a vigiar. Tinha um enorme temor que sua filha errasse, se perdesse... A não ser com ela, Clara, muito a contragosto da mãe, saía de casa para ir ao cinema, no Méier e Engenho de Dentro, e outras vezes -poucas- para fazer compras nas lojas de fazendas, de sapatos e outras congêneres, acreditadas nos subúrbios.

Essa reclusão e, mais do que isso, a constante vigilância com que sua mãe seguia os seus passos, longe de fazê-la fugir aos perigos a que estava exposta a sua honestidade de donzela, já pela sua condição, já pela sua cor, fustigava-lhe a curiosidade em descobrir a razão do procedimento de sua mãe.

Clara via todas as moças saírem com seus pais, com suas mães, com suas amigas, passearem e divertirem-se, por que seria então que ela não o podia fazer?

A pergunta ficava sempre sem resposta, porque não havia meio, naquele isolamento em que vivia, de tudo e de todos, de encontrar a que cabia.

Engrácia, cujos cuidados maternos eram louváveis e meritórios, era incapaz do que é verdadeiramente educação. Ela não sabia apontar, comentar exemplos e fatos, que iluminassem a consciência da filha e reforçassem-lhe o caráter, de forma que ela mesma pudesse resistir aos perigos que corria.

A mulher de Joaquim dos Anjos tinha a superstição dos processos mecânicos, daí o seu proceder monástico em relação à Clara.

Enganava-se com a eficiência dela; porque, reclusa, sem convivência, sem relações, a filha não podia adquirir uma pequena experiência da vida e notícia das abjeções de que está cheia, como também a sua pequenina alma de mulher, por demais comprimida, havia de se extravasar em sonhos, em sonhos de amor, de um amor extra-real, com estranhas reações físicas e psíquicas.

Acresce, ainda, que era geral em sua casa o gosto de modinhas. Sua mãe gostava, seu pai e seu padrinho também. Quase sempre havia sessões de modinhas e violão na sua residência. Esse gosto é contagioso e encontrava, no estado sentimental e moral de Clara, terreno propício para propagar-se. As modinhas falam muito de amor, algumas delas são lúbricas até; e ela, aos poucos, foi organizando uma teoria do amor, com os descantes do pai e de seus amigos. O amor tudo pode, para ele não há obstáculos de raça, de fortuna, de condição; ele vence, com ou sem pretor, zomba da Igreja e da Fortuna, e o estado amoroso é a maior delícia da nossa existência, que se deve procurar gozá-lo e sofrê-lo, seja como for. O martírio até dá-lhe mais requinte...

As emolientes modinhas e as suas adequadas reações mentais ao áspero proceder da mãe tiraram-lhe muito da firmeza de caráter e de vontade que podia ter, tornando-a uma alma amolecida, capaz de render-se às lábias de um qualquer perverso, mais ou menos ousado, farsante e ignorante, que tivesse a animá-lo o conceito que os bordelengos fazem das raparigas de sua cor.

Cassi era dessa laia: entretanto, Clara, na sua justificável ignorância do mecanismo da nossa vida social, julgava que seus pais eram com ele injustos e grosseiros.

Depois do baile de seu aniversário, quinze ou vinte dias depois, num domingo, Cassi bateu à porta da casa de seus pais. Engrácia estava justamente arrumando a sala de visitas; recebeu-o com visível desgosto e gritou para a cozinha, onde estava Clara:

-Chama teu pai, que está aí «Seu» Cassi.

A moça ia aproximar-se para falar ao modinheiro, quando a mãe lhe disse rapidamente:

-Vá chamar seu pai! Ande!

Joaquim não custou a vir; e, após os cumprimentos, dirigiu-se ao rapaz:

-Que é que manda nesta casa, meu caro senhor?

-Nada. Fui visitar um amigo e, passando pela sua porta, resolvi cumprimentá-lo.

-Muito obrigado. A partida de solo está fervendo e eu não me posso demorar.

Cassi olhou um instante, com seu olhar mau, o velho mulato; mas a nada se atreveu. Estiveram calados dois ou três minutos um diante do outro, até que o famoso violeiro tomou o alvitre de despedir-se. Clara veio saber da cena, pela narração que seu pai fez à sua mãe, e ficou aborrecida, cheia de desgostos com eles e com a situação em que estava, imposta por eles, para o seu sofrimento.

Avaliou em algum ressaibo de revolta o procedimento dos pais. O que queriam fazer dela? Deixá-la ficar para «tia» ou fazê-la freira? E ela precisava casar-se? Era evidente; sua mãe e seu pai tinham, pela força das coisas, que morrer antes dela; e, então, ela ficaria pelo mundo desamparada? Cochichavam que Cassi era isto e era aquilo. Dona Margarida e o padrinho eram os que mais mal falavam dele: que era um devasso, um malvado, um desencaminhador de donzelas e senhoras casadas. Como ele poderia ser tanta coisa ruim, se freqüentava casas de doutores, de coronéis, de políticos? Naturalmente havia nisso muita inveja dos méritos do rapaz, em que ela não via senão delicadeza e modéstia e, também, os suspiros e os dengues de violeiro consumado.

Uma dúvida lhe veio; ele era branco; e ela, mulata. Mas que tinha isso? Havia tantos casos... Lembra-se de alguns... E ela estava tão convencida de haver uma paixão sincera no valdevinos, que, ao fazer esse inquérito, já recolhida, ofegava, suspirava, chorava; e os seus seios duros quase estouravam de virgindade e ansiedade de amar.

De resto, era preciso libertar-se, passear, conhecer a cidade, teatros, cinemas... Ela não conhecia nada disso. Até ir de um pulo à venda do «Seu» Nascimento não tinha licença. Um dia, por inadvertência, faltou sal para preparar o jantar; pois, nem mesmo assim, teve licença de ir à venda, e sua mãe não foi, para não deixá-la só. Tiveram que esperar uma hora, até que o caixeiro passasse. Entretanto, o armazém do «Seu» Nascimento não era mal freqüentado, e todos que lá paravam eram pessoas de certa consideração e sem pecha alguma. Esta última observação de Clara era inteiramente verdadeira.

Mesmo a Rosalina, mais conhecida pelo apelido pejorativo de Mme. Bacamarte, apesar da vida má e desgraçada que levava, no armazém se portava com todo o rigor. Era verdadeiramente infeliz, essa rapariga. Seduzida em tenra idade, a polícia obrigou o sedutor a casar-se com ela. Nos três primeiros anos, as coisas correram mais ou menos naturalmente. Ao fim deles, devido a reveses, o marido começou a embirrar com ela, a atribuir-lhe toda a sua desgraça, a espancá-la, mas dando alguma coisa com que ela se sustentasse e aos filhos. Já bebia, o marido dela; e, por esse tempo, fazia-o sem método nem medida. Bebia a mais não poder, em casa, nos botequins, em toda a parte. Faltava à oficina para beber. Rosalina «pegou» o vício do marido e, do pouco dinheiro que ele lhe dava ou com o seu trabalho obtinha, comprava parati. O marido devia seis meses de casa -um modesto barracão de madeira, com uma sala, um quarto e um pequeno adendo para a cozinha. O senhorio perseguia-o; ele fugia e deixava com a mulher o encargo de explicar os atrasos. Um belo dia, ela vê entrar o proprietário com dois homens. Nada dizem. Encostam sua escada no telhado e destelham a choupana. Deixou tudo o que tinha na mão dos desalmados. Pede a uma vizinha que fique com um filho; e uma outra, que fique com o mais moço, e correu a atirar-se debaixo do primeiro trem que passou. Sofreu escoriações e fraturas em um braço e uma perna; mas os médicos da Santa Casa conseguiram salvá-la. Saiu renovada, e o seu rostinho de mulatinha sapeca tinha recuperado um pouco o viço e a petulância que devia ter pela puberdade.

Os filhos, a mãe -uma pobre lavadeira- os tinha recolhido; e o marido nunca mais o vira. Em começo, portou-se bem; mas bem depressa foi correndo de mão em mão, até que as moléstias venéreas a tomaram de todo, obrigando-a a visitas constantes à Santa Casa, para levar injeções e sofrer operações. Proibida de beber, não obedecia à prescrição médica. Quando não tinha dinheiro, obtido de que maneira fosse, esperava pacientemente que as suas galinhas ou as de sua mãe, com quem morava, «pusessem», e logo corria à venda a trocá-los, por duzentos ou trezentos réis de parati.

Ela, porém, não fazia «ponto» no armazém do «Seu» Nascimento. Educado e criado na roça, tendo negociado no interior do Estado do Rio, onde ainda tinha fazenda, ele gostava que pessoas de certa ordem fossem ao seu negócio ler os jornais e conversar -hábito do interior, como todos sabemos. A sua venda tinha até aqueles tradicionais tamboretes de abrir e fechar das antigas vendas e ainda são conservados nos armazéns roceiros. Demais, a sua casa de negócio ficava num lugar pitoresco, calmo, pouco transitado, diante das velhas árvores da chácara de Mr. Quick Shays e olhando para uns cumes caprichosos de montanhas distantes. Compravam muitas pessoas, para as quais tinha freguesia certa.

Um deles era o Alípio, um tipo curioso de rapaz que, conquanto pobre e ter amor à cachaça, não deixava de ser delicado e conveniente de maneiras, gestos e palavras. Tinha um aspecto de galo de briga; entretanto, estava longe de possuir a ferocidade repugnante desses galos malaios de rinhadeiro, não possuindo -convém saber-se- nenhuma. Sem ser instruído, não era ignorante; mas era inteligente e curioso de invenções e aperfeiçoamentos mecânicos.

O velho Valentim era um outro freqüentador da venda, muito curioso e pitoresco. Português, com muito mais de sessenta anos, não deixava de trabalhar, chovesse ou fizesse sol. Era chacareiro e, devido talvez ao ofício, que ele o devia exercer há bem perto de quarenta anos, tinha o corpo curvado de modo interessante. Não se sabia se era para trás ou para diante; fazia uma espécie de S, em que faltassem as extremidades.

Contava longos «casos» que não se acabam mais, especialmente o João de Calais -como ele pronunciava-, pontilhando a sua longa e enfadonha narração, com rifões portugueses de uma graça saborosa e uma filosofia saloia. Era o que se aproveitava da sua conversa.

Aparecia, também, em certas ocasiões, o Leonardo Flores, poeta, um verdadeiro poeta, que tivera o seu momento de celebridade no Brasil inteiro e cuja influência havia sido grande na geração de poetas que se lhe seguiram. Naquela época, porém, devido ao álcool e desgostos íntimos, nos quais predominava a loucura irremediável de um irmão, não era mais que uma triste ruína de homem, amnésico, semi-imbecilizado, a ponto de não poder seguir o fio da mais simples conversa. Havia publicado cerca de dez volumes, dez sucessos, com os quais todos ganharam dinheiro, menos ele, tanto assim que, muito pobremente, ele, mulher e filhos agora viviam com o produto de uma mesquinha aposentadoria sua, do governo federal.

Raro era sair, porque a mulher punha todo o esforço em que ele o não fizesse. Mandava buscar parati, comprava-lhe os jornais de sua estimação, a fim de que ele permanecesse em casa. Às mais das vezes, ele obedecia; mas, em algumas raras, recalcitrava, saía, com quinhentos réis em cobre, na algibeira, bebia aqui, ali, dormia debaixo das árvores das estradas e ruas pouco freqüentadas, e, mesmo, quando o delírio alcoólico o tornava forte, despia-se todo e gritava heroicamente numa doentia e vaidosa manifestação de personalidade:

-Eu sou Leonardo Flores.

O povo sabia vagamente que ele tinha celebridade. Chamava-o o poeta. No começo, caçoava com ele, mas ao saber de sua reputação, deram em cercá-lo de uma piedosa curiosidade.

-Um homem desses acabar assim, que castigo! -dizia um.

-É «cosa» feita! Foi inveja da «inteligença» dele! -dizia uma preta velha-. Gentes da nossa «cô» não pode «tê inteligença»! Chega logo os «marvado» e lá vai reza e «fêtiço», «pa perdê» o homem -rematava a preta velha.

Aparecia um circunstante mais prático na sua piedade, vestia novamente o poeta e levava-o para a casa.

Era justamente a ele, Leonardo Flores, que o doutor Meneses procurava, quando, naquela manhã de dia santo e não feriado, entrou na venda de «Seu» Nascimento, mancando, devido à inchação das pernas, e com as suas barbas brancas, abundantes, mas não cerradas, aparadas e tratadas à imitação do nosso último Imperador.

O doutor Meneses galgou a soleira da porta com esforço; parou um instante, logo que se viu no interior da venda, pôs as mãos nas cadeiras e respirou com força.

Após os cumprimentos, perguntou:

-O Flores não tem aparecido?

-Há muito tempo que não vem aqui -fez o «Seu» Nascimento do interior do balcão.

-Fui à casa dele, e disse-me a mulher que havia saído... Preciso tanto dele...

Ao dizer isto, sentava-se no tamborete que o caixeiro lhe abrira e o pusera onde ele estava, o dentista.

Descansou mais um pouco, sorveu mais uma forte dose de ar e, dirigindo-se ao Alípio, perguntou:

-Como vai você, Alípio?

Só estavam na venda Alípio e o velho Valentim, este em pé, encostado ao umbral de uma porta lateral; e aquele, sentado, lendo um jornal.

Alípio respondeu:

-Vou bem; não tão bem como o senhor, que anda agora em companhia de «almofadinhas» artistas.

-Como? -fez espantado o dentista particular.

-É o que dizem. Corre aqui que o senhor está toda a noite com o mestre-violeiro Cassi e vários companheiros, num botequim do Engenho Novo.

-É verdade. São todos rapazes decentes, que...

-Então, o Cassi, este é de colete?

-Dizem -interveio «Seu» Nascimento- que esse rapaz...

-É um bandido -acudiu Alípio-. Ele merecia mais do que cadeia; merecia ser queimado vivo. Tem desgraçado mais de dez moças e não sei quantas senhoras casadas.

-Isto é calúnia! -protestou Meneses-. Fala-se muito por aí...

-Que o quê! Os processos têm corrido, os jornais têm publicado, e ele arranja meios e modos para livrar-se das penalidades e lançar na desgraça moças e senhoras -confirmou Alípio.

-Como ele consegue isso? -indagou «Seu» Nascimento.

-No começo, com a proteção do pai. Ao fim do segundo ou terceiro caso que veio a público, o pai não lhe falou mais e nunca mais se interessou pela sua liberdade. Sucederam-se outros, e, graças à intervenção da mãe junto a um irmão, médico do Exército, ele pôde arranjar rábulas sem escrúpulos, que, pelos meios mais nojentos, conseguiram retirá-lo das grades da detenção. Caluniava as vítimas com justificações em que eram testemunhas Timbó, Arnaldo e outros tais. Contou-me a Vicência, o senhor não a conhece, «Seu» Nascimento? -perguntou Alípio.

-Quem é? -perguntou por sua vez o taberneiro.

-É aquela crioula velha que vem aqui, às vezes, fazer compras, para a casa do Major Carvalho. Ela foi empregada na casa do pai de Cassi muito tempo. Um dia, ela não sabe bem por quê, o pai expulsou-o de casa. A mãe mandou-o para a casa do irmão em Guaratiba. Lá, ele fez ou pretendeu fazer uma das suas, mas o tio não esteve pelos autos; despachou-o para a irmã. A muito custo, a mãe conseguiu que ficasse num porão dos fundos, que mal tem a altura dele. Nesse «socavão» é que ele mora e come. Nunca sobe nas dependências superiores da casa, com medo do pai. Se, por acaso, este tiver notícia dessa sua ousadia, põe-no definitivamente na rua.

-Que diz a isso, doutor Meneses? -chasqueou Nascimento.

-Não sei, porque pouco me preocupo com a vida dos outros -tergiversou Meneses.

-Não é da vida dos outros -fez impetuosamente Alípio-; é com a vida de um pirata como Cassi, que não respeita família, nem amizades, nem a miséria, nem a pobreza, para fazer das suas porcarias. É por isso que eu...

«Seu» Nascimento interveio suasoriamente e pediu calma. Era um homem alto, claro, um tanto obeso, tipo do antigo agricultor patriarcal, das nossas velhas fazendas. Ele assim disse:

-Não é necessário indignar-se, Alípio, fique calmo. O monstro não tem mais protetores, como você já disse.

-Tem, «Seu» Nascimento -afirmou Alípio-. Ele é esperto, «é manata escovado».

-Quem é, Alípio? -perguntou Nascimento, indo servir de açúcar a um pequeno.

Os fregueses continuavam a chegar; em geral, eram crianças e mulheres. As suas compras eram pobres: dois tostões disso, quatrocentos réis daquilo, compras de gente pobre, em que raramente se via nelas incluído meio quilo de carne-seca ou um de feijão. Tudo não excedia a tostões. Mesmo atendendo aos fregueses, sozinho, pois os caixeiros tinham ido correr a clientela fixa do armazém, «Seu» Nascimento não perdia o fio da conversa, e ela continuava naturalmente.

Alípio, habituado a isso, não suspendeu a narração e deu a resposta pedida.

-O protetor dele, agora, é um tal Capitão Barcelos, chefe político na estação de ***. Tem influência e foi por saber disso que Cassi aderiu a ele. Já nessa última eleição para uma vaga de intendente, ele funcionou com o seu rancho ao lado de Barcelos. Não houve desordens, porque não apareceu outro candidato; mas ele queria fazer uma para ganhar prestígio. Assim e aos poucos, vai ganhando a confiança de Barcelos, a ponto do Freitas, que é o subcabo deste, sentir-se magoado e preterido.

-Quem é esse Barcelos? -fez Nascimento.

-É um português, já com os seus cinqüenta anos, bom, bom mesmo; mas, tendo ido para a detenção, pronunciado que estava devido a uns tiros que dera em um sujeito, por lhe ter insultado a mulher, produzindo no meliante ferimentos graves, isto há vinte anos, ganhou lá o gosto pela política e lá aprendeu as primeiras noções dessa difícil ciência. Foi na detenção que...

-Ué! -exclamou Nascimento.

-Também você, Alípio... -fez duvidoso Meneses.

Alípio continuou:

-Lá, ele encontrou um político daqui da Capital, que estava na chácara, a responder processo, como mandante de um assassínio. O homem aproximou-se de Barcelos, e puseram-se a conversar. Não estavam no cubículo; estavam na enfermaria, ou na sala livre, ou em outro compartimento especial. Barcelos narrou sua vida, que, apesar daquele transtorno, não corria mal. Tinha uma venda em ***; vendia a dinheiro e a crédito, para o operariado das fábricas lá existentes; mas era feliz, pois, apesar de fazer muitos fiados, quase não os perdia. Era até estimado, pelo seu gênio folgazão e prestativo. O político, que tinha um chefete adversário, naquela estação, viu bem como, para desbancá-lo, podia aproveitar os serviços de Barcelos. «Você por que não se mete na política?», disse ele um dia. O vendeiro de *** respondeu: «Mas não sou brasileiro, doutor». O seu alto companheiro de cárcere retrucou-lhe: «Eu faço você brasileiro naturalizado, capitão da Guarda Nacional, e você, nas eleições, trabalha para mim e os meus. Trate logo de alistar o maior número de fregueses que você puder». Barcelos assentiu, trabalhou sempre para o tal político, por intermédio do qual arranjou melhoramentos para o lugarejo, valorizando as suas terras e prédios.

-Valeu a pena ir para a detenção!

-É verdade, «Seu» Nascimento. Daí, data a pouca prosperidade de Barcelos, que possui perto de duzentos contos, em casas, terrenos e apólices, afora o giro do negócio.

-Você, Alípio, se diz anarquista; mas o que você é, é romancista. Isto é um romance -comentou Meneses.

-Qual, doutor! O senhor é que não sabe como as coisas se fazem. Eu sei. O senhor, por exemplo, não sabe que Timbó levou uma surra de uma senhora que mora aqui perto?

-Não sei -respondeu Meneses.

Quase ao mesmo tempo, Nascimento perguntava:

-Quem é Timbó?

-É um mulatinho faceiro, jogador de football e companheiro de Cassi, testemunha sempre escolhida para depor em seu favor, caluniando as vítimas, nos seus imundos processos.

-Foi ele quem levou a surra? -indagou Nascimento.

-Sim; ele, na estação de Todos os Santos, após uma perseguição ignóbil a Dona Margarida...

-Que Dona Margarida? A do 74? -falou com surpresa Nascimento.

-Essa mesma. Deu-lhe de rijo com o guarda-chuva; e, quando ele a quis desarmar, apareceu um cabra morrudo, que o pôs, pelas orelhas, para fora da plataforma, donde saiu debaixo de vaia. Dos companheiros de Cassi, o único perdoável é o Zezé Mateus. Este não mexe com moça alguma, com família de ninguém, não joga, não faz desordem. Quer beber e bebe à sua custa, porque, quando quer trabalhar, abandona a tudo e salda as suas dívidas. Os mais são uns piratas!

Alípio calou-se, e os seus interlocutores não aventaram nenhuma observação, a não ser o velho Valetim, que havia ouvido toda a conversa, encostado ao portal de pedra, fumando displicentemente o seu cigarro São Lourenço. Ele perguntou, cheio da ingenuidade do campônio que fica sempre na primeira aventura, das preferidas por Cassi:

-Mas, «Seu» Alípio, o senhor acredita que haja gente tão malvada, como esse Cassi?

-Há, e não pouca. Sei de tudo que contei de fonte limpa. É a pura verdade.

O doutor Meneses tinha ficado aborrecido com o tom da conversa. Tinha ido à venda, procurar Leonardo Flores, para um negócio particular; e encontrara o Alípio a par das suas relações com Cassi e inteirado da vida deste. Diabo! Estaria se comprometendo? Havia já tomado quatro copitos de parati; mas, quando se despediu, tomou um grande. Caminhando pôs-se a pensar:

-Que devia fazer?

Pegou diversas hipóteses e concluiu:

-Ir até ao fim.

A coisa não oferecia nenhum perigo para ele...

Isso não o contentou de todo. Procurou distrair-se.

- VI -

A recepção que tivera Cassi, na sua segunda visita, seca, hostil, quase sendo despedido à soleira da porta, ao contrário da primeira vez que fora à casa de Joaquim dos Anjos, fizera-o meditar e açulara-lhe o desejo de remover todos os obstáculos que se opunham à sua aproximação de Clara. Por exclusão, ele só viu duas pessoas capazes de lhe estarem atrasando seu «trabalho», começado com tanta rapidez e sem esforço. Quem eram? Só podiam ser Dona Margarida, por causa do «negócio» do Timbó; e o tal aleijado, que lhe lançara a indireta, em verso, de chamá-lo de burro.

Se na sedução, propriamente, ele não empregava absolutamente força, no que era o contrário dos conquistadores suburbanos, a ponto dos jornais noticiarem, de quando em quando, o desespero das vítimas que se fazem assassinas, para se defenderem de tão torpes sujeitos; Cassi, entretanto, quando no decorrer de suas conquistas, encontrava obstáculos, fosse mesmo da parte do próprio irmão da vítima em alvo, logo procurava empregar violência, para arredá-lo.

É bem de ver que ele sabia com quem se metia; mas, no caso, tratando-se de um quase inválido, a força a empregar seria mínima; e, no que toca a Dona Margarida, ele saberia enganá-la e embaí-la.

A sua força de valente e navalhista era mais fama do que realidade; mas tinha fama, e muitos se intimidavam. Dava-lhe isso um ascendente sobre os que, de boa-fé e honestamente, podiam prevenir as moças que ele cobiçava, não as prevenindo, não as avisando, não o desmascarando totalmente. Cheios de temor, deixavam o caminho franco ao modinheiro.

A tal respeito, com o seu cinismo de sedutor de quinta ordem, tinha uma oportuna teoria, condensada numa sentença: «Não se pode contrariar dois corações que se amam com sincera paixão».

Colocando ao lado dessa teoria, bem sua, a consideração de que não empregava violência nem ato de força de qualquer natureza, ele, na sua singular moral de amoroso-modinheiro, não se sentia absolutamente criminoso, por ter até ali seduzido cerca de dez donzelas e muito maior número de senhoras casadas. Os suicídios, os assassínios, o povoamento de bordéis de todo o gênero, que os seus torpes atos provocaram, no seu parecer, eram acontecimentos estranhos à sua ação e se haviam de dar de qualquer forma. Disso, ele não tinha culpa.

Para certificar-se quem era que, na casa do «carteiro», fermentava o seu descrédito, Cassi resolveu ir sondar Lafões, em sua casa.

Lafões morava bem próximo do reservatório do Engenho de Dentro. Uma tarde, Cassi tomou o bonde de Piedade, que, para ir a essa estação, logo após o Méier, se interna para os lados da serra, toma ruas despovoadas e, por fim, a do Engenho de Dentro. O caminho era então pitoresco, não só pelos restos de capoeira grossa que ainda havia, mas também pelas casas roceiras de varanda e pequenas janelas de outros tempos. Caminho de «tropa», talvez, os engenheiros da Light só se deram ao trabalho de fazer sumários nivelamentos. Os altos e baixos, os atoleiros e atascadeiros, consolidados com gravetos e varreduras de capinas, transformaram o caminho do bonde, naquele trecho, numa montanha-russa, com a lembrança, de um lado e outro, do espetáculo do que seriam ou do que são os caminhos do nosso interior, pelos quais nos chegam os cereais e a carne que comemos.

Às vezes, o bonde cruzava com uma tropa de carvoeiros de Jacarepaguá, da Serra do Mateus e outras localidades ainda com florestas aproveitáveis; e tínhamos uma imagem mais viva. Os tropeiros eram gente de sangue muito mesclado, ossudos, jarretes nervosos e finos, pés espalmados, às vezes de feições regulares, mas sempre cobertos de barbas maltratadas e de uma insondável tristeza. Não eram só homens feitos; havia crianças também, a guiar os burros em fila.

Quando o bonde apontava a sacolejar as suas ferragens, estourando que nem um besouro, avisando-os da sua presença próxima com o zunido contínuo do tímpano, ou, senão, com um apito, ao grito de locomotiva, aqueles homens, vivendo tão perto da terra e da natureza espontânea, não deixavam de se assustar e tomar precauções, para sua segurança e dos seus pacientes animalejos. Encostavam bem a tropa a uma ribanceira lateral da rua, quando na encosta; ou afastavam-se para o lado, se havia terreno baldio e sem cerca, quando ela era planície; e ficavam pasmos, diante daquele monstro zunidor que se movia por intermédio de um grosso fio de arame. Os burros, quer num, quer noutro caso, permaneciam indiferentes e punham-se a roer a erva escassa do campo ou a pastar a folhagem que lhes dava sombra e crescia no alto da chanfradura do corte.

Chegou Cassi Jones à casa de Lafões quase à noite. Era uma pequena casa, mas bem tratada e limpa. O pequeno jardim na frente merecia cuidados e, no quintal, aos fundos, cresciam couves e repolhos, a dar saudades de um bom caldo à portuguesa.

Lafões, por aquelas horas, após o jantar, tinha por hábito pôr-se em camisa de meia, tamancos e calça, e completar a leitura do jornal que iniciara pela manhã. Sentava-se a uma cadeira de balanço, austríaca, que a punha bem junto à janela, tendo, à esquerda, uma cadeira, em que repousavam o isqueiro (não usava fósforos) e os cigarros «Fuzileiros».

Estava assim, naquela postura, e enrolava melhor um cigarro pacientemente, quando lhe bateram no portão de ripas de madeira. Ergueu um tanto o busto e, pondo um pouco a cabeça à mostra, quase rente ao peitoril da janela, perguntou:

-Quem é?

Reconheceu logo:

-É o Senhor Cassi.

Ergueu-se e foi ao encontro dele, abrindo a porta de entrada. Tomou-lhe o chapéu pelintra, a bengala ultra-aperfeiçoada e foi dizendo prazenteiramente:

-Por aqui? Sente-se, ora esta! Seja bem-vindo!

O rapaz sentou-se, respondendo:

-Muito obrigado, meu caro «Seu» Lafões.

-Por que não aparece mais vezes, Senhor Cassi? -continuou Lafões com amizade.

-Não tenho tido tempo. Nos dias da semana, são os negócios; nos domingos, não dou para os convites. Eu vinha aqui...

-Para quê, Senhor Cassi?

-Pedir-lhe uma informação.

-Qual é, Senhor Cassi?

-Disseram-me que, no seu escritório, o inspetor está admitindo escreventes, para não sei que serviço extraordinário. O senhor não podia saber se isto é verdade?

-Pois não. Indago ao Braga, que é contínuo, vivo que nem azougue, e sabe de tudo que lá se passa -explicou Lafões.

-Quando posso vir buscar a resposta?

-Olhe, Senhor Cassi: amanhã, à tarde, não, porque tenho que ir à sessão da minha sociedade; mas, se tem pressa, pode vir depois de amanhã, logo pelas sete ou oito horas.

-Bem -fez Cassi, simulando contentamento-. Desde já agradecido. Como vão sua senhora e seus filhos?

-Bem. A mulher saiu mais o mais moço; foram a não sei que ladainha por aí. É um inferno! Estes padres têm invadido estes subúrbios com mais rapidez que os «turcos» de prestações. É dinheiro para esse santo, é dinheiro para as obras da igreja... Não posso mais! Edméia, porém, está lá no fundo do quintal. Quer tomar café, Senhor Cassi?

-É incômodo... Se a sua senhora estivesse, sim; mas...

-Não há incômodo algum. Edméia o aquece no espírito... Só se o Senhor Cassi não gosta aquecido?

-Gosto.

-Pois bem, vamos a ele -e gritou pela filha, com possante voz de homem são-. Edméia! Edméia!

Não tardou em aparecer a filha. Era uma gentil menina de doze anos, risonha, com uma fisionomia redonda de traços firmes e finos, cabelos tirando para o louro, cortados à inglesa. Entrando, exclamou logo:

-Oh! Estava aqui «Seu» Cassi. Que surpresa! Não sabia...

Falou ao rapaz e este lhe disse a esmo:

-Há muito que não a via.

-É verdade, desde o dia de anos de Clarinha... Tem ido lá?

-Não tenho podido.

-Por quê? Parece que lá não gostam do senhor... Principalmente aquele «pé-pé»...

-Menina -ralhou-lhe o pai-. Não te metas a intrigar os outros... Vá aquecer o café e traze-nos duas xícaras. Vá.

Saindo a menina, Cassi julgou de bom alvitre, para preencher o fim verdadeiro de sua visita, dizer:

-Podem não gostar de mim. Mas a implicância é sem motivo. Nunca...

-Ora, Senhor Cassi, o senhor vai dar ouvido a crianças. Elas não sabem o que dizem.

-Agora, meu caro «Seu» Lafões, eu notei no dia da festa que o compadre do Senhor Joaquim dos Anjos não me tragava -disse Cassi.

-Isto se explica. Ele foi ou é poeta e tem em conta de coisa nenhuma os cantadores de modinhas. Lá na minha terra, os poetas dos fidalgos e das fidalgas não tragam os fadistas do campo, aos quais chamam de rústicos e outras coisas piores. Em cada ofício, há sempre disso. O senhor não vê como os cocheiros desprezam os barbeiros? Cocheiro que não presta é barbeiro. Marramaque, velho, doente, não sabe disfarçar o seu mau juízo pelos que apreciam o violão e o tocam, cantando modinhas.

-Mas... o «Seu» Joaquim?

-É que eles são compadres e amigos, meu caro Senhor Cassi. Está explicado.

Vieram as xícaras de café e a conversa tomou outro rumo. Falaram sobre as festas próximas do centenário da Independência, sobre a crise financeira, mas Cassi em nada disso pensava. Pensava em Marramaque, o audacioso aleijado, que queria se intrometer no seu amor por Clara. Pagaria bem caro. Despediu-se em breve e, lentamente, deixou-se ir a pé subúrbios abaixo. Eram estranhos aquele ódio e aquela obstinação. Cassi não era absolutamente, nem mesmo de forma elementar, um amoroso. A atração por uma qualquer mulher não lhe desdobrava em sentimentos outros, às vezes contraditórios, em sonhos, em anseios e depressões desta ou daquela natureza. O seu sentimento ficava reduzido ao mais simples elemento do Amor, a posse. Obtida esta, bem cedo se enfarava, desprezava a vítima, com a qual não sentia ter mais nenhuma ligação especial; e procurava outra.

A sua instrução era mais que rudimentar; mas, assim mesmo, talvez devido a uma necessidade íntima de desculpar-se, gostava de ler versos líricos, principalmente os de amor. Não lia jornais, nem coisa alguma; mas, num retalho apanhado aqui, num almanaque acolá, num livro que lhe ia ter às mãos, sem saber como, conseguia ler alguns e os entender pela metade. Deles, desses sonetos e mais poesias que, por acaso, iam parar em seu poder, ele concluía, com a sua estupidez congênita, com a sua perversidade inata, que tinha o direito de fazer o que fazia, porque os poetas proclamam o dever de amar e dão ao Amor todos os direitos, e estava acima de tudo a Paixão. Vê-se bem que ele não sentia nada do que, poetas medíocres que o guiavam nas suas torpezas, falavam; e, sem querer apelar para grandes ou pequenos poetas, percebia-se perfeitamente que nele não havia Amor de nenhuma natureza e em nenhum grau. Era concupiscência aliada à sórdida economia, com uma falta de senso moral digna de um criminoso nato, o que havia nele.

O verdadeiro estado amoroso supõe um estado de semiloucura correspondente, de obsessão, determinando uma desordem emocional que vai da mais intensa alegria até à mais cruciante dor, que dá entusiasmo e abatimento, que encoraja e entibia; que faz esperar e desesperar, isto tudo, quase a um tempo, sem que a causa mude de qualquer forma.

Em Cassi, nunca se dava disso. Escolhida a vítima de sua concupiscência, se, de antemão, já não as sabia, procurava inteirar-se da situação dos pais, das suas posses e das suas relações. Em seguida, tratava de encontrar-se com ela num baile ou uma sala de festas e impressioná-la com os seus dengues no violão. Se percebia que tinha obtido algum sucesso, esforçava-se em reiterar os encontros nos cinemas, nos bondes, nas estações, e, na ocasião propícia, pespegava-lhe a carta fatal. Isto tudo era feito com muita calma e discernimento, pacientemente, sem ser perturbado em nenhum movimento de impaciência ou arrebatamento. Se a moça ou a senhora aceitava-lhe os galanteios e as cartas, ele tinha o final como certo; se não, ele não perdia tempo, abandonava os esforços preliminares e esperava que outra mais suasória aparecesse.

No caso de Clara, ele não estava disposto a acreditar que se houvesse dado a primeira hipótese, porquanto lhe davam certeza disso o embevecimento com que o ouvira cantar, na noite da festa dos anos dela, e a insistência que mostrara em vir falar com ele, quando lhe foi à casa do pai pela segunda e última vez. O que lhe parecia, por indícios aqui e ali, é que alguém se havia interposto entre ele e ela, «entre dois corações que se amam», denunciando aos pais dela os seus maus precedentes de conquistador contumaz, de forma a trancarem-lhe aqueles as portas de sua casa, a ele, Cassi.

Agora mesmo, tivera a confirmação dessa suspeita com a ingênua denúncia de Edméia, a filha de Lafões, de que Marramaque, padrinho de Clara, não gostava dele. Era, portanto, prevenir-se contra as «intrigas» do aleijado e arredá-lo de vez. Cassi sabia que, quase sempre, Marramaque parava na venda do «Seu» Nascimento, quando vinha do trabalho. Lá ficava bebericando com outros, até que o negócio se fechasse. A ele, Cassi, não convinha ir por todos os motivos; Timbó não podia também, por ser muito conhecido na localidade, devido à surra que levara; Zezé Mateus era um idiota. Quem iria, então, sondar aquele terreno? O Arnaldo, que não era conhecido no local, nem sabidas eram as suas relações com ele. Muito a contragosto, dirigiu-se para a casa dos pais. Não tinha dinheiro que prestasse, para «escorvar» o jogo.

O seu «socavão» doméstico ficava bem debaixo da sala de jantar da casa, que aí acabava o seu corpo principal. As dependências restantes ocupavam um puxado longo. Quando ele entrou, percebeu que na sala de jantar, além do pai, mãe e irmãs, havia alguém que não era de hábito e dissera, ouvindo-lhe os passos:

-Há alguém aí?

-É Cassi -dissera a mãe.

-Ele não sobe aqui? -perguntou a visita.

Todos se calaram e se entreolharam, enquanto o velho Manuel de Azevedo explicava o fato em quatro palavras:

-Você queria, Augusto, que eu, chefe de família, que prezo a honra das filhas dos outros como a das minhas, deixasse semelhante miserável sentar-se ao meu lado? Se não o pus de todo para a rua, foi devido à mãe.

-Você tem razão, mano; mas tudo isto que se diz dele, pode ser calúnia.

-É também o meu pensamento, Augusto -falou Dona Salustiana.

As moças se haviam calado por pudor, mas o velho Azevedo cortou de vez o argumento da mulher e do irmão:

-Você não leu esses papéis escritos à máquina, que mandaram a você, dois dias após você chegar, para o hotel?

-Li.

-Leu as datas, a narração dos fatos, as cartas?

-Li, também, mas o tempo...

-Pois tudo é verdade; e ninguém mais do que eu, infelizmente, pode assegurar isso. Em menos de dez anos, esse meu indigno filho fez tudo isso. Não o posso negar em sã consciência. Se não posso...

Ao entrar, Cassi, tendo percebido que a conversa ia versar sobre ele, colocou-se de ouvido atento, embaixo da janela, nada perdendo e conseguindo ouvir esse trecho em que tomava parte o seu tio Augusto, irmão de seu pai, que, havia muito tempo, andava destacado numa alfândega do Norte. Quando o velho Manuel de Azevedo falou em papéis escritos à máquina, trazendo indicações de datas e a narração dos fatos de suas complicações com a polícia e a justiça, Cassi assustou-se. Quem estaria fazendo aquele trabalho surdo? Não era a primeira vez que tivera notícia da existência desse caderno misterioso e misteriosamente distribuído pelo correio. Dissera-lhe um investigador de uma delegacia suburbana que, logo que havia mudança de delegado ou de comissário, numa delas, o novo delegado ou o novo comissário recebia o tal caderno. Apavorava-lhe essa perseguição nas trevas, talvez segura, que, aos poucos, o ia minando. Tão indiferente era ele pela sorte de suas vítimas e tão estúpido se mostrara sempre em não compreendê-las, que não podia encadear raciocínios seguros, para ter a procedência, mais ou menos provável, da remessa de tais cadernos.

Precisava fugir, era o que concluía; e ele se sentia ameaçado, não por duendes, mas por alçapões, homens mascarados, cárceres privados, suplícios, etc., todo o arsenal do maravilhoso das fitas de cinema.

Entretanto, queria antes resolver o caso de Clara, que, apesar de tudo, considerava em meio.

Deitou-se e dormiu regaladamente, até ao alvorecer do dia. Logo que a luz do sol ganhou uma relativa nitidez, ele foi passar revista nas suas gaiolas de galos de briga. Estava tudo a postos, e foi lhes dando milho tirado de uma lata que tinha em uma das mãos, e olhando todos aqueles bichos hediondos, com a ternura de um honesto criador, que revê o seu trabalho nas travessas pesquisas ou na doçura de olhar de seus cordeiros. Aos pintos, deu milho moído, triguilho, e só não deu ovo picado porque não era dia. O seu embevecimento por aquelas horrendas aves era sincero: elas lhe faziam ganhar dinheiro. Olhou-as e perguntou de si para si:

-Quanto valeriam ao todo?

Alguns já lhe haviam oferecido quinhentos mil-réis e ele estava disposto a vendê-las, por esse preço, depois que a «coisa» estivesse acabada...

Veio tomar café no «socavão», onde a velha Romualda lhe trazia todas as manhãs. Era velha, e a sua velhice a defendia perfeitamente contra qualquer assalto de Cassi. Perguntou-lhe este:

-Meu tio ainda está aí?

-Quem é seu tio, nhonhô?

-Aquele moço que esteve ontem, à noite.

-Ah! Foi embora logo depois do chá.

Não trocaram mais palavras. Depois de servido o café e comido o pão com manteiga, a velha Romualda levou a bandeja com a xícara, e Cassi tratou de vestir-se e sair.

Quase nunca parava em casa. Temia encontrar-se com o pai, que, por isto ou por aquilo, houvesse resolvido ficar no lar, e também por não poder suportar o desdém de suas irmãs. A casa era-lhe mais penosa do que os xadrezes, por onde passara dezenas de vezes.

Ia à procura de Arnaldo, que, morando na Estrada Real, vinha no bonde de Cascadura, para tomar o trem no Méier. Arnaldo não deixava de um só dia ir «lá embaixo». Esperava sempre fazer um biscate e, quando não o fizesse, arranjar algum «magote» no trem.

Não se enganara. Às nove e pouco, Arnaldo, com o seu nariz de tromba de tapir, os seus olhos arredios e catadores, chegara; Cassi disse-lhe que dele precisava, às cinco horas, ali; e pagou-lhe o café.

-Pois não, Cassi; nas ocasiões é que se vêem os amigos. Cá estarei.

Fazendo o sacrifício de perder uma tarde de colheita, Arnaldo chegou na hora marcada, ao ponto ajustado.

Cassi explicou-lhe então que devia ir, naquela tarde, à venda do Nascimento, cuja rua e cujo número lhe deu. Chegando lá, simularia ter ido procurar por «Seu» Meneses, que ele conhecia.

-Se ele não estiver? -indagou Arnaldo.

-Você diz que fica à espera e ouve o que se conversa lá. Nela, devem estar, entre outros, o aleijadinho que anda sempre fardado. Ele não conhece você, como os outros, conforme espero. O que você ouvir, guarda e me conta. Se Meneses aparecer, você diz que quero falar com ele, negócio de interesse dele.

Cassi deu-lhe dois mil-réis e ele se pôs a caminho, mas a pé, para poupar o tostão do bonde. Chegou à venda de «Seu» Nascimento, teve duas decepções. Encontrara dois sujeitos, que o conheciam perfeitamente: um era um engenheiro inglês, Mr. Persons, de quem «abafara» uma capa de borracha, e o outro era o Alípio, que até o sabia da roda de Cassi.

Não se deu por vencido e, atravessando por entre Alípio e o velho Marramaque, que conversavam, foi direto ao balcão e perguntou naturalmente:

-O senhor não conhece um velho dentista, por nome Meneses?

E acrescentou:

-Ele tem vindo aqui?

O taverneiro respondeu:

-Há dias que não -e, dirigindo-se aos circunstantes, por sua vez indagou-: vocês têm visto o doutor Meneses?

Todos, porém, responderam: não.

Arnaldo ia dizer obrigado, para retirar-se, quando Mr. Persons perguntou-lhe:

-Sinhôr, vem cá!

Arnaldo fez-se jovial.

-Oh! «Seu» mister como vai?

-Não diga «Seu» mister, é «error». Bem... Onde está mia capa?

-Trago por esses dias, tenho me esquecido.

-Já é duas vezes que «sinhôr» diz isso. Eu precisa da capa.

-Não me esquecerei.

E saiu apressado. O negócio da capa fora simples. Persons não viera da cidade são de seu juízo e deixara a capa descansando no banco, ao lado, recostando-se na parede do carro. Pouco antes de certa estação, Arnaldo sentou-se a seu lado, no intento de carregar-lhe a capa. Ao pôr em prática o seu propósito, Persons despertou, mas só pôde dar com o furto, quando Arnaldo ia saindo do carro. Gritou: «minha capa». Um condutor ainda agarrou Arnaldo com a carga, mas, quando o Persons deu com o lugar em que estavam ambos, já o auxiliar o tinha largado e o trem se pusera em movimento. Guardara, porém, a fisionomia do gatuno; e, vindo a encontrar-se com ele, perguntara-lhe por essa peça de vestuário, e Arnaldo lhe dissera que a havia levado por engano.

Ele saiu corrido de vergonha; mas, vendo que ninguém vinha até às portas da venda, ele voltou e se pôs a ouvir o que diziam.

O mister já acabara de contar a história da capa, quando Alípio, em tom de comentário, dissera:

-Isto que saiu daí é uma peste. Não sabia dessa história de furtos nos trens; mas basta ele ser do bando do tal Cassi, para não prestar.

Marramaque acudiu:

-Eu ainda não conhecia este. Vou indicá-lo ao compadre. O tal Trembó ou Tipó, como é?

-Timbó -fez Alípio.

-O tal de Timbó já conheço e já o apontei ao compadre. Por falar nisto, o senhor sabe, «Seu» Nascimento e meus senhores, o que recebi, há dias, pelo correio, na secretaria?

-Não -responderam todos, por sinais ou por palavras.

-A vida desse Cassi.

-Impressa?

-Não. Copiada à máquina de escrever, com fotografias dele, cópias de notícias dos jornais do tempo, indicação das datas dos processos e dos juízes e delegados, tudo!

-Quem lhe mandou? -perguntou Alípio.

-Não sei. Recebi a coisa na secretaria, lá a li e dei-a ao compadre, para se prevenir.

-Com uma boa garrucha -observou Nascimento.

-Ou revólver -obtemperou Marramaque.

Ouvindo tudo isto e percebendo que alguém se dirigia à venda, cuja hora de fechar não tardaria, Arnaldo deixou o lugar em que estava e correu ao encontro de Cassi, que devia estar no Engenho Novo.

Encontraram-se, e ele, no que não tinha o menor hábito, contou-lhe toda a verdade vista e ouvida.

Cassi nem Arnaldo não eram dados à bebida; mas o momento a pedia. Aquele convidou o seu dedicado companheiro a tomar uma garrafa de cerveja, o que fizeram quase sem conversar.

Acabada, pagaram e levantaram-se. Arnaldo procurou o seu rumo e Cassi meteu-se pela sombria Rua do Barão de Bom Retiro.

Embora não fosse tarde, já se ouviam os tiros que os suburbanos dão, de quando em quando, para afugentar os ladrões dos seus galinheiros.

Um estourou bem perto dele, e Cassi, fingindo-se calmo e sem apreensões, disse à meia voz:

-Ainda não foi desta vez.

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