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- VII -

O subúrbio propriamente dito é uma longa faixa de terra que se alonga, desde o Rocha ou São Francisco Xavier, até Sapopemba, tendo para eixo a linha férrea da Central.

Para os lados, não se aprofunda muito, sobretudo quando encontra colinas e montanhas que tenham a sua expansão; mas, assim mesmo, o subúrbio continua invadindo, com as suas azinhagas e trilhos, charnecas e morrotes. Passa-se por um lugar que supomos deserto, e olhamos, por acaso, o fundo de uma grota, donde brotam ainda árvores de capoeira, lá damos com um casebre tosco, que, para ser alcançado, se torna preciso descer uma ladeirota quase a prumo; andamos mais e levantamos o olhar para um canto do horizonte e lá vemos, em cima de uma elevação, um ou mais barracões, para os quais não topamos logo da primeira vista com a ladeira de acesso.

Há casas, casinhas, casebres, barracões, choças, por toda a parte onde se possa fincar quatro estacas de pau e uni-las por paredes duvidosas. Todo o material para essas construções serve: são latas de fósforos distendidas, telhas velhas, folhas de zinco, e, para as nervuras das paredes de taipa, o bambu, que não é barato.

Há verdadeiros aldeamentos dessas barracas, nas coroas dos morros, que as árvores e os bambuais escondem aos olhos dos transeuntes. Nelas, há quase sempre uma bica para todos os habitantes e nenhuma espécie de esgoto. Toda essa população, pobríssima, vive sob a ameaça constante da varíola e, quando ela dá para aquelas bandas, é um verdadeiro flagelo.

Afastando-nos do eixo da zona suburbana, logo o aspecto das ruas muda. Não há mais gradis de ferros, nem casas com tendências aristocráticas: há o barracão, a choça e uma ou outra casa que tal. Tudo isto muito espaçado e separado; entretanto, encontram-se, por vezes, «correres» de pequenas casas, de duas janelas e porta ao centro, formando o que chama-mos «avenida».

As ruas distantes da linha da Central vivem cheias de tabuleiros de grama e de capim, que são aproveitados pelas famílias para coradouro. De manhã até à noite, ficam povoadas de toda a espécie de pequenos animais domésticos: galinhas, patos, marrecos, cabritos, carneiros e porcos, sem esquecer os cães, que, com todos aqueles, fraternizam.

Quando chega a tardinha, de cada portão se ouve o «toque de reunir»: «Mimoso»! É um bode que a dona chama. «Sereia»! É uma leitoa que uma criança faz entrar em casa; e assim por diante.

Carneiros, cabritos, marrecos, galinhas, perus, tudo entra pela porta principal, atravessa a casa toda e vai se recolher ao quintalejo aos fundos.

Se acontece faltar um dos seus «bichos», a dona da casa faz um barulho de todos os diabos, descompõe os filhos e filhas, atribui o furto à vizinha tal. Esta vem a saber, e eis um bate-boca formado, que às vezes desanda em pugilato entre os maridos.

A gente pobre é difícil de se suportar mutuamente; por qualquer ninharia, encontrando ponto de honra, brigando, especialmente as mulheres.

O estado de irritabilidade, provindo das constantes dificuldades por que passam, a incapacidade de encontrar fora do seu habitual campo de visão motivo para explicar o seu mal-estar, fazem-nas descarregar as suas queixas, em forma de desaforos velados, nas vizinhas com que antipatizam por lhes parecer mais felizes. Todas elas se têm na mais alta conta, provindas da mais alta prosápia; mas são pobríssimas e necessitadas. Uma diferença acidental de cor é causa para que se possa julgar superior à vizinha; o fato do marido desta ganhar mais do que o daquela é outro. Um «belchior» de mesquinharias açula-lhes a vaidade e alimenta-lhes o despeito.

Em geral, essas brigas duram pouco. Lá vem uma moléstia num dos pequenos desta, e logo aquela a socorre com os seus vidros de homeopatia.

Por esse intrincado labirinto de ruas e bibocas é que vive uma grande parte da população da cidade, a cuja existência o governo fecha os olhos, embora lhe cobre atrozes impostos, empregados em obras inúteis e suntuárias noutros pontos do Rio de Janeiro.

Nem lhes facilita a morte, isto é, o acesso aos cemitérios locais.

Para o de Inhaúma, procurado por uma vasta zona suburbana, os caminhos são maus, e pior do que isto: dão voltas inúteis, que poderiam ser evitadas sem grandes despesas. Os enterros da gente mais pobre são feitos a pé, e é fácil imaginar como chegam, os que carregam o morto, no campo-santo municipal. Quem passa por aqueles caminhos, quase sempre topa com um. Os de «anjos» são carregados por moças e os destas também pelas da sua idade. Não há, para elas, nenhuma toilette especial. Levam a mesma que para os bailes e mafuás; e lá vão de rosa, de azul-celeste, de branco, carregando a pobre amiga, debaixo de um sol inclemente, e respirando uma poeira de sufocar; quando chove, ou choveu recentemente, carregam o caixão aos saltos, para evitar atoleiros e poças d'água.

Os de adultos são carregados por adultos. Nestes, porém, há sempre uma modificação do indumento dos que acompanham. Os cavalheiros procuram roupas escuras, senão pretas; mas, às vezes, surge o escândalo da sua calça branca. Vão muito pouco tristes e, em cada venda que passam, «quebram o corpo», isto é, bebem uma boa dose de parati. Ao chegarem ao cemitério, aquelas cabeças não regulam bem, mas o defunto é enterrado.

Houve, porém, uma ocasião, que o corpo não chegou a seu destino. Beberam tanto, que o esqueceram no caminho. Cada qual que saía da venda, olhava o caixão e dizia: «Eles que estão lá dentro, que o carreguem». Chegaram ao cemitério e deram por falta do defunto. «Mas não era você que o vinha carregando?», perguntava um. «Era você», respondia o outro; e, assim, cada um empurrava a culpa para o outro. Estavam cansadíssimos e semi-embriagados. Resolveram alugar uma carroça e ir buscar o camarada falecido, que já tinha duas velas piedosas a arder-lhe à cabeceira. E o pobre homem, que devia receber dos amigos aquela tocante homenagem, dos camaradas levarem-no a pé ao cemitério, só a recebeu a meio, pois, o resto do caminho para a última morada, ele a fez graças aos esforços de dois burros, que estavam habituados a puxar carga bem diferente e muito menos respeitável.

Mais ou menos é assim o subúrbio, na sua pobreza e no abandono em que os poderes públicos o deixam. Pelas primeiras horas da manhã, de todas aquelas bibocas, alforjas, trilhos, morros, travessas, grotas, ruas, sai gente, que se encaminha para a estação mais próxima; alguns, morando mais longe, em Inhaúma, em Cachambi, em Jacarepaguá, perdem amor a alguns níqueis e tomam bondes que chegam cheios às estações. Esse movimento dura até às dez horas da manhã e há toda uma população de certo ponto da cidade no número dos que nele tomam parte. São operários, pequenos empregados, militares de todas as patentes, inferiores de milícias prestantes, funcionários públicos e gente que, apesar de honesta, vive de pequenas transações, do dia a dia, em que ganham penosamente alguns mil-réis. O subúrbio é o refúgio dos infelizes. Os que perderam o emprego, as fortunas; os que faliram nos negócios, enfim, todos os que perderam a sua situação normal vão se aninhar lá; e todos os dias, bem cedo, lá descem à procura de amigos fiéis que os amparem, que lhes dêem alguma coisa, para o sustento seu e dos filhos.

Nessas horas, as estações se enchem e os trens descem cheios. Mais cheios, porém, descem os que vêm do limite do Distrito com o Estado do Rio. Esses são os expressos. Há gente por toda a parte. O interior dos carros está apinhado e os vãos entre eles como que trazem quase a metade da lotação de um deles. Muitos viajam com um pé num carro e o outro no imediato, agarrando-se com as mãos às grades das plataformas. Outros descem para a cidade sentados na escada de acesso para o interior do vagão; e alguns, mais ousados, dependurados no corrimão de ferro, com um único pé no estribo do veículo.

Toda essa gente que vai morar para as bandas de Maxambomba e adjacências, só é levada a isso pela relativa modicidade do aluguel de casa. Aquela zona não lhes oferece outra vantagem. Tudo é tão caro como no subúrbio, propriamente. Não há água, ou, onde há, é ainda nos lugarejos do Distrito Federal que o governo federal caridosamente supre em algumas bicas públicas; não há esgotos; não há médicos, não há farmácias. Ainda dentro do Rio de Janeiro, há algumas estradas construídas pela Prefeitura, que se podem considerar como tal; mas, logo que se chega ao Estado, tudo falta, nem nada há embrionário.

O viajante que se detém um pouco a olhar aqueles campos de vegetação rala e amarelada, aqueles morros escalavrados, cobertos de intrincados carrascais, onde pasta um gado magro e ossudo, fica confrangido e triste. Não há nenhuma cultura; as árvores de porte são raras; nas casas, é raro uma laranjeira virente, nem um mamoeiro semi-espontâneo desce-lhes à entrada.

Os córregos são em geral vales de lama pútrida, que, quando chegam as grandes chuvas, se transformam em torrentes, a carregar os mais nauseabundos detritos. A tabatinga impermeável, o barro compacto e a falta d'água não permitem a existência de hortas; e um repolho é lá mais raro que na Avenida Central.

O Rio de Janeiro, que tem, na fronte, na parte anterior, um tão lindo diadema de montanhas e árvores, não consegue fazê-lo coroa a cingi-lo todo em roda. A parte posterior, como se vê, não chega a ser um neobarbante que prenda dignamente o diadema que lhe cinge a testa olímpica...

Cassi Jones, em pé, na estação do Méier, via passar aqueles trens cheios de homens de trabalho, sem considerar que, quase com trinta anos, até ali, na verdade, não havia nunca trabalhado. O seu pensamento ia para outra parte.

Desde que Arnaldo lhe trouxera notícias do que ouvira na venda, ele se sentia um pouco desanimado nos seus propósitos, em relação à filha do carteiro. Ao mesmo tempo, porém, ele percebia que todas aquelas precauções contra ele eram tomadas porque a rapariga não lhe era indiferente. De modo que -concluía ele- precisava saber ao certo os sentimentos de Clara, para então agir. Era necessário ouvir-lhe a palavra; mas como? A ele, não convinha rondar a casa da filha do carteiro. Era conhecido, seria denunciado ao pai, que, naturalmente, lhe tomaria satisfações. Qualquer que fosse o desfecho do pugilato, ele só teria a perder. A sua fama, a sua má fama, se tinha corporificado naquele fantástico caderno que ia ter a todas as mãos. Não era mais formada de boquejos daqui e dali, em geral anônimos; agora, vinha documentada, com todas as indicações e referências precisas.

Havia nele com o que se pudesse condenar um santo: e, se ele agredisse o carteiro Joaquim, toda a simpatia iria para o pai, que defendia até à última extremidade a honra de sua filha, e não para ele, um contumaz e cínico sedutor. Até ali, ele contava com a benevolência secreta de juízes e delegados, que, no íntimo, julgavam absurdo o casamento dele com as suas vítimas, devido à diferença de educação, de nascimento, de cor, de instrução. Quanto à segunda e terceira causa, embora nem sempre se verificasse a segunda, podia-se admitir; mas, quanto às duas outras considerações, eram errôneas, porque ele era tão ignorante e tão mal-educado como eram, em geral, as humildes raparigas que ele desgraçava irremediavelmente.

De resto, ele já não contava com proteção alguma.

No começo, foi seu pai; depois, seu tio, o capitão-médico, ambos solicitados tenazmente por sua mãe; mas agora? Agora, ele estava certo de que nenhum deles se abalaria e gastaria um ceitil por causa dele. Restava o Capitão Barcelos. Neste, porém, ele não depositava grande confiança. Fosse coisa pequena em que nada se gastasse, o capitão mover-se-ia; no caso contrário, porém, fugiria com o corpo. Era preciso cautela, senão...

Cassi continuou a pesar os meios que podia encontrar para entender-se com Clara. Com Lafões, ele já não contava. Vira, na última visita que lhe fizera, que o velho português era matreiro. Com ele, não levaria vantagem alguma. Como havia de ser?

Dos bondes continuava a descer gente aos magotes, que se encaminhava apressadamente para a plataforma da estrada de ferro. Alguns iam tomar um café, antes de se encaminharem, definitivamente, para os «varais» da repartição; outros iam até às casas de «bicho» e deixavam lá o jogo; mas todos iam afinal trabalhar, fazer alguma coisa para ganhar dinheiro. Só o Senhor Cassi Jones de Azevedo ficava...

-Oh! «Seu» Cassi, como vai essa força?

O menestrel suburbano da modinha lânguida e acompanhamento luxurioso de olhares revirados voltou-se e reconheceu quem falava:

-Como vai você, Praxedes?

-Eu, «Seu» Cassi, vou bem. Mas esse negócio de foro... Ontem, apresentei uma exceção de incompetência; pensei que fosse julgada logo, mas o juiz transformou o julgamento em diligência... Borrou-me a pintura... Hoje, vou ver se uns embargos meus são recebidos. Tenho que ir lá embaixo... Às vezes, dá-se uma penada e lá vêm vinte, trinta e mesmo cinqüenta...

Vendo que a conversa não interessava Cassi, mudou-a de sentido e perguntou:

-Tem ido à casa do carteiro, lá na Rua Teresina?

-Há muito tempo que não; e você?

-Eu só fui lá a convite de um dos músicos. Não tenho relações particulares com a família. Por falar nisso: sabe quem saiu agora mesmo daqui?

-Não.

-O doutor Meneses, aquele velho barbado, que sabe muito, não conhece?

Correu alguma coisa na cabeça de Cassi, que o fez perguntar com pressa, antes de responder:

-Para onde ele foi?

-Foi para a casa do carteiro. Está tratando dos dentes da filha e almoça quase sempre lá. Ele precisava, coitado do doutor Meneses!, um homem ilustrado, velho, doente, quase não comia; era só beber. Isso lhe fazia mal, estava requeimando «ele» por dentro... Pode-se beber; mas é preciso comer, não acha?

Praxedes não deixava, durante toda a conversa, de mover com os braços, sem medida nem compasso, e esticar a medonha cabeça, que teimava cada vez mais em se enterrar pelos ombros adentro.

-É um achado para ele -fez Cassi, reprimindo a alegria-. Tenho também um trabalho para o Meneses... Se você o encontrar, diga-lhe que eu quero falar com ele.

-Não me esquecerei; mas, caso o senhor tenha pressa, pode procurá-lo à noite, ali, no botequim do Fagundes, perto do posto de bombeiros. Até logo, que tenho que chegar cedo à cidade!

Cassi despediu-se também e encaminhou toda a sua esperança de entender-se diretamente com Clara, por intermédio de Meneses. Ele sabia-o velho, alquebrado, necessitado, viciado na bebida, sem dinheiro, seria fácil vencer as suas repugnâncias. Pela primeira vez, pensou o modinheiro, tinha que gastar algum...

Em parte ele se enganava, porquanto, embora Meneses estivesse nas últimas extremidades, até agora não fizera ato menos liso na sua vida. Podia-se classificá-lo de puro. Meneses, José Castanho de Meneses, nascera de pais portugueses, numa cidade do litoral, sul do Estado do Rio de Janeiro. Naqueles tempos, essas cidades eram prósperas; mas, atualmente, têm, para demonstrar a sua irremediável decadência, o fato de não se ter notícia de haver sido construída em quaisquer delas, de quarenta anos a esta parte, uma única casa.

O pai tinha uma loja, um bazar, que ia próspero; mas, com a decadência da localidade, de que foi um dos fatores a construção da Central, o estabelecimento comercial foi decaindo. O pai viu-se obrigado a suprimir despesas, uma das quais era a da educação e instrução dos filhos. O José, que já tinha dezessete anos, veio para a loja e os outros foram colocados aqui e ali, nas pescarias de «currais», que o pai tinha, e na salga de peixe, levada a efeito muito rudimentarmente, também do velho Meneses.

Aos vinte e dois anos, José, que se aborrecia com aquela vida, pôs o pé no mundo e correu, durante uns trinta, o interior das antigas províncias do Rio, Minas e São Paulo. Tudo ele foi; tudo sofreu, mas sempre inquebrantavelmente honesto. Aqui, foi guarda-livros de um armazém; numa fazenda, administrador; num vilarejo, professor das primeiras letras; em certa idade, encontrou um boticário simpático, que se fez seu amigo, lhe ensinou a manipular drogas, também a obturar e limpar dentes, e a passar pequenas receitas. Foi onde se demorou mais; mas isto se veio a dar já no fim da sua carreira vagabunda, quando já não podia mudar de rumo. Na vizinhança da cidade, construía-se um depósito e modestas oficinas de pequenos reparos, para as máquinas de um ramal férreo que lá ia ter. José, que seguia as obras e via as máquinas, ficou assombrado com aquelas maravilhas de caldeiras, fornalhas, bielas, manivelas, alavancas, que se coordenavam para mover e parar aqueles hediondos monstros de ferro -as locomotivas. Quis entrar no segredo de tudo aquilo e fazia perguntas sobre perguntas. No começo, os operários explicavam; mas as perguntas eram tais e tantas, que eles acabaram por se aborrecer com elas e com o velho perguntador. Meneses não se aborreceu, pois se sentia com a vocação de engenharia e de engenheiro. Ali, porém, não tinha onde estudar. Convinha descer para o Rio de Janeiro, freqüentar aulas teóricas e aperfeiçoar-se em oficinas adequadas. O dinheiro que tinha era pouco, mas o boticão sempre dava alguma coisa, e a renda tinha aumentado, graças à afluência de operários para acabamento da estradinha local. Demais, também receitava. Fazia alguma coisa: a questão era economizar. Assim fez e, durante um ano, poupou o dinheiro necessário para ir estabelecer-se no Rio e esperar uma colocação qualquer.

O seu amigo farmacêutico não o quis dissuadir, mas disse-lhe:

-Se você fosse mais moço, aconselharia até, porque se projetam grandes obras, no Rio; mas, já tendo passado dos cinqüenta, é fazer o que parecer melhor a você. Em todo o caso, vou pedir ao Coronel Carvalho uma recomendação.

Durante esse longo lapso de tempo que vivera fora da família, recebera vagas notícias de seus pais e irmãos. Sabia que os pais tinham morrido e quase todos os irmãos; e que o único que lhe restava era remador da Capitania do Porto e mantinha a irmã solteira, a única que tivera. Moravam lá para a Saúde.

Meneses embarcou contente; ia afinal realizar a sua vocação. Até agora, não a tinha encontrado; mas, desde que vira aquelas máquinas e maquinismos, sentira outra coisa dentro de si. Não deixou, entretanto, de levar a mala dos ferros de dentista e a carta de recomendação.

No dia seguinte, depois de uma noite insípida no hotel, foi, indagando daqui, informando-se dali, até à Capitania do Porto.

Perguntou pelo remador seu irmão e, sem dificuldades, lhe informaram que, em breve, ele viria. Não esperou muito. Um homenzarrão forte, tostado, com um vestuário de marinheiro, chegou-se ao porteiro e perguntou:

-Quem é que me procura?

O porteiro apontou Meneses, sentado a um banco, e disse:

-É aquele senhor ali.

O irmão não deu muitos passos em sua direção; Meneses ergueu-se logo, correu-lhe ao encontro, perguntando:

-Você não me conhece mais?

-Não, senhor.

-Sou o seu irmão Juca.

Abraçaram-se muito, e o irmão Leopoldo foi dizer ao porteiro quem era e o que havia.

-Há trinta anos! -exclamou o porteiro-. Você devia ser muito criança, hein, Leopoldo?

O marinheiro respondeu:

-Devia ter cinco anos.

-É verdade -informou Meneses.

Leopoldo foi arranjar licença para acompanhar o irmão que não via há trinta anos: e Meneses ficou a conversar com o porteiro sobre coisas da roça.

-Ah! Então o senhor é engenheiro?

-Sim, mas mecânico. Trabalho, porém, com o nível e com o trânsito.

-Agora, deve haver muito trabalho para engenheiro; vão-se fazer grandes obras... Aproveite, doutor!

-Trago aqui uma carta para o Deputado Sepúlveda. Tem influência?

-Muita! É o pensamento da política mineira... Não lhe deixe a aba do fraque, doutor!

A conversa foi interrompida pela chegada de Leopoldo, que obtivera a licença. Pelo caminho, porém, contou a Meneses como todos morreram; como ele se empregara na Capitania e casara a irmã com um colega, o Pedro Rocha, rapaz bom, bem-comportado, do qual tinha um sobrinho, Edmundo, com seis anos, e com o qual morava, na Rua do Livramento.

Chegando à casa do cunhado e do irmão, a sua irmã Etelvina, que ele deixara com sete ou oito anos, não o reconheceu; e, em breve, tendo-lhe chegado o marido, foi uma festa de que só não participou o sobrinho de seis anos, sempre de nariz sujo e vestes rotas, arredio e agarrado às saias da mãe, mas sem querer tornar a bênção ao tio.

A irmã logo convidou o irmão mais velho a ficar com eles. Havia um barracão no quintal, que, bem reparado, podia servir para Leopoldo, e o quarto deste ficaria para o Juca. Enquanto não estivesse em estado, ele teria a paciência de dormir com Leopoldo. Meneses aceitou o alvitre, dizendo:

-Se eu tenho que gastar em outra parte...

Logo foi interrompido por todos:

-Oh! Não, não, Juca!

-Não é esse motivo! -fez o cunhado.

-Não seja essa a dúvida, mano Juca.

Meneses ficou muito agradecido e acrescentou:

-Mesmo porque quero que um de vocês consiga meios e modos de falar ao doutor Sarmento Sepúlveda, na Câmara. Tenho uma carta para ele.

O cunhado logo exclamou:

-O quê! É um bicho.

Combinado tudo isto, Meneses instalou-se na casa dos parentes, com a sua mala e os seus ferros de dentista. Levou a carta do Coronel Carvalho ao deputado, que o atendeu muito bem, perguntou-lhe pelas pessoas gradas do lugar onde estivera e deu-lhe outra para o chefe da construção da avenida. No dia seguinte, estava admitido. Ganhou dinheiro, não o guardou, mas, se assim foi, motivo não houve em desperdício de sua parte. O irmão em breve adoecia e morria; o cunhado seguia-se-lhe logo. Custeou o tratamento de ambos; e, quando foi dispensado da comissão da avenida, pouco após a morte de ambos, pouco ou nada tinha. A irmã ficara com uma pequena pensão mensal da Caixa dos Remadores, cerca de trinta mil-réis, e um filho; e ele, com seus ferros de dentista. É verdade que fizera uma pequena biblioteca de engenharia mecânica: As Grandes Invenções, de Luís Figuier; As Maravilhas da Ciência, de Tirrandier; manuais de toda a sorte de ofícios e recortes de jornais que tratavam de coisas científicas ou parecidas, colados em cadernos encadernados. Dessa biblioteca, nunca se separou; e, conquanto já bebesse, com o tempo, os desgostos e a miséria atraíram-no mais para o álcool, e o furor de beber o tomou inteiramente. A toda hora, naquele casebre dos subúrbios, onde morava com a irmã e o palerma do sobrinho, ele esperava, adivinhava, construía uma catástrofe que lhe devia cair sobre os ombros; e essa visão de uma próxima catástrofe na sua vida entibiava-lhe o ânimo, descoroçoava-o e pedia-lhe para afastar a bebida. Na rua, se só, era a mesma coisa. Só a tinha longe dos olhos, quando de súcia com outros.

Contudo, apesar das duras necessidades que curtia, com a irmã e o filho desta, jamais ato algum de sua vida incidira na censura de sua consciência. O pouco dinheiro que os ferros lhe davam ou os amigos, era empregado no sustento deles, pois a casa era paga com a pensão de Etelvina, a irmã.

Cassi, para vencê-lo, para ladeá-lo, tinha imaginado o plano de, aos poucos, pô-lo a seu dispor, prendê-lo de pés e mãos, como se diz, sem ele perceber.

Sabendo onde encontrá-lo à noite, nessa mesma do dia em que soube, procurou-o. Meneses estava triste a um canto, lendo um jornal, com um cálice vazio ao lado.

O homem das modinhas chegou-se e, sem dizer palavra, foi-se abancando:

-Boa-noite, doutor!

-Boa-noite, «Seu» Cassi -fez Meneses, erguendo a cabeça do periódico.

-Que há de novo, por aí? Trabalha-se muito?

-Alguma coisa. Agora, as coisas me correm melhor. O Joaquim dos Anjos deu-me os dentes da filha a tratar, e ele, embora pouco, sempre me paga pontualmente. É um alívio!

-O doutor é um sonhador. Tem sido explorado...

-Nem tanto. Quando fiz aquele trabalho para uma de suas irmãs, fui muito bem pago. A minha dificuldade é não ser formado; demais, não tenho roupas... Às vezes, «Seu» Cassi, para arranjar esses sapatos de duraque que uso, por não poder usar outros, suo sangue e faço das tripas coração...

-Paciência, doutor. Tome alguma coisa -fez Cassi amável.

Meneses aceitou e disse amargamente:

-Estou com setenta anos e não sei o que fiz na vida.

Cassi regozijava-se, intimamente pensando: o homem está cheio de dificuldades.

-Não desanime. O Capitão Sebastião, aquele da Prefeitura, há dias me disse que ia precisar de um dentista modesto para consertar os dentes de um filho, que, na «muda», deixou acavalar. É pouca coisa, mas, talvez, daí...

-Aceito tudo...

-Outra coisa, doutor Meneses.

-Que há?

-O senhor se dá muito com o Leonardo Flores, o poeta?

-Muito. Por quê?

-É que eu queria uns versos...

Meneses não escondeu o espanto, que Cassi percebeu, e, sem dissimular, procurou explicar-se melhor:

-É coisa séria. Não há compromisso nenhum para os senhores... Eu daria alguma coisa até!...

-É que o senhor não sabe como o Flores é orgulhoso. Dentro daquela sujeira toda, esfarrapado, alagado de cachaça, ele é um deus; e não lhe toque em coisas de poesia, porque senão...

-Sei bem; mas sei também que o senhor tem grande influência sobre ele. Veja se me arranja? Olhe, doutor, não é para afrontar; tem aqui dez mil-réis para as primeiras despesas. Cinco são para o senhor e cinco para ele.

-Não é preciso -disse Meneses, já um tanto convertido.

A sua miséria lhe falava. Não havia quebra de honestidade, tanto mais que não se tratava de injúrias e insultos a ninguém.

-Não, doutor; leve, leve! Tudo deve ser pago. Não é preciso grande coisa; bastam uns versos amorosos, mas delicados e finos, morais, está ouvindo, doutor?

Cassi foi-se, depois que Meneses prometeu arranjar a versalhada. Já passavam das sete horas, e, logo que o violeiro desapareceu, o dentista levantou, foi a um ângulo do balcão e disse para o caixeiro, dando-lhe a nota de dez mil-réis que havia recebido das mãos de Cassi:

-Paga aqueles seiscentos réis que estou devendo e me dá mais outra «lambada».

Tomou-a e voltou a sentar-se na mesa. Comprou num jornaleiro os jornais da noite e foi-se deixando ficar, levantando-se, de quando em quando, para sorver às escondidas um «calisto». Aí, pelas proximidades das dez horas, sobraçando um maço de jornais, encaminhou-se para casa, no firme intuito de dar cumprimento à promessa que fizera a Cassi. A casa era um tanto longe, pelos bons caminhos; mas, cortando-se caminhos desertos, subindo e descendo morros, chegava-se a ela com mais presteza.

Não hesitou e tomou os atalhos, que conhecia bem; e, quase por instinto, os seguia até à sua residência. Ficava esta numa campina nua; e só era cercada na frente, toscamente, e, do lado direito, graças ao vizinho. Tinha um cajueiro mofino, que disfarçava a casinha e dava uma escassa sombra à torneira d'água, onde a irmã lavava roupa, de casa e de fora. De onde em onde, Meneses cismava em plantar algumas árvores de rápido crescimento, para sombra; mas lá vinham os cabritos da vizinhança e matavam-lhe os brotos. A muito custo, conseguiu fazer um caramanchão tosco com que ensombrasse a sala de jantar, onde dormia, e que se prestasse a cozinha, nos dias normais. A casa só tinha dois aposentos iguais, que se comunicavam por uma porta. Não fora a rua, não teria frente nem fundos, tão semelhantes eram essas extremidades dela. A irmã habitava o aposento da frente, dividido por uma cortina, que corria do portal da porta interior até ao da que dava para a rua. Era de telha-vã e de chão.

Chegou em casa e comeu o feijão e arroz com pirão de fubá de milho, que a irmã lhe guardava sempre. Fez isto à luz de um «vagabundo», espécie de lanterna, de querosene, reduzida aos seus últimos elementos. Bebeu dois ou três cálices de parati, pois sempre o tinha em casa; e estirou-se num velho canapé, com um fundo de tábuas de caixões, acolchoado com jornais. A roupa, ele a tinha tirado com todo o cuidado e com todo o cuidado depositado na guarda de uma cadeira de pau, a única existente na casa. A mesa de pinho, uma carcomida velha mesa de cozinha, tomava o resto do aposento; e, nela, roncava o palerma do sobrinho. Cobriu-se com uma manta, feita de metades de duas outras, e dormiu serenamente.

Logo pela manhã, no dia seguinte, a irmã despertou-o assustada:

-Juca! Juca!

-Que é mulher? Não se pode dormir mais nesta casa...

Depois, mudando de tom:

-Que há, Etelvina?

-Precisamos de açúcar, café, e já devemos ao padeiro seiscentos réis.

-Você vai ao bolso do colete e tira de lá todas as pratas e níqueis que encontrares. Deixa só quatrocentos réis. Julgo que deve haver uns três mil e tantos a quatro mil-réis. Fica com tudo. Dá-me um cálice, aí!

A irmã não parecia mais moça do que ele quinze anos. Era velha, encarquilhada, magra, quase desdentada, cabelos completamente brancos, toda ela respirando cansaço e desânimo.

Ela chamou o filho, «Edmundo!», que logo apareceu. Mole, bambo, a muito custo aprendera a ler e a rabiscar, a esforços do tio; mas não ficava em lugar nenhum. Tal era a sua inércia e moleza, que logo era despedido. O seu ofício era caçar preás, rãs, para vender aos estrangeiros da «fábrica», apanhar passarinhos e, de onde em onde, ajudar a fazer pescarias, no porto de Inhaúma.

A mãe, com o produto de suas pobres lavagens para fora, era afinal quem o vestia, porque ele bebia tudo o que ganhava, mas raramente tocava na garrafa que o tio tinha em casa e não trazia bebida para casa, absolutamente.

Tendo Etelvina servido o irmão de parati, este verificou que a garrafa continha pouco e, à nota das compras a fazer, mandou que juntasse mais meia garrafa de aguardente. A que restava, passou-a para um vidro de farmácia.

A irmã não se conteve, que não exclamasse:

-Ah! Santo Deus! Esse parati é uma desgraça...

-Não há dúvida, mana; mas, agora, não posso mais parar, senão morro... Olha o jornal! -gritou ele para Edmundo.

-Sim, titio -respondeu-lhe o sobrinho, do meio da rua.

Como também tivesse pressa em tomar café, Edmundo fez prestamente as compras. A fogo de gravetos, em breve o café estava pronto. Meneses, a irmã e o sobrinho tomaram-no em redor da mesa; ela, sentada na cadeira, e eles, no velho canapé.

Bebericando e lendo o jornal, o velho dentista deixou-se ficar deitado. Era dia santo, quase feriado, dia de ponto facultativo, que iria fazer? Lembrou-se de procurar Leonardo Flores. Era a sua obrigação. Almoçaria e iria até à casa dele. Assim fez. Encaminhou-se imediatamente para a casa de Leonardo Flores, que não ficava muito longe, pela Estrada Real, em cujas margens residiam ele e sua irmã Etelvina com o filho.

Em lá chegando, foi recebido pela mulher, Dona Castorina, que o fez entrar. Estava avelhantada, gasta, já não pela idade, que não podia ser ainda de cinqüenta anos, mas pelos trabalhos por que tinha passado com o marido, mais do que com os próprios filhos. Nunca se lhe ouvia um queixume, nunca articulou uma acusação contra Flores. Sofria todos os desmandos do marido com resignação e longanimidade. Esse seu gênio, esse seu temperamento de doçura e perdão em face da exaltação, da exacerbação, até quase delírio, do marido, fizera que este produzisse o que produziu. Não fora ela, aquela pequena mulata, magra, de olhos negros e tristes, rindo-se sempre com uma profunda expressão de melancolia; não fora aquela humilde mulatinha, que estava ali defronte de Meneses, talvez Flores não fizesse nada. Este sabia disso e a amava, apesar de tudo o que pudesse depor contra eles, e ela tinha, no fundo d'alma, apesar dos desregramentos do seu marido, um grande orgulho de sua Glória.

Dona Castorina informou-o que Leonardo havia saído, para visitar um amigo, em companhia de um filho; e talvez passasse o dia em casa dele. Meneses ainda conversou um pouco, tomou dois cálices de parati de Mangaratiba, que um filho seu, auxiliar de trem, trouxera para o pai.

Na hipótese -e muito plausível, consoante o gênio de Leonardo- de que ele houvesse parado na venda do «Seu» Nascimento, foi até lá. Não o encontrou e saiu com a consciência dolorida pelo que ouvira da boca de Marramaque, de Alípio e demais.

Teve remorso e vergonha do que estava fazendo? Para que iria ele, arranjando aqueles versos, contribuir? Dirigiu-se para o Engenho de Dentro, a ver se encontrava alguém com quem conversar e disfarçar aquele começo de acusação, que, à sua fraqueza, se debuxava na sua consciência. Encontrou um grupo de rapazes da estrada de ferro, que eram sempre generosos com ele. Estavam ruidosos e contentes. Meneses sentou-se na roda, mas não houve meio de despregar a língua.

-Que é isto, Meneses? Bebe! -fez um.

Ele bebia, mas o espinho não saía. Conversava afinal um pouco. Num dado momento, vendo que era demais na conversa com a sua tristeza e o seu arrependimento reprimido, despediu-se. Um lhe perguntou:

-Vais para casa? Tens dinheiro?

Ele respondeu:

-Vou já para casa; mas dinheiro não tenho.

Os rapazes fizeram-lhe um rateio, que perfez dois mil-réis; e, quando saía, um outro, levantando os braços, de um dos quais pendia uma antiquada bengala de cerejeira, gritou para o caixeiro:

-Antunes, dá uma garrafa de «cachaça», «cachaça», estás ouvindo?, «cachaça»!, dá uma garrafa de «cachaça» para o nosso querido Meneses espantar as suas mágoas.

Quando Meneses apareceu em casa, a irmã foi-lhe logo dizendo:

-Juca, foi bom você aparecer. Estou sem dinheiro para carvão, farinha e querosene. O que você deu não chegou... Fui comprar carne-seca, lá se foi todo o dinheiro.

O velho Meneses, semi-embriagado, já sem decidir perfeitamente, tirou os cinco mil-réis que estavam escondidos na algibeira e destinados a Flores, juntou mais dez tostões e disse para a irmã:

-Tens aí seis mil-réis até segunda-feira. Mana, você até lá não tem direito de me pedir mais dinheiro. Hoje é sexta-feira, temos sábado e domingo garantidos.

Bebeu um cálice do parati que trouxera, deitou-se e tentou ler os jornais que os rapazes lhe deram; mas não pôde. O sono o tomou até à hora do jantar. Quando abriu os olhos e se lembrou de ter dado os cinco mil-réis, destinados a Flores, em troca de versos, aborreceu-se um pouco; mas pensou e fez de si para si: «Eu me arranjo». Comeu bem e, enquanto houve luz do sol, leu e releu os jornais que tinha; quando veio a noite, continuou a lê-los, sempre bebericando aguardente.

No dia seguinte, logo que amanheceu, ainda não se havia feito o dia totalmente, foi até à bica, lavou-se quase inteiramente, aproveitando a escuridão, preparou o café, tomou uma xícara, seguida de alguns cálices de parati, e pôs-se na rua antes das sete horas. Era ainda cedo para ir à casa de Leonardo Flores. Foi à estação, comprou um jornal, leu-o e seguiu para a residência do amigo. Flores já se encontrava de pé e quase todos de casa. Recebeu-o vestido com uma calça velha e de camisa de meia. Estava escrevendo. Ao se lhe deparar o amigo, olhou-o muito demoradamente; e, em seguida, fazendo com os braços um gesto perfeitamente teatral, inclinando para trás a cabeça e estufando o peito, conforme o consagrado na ribalta para encontros sensacionais, falou com voz cava e solene:

-Tu, Meneses! És tu, Pítias da minha alma! Notícias há muitos sóis que não hei recebido de ti. Entra neste solar amigo e repousa a fadiga da jornada naquela credência de Córdova que o Abd-El-Málek, caído do Atlas, me mandou de Marrocos e foi do último rei de Granada, Boabdil, que chorou...

-Flores, estás discursivo demais... -disse Meneses, sentado na tal credência de Córdova, que não era nada mais do que uma vulgar cadeira austríaca de palhinha.

-Bebe tu agora o licor de boa amizade. É produto genuíno das minhas terras solarengas e avoengas de Mangaratiba.

Tomaram o «licor de boa amizade»; e, após, o poeta, falando em tom natural, perguntou ao amigo:

-Como vais, Meneses?

-Assim; e tu?

-Às vezes, bem; às vezes, mal, conforme a lua. Já tomaste café?

Embora dissesse que sim, Flores teimou em servir-lhe outra xícara, que foi buscar à cozinha. A sala de visitas era a mesma de há vinte anos. Tinha resistido a todas as mudanças e todas as despesas. Um sofá austríaco, velho, esburacado; duas cadeiras de braço da mesma marca, um trio de cadeiras de todos os feitios. Pela parede, além de outros, um magnífico retrato a óleo de pintor, feito por uma celebridade, quando nos seus começos. Uma velha estante de ferro com brochuras espandongadas e uma mesa furada com toalha de aniagem, bordada a lã de várias cores. Tinteiro, canetas e o mais para escrever.

Flores voltou com as xícaras cheias, pão e manteiga. Depositou tudo na mesa e sentou-se. Meneses notava com admiração que o amigo não dava nenhum sinal de desequilíbrio, nem de embriaguez. Isso fez-lhe prazer e, pondo-se a tomar café, perguntou-lhe:

-Flores, tu ainda fazes versos?

-Bárbaro que tu és! Pois então tu podes imaginar que eu, Leonardo Flores, deixe de fazer versos? Eu vivo de versos e no verso. Minha cabeça é um poema, interminável, que minh'alma ritma soberbamente. Não sei outra língua, senão a divina das Musas... Contraria-me falar como estou falando...

Calou-se um pouco e ambos sorveram o café a grandes goles, mastigando grandes pedaços de pão com manteiga. Flores cessou de mastigar e perguntou:

-Por que tu me perguntaste se eu ainda fazia versos?

Ingenuamente, Meneses respondeu:

-Tinha encomenda deles a fazer-te.

-O quê? -fez indignado Flores, erguendo-se, num só e rápido movimento, da cadeira, e deixando a xícara sobre a mesa-. Pois tu não sabes quem sou eu, quem é Leonardo Flores? Pois tu não sabes que a poesia para mim é a minha dor e é a minha alegria, é a minha própria vida? Pois tu não sabes que tenho sofrido tudo, dores, humilhações, vexames, para atingir o meu ideal? Pois tu não sabes que abandonei todas as honrarias da vida, não dei o conforto que minha mulher merecia, não eduquei convenientemente meus filhos, unicamente para não desviar dos meus propósitos artísticos? Nasci pobre, nasci mulato, tive uma instrução rudimentar, sozinho completei-a conforme pude; dia e noite lia e relia versos e autores; dia e noite procurava na rudeza aparente das coisas achar a ordem oculta que as ligava, o pensamento que as unia; o perfume à cor, o som aos anseios de mudez de minha alma; a luz à alegoria dos pássaros pela manhã; o crepúsculo ao cicio melancólico das cigarras, tudo isto eu fiz com sacrifício de coisas mais proveitosas, não pensando em fortuna, em posição, em respeitabilidade. Humilharam-me, ridicularizaram-me, e eu, que sou homem de combate, tudo sofri resignadamente. Meu nome afinal soou, correu todo este Brasil ingrato e mesquinho; e eu fiquei cada vez mais pobre, a viver de uma aposentadoria miserável, com a cabeça cheia de imagens de ouro e a alma iluminada pela luz imaterial dos espaços celestes. O fulgor do meu ideal me cegou; a vida, quando não me fosse traduzida em poesia, aborrecia-me. Pairei sempre no ideal; e se este me rebaixou aos olhos dos homens, por não compreender certos atos desarticulados da minha existência; entretanto, elevou-me aos meus próprios, perante a minha consciência, porque cumpri o meu dever, executei a minha missão: fui poeta! Para isto, fiz todo o sacrifício. A Arte só ama a quem a ama inteiramente, só e unicamente; e eu precisava amá-la, porque ela representava, não só a minha Redenção, mas toda a dos meus irmãos, na mesma dor. Louco?! Haverá cabeça cujo maquinismo impunemente possa resistir a tão inesperados embates, a tão fortes conflitos, a colisões com o meio tão bruscas e imprevistas? Haverá?

Flores havia falado até agora de pé, no meio da sala, sublinhando tudo com grandes e largos gestos e modulando a voz conforme a paixão lhe tocava. Fatigou-se, calou-se um pouco, cruzou os braços adiante do corpo, enterrou o queixo pontiagudo e barbado no peito e, assim, sempre calado, ficou instantes a sacudir levemente a cabeça, um tanto virada para a esquerda, olhando o amigo desoladamente. Era ele pardo-claro e cabelos negros e lisos, com abundantes fios brancos; tinha malares salientes e a boca bem-feita. Altura média. Diante da explosão do amigo, Meneses não encontrou nada que dizer. Calou-se prudentemente e evitou o olhar de Flores, onde este lhe censurava e, ao mesmo tempo, se apiedava pela incompreensão que não podia existir num velho amigo, tal como Meneses, pela verdadeira natureza e poder do seu estro e pelo seu ardor artístico.

Leonardo, com menos paixão e entusiasmo, continuou:

-Sim, meu velho Meneses, fui poeta, só poeta! Por isso, nada tenho e nada me deram. Se tivesse feito alambicados jeitosos, colchas de retalhos de sedas da China ou do Japão, talvez fosse embaixador ou ministro; mas fiz o que a dor me imaginou e a mágoa me ditou. A saudade escreveu e eu translado, disse Camões; e eu transladei, nos meus versos, a dor, a mágoa, o sonho que as muitas gerações que resumo escreveram com sangue e lágrimas, no sangue que me corre nas veias. Quem sente isto, meu caro Meneses, pode vender versos? Dize, Meneses!

-Não. Deve sempre assiná-los.

-Pois eu não vendo, passe por que passar. Sofram, sonhem e bebam cachaça, se o quiserem fazer. Isto não será bastante -disse ele com melancolia- é preciso ter nascido como eu, ter perdido todos os seus irmãos na pobreza e ter um, há vinte anos, atacado da mais estúpida forma de loucura, para os poder fazer. Isto, porém, ninguém pode obter por sua própria vontade. Bendito seja Deus!

Sentou-se com os olhos úmidos, tomou uma «talagada» do «Mangaratiba» e dispôs-se a escrever, recomendando ao amigo:

-Deita-te no sofá e lê os jornais, enquanto escrevo alguma coisa, até o «ajantarado».

Meneses assim fez. Veio a dormir e, quando despertou, ficou admirado da amplitude da sala e ter as pernas livres. Sonhara que estava preso e acorrentado...

- VIII -

Um dos traços mais simpáticos do caráter de Joaquim dos Anjos era a confiança que depositava nos outros, e a boa-fé. Ele não tinha, como diz o povo, malícia no coração. Não era inteligente, mas também não era peco; não era sagaz, mas também não era tolo; entretanto, não podia desconfiar de ninguém, porque isso lhe fazia mal à consciência. Não se diga que, às vezes, não recebesse certos conhecimentos com reservas e cautelas; tal coisa, porém, era rara, e gracioso era estar já prevenido de antemão com o sujeito. Em geral, fosse quem fosse, ele acolhia com simpatia, de braços abertos. Na sua simplicidade, a maldade, a má-fé, a perversidade, a duplicidade dos homens lhe pareciam coisas tão raras, tão difíceis de medrar numa criatura de Deus, que só topariam com elas os que lhes andassem à procura, para estudos e coleções.

A sua vida se havia desenvolvido até ali na maior boa-fé e, como houvesse sido feliz, no seu ponto de vista, os seus cinqüenta anos julgavam o mundo como um reino de paz, de concórdia, de honestidade e lealdade, apesar das notícias de jornais.

Jamais lera jornais habitualmente. Se tomava um e tentava ler qualquer coisa, logo lhe vinha o sono. Tudo que não viesse ferir-lhe o ouvido, não suportava e não lhe ia à inteligência. Não compreendia um desenho, uma caricatura, por mais grosseira e elementar que fosse. Para que pudesse receber qualquer sensação duradoura e agradável, era-lhe preciso o «som», o «ouvido».

Música, desde que fosse aquela a que estava habituado, encantava-lhe; canto, mesmo acima da trivial modinha, arrebatava-o; versos, quando recitados, apreciava muito; e um grande discurso, cujos primeiros períodos ele não seria capaz de lê-los até ao fim, entusiasmava-o, fosse qual fosse o assunto, desde que o dissesse grande orador. Era pobre de visão e o funcionamento do seu aparelho visual era limitado às necessidades rudimentares da vida.

Conquanto razoavelmente empregado, nunca deixara a música. Não tocava em bandas nem em orquestras; mas tirava partes, instrumentava, compunha de quando em quando, ganhando algum dinheiro com isso. Todas as tardes, após o serviço, reunia-se com outros músicos militantes, bebericavam, conversavam, falavam sobre a «Arte», as orquestras de cinemas, a música de tal peça ou daquela outra, relembravam colegas mortos; e, às seis horas, por aí assim, encaminhava-se para a casa, sempre com um rolo de papel de música.

Trabalhava nas encomendas, após o jantar. Punha-se de calças e camisa de meia, nos dias quentes, ou com um paletó velho, nos frios, e enfronhava-se nos compassos, nos sustenidos, nos acordes, até alta noite. Tinha ensinado à filha os rudimentos da arte musical e a caligrafia respectiva. Não lhe ensinara um instrumento, porque só queria piano. Flauta não era próprio, para uma moça; violino era agourento, e o violão era desmoralizado e desmoralizava. Os outros que o tocassem, sem música ou com ela; sua filha, não. Só piano, mas não tinha posses para comprar um. Podia alugar, mas tinha que pagar professora para a filha. Eram duas despesas com que não poderia arcar. O rendimento da música não era coisa certa; e os seus vencimentos tinham emprego obrigado no vestuário seu, da mulher e da filha, no armazém, etc., etc.

Por isso, não levou avante os estudos musicais da filha, os quais, por falta de convivência e tempo, não passaram da pouca coisa que ele podia ensinar. Mesmo ela não tinha nenhum ardor musical, nem de repetir, de reproduzir, nem de criar; aprazia-lhe ouvir, e era o bastante para a sua natureza elementar. Nem a relativa independência que o ensino da música e piano lhe poderia fornecer, animava-a a aperfeiçoar os seus estudos. O seu ideal na vida não era adquirir uma personalidade, não era ser ela, mesmo ao lado do pai ou do futuro marido. Era constituir função do pai, enquanto solteira, e do marido, quando casada. Não imaginava as catástrofes imprevistas da vida, que nos empurram, às vezes, para onde nunca sonhamos ter de parar. Não via que, adquirida uma pequena profissão honesta e digna do seu sexo, auxiliaria seus pais e seu marido, quando casada fosse. Ela tinha bem perto o exemplo de Dona Margarida Pestana, que, enviuvando, sem ceitil, adquirira casa, fizera-se respeitada e ia criando e educando o filho, de progresso em progresso, fazendo tudo prever que chegaria à formatura ou a coisa parecida.

A muito custo, devido às insistências de Dona Margarida, consentira em ajudá-la nos bordados, trabalhados para fora, com o que ia ganhando algum dinheiro. Não que ela fosse vadia, ao contrário; mas tinha um tolo escrúpulo de ganhar dinheiro por suas próprias mãos. Parecia feio a uma moça ou a uma mulher.

Clara era uma natureza amorfa, pastosa, que precisava mãos fortes que a modelassem e fixassem. Seus pais não seriam capazes disso. A mãe não tinha caráter, no bom sentido, para o fazer; limitava-se a vigiá-la caninamente; e o pai, devido aos seus afazeres, passava a maioria do tempo longe dela. E ela vivia toda entregue a um sonho lânguido de modinhas e descantes, entoadas por sestrosos cantores, como o tal Cassi e outros exploradores da morbidez do violão. O mundo se lhe representava como povoado de suas dúvidas, de queixumes de viola, a suspirar amor. Na sua cabeça, não entrava que a nossa vida tem muito de sério, de responsabilidade, qualquer que seja a nossa condição e o nosso sexo. Cada um de nós, por mais humilde que seja, tem que meditar, durante a sua vida, sobre o angustioso mistério da Morte, para poder responder cabalmente, se o tivermos que o fazer, sobre o emprego que demos a nossa existência. Não havia, em Clara, a representação, já não exata, mas aproximada, de sua individualidade social; e, concomitantemente, nenhum desejo de elevar-se, de reagir contra essa representação. A filha do carteiro, sem ser leviana, era, entretanto, de um poder reduzido de pensar, que não lhe permitia meditar um instante sobre o destino, observar os fatos e tirar ilações e conclusões. A idade, o sexo e a falsa educação que recebera tinham muita culpa nisso tudo; mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida. Para ela, a oposição que, em casa, se fazia a Cassi, era sem base. Ele tinha feito isto e aquilo; mas -interrogava ela- quem diria que ele fizesse o mesmo em casa de seu pai?

Seu pai -pensava ela- estava bem empregado, relacionado, respeitado; ele, portanto, não seria tão tolo, que fosse desrespeitar uma família honesta, que tinha por chefe tal homem. De resto, esses rapazes não são culpados do que fazem; as moças são muito oferecidas...

Com raciocínios desse jaez e semelhantes, Clara, na ingenuidade de sua idade e com as pretensões que a sua falta de contacto com o mundo e capacidade mental de observar e comparar justificavam, concluía que Cassi era um rapaz digno e podia bem amá-la sinceramente.

O padrinho, Marramaque, parecia-lhe seu inimigo. Sempre que podia, contava mais uma proeza, mais uma falcatrua de Cassi. Não lhe cansava o assunto.

Clara até tinha, às vezes, vontade de dizer a seu padrinho: «Padrinho, esse Cassi deve ser muito rico, porque compra a polícia, a justiça, para não ser preso. Olhe: se ele fosse condenado pela metade dos crimes que o senhor lhe atribui, estaria já na cadeia, por mais de trinta anos».

Ela se enganava, porque não conhecia a vida. Para se escapar aos crimes de Cassi, basta um pouco de proteção e que o acusado seja bastante cínico e ousado.

Vivia assim ansiosa e ofegante, querendo e não querendo ver o modinheiro; ora, convencendo-se de tudo que diziam dele; ora, não acreditando e apresentando ao seu próprio espírito dúvidas e objeções, quando Meneses veio tratar dos seus dentes, após umas fortes dores que a prostraram de cama.

Um certo dia, o pai lhe havia dado, ao sair, pela manhã, um trabalho de música, para copiar, de forma que, à tarde, estivesse pronto. Não era longo, mas exigia atenção. Depois do almoço, aí pelas onze horas, pôs-se a copiar, mas, subitamente, deu-lhe uma dor de dentes que a fez gemer e até chorar.

Engrácia, sua mãe, correu a acudi-la. Como sempre, porém, ficou estonteada, sem saber o que fazer, que paliativo dar; Clara, mal falando, disse-lhe que mandasse chamar Dona Margarida.

Em vindo esta, aplicou remédios caseiros, mandou buscar malva, pela criada que tinha em sua casa; fez Clara bochechar e foi-se para a casa tratar dos seus bordados e costuras.

Engrácia, porém, não se acomodava, andava de um lado para outro, impaciente que o marido chegasse. Todas as moléstias existentes, que a natureza cria, e os médicos, por desfastio, inventam, ela supunha poder ter sua filha.

Não havia nenhuma lucidez nos seus raciocínios, quando um acontecimento de aparência grave lhe tocava, e pior ficava, quando se tratava da filha.

O seu amor à Clara era um sentimento doentio, absorvente e mudo. Queria a filha sempre junto a si, mas quase não conversava com ela, não a elucidava sobre as coisas da vida, sobre os seus deveres de mulher e de moça. A não ser no caso de Cassi, que o seu instinto de mãe falara mais alto do que a sua inércia natural, nunca punha em prática uma medida eficaz que traduzisse amparo e direção de mãe na conduta da filha. Pensava, mas não chegava ao ato.

O dia inteiro, quase, passavam as duas mulheres metidas cada uma consigo mesma.

A mãe lavava a roupa no tanque, ao lado da casa; e a filha se encarregava dos arranjos domésticos. A cozinha era feita por ambas ou só por Clara, quando não tinha músicas do pai a copiar ou sua mãe tinha muita roupa na lavagem.

Joaquim, o Quincas, como o chamava a mulher, saía, nas primeiras horas da manhã, passava pela venda, fazia as encomendas, tomava um «calisto» e conversava um pouco com o «Seu» Nascimento.

-Não acredito que «ele» venha, nem também que o outro se repimpe no Catete.

-Seria bom para o senhor... -dizia Nascimento.

-O quê? Nem o conheço... Qual! Nada tenho com um nem com outro...

-Mas é seu patrício...

-Como o senhor é, como o outro é também. Somos todos brasileiros... Eu, «Seu» Nascimento, só cuido da mulher e da filha e, um pouco, da música.

-Por falar em música: que tal aquele Cassi?

-Quer que lhe diga uma coisa? Como músico, não vale nada. Dá cada cincada...

-Mas tem fama...

-A fama dele vem do dengoso, do meloso que ele põe no cantar, chegando a ser até uma indecência. Ele canta que parece estar num café-concerto, no meio de mulheres de vida airada...

-Por aí, apreciam-no muito.

-São essas meninas bobas, que não têm quem lhes abra os olhos... Olhe, «Seu» Nascimento, na minha casa ele não me põe mais os pés.

-Marramaque, seu compadre, já me tinha dito isto e...

-O compadre exagera muito. O compadre tem o seu ponto de honra de poeta... O senhor sabe; ele já figurou, escreveu em jornais e revistas, teve roda e convivência de certa ordem, não pode admitir que um quase analfabeto, como Cassi, tenha fama de artista... A culpa não é deste; é do nosso meio, que não tem instrução nem preparo.

-«Seu» Joaquim, o senhor já viu o caderno que mandaram a seu compadre sobre o tal Cassi?

-Já.

-Que pensa daquilo tudo?

-Se é verdade, ele merece a forca.

-Pois dizem que é. O senhor não sabe quem é a tia Vicência, que mora por aqui, na Rua da Redenção?

-Não.

-Conheço-a eu. Ela é pessoa da casa de Cassi e diz que tudo aquilo é verdade. Conta até mais detalhes.

-E quem é que espalha o tal caderno?

-É um oficial do Exército, homem preparado, parece que engenheiro, cuja mulher atual é aquela moça que Cassi desonrou, e a mãe matou-se por isso, há cinco anos.

-Quem lhe disse isso?

-Vicência. Ela conhece não só a família do violeiro, como muitas das vítimas. Diz que o marido dessa moça só lhe não dá cabo do canastro, para não fazer escândalo; mas, na primeira em que se meter, toma a peito a causa da vítima, seja quem for.

Joaquim dos Anjos ouviu isso, calou-se um pouco e, sem nada responder, recomendou:

-Não se esqueça de mandar, principalmente a lenha, que é precisa para o almoço. Estou na hora... Até logo!

Saiu, pensando nesse tal Cassi, que, por mais que quisesse esquecê-lo, sempre estava presente à sua memória, sempre estavam a relembrá-lo, como se fosse uma grande coisa, um homem notável e de posição. Que é que queriam dizer com isso? Preveni-lo? O carteiro sorriu intimamente: «Ele não ousará!». E pensou na sua garrucha de dois canos, com as quais se viaja em Minas, presente ainda do inglês, seu primeiro patrão.

Homem forte, leal, direito, Joaquim tanto tinha nos outros como em si uma confiança ilimitada. Não desconfiava, nem admitia que se desconfiasse; mas esse tal Cassi...

Estendia essa sua confiança à sua mulher, no que tinha razão; mas não à filha, como fazia, porque, no tocante a esta, precisava contar com a crise da idade, a estreiteza de sua educação doméstica e a atmosfera de corrupção com que o meio a envolvia, admitindo tacitamente que ela estava fadada ao destino das «outras». Joaquim dos Anjos não tinha capacidade intelectual para tanto...

Cessou de pensar em Cassi e pôs-se a cogitar no trabalho, nas gratificações e nos aumentos. Chegou à repartição, assinou o ponto, cumprimentou os colegas e chefes; e, à hora certa, tomou a correspondência a distribuir e lá correu para escritórios, casas de comércio, entregando cartas e pacotes.

Vinha tudo isto com nomes arrevesados: franceses, ingleses, alemães, italianos, etc.; mas, como eram sempre os mesmos, acabara decorando-os e pronunciando-os mais ou menos corretamente. Gostava de lidar com aqueles homens louros, rubicundos, robustos, de olhos cor do mar, entre os quais ele não distinguia os chefes e os subalternos. Quando havia brasileiros, no meio deles, logo adivinhava que não eram chefes. Almoçava frugalmente e até às cinco executava o serviço, isto é, as várias distribuições de correspondência.

Terminado o trabalho, procurava os seus colegas de arte e, aí pelas cinco, cinco e meia, metia-se no trem para a casa.

Naquele dia, conforme o seu costume, preencheu-o todo assim, sem nenhuma discrepância ou variante, como se obedecesse a um programa. Quando chegou em casa, já se fazia escuro, e os lampiões da iluminação pública estavam acesos e prontos a suceder, consoante o seu poder, à soberba luz do sol, que ia morrendo, num crepúsculo cambiante e lento, por detrás das montanhas, que se destacavam num fundo de prata, de ouro e de púrpura, na parte do horizonte em que ele se escondia.

Veio-lhe abrir a porta a mulher, que, antes de mais nada, lhe foi dizendo:

-Ah! Quincas! Você não sabe como me vi atrapalhada, hoje, aqui... Se não fosse Dona Margarida...

-Mas o que houve, Engrácia?

-Clara ficou doente de repente, pôs-se a gemer, e eu, sem ninguém, não sabia o que fazer. Felizmente, gritei por Dona Margarida, que acudiu.

-Que é que ela teve, mulher?

-Dentes, Quincas; mas uma dor muito forte.

-Ora, você mesmo! Você é uma pamonha. Então dor de dentes é moléstia que assuste ninguém?

-É que você não viu.

-Vamos ver o que há?

Dirigiu-se para o quarto da filha, que tinha o queixo amarrado num lenço dobrado, e perguntou:

-Que houve, Clarinha?

-Nada. Tenho aqui um dente furado, que me dói de quando em quando. Hoje doeu-me mais fortemente, gemi e tive que me deitar. Felizmente o remédio que Dona Margarida me deu, fez passar a dor, mas tenho o queixo inchado...

-Não é nada?

-Penso que sim -disse Clara, e acrescentou-: olhe, papai, não pude passar a limpo a música.

-Não faz mal, eu mesmo passo.

Depois ajuntou, voltando-se para a mulher:

-É preciso levar essa menina ao dentista, Engrácia, enquanto está no começo.

-Dentistas! Deus me livre!

-Por que, mulher de Deus?

-Porque é casa de perdição, Quincas.

-Qual perdição, qual nada. Perde-se quem quer ou quem já está perdido.

-Você que a leve, Quincas. Não posso sair todo o dia... Você sabe que não posso andar muito...

-Eu não posso, pois tenho de ir para o serviço.

Pôs-se a pensar, olhando a filha deitada, com os doces olhos negros a interrogar o pai, quando lhe surgiu um pensamento:

-Vou chamar o Meneses. Ele não é formado, mas tem prática e pode certamente fazer o que se trata. Que acha, Engrácia?

-Acho bom, se ele vier em casa.

-Ele virá, pela manhã. Almoçará com vocês e dar-lhe-ei alguma coisa.

-Você quer, Clara? -perguntou o pai.

-Aceito e acho bom. Não é preciso sair e mamãe não se incomoda.

Foi assim que Meneses entrou a tratar dos dentes de Clara, fato de que tão oportunamente Cassi tivera notícias pelo doutor Praxedes, no Méier. Para o velho doutor Meneses foi uma salvação, porquanto, embora trabalhasse, não era pago ou o era mal e irregularmente. Com o carteiro, as coisas se passavam de outra forma; e, além disso, almoçaria todo o dia, vantagem que não era de desprezar.

Sabendo que Meneses estava todos os dias com Clara, Cassi, que havia resolvido pôr cerco à rapariga, tratou de aproveitar o estado de miséria, de abatimento moral em que estava o velho dentista, para realizar os seus inconfessáveis fins. Encomendou-lhe aqueles versos que deviam ser feitos por Flores e deu-lhe dinheiro, já prevendo que Meneses gastá-lo-ia e não obteria os versos. Tudo isto aconteceu; mas Meneses, quando, no dia seguinte, se lembrou da recusa de Flores e de ter gasto o dinheiro, não achou outro alvitre senão ele mesmo fazer os versos. Ficou o dia inteiro a martelar, a riscar, a emendar e, ao fim do domingo, tinha feito algumas quadras com mais ou menos sentido. Nunca, a bem dizer, fizera versos; mas, tendo corrido montes e vales, lidara com poetas e tinha o ouvido educado. De resto, escolhera o metro popular, a quadra de sete sílabas; e tanto fez que, pela tardinha, a poesia estava pronta, e o pobre velho ficou muito contente consigo mesmo, como se tivesse feito obra de vulto. Bebeu bastante e dormiu satisfeito. Havia cumprido a sua palavra de qualquer forma. Se os versos não eram de Leonardo Flores, eram dele. Não seriam tão bons; mas, pelo menos, desculpariam o gasto dos cinco mil-réis, que lhe remordia a consciência.

Na segunda-feira, à noite, depois de ter andado por toda a parte, com a sua velha mala de ferros de cirurgião-dentista, Meneses foi-se postar no botequim do Fagundes. Sentou-se, como de hábito, na última mesa, aos fundos, encostada à parede, com um jornal debaixo dos olhos e um cálice de parati na frente. Ele bebia aos goles, à vista de todos, sem vexame algum. Fazia-lhe mal, como mal faz a todo mundo; mas era solicitado a beber para se atordoar, para não se recordar, para não estar só com o seu passado, para afugentar o terror que a vida lhe inspirava, na miséria, quase indigência em que se achava, naquela idade avançada de mais de setenta anos, alquebrado, doente, sem uma amizade forte, sem um parente que o amparasse, sem uma pensão qualquer.

Cassi foi encontrá-lo engolfado na leitura do jornal:

-Pensei -disse ao sentar-se- que o doutor se havia esquecido.

Meneses, descansando o modesto pince-nez em cima da mesa, onde já havia posto o jornal, respondeu:

-Qual o quê! Sou homem de palavra... Demais, o senhor me havia dado o dinheiro, e, assim, o trato ficava mais sagrado.

Cassi tinha uma grande dificuldade em ser amável, tomar a entonação de voz conveniente, adaptar o olhar a ela, ajeitar adrede os músculos da face...

Não era capaz disso quando sincero, que fará quando falso! Todo ele era rude, metálico, grosseiro e áspero. Enfim, fez o que pôde e disse:

-Por isso, não, doutor! Eu não me lembrava de tal fato! Aquilo foi para uns beberiques... Arranjou?

-Arranjei; mas não com o Leonardo.

-Ele não quis ou...

-Não; estava bom. Como já lhe disse em certa ocasião, Flores é por demais orgulhoso, quando se trata de versos dele; e, ao falar-lhe no «negócio», deitou-me um discurso enorme, dizendo que era isto e aquilo, tinha feito tais e quais coisas e, por fim, que não vendia versos.

-Nem dados?

-Não lhe propus; mas estou certo que não daria. Pelo que disse, os versos que lhe saíam da cachola eram dele e só dele.

-E com quem arranjou?

-Fi-los, eu mesmo. Não serão...

-Vamos ver, doutor.

Meneses puxou, de dentro da algibeira do interior do fraque cinzento, um volumoso embrulho de papéis sebosos, procurou o que continha os versos, pôs o pince-nez e disse:

-Vou lê-los, para o senhor compreender melhor. A minha letra é muito ruim.

-Leia, doutor.

Meneses concertou os óculos, experimentou uma melhor posição para receber a luz e começou:

A minha Querida pena

Nas grades de uma prisão,

Mas o Amor lhe ordena

Sossego no coração.


O velho dentista ambulante, afinal, acabou e olhou interrogativamente o menestrel. Tinha este tomado um ar grotesco de entendido e olhava vago, simulando que ajustava pensamentos. Após ter Meneses perguntado o que achava dos versos, o manhoso violeiro disse:

-Não era bem isto que eu queria. Os versos, porém, não estão maus, antes são bons. Serve até para modinha... O doutor não sabe quem faça música para modinhas?

-Conheço o Joaquim dos Anjos.

-Ah! É verdade! Como há de ser? -perguntou Cassi, simulando embaraço.

-O senhor não se dá com ele?

-Dou-me; mas não tenho muita intimidade. Se fosse por intermédio da filha? Por que o doutor não pede?

-Posso pedir a ela; mas o padrinho, não sei por quê, não gosta do senhor. Se ele sabe...

Meneses arrependeu-se de ter avançado tanto, mas a sua vontade já era tão fraca que não soube, nem procurou meios e modos de fugir às conseqüências de sua confidência. Cassi aproveitou-se das aberturas do velho e disse:

-Sei; mas escrevo uma carta à Dona Clara a fim de que ela evite a má vontade do padrinho e que se saiba ser a modinha...

Meneses não pôde reprimir um movimento de espanto.

-Não tenha susto, doutor; absolutamente não malicie no que vou fazer. A carta será lida pelo senhor.

Meneses ficou mais seguro de si e continuou a beber com vontade, enquanto Cassi contava-lhe os seus ganhos extraordinários no cangueiro, jogo suburbano.

-Olhe, doutor -rematou ele-, quando precisar de algum, é só pedir.

O dentista já estava muito adiantado na embriaguez; e, ao ouvir aquilo, olhou, desejoso e mendicante, para o violeiro, que se apressou em ir ao seu encontro:

-Quanto precisa, doutor?

-Dois mil-réis, só.

-Não -disse Cassi, tirando um maço de notas da carteira -, leve cinco; e não se esqueça de estar aqui, amanhã, às sete horas. Preciso da música para breve.

Meneses foi para a casa, sem pensar no que havia prometido; e, como guiado por instinto, subiu e desceu morros, tomou atalhos e acabou se deitando muito naturalmente no seu miserável canapé. Não quis comer; a embriaguez lhe havia tomado inteiramente. Despertou, no dia seguinte, sem saber o que tinha feito nas últimas horas em que estivera fora. Lembrava-se vagamente que parara no botequim habitual. Tendo saído para fora de casa, a fim de lavar o rosto e satisfazer as exigências do organismo, quando voltou, já encontrou sua irmã de pé a lhe dizer, como quase todas as manhãs:

-Não temos nada em casa, Juca.

Meneses não sabia se tinha ou deixava de ter dinheiro. Por desencargo de consciência, foi esgravatar as algibeiras. Encontrou um níquel de cruzado e pensou: «Bem! Para o café e o açúcar, já temos». Continuou a procurar, achou, dobradinha, no fundo de um bolso, uma nota de cinco mil-réis. Espantou-se. Quem lha teria dado? Cogitou, forçou a memória, enquanto a irmã resmungava:

-Juca, você não ouviu o que eu disse?

-Ouvi; espera, que estou procurando o «cobre».

Tanto forçou a memória, tanto combinou as vagas recordações, que toda a sua entrevista com Cassi foi recordada. Teve vontade de rasgar a nota, de dizer que não faria o prometido; mas já estava sem força moral, temia tudo, temia o menor sopro, o mais inocente farfalhar de uma árvore. Toda a criação estava contra ele, conjugava-se para perdê-lo, que podia fazer contra tudo e contra todos? E a miséria? E a fome? Se se revoltasse, que seria dele, sem futuro, sem emprego, sem amigos, sem parentes, doente? Era bem triste o seu destino... Onde estava a sua mecânica? Onde estava a sua engenharia? Amontoara livros e notas pueris, e nada fizera. Levara bem cinqüenta anos, isto é, desde que saíra da casa dos pais, a viver uma vida vagabunda de ciganos, sem nunca se entregar seriamente a uma única profissão, experimentando hoje esta, amanhã aquela. De que lhe valera isto? De nada. Estava ali, no fim da vida, obrigado a prestar-se a papéis que, aos dezesseis anos, talvez não se sujeitasse, para disfarçadamente esmolar o que comer com os seus parentes. Teve vontade de chorar, mas a irmã gritou-lhe do quintal:

-Achaste o dinheiro?

-Achei.

Respondeu assim, numa palavra, e deitou bem meio copo da aguardente, que sorveu toda quase de um só trago.

Meneses pensou ainda nos seus setenta anos desamparados, estéreis, e teve infinita dor de si mesmo, da miséria do seu fim. Que resolver sobre o caso de Cassi e da carta? Sacudiu os ombros e pensou de si para si: «Que hei de fazer? As coisas me levaram a isso e...».

Cassi veio ao botequim, munido da carta, que leu, conforme prometera a Meneses. Desgostoso, com aquele mau travo na consciência, o pobre dentista ambulante procurava, durante o dia, beber a mais não poder. Tinha chegado cedo em casa de Joaquim e, tendo-o ainda encontrado, pedira-lhe dinheiro. Almoçou, saiu e foi bebendo daí em diante em todo o botequim por que passava. Ao chegar à casa do Fagundes, tinha lá uma carta de um cliente. Abriu-a; mandava-lhe dez mil-réis, por conta de cinqüenta que lhe devia. Deu cinco mil-réis ao caixeiro, para guardar, e foi para a cidade. Aí não teve medida. Todos lhe pagavam, de forma que, ao se encontrar com o Cassi, não dava mostras, mas estava completamente sem discernimento.

O violeiro leu o que quis, fechou a carta e deu-a ao pobre velho. A sua resolução já estava tomada. Havia forçosamente de se entregar à sorte, aos caprichos da corrente da miséria, de dor, de humilhação que o arrastava. Ela o havia levado até ali; era inútil resistir. Entregou a carta a Clara. No dia seguinte, recebeu a resposta. Entregou-a a Cassi. Assim, durante um mês e tanto, ele foi o intermediário da correspondência dos dois. Já não tinha um movimento de revolta; resignara-se àquele ignóbil papel como a uma fatalidade que o destino lhe impusesse. Contra a força não há resistência, pensou ele; o mais sábio era submeter-se. Não esperava mais que Cassi lhe oferecesse dinheiro, pedia-o. No começo, o violeiro foi satisfazendo inteiramente os pedidos; depois, fazia-o pela metade; por fim, dizia que não tinha dinheiro e não lhe dava nada.

Meneses, porém, continuava passivamente a desempenhar o seu indigno papel. Se não o achava decente, conformava-se diante da sua atroz e irremediável miséria. Não se julgava mais um homem...

Clara recebia aquelas cartas com uma emoção de quem recebe mensagens divinas. Entretanto, eram pessimamente escritas, a ponto de não serem, às vezes, entendidas, tão caprichosa era a ortografia delas. A filha do carteiro não via nada disso; esquecera-se até das más ausências que faziam do namorado. Para ela, ele era o modelo do cavalheirismo e da lealdade. Estava sempre a sonhar com ele, com aquele Cassi da viola. Passava da alegria para o choro. A mãe notava-lhe essas alternativas de humor e fazia-lhe perguntas. Ela as respondia, malcriadamente, desabridamente. Relaxava o serviço ou não o fazia. Quase sempre, esquecia-se disso ou daquilo. Engrácia comunicou isto tudo ao marido. Joaquim disse então:

-É verdade, Engrácia. Essa menina tem alguma coisa... Antigamente, as suas cópias de música eram limpas e certas; agora, não. Vêm cheias de raspagens, erradas, borradas... Que terá ela? Vou levá-la a um médico, que achas?

-Talvez faça bem.

Daí a dias, Joaquim faltou à repartição e levou a filha ao doutor. Este a examinou e disse ao pai:

-Sua filha nada tem. São coisas da idade e do sexo... De distrações, passeios, convivência, é o que ela precisa... Em todo o caso, vou receitar...

Joaquim fez a necessária comunicação à mulher, que ficou de se entender com Dona Margarida, para fazer-se acompanhar da filha, sempre que tivesse de sair, ir a lojas, etc. Ele mesmo, Joaquim, levou-a no próximo domingo, a passear em Niterói.

O mar não fez bem à menina. Se a sua alma estava cheia de vago e de impalpável, com a vista do mar ficou absorta no infinito, no ilimitado do Universo.

De volta, chorou toda a noite sem saber por quê. Amanheceu de olheiras roxas, corpo mole, aborrecida de tudo e de todos. A vida lhe sabia a amargo. Ela não via como se a podia adoçar. Ao mesmo tempo, lembrava-se de Cassi e enchia-se de esperanças. Saiu com Dona Margarida. A alemã, muito mais sagaz que seus pais, adivinhou o seu mal e pô-la em confissão com habilidade. Tanto fez, que Clara lhe disse francamente a origem dos seus males.

-Mas este sujeito é um tipo indigno.

-Não, para mim. Estou crente que...

-Dizem tão mal dele...

-É porque ele se deixou apanhar, enquanto outros há por aí que... Ele confessa que está arrependido do que fez, e agora quer se empregar e casar-se comigo.

Dona Margarida olhou firmemente para a moça, cravou bem os seus olhos perquiridores nos da rapariga; e fez de si para si:

-Será possível?

Apressou-se a contar a confissão de Clara à mãe. Engrácia odiava Cassi. Se, algum dia, tinha tido um sentimento forte, era esse de ódio ao violeiro. Não sabia bem como justificá-lo; mas tinha-lhe uma raiva, uma gana de morte. Quando Dona Margarida lhe narrou a confidência da filha, ela teve uma crise surda de rancor. Já não era só contra ele, mas contra a filha, que ela criara com tantos carinhos, tantos cuidados, para, afinal, vir a se «embeiçar» por aquele borra-botas, amaldiçoado por todos, até pelo próprio pai. Serenou e tomou a resolução de contar o fato, por sua vez, a Joaquim, antes que aquele perverso de modinheiro não lhes pespegasse alguma das dele.

Joaquim recebeu a notícia sem demonstrar espanto. Não gostava também de Cassi. Era, para ele, homem morigerado e trabalhador, um capadócio, um desclassificado, réu de polícia, muitas vezes, de quem tanto mal se dizia; mas, se ele quisesse casar com a filha, apesar de todos os seus maus precedentes, não se oporia. Iria falar-lhe? Ou chamá-lo-ia em casa? Não seria melhor esperar?

Pensou e tomou o alvitre de pedir a opinião do compadre Marramaque. O antigo contínuo tinha um grande ascendente moral e intelectual sobre o ânimo do carteiro, que o obedecia cegamente. Tratou, portanto, de pedir-lhe conselho.

Naquele domingo, a partida de solo tinha se adiantado pela noite afora. Deviam ser onze horas quando resolveram a «dar com o basta». Jogavam na sala de jantar, onde se encontravam, além dele, Joaquim, Marramaque, Lafões e Dona Engrácia também. Clara já se recolhera ao quarto. Parecendo-lhe que a filha dormia, Joaquim resolveu decidir a coisa. Expôs primeiramente o estado nervoso da filha, os passos que tinha dado para tratá-la e chegou ao ponto agudo da questão. Por aí, Marramaque ergueu-se furioso:

-Pois, então, você, compadre, quer meter semelhante pústula dentro de sua casa? Você não sabe quem é este Cassi? Se o pai não quer saber dele, é porque boa coisa ele não é. Ele não só desonra a família dos outros, como envergonha a própria. As irmãs, que são moças distintas, já podiam estar bem casadas; mas ninguém quer ser cunhado de Cassi. Ele se diz sempre correspondido, que se quer casar, etc., para dar o bote. Quando fica satisfeito, escorrega pelas malhas da justiça e da polícia, e ri-se das pobrezinhas que atirou à desgraça. Você não vê que, se ele se quisesse casar, não escolheria Clara, uma mulatinha pobre, filha de um simples carteiro? Sou teu amigo, Joaquim...

-É o que eu penso também -fez Dona Engrácia-. Ele pode achar muitas em melhores condições...

Clara, que ouvia tudo, chorando em silêncio, quis protestar e citar exemplos em contrário, que conhecia, mas se conteve.

Joaquim, que escutara calado a fala apaixonada do compadre, observou:

-Acho que você tem razão; mas, qual o remédio?

-É continuar... Como é que minha afilhada recebeu recados dele, comadre? -perguntou Marramaque a Dona Engrácia.

-Ela diz que foi uma amiga que lhe trouxe -respondeu a mulher do carteiro.

-Fresca amiga! -comentou rindo-se Marramaque-. O que há a fazer, Joaquim, é continuar no que está e fazer que ele saiba que você não vê com bons olhos a insistência dele junto à filha.

-Se ele teimar? -perguntou Engrácia.

-Publica-se nos jornais aquele folheto que recebi, vai-se à polícia, desmoraliza-se o tipo de uma vez; e ele que faça o que quiser.

Todos calaram-se. Lafões não precisou fazer isto, porque se havia mantido até então calado. O carteiro voltou-se para ele e perguntou-lhe:

-Que diz a isto, Lafões?

-Isso... isso é matéria delicada. Não sou da família e, por isso, não me julgo com o direito...

-Eu também não sou -acudiu Marramaque-. Estou só dando com franqueza uma opinião que me pediram; mas certo de que, Joaquim, se você permitir que esse tal sujeito entre aqui, eu, apesar do muito que devo a você, não ponho mais os meus pés na sua casa.

Levantou-se, tomou a bengala e saiu mergulhado na treva da noite, que estava bem escura, quase sem estrelas, caminhando devagar, no seu passo de capenga, até à sua modesta casa, onde chegou sem temor e tranqüilo de consciência.

Clara não pôde conciliar o sono. As idéias mais absurdas lhe passavam pela cabeça. Pensou em fugir, em ir ter com Cassi, em matar-se... Enchia-se de raiva contra o padrinho. Por fim, resolveu relatar, por carta, tudo o que se passou ao namorado. Saiu do quarto, logo que percebeu que o pai já tinha ido para a repartição; tomou naturalmente a bênção à mãe, lavou-se e serviu-se do café matinal. Como não tivessem vindo as «compras», disse à mãe que ia copiar música, enquanto as esperava. Era um pretexto. O que ela escreveu, foi uma longa carta, narrando o que ouvira naquela noite a respeito dela e dele. Antes de Meneses começar a cuidar dos dentes, ela lhe fizera entrega da missiva, que o pobre velho, cheio de amargura, logo meteu na algibeira. «Para que viver tanto?», pensou ele, limpando os ferros numa toalha de alvura imaculada.

Inteirado do que acontecera, vendo os seus planos fracassarem por causa daquele «João Minhoca» e, ainda mais, com a ameaça de ver toda a sua escandalosa vida publicada nos jornais, Cassi encheu-se de fúria má e, na maior fúria, tomou a firme resolução de remover aquele trambolho de «aleijado», que estava sempre estragando os seus planos, com os quais até já tinha gasto bastante dinheiro. Não subiam as despesas a mais de cinqüenta mil-réis...

O seu furor foi grande; tanto que, ao ler, em voz baixa, a carta, ao lado de Meneses, no botequim, este lhe notou a profunda alteração de fisionomia que, subitamente, a leitura lhe havia produzido. Os seus olhos chamejavam, os dentes estavam rilhados e toda a sua natureza baixa, feroz e grosseira se revelava, num ríctus horrível.

Pagou alguma coisa que beber a Meneses e despediu-se, sem dizer mais nada.

Meneses continuou a sorver os seus consoladores «calistos» e a perguntar de si para si:

-Que há? Que haverá? Que haveria?

O que havia, era simples: Cassi premeditava simplesmente, friamente, cruelmente, o assassinato de Marramaque. Quando ele falou a respeito a Arnaldo, limitou-se a dizer: «Vamos dar-lhe uma surra». «Por quê?», perguntou o outro. Ele respondeu: «Esse velho está abusando de ser aleijado, para me insultar. Merece uma surra». Não iam sová-lo, sabiam os dois desalmados; iam matá-lo...

Era sábado, dia em que Marramaque se demorava mais na venda do «Seu» Nascimento. Chovia e a noite viera logo fechada e escura. Grossas nuvens negras pairavam baixo. As luzernas de gás, tangidas pelo vento, mal iluminavam aquelas torvas ruas dos subúrbios, cheias de árvores aos lados e moitas intrincadas de arbustos. Marramaque, vindo da repartição, deixara-se ficar até às oito, na venda. Por essa hora, despediu-se e tomou o caminho de casa. Para se ir ter a ela, por ali, preconiza-se, entre outras, uma rua já quase completamente edificada, que terminava numa ladeira deserta. De um lado, o esquerdo, havia um terreno baldio, cheio de moitas altas; do direito, grandes árvores dos fundos de uma chácara, cuja frente era na rua paralela. Além de deserto, esse trecho era por demais sombrio, sobretudo em noites como aquela.

Marramaque, debaixo de chuviscos teimosos, embrulhado numa capa de borracha, subiu a ladeira, para depois descer o barranco e, finalmente, chegar à casa. Quando estava no alto da pequena elevação, dois sujeitos tomaram-lhe a frente e disseram-lhe: «Capenga, você vai apanhar, para não se meter onde não é chamado». Não teve tempo de dizer coisa alguma. Os dois descarregaram-lhe os cacetes em cima, pela cabeça, por todo o corpo; e o pobre Marramaque, logo à primeira paulada, caiu sobre um lado, arfando, mas já sem fala. Malharam-no ainda com toda a força e raiva, sem dó nem piedade; e fugiram, quando lhes pareceu momento azado.

No dia seguinte, ao passarem os primeiros transeuntes, ele estava morto. E, assim, morreu o pobre e corajoso Antônio da Silva Marramaque, que aos dezoito anos, no fundo de um «armazém» da roça, sonhara as glórias de Casimiro de Abreu e acabara contínuo de secretaria, e assassinado, devido à grandeza do seu caráter e à sua coragem moral. Não fez versos ou os fez maus; mas, ao seu jeito, foi um herói e um poeta... Que Deus o recompense!

- IX -

Um crime, revestido das circunstâncias misteriosas e da atrocidade de que se revestiu o assassinato de Marramaque, faz sempre trabalhar todas as imaginações de uma cidade. Um homicídio banal em que se conheceu a causa, o autor, capturado ou não, e outros pormenores, deixa de oferecer interesse, para ser um acontecimento banal da vida urbana, fatal a ela, como os nascimentos, os desastres e os enterros; mas o assassinato de um pobre velho, aleijado, inofensivo, pobre, a pauladas, faz parecer a toda a gente que há, soltos e esbarrando conosco nas ruas, nas praças, nos bondes, nas lojas, nos trens, matadores, que só o são por prazer de matar, sem nenhum interesse e sem nenhuma causa. Então, todos acrescentam, aos inúmeros e insidiosos inimigos que tem a nossa vida, mais este do assassínio por divertimento, por passatempo, por esporte.

Um ou muitos, seja em que número forem, é sempre uma ameaça que paira sobre cada um de nós, zombando da mais ostensiva pobreza e não tendo em consideração a pacatez mais pusilânime.

Marramaque não era rico nem andava com jóias, sendo certo que não podia trazer consigo muito dinheiro. O móvel do crime, portanto, não seria o roubo. Ao contrário, o exame minucioso nos bolsos das vestes, com que fora encontrado o seu cadáver, não denunciou nenhuma tentativa de saque. O pouco dinheiro que tinha -três mil e tanto- estava intacto; uma carteira, encontrada numa das algibeiras interiores do dólmã, continha unicamente papéis. Quando foi assassinado, vestia a farda de contínuo: dólmã azul-marinho e calças da mesma cor. Tinha, por baixo do dólmã, um comum colete preto, onde trazia um relógio de prata, preso numa antiga corrente de ouro, feita de diversos trancelins de ouro, reunidos por argolas também desse metal, com um remate, em forma de estribo, cujo pedal era uma pedra negra. Pois bem: nem mesmo esta peça, de algum valor, foi-lhe roubada. Posta de lado a hipótese de roubo, qual poderia ter sido o móvel do crime? Amores, conquistas? O estado de saúde, a sua semi-invalidez logo afastavam tal hipótese. Política, questões de família, nada disso explicava o crime. Só na perversidade, na vontade de matar, por parte de alguém extremamente mau e sedento de sangue, encontrar-se-ia a causa. Seria isso?, perguntavam todos.

A notícia do crime logo se espalhou pelo subúrbio inteiro, apesar de ser domingo o dia em que foi descoberto. A deformidade de Marramaque fazia-o notado e conhecido, de forma que, por toda a parte, se comentava o assassínio. A polícia tomou as providências de hábito; mas só iniciou as pesquisas no dia seguinte. Todos que estiveram na venda foram ouvidos; mas pouco, nada adiantaram. Nem o podiam fazer. Marramaque, em lá chegando, a chuva tinha cessado. Era sábado, e todos os habitués do armazém do «Seu» Nascimento lá estavam, inclusive Meneses, que se mostrava palrador e prazenteiro. Discutia-se despreocupadamente, e até Meneses causou grande hilaridade, quando explicou a sua teoria transcendente sobre o «ovo de Colombo». No correr da discussão, alguém dissera:

-Isto é ovo de Colombo.

Parece que foi Marramaque a dizer, e Alípio aproveitou o ensejo, para perguntar:

-Que diabo quer dizer esta história de «ovo de Colombo», na qual todo o mundo fala e não sei o que é?

Entre os circunstantes estava o Senhor Monção, caixeiro-vendedor da grande casa de cereais Belmiro, Bernardes & Cia., que tinha suas luzes e gostava de palestrar, para descansar da afanosa lida de estar a «tocar realejo» aos varejistas, oferecendo-lhes feijão, arroz, milho, e por bom preço.

Era um moço português, simpático, de bom porte e bem-educado. Tinha grande liberdade na roda e não houve nenhum espanto quando interveio:

-Pois não sabes, Alípio, o que é o «ovo de Colombo»?

-Não, «Seu» Mindela.

-É simples. No meio dos sábios espanhóis, depois da primeira viagem à América, Colombo, vendo o seu trabalho criticado e tido como fácil pelos sabichões de Castela, desafiou-os a pôr um ovo em pé.

-Eles puseram? -perguntou Alípio.

Meneses apressou-se:

-Não puseram; mas Colombo pôs.

-Como? -indagou Alípio.

Meneses explicou, tomando a palavra de Mindela, com todo o seu açodamento de sábio:

-Colombo, dando um movimento de rotação conveniente e um de translação adequado, dissolveu a gema do centro do ovo, para a base, trazendo, para a parte inferior do ovo, o centro de gravidade, de forma que o pôde pôr em pé.

Todos se entreolharam e viram o absurdo da explicação de Meneses. Ninguém se animava a contestar, mas Marramaque, tomando a dianteira de Mindela, que ia falar, saltou logo, em tom de gracejo:

-Qual, «Seu» Meneses! Esta história de translação, de rotação, de centro de gravidade, é bobagem; o que...

-Bobagem, Marramaque? Isto é mecânica transcendente, como é a questão do gato cair sempre sobre as patas, atirado que seja, do alto para baixo, em qualquer posição.

Marramaque foi-lhe ao encontro, sem pestanejar:

-Nós não temos nada com gato. Ovo se parece tanto com gato como um espeto. Bolas, «Seu» Meneses!

Todos os circunstantes riram-se a mais não poder; Meneses pôs-se a cofiar a longa e abundante barba branca, lamentando-se da sua derrota em mecânica e tudo. De repente, cobrou coragem e desafiou o contínuo:

-Quero ver, Marramaque, como é que você explica ter Colombo posto o ovo de pé?

-Muito simplesmente, Meneses. Vou contar a história como a li: «Num banquete, procuravam os nobres de Espanha rebaixar o mérito da descoberta de Colombo, e dizia um: 'As Índias já lá estavam e, se o senhor não as descobrisse, qualquer um outro as descobriria'. Colombo, sem responder, pediu um ovo; trouxeram-lhe e ele desafiou a que alguém o pusesse de pé. 'Impossível!', bradaram. Então, o navegador tomou o ovo, bateu com ele, quebrando ligeiramente a mais rombuda das extremidades, e fê-lo ficar de pé. 'Ora, isto também eu faria!...', replicaram. 'Sim, depois que me viram fazer. É simples, mas é preciso pensar no caso, e achar o meio'. Está aí como foi a coisa. Não tem nada de gravidade, nem de rotação, nem de translação, nem de constelação, nem de repulsão, nada tem em «ão», Meneses!

De novo a gargalhada foi geral e prolongada; e Meneses, muito encafifado, limitou-se a dizer:

-Isto não é científico; é uma explicação jocosa de anedota de almanaque. Podia demonstrar a minha interpretação com auxílio do cálculo, mas não é conveniente aqui... fica para outra ocasião.

Assim, sem outra preocupação, naquela tarde tempestuosa, conversaram na venda, enquanto Marramaque estivera e mesmo depois da sua saída. É óbvio que nenhuma das pessoas que lá estavam, poderia adivinhar o que lhe ia acontecer pelo caminho. Chuviscava teimosamente, mas não havia o que se chama de chuva torrencial, quando o pobre contínuo se despediu. É verdade que a noite estava pavorosa de escuridão, e ameaçadoras nuvens pairavam baixo, ainda mais carregando de treva a atmosfera e ofuscando os lampiões, cuja luz oscilava sob o açoite de um vento constante e cortante. Não se via, como é costume dizer-se, um palmo diante do nariz. À polícia, pareceu que aquele misterioso assassínio, sem causa presumível, nascera de um segredo que só ele, Marramaque, podia revelar e, talvez, os seus papéis íntimos o revelassem. Resolveram, então, as autoridades perquiri-los, à cata de uma pista.

Morava Marramaque com uma tia materna, pouco mais moça que ele, tendo dois filhos homens, de doze e dez anos. Após ter enviuvado na roça, com alguma coisa, tomou o alvitre de comprar aquela casa e convidar o sobrinho, para lhe fazer companhia e encaminhar a educação e a instrução dos filhos, e ajudá-la também.

A sua casa era inteiramente o contrário da de Meneses. Estava sempre limpa, móveis em ordem, completamente cercada, o jardinzinho da frente bem tratado. Helena, a tia de Marramaque, era muito metódica e econômica, de forma que a vida doméstica do sobrinho era regular e plácida. Ela costurava para os arsenais do governo e, com o que Marramaque lhe dava dos seus exíguos vencimentos, a vida deles corria sem contratempos. Não eram difíceis as suas comunicações com as estações da Central, quando feitas pelo bonde de Inhaúma, que passava na esquina; e, se o contínuo, na noite fatídica do assassínio, tomava aqueles atalhos e subidas, sempre que passava pela venda do Nascimento ou ia à casa do Joaquim, procurava aquele caminho mais curto. Helena vivia para os filhos; raras vezes, a não ser para regularizar as suas costuras, saia, indo uma ou outra vez à casa do carteiro, onde se aborrecia com o gênio taciturno de Engrácia. Foi ela quem assistiu desenterrar, do fundo de baús e gavetas, as recordações do seu pobre sobrinho.

As autoridades policiais pediram delicadamente autorização; e o delegado em pessoa foi examinar os papéis do infeliz contínuo. Não encontrou coisa de valia. Havia no seu arquivo cartas de família, bilhetes de amigos, rascunhos de versos, entre os quais um de Raul Braga, de quem Marramaque fora amigo, e o célebre caderno sobre Cassi, que o delegado tinha também um exemplar. A não ser esses papéis sem importância, encontraram um caderno de versos, pronto a ir para o prelo, de autoria de Marramaque, intitulado Boninas e Sensitivas versos ingênuos de um homem bom e honesto que não é poeta. Deram também com um retrato de mulher feita, numa pose popular, com o braço esquerdo descansando sobre uma coluna e tendo um leque enorme, pendente do direito, caindo ao longo do corpo. Era uma mulher bonita, de trinta anos, sadia e forte. Nas costas havia esta dedicatória: «Ao meu Antônio, a Eponina. 25-12-92». Mais abaixo, com letra de Marramaque, existiam estas observações: «Amor tudo vence; não pode vencer as obrigações de lealdade que devem sempre existir nas amizades perfeitas. Adeus!».

Quem seria? Os policiais indagaram; mas Dona Helena não lhes pôde explicar. Naquela data, ela nem casada era ainda; seu sobrinho já tinha vindo para o Rio. Quem seria?

Enfim, nada encontraram, e o crime foi sendo esquecido. Só duas pessoas podiam pôr as autoridades na pista verdadeira; eram Clara e Meneses.

Clara, logo que soube do assassínio do padrinho, ficou fora de si. Lembrou-se das ameaças veladas que Cassi fazia ao padrinho, nas cartas que lhe escrevia; lembrou-se também da carta em que ela narrava ao namorado a atitude de Marramaque, quando o pai falou ao compadre na necessidade de ter um franco entendimento com o violeiro. Por aí e por outras pequenas circunstâncias, atribuía a Cassi o assassinato do padrinho e como que se julgava também sua cúmplice. Veio-lhe um medo daquele cantador meloso, dengoso, apesar de seu mau olhar de folhas-de-flandres; e, num relâmpago, viu bem quanto de fingido e falso podiam conter as suas cartas ternas e cheias de protestos de boas intenções e de amor sincero e honesto.

Imediatamente, porém, explicou esse seu ato de desvario criminoso como um esporádico ato de loucura, provocado pelo amor que tinha a ela. Era um obstáculo e... Agradava-lhe a interpretação. Não tardariam, entretanto, a se explicar de viva voz por que ela havia consentido afinal em conversar com ele na grade de casa, depois que seus pais se recolhessem. Então, nessa ocasião, ela avaliaria o grau de certeza de suas suspeitas. Meneses tinha levado uma carta dela nesse sentido; mas, tendo ficado atrapalhada por sentir a aproximação da mãe, não pôde, Clara, fechar a missiva convenientemente. Aberta, a moça, para não ser pilhada, passou-a precipitadamente ao velho, que assim a guardou jubilosamente. Quando se lhe ofereceu momento azado, leu-a.

Como toda a mulher sem instrução, Clara pegou na pena e não tinha vontade de a largar. Contava detalhes, repisava juras e pedia juramentos. Um destes era o de que ele a respeitaria sempre; e, se não fizesse isso, romperia as relações com ele. Estava disposta a esperá-lo, às dez horas, na grade, daí a oito dias, e isso o fazia, porque «Seu» Meneses tinha dado o serviço dos dentes por terminado.

De fato, Meneses, aborrecido com aquele negócio de cartas e com o desdém com que Cassi o tratava, ademais da ignóbil farsa que se prestava, resolveu dar por findo o trabalho. A leitura da carta não lhe causou nenhuma estranheza; ele já esperava por este fim. Estava forrado de uma indiferença de vencido. Sentiu-se de mãos e pés atados, para ter qualquer movimento de censura ou de conselho. É que ainda não lhe tinha chegado aos ouvidos a notícia do bárbaro assassínio de Marramaque. Quando, porém, veio a saber, teve uma forte vergonha do seu procedimento, da sua covardia. Compreendeu que aquelas meias palavras de Cassi sobre Marramaque, aquele ríctus horrendo que vira certa vez, ao se falar do contínuo, lhe desfigurar a face, eram os pródromos do assassínio do bondoso velho que o violeiro premeditava. O infeliz Meneses passou o dia todo e a noite inteira voltado para dentro de si mesmo. Não sabia mais chorar, mas o seu remorso era intenso. Ele se julgava também cúmplice daquele desalmado. Por que calara o que sabia? Por que se acovardara a ponto de servir de medianeiro? Oh! Ele não era mais homem, não tinha mais dignidade!

Cassi, entretanto, não demonstrou o menor abalo. Leu as notícias dos jornais, as objurgatórias contra os assassinos de que estavam cheios; ouviu as maldições de todos, nos cafés, nos bondes, em todas as conversas e por toda a parte; mas nenhum arrependimento sentia. Só lhe faltava o orgulho íntimo de ter efetuado tão rara proeza, para ser completa a sua inumanidade e o seu abjeto sossego íntimo. Não tinha orgulho, mas havia nele como que alívio de se ver livre daquela espécie de duende, de fantasma, que vivia a persegui-lo.

Com Arnaldo, já não acontecia o mesmo. Passado o fato, com a leitura dos jornais, com as censuras amargas que via em todas as bocas, até nas daqueles afeitos ao crime, o sócio de Cassi, se não viu remorsos, começou a ter susto. Não pôde reprimir o impulso que o levou a ver o cadáver. Estavam os restos de Marramaque quase tal e qual como foram encontrados. Os médicos ainda não haviam praticado a autópsia. A cabeça partida, os olhos fora das órbitas, todo o rosto coberto de uma lama sangrenta, o braço semiparalítico, partido, as roupas, ensopadas de lama e sangue... Era horrível! No necrotério, acotovelava-se uma multidão, e todos, em voz baixa, cobriam de baldões, de injúrias, de pragas, os malvados que tinham levado a efeito tão estranho e inconcebível crime... Um crioulo, muito negro, forte, com grandes «peitorais» salientes, dizia bem alto do lado de fora:

-Eu não sou santo... Já fiz das minhas... Conheço a «chac'ra»; mas Deus me castigue, me ponha um raio em cima, e faça apodrecer em vida, se eu fosse capaz de fazer tão porco «trabalho»... Os que o fizeram, nem esfolados vivos pagariam... Para que mataram esse pobre velho?

Arnaldo voltou do depósito fúnebre apreensivo. Não havia nele, a bem dizer, arrependimento. O que ele sentia era medo de ser descoberto, de pegar cadeia trinta anos a fio, porque não podia ser mais. Chegou aos subúrbios apavorado; e, quando topou com Cassi, disse, com olhar desvairado:

-Chi, Cassi! O «homem» estava horrível...

O violeiro virou-se para ele, olhou-o firme com seu olhar fosco e falou-lhe com energia e fogo nos olhos:

-Cala-te, miserável! Queres pôr tudo a perder...

Conquanto temesse as fúrias do seu companheiro e cúmplice, não lhe passava o terror de ser descoberto pela polícia. Deu em beber; Cassi vigiava-o com medo que ele «desse com a língua nos dentes». Não o deixava só, quando estava em «rodas».

Nos botequins, não entrava um freguês, que Arnaldo não examinasse meticulosamente, cautelosamente, com o rabo dos olhos. Às vezes, não se continha e apontava:

-Cassi, aquele é agente do décimo oitavo...

O modinheiro, em voz baixa, mas com autoridade, repreendia-o:

-Estás doido! Queres nos pôr no «x», pelo resto da vida.

No começo, Cassi teve medo que a embriaguez o fizesse denunciá-los; mas, bem cedo, percebeu que a sua bebedeira tomava uma feição choramingas, efusiva, dava para abraçar todos e, com voz de mágoa íntima, repetia de onde em onde, sem nada entender do que se dizia ao redor: «Eu não sou mau...», «Eu sou um bom rapaz...», «Nunca fiz mal a ninguém», etc.

Então, Zezé Mateus, também já muito bêbedo, derreado completamente na cadeira, com os olhos divergentes e vidrados, babando-se todo e gaguejando, retrucava: «Meu querido Arn... ar... ar... Arnaldo, você é uma... pomba sem... sem fel». Em seguida, depois de limpar a baba com o lenço: «Quem foi que... que disse que... você é... é mau?». E acrescentava: «Traga... Traga este su... su... sujeito aqui que... que eu parto a cara dele».

Arnaldo, por aí, levantava-se comovido e abraçava Zezé Mateus, que se mantinha na cadeira, e, com dificuldade, erguia os braços, a fim de cingir o camarada.

Repetiam daí a pouco a cena, com pequenas variantes, debaixo dos motejos forçados de Cassi, a quem tais espetáculos não deixavam de fazer mal. Os outros companheiros riam-se a bom rir, sem nada suspeitar.

Entretanto, o violeiro não se fiava muito que Arnaldo sempre procedesse assim. A embriaguez -ele sabia- é caprichosa, ora dá para isto, ora dá para aquilo, podia aparecer qualquer coisa a respeito do crime e era preciso que ele, Cassi, tomasse as suas precauções. A entrevista com Clara estava marcada para o fim da semana. Tinha de ir; tinha que dar fim «naquilo», que tanto trabalho lhe dera e estava dando. Antes de tudo, porém, era preciso estar preparado para o que desse e viesse. Não contava mais com a proteção; Barcelos não valia nada e só prestava pequenos serviços em vésperas de eleição. Quando elas estavam distantes, fiava com má cara um cálice de cachaça... Era preciso ter tudo pronto para fugir do Rio de Janeiro, ao primeiro sinal de alarme, tanto mais que sabia, por indiscrições de Meneses, que as ouvira na venda do «Seu» Nascimento, que o marido de Nair -aquela moça que ele desencaminhara e a mãe, por isso, se suicidara- estava disposto a persegui-lo, como já o perseguia, com os famosos cadernos, mas mais eficazmente, desde que se metesse em «alguma». Considerou bem que as coisas agora seriam mais difíceis; e as pedras que semeara no caminho, começavam a erguer-se para lapidá-lo.

Tomou a extrema resolução de vender os galos de briga. O dinheiro que apurasse, depositaria na Caixa Econômica, para tê-lo sempre à mão, quando fosse necessário fugir. A mãe, vendo carroças chegarem à porta e as gaiolas e capoeiras saírem, a fim de tomarem lugar nos transportes, foi indagar-lhe o que havia:

-Nada, mamãe. Vou para fora, trabalhar...

-Para onde, Cassi?

-Vou para Mato Grosso, empregar-me na construção de uma estrada de ferro.

-Como trabalhador de picareta, meu filho?

-Não, mamãe, vou ser chefe de turma e praticar nos instrumentos, até conseguir ser seccionista.

Dona Salustiana assim mesmo não ficou contente. Ela conhecia a ignorância do filho, a sua inferioridade mental e a sua incapacidade para aplicar-se a alguma coisa que demandasse o menor esforço intelectual; viu bem, portanto, que, numa construção de estrada de ferro, ele só podia ser simples trabalhador braçal, pegar na foice e roçar, no machado e derrubar, na picareta e cavar, mais nada! Voltou chorando para onde estavam as filhas:

-Você não sabe, Catarina? Você não sabe, Irene, de uma coisa? Ai! Meu Deus!

-Que é, mamãe? -perguntou Catarina.

-Que há, mamãe? -indagou Irene.

-Minhas filhas, vocês não sabem que desgraça para a família, Cassi...

-O que houve? -assustou-se Catarina.

-Cassi está doido e quer envergonhar-nos a todos nós, o meu avô que foi cônsul da Inglaterra... Ah! Se ele ressuscitasse, que vexame não passaria!

-Que é que Cassi vai fazer? -fez Irene com calma.

-Vai ser trabalhador de enxada, numa estrada de ferro de Mato Grosso.

Irene, que era severa e nunca perdoaria ao irmão as maliciosas perguntas que as colegas da escola lhe faziam, vexando-a bastante, quando acontecia aparecer o nome dele nos jornais, nas suas habituais cavalarias, observou:

-Que tem isso, mamãe! Ele tem saúde, ao invés de andar por aí a fazer das suas, a nos envergonhar por toda a parte, é melhor que ele trabalhe para ver se toma caminho.

Dona Salustiana olhou espantada para a filha e disse cheia de mágoa:

-É que você não é mãe; mas, em breve, você será, então...

Catarina obtemperou:

-Mamãe, eu não acho motivo para lástima. O que é de todo reprovável, é que ele leve toda a vida a que está levando... O melhor é aventurar...

O pai veio a saber da resolução do filho, sobre quem não punha os olhos, havia dois anos. Não conteve a sua alegria e exclamou:

-Que se vá! Que vá para o diabo! Já é tempo!

Depois acrescentou:

-Vocês vão ver que ele fez uma das suas; vai fugir e deixar-nos vexados, senão atrapalhados. Seja tudo pelo amor de Deus! Que se vá e nos deixe em paz.

Vendidos os galos, galinhas, frangos e pintos, apurou quinhentos mil-réis, que se dispôs a depositar na Caixa Econômica, logo no dia seguinte ao do recebimento.

Nesse dia, despertou cedo, banhou-se cuidadosamente, escolheu bem a roupa branca, viu bem se a meia não estava furada, escovou o terno cintado e, cuidadosamente, meteu mão à obra de vestir-se com apuro, para vir à «cidade». Raramente, vinha ao centro. Quando muito, descia até o Campo de Sant'Ana e daí não passava. Não gostava mesmo do centro. Implicava com aqueles elegantes que se postavam nas esquinas e nas calçadas. Achava-os ridículos, exibindo luxo de bengalas, anéis e pulseiras de relógio. É verdade, pensava consigo, que ele usava tudo aquilo; mas era com modéstia, não se exibia. Recordava que não tinha poses, mas, mesmo que as tivesse, não se daria a tal ridículo... Essa sua filosofia sobre a elegância, de elegante suburbano, ele aplicava às moças. Quanto dengue! Para que aqueles passos estudados? Aqueles modos de dizer adeus?

Achava tudo ridículo, exagerado, copiado, mas não sabia bem de que modelo. O que, de fato, sentia não era isso que expunha aos amigos ou às belezas suburbanas que, porventura, requestasse. O que ele sentia diante daquilo tudo, daquelas maneiras, daqueles ademanes, daquelas conversas que não entendia, era a sua ignorância, a sua grosseria nativa, a sua falta de educação e de gosto. O seu ódio, então, ia forte para os poetas e jornalistas, sobretudo, para estes. Não perdoava as descalçadeiras, os deboches que lhe passavam, quando tinham de denunciar alguma das suas ignóbeis proezas. «Uns sujos!», dizia; «uns malandros!», continuava, «que querem ditar moral». O seu primeiro ímpeto, quando lia notícias a seu respeito, era atirar-se contra um deles, naturalmente o que lhe parecesse mais fraco; e desancá-lo de pancadas. Sustinha, porém, o ímpeto, porque sabia, se tal fizesse, estaria perdido. A guerra seria sem tréguas, e «novos e velhos» da sua interminável conta sairiam à luz. Secretamente, tinha um respeito pela cidade, respeito de suburbano genuíno que ele era, mal-educado, bronco e analfabeto.

Mal tomou o café matinal, concertou ainda a gravata e pôs-se na rua. Era cedo, mas temia pelo dinheiro que tinha na algibeira. Não queria que ninguém soubesse da existência de avultada quantia em seu poder e, muito menos, que premeditava fugir. Embarcou no primeiro trem; e, esgueirando-se pela Central, conseguiu não encontrar conhecido que lhe fizesse perguntas indiscretas.

Cassi Jones, sem mais percalços, se viu lançado em pleno Campo de Sant'Ana, no meio da multidão que jorrava das portas da Central, cheia da honesta pressa de quem vai trabalhar. A sua sensação era que estava numa cidade estranha. No subúrbio tinha os seus ódios e os seus amores; no subúrbio tinha os seus companheiros, e a sua fama de violeiro percorria todo ele, e, em qualquer parte, era apontado; no subúrbio, enfim, ele tinha personalidade, era bem Cassi Jones de Azevedo; mas, ali, sobretudo do Campo de Sant'Ana para baixo, o que era ele? Não era nada. Onde acabavam os trilhos da Central, acabava a sua fama e o seu valimento; a sua fanfarronice evaporava-se, e representava-se a si mesmo como esmagado por aqueles «caras» todos, que nem o olhavam. Fosse no Riachuelo, fosse na Piedade, fosse em Rio das Pedras, sempre encontrava um conhecido, pelo menos, simplesmente de vista; mas, no meio da cidade, se topava com uma cara já vista, num grupo da Rua do Ouvidor ou da avenida, era de um suburbano que não lhe merecia nenhuma importância. Como é que ali, naquelas ruas elegantes, tal tipo, tão mal-vestido, era festejado, enquanto ele, Cassi, passava despercebido? Atinava com a resposta, mas não queria responder a si mesmo. Mal a formulava, apressava-se em pensar noutra coisa.

Na «cidade», como se diz, ele percebia toda a sua inferioridade de inteligência, de educação; a sua rusticidade, diante daqueles rapazes a conversar sobre coisas de que ele não entendia e a trocar pilhérias; em face da sofreguidão com que liam os placards dos jornais, tratando de assuntos cuja importância ele não avaliava, Cassi vexava-se de não suportar a leitura; comparando o desembaraço com que os fregueses pediam bebidas variadas e esquisitas, lembrava-se que nem mesmo o nome delas sabia pronunciar; olhando aquelas senhoras e moças que lhe pareciam rainhas e princesas, tal e qual o bárbaro que viu, no Senado de Roma, só reis, sentia-se humilde; enfim, todo aquele conjunto de coisas finas, de atitudes apuradas, de hábitos de polidez e urbanidade, de franqueza no gastar, reduziam-lhe a personalidade de medíocre suburbano, de vagabundo doméstico, a quase coisa alguma.

Saltando na Central, não procurou bonde. Engolfou-se num filete de multidão que se alastrava em direitura à Prefeitura e marchou a pé até o «centro». Desde o Largo do Rossio, foi parando diante das montras. Demorava-se a ver jóias através de fortes vidros que as protegiam contra a cobiça alheia. Mirava anéis e relógios, braceletes e brincos, mais àqueles do que a estes, porquanto não lhe brotava no coração nenhuma necessidade de dar presentes às amadas. Tão caros, não valia a pena!... Uma bengala de junco, esquinada, com castão de ouro, tentou-o. Os quinhentos mil-réis que tinha na algibeira murmuraram-lhe alguma coisa ao ouvido. Prontamente repudia a tentação; precisava estar seguro...

Entrou pela Rua Sete de Setembro e, daí em diante, foi admirando as roupas feitas, por toda a longa fachada do Parc Royal, foi parando diante das vitrines, onde havia roupas e outras peças de vestuário, para homens. Viu fraques, viu suspensórios, viu ligas, viu colarinhos, viu camisas... Que coisas lindas!

Tomou a Rua do Ouvidor e foi descendo, sempre parando em frente das casas que tinham artigos para homens. Por desfastio, desviou-se a olhar as vitrines de uma livraria. Olhou-lhe também o interior. Livros de alto a baixo. Para que tantos livros? Aquilo tudo só seria para fazer doidos. Ele tinha livros, na verdade; mas eram alguns, livros de amor... Que livros, meu Deus! Teve vontade de tomar café; hesitou um pouco! Mas, afinal, animou-se. Estava quase na hora. A Caixa Econômica não tardaria em abrir-se. Lá chegando, teve que aguardar a abertura da porta. Já havia gente à espera. Olhou-a de relance. Fisionomias diferentes de trato e de cor: velhas de mantilha, moças de peito deprimido, barbudos portugueses de duros trabalhos, rostos de caixeiros, de condutores de bonde, de garçons de hotel e de botequim, mãos queimadas de cozinheiras de todas as cores, dedos engelhados de humildes lavadeiras, todo um mundo de gente pobre ia ali depositar as economias que tanto lhes devia ter custado a realizar, ou retirá-las, para acorrer a qualquer drama das suas necessitadas vidas. Aborreceu-se com aquele contacto...

Penetrando no saguão, pôs-se a ler os cartazes onde estavam as disposições legais que interessavam ao público. Diabo! A providência não lhe servia... Para confirmar, dirigiu-se a um empregado num guichet, que tinha ao alto este letreiro: «Informações». Não lhe servia absolutamente. Para retirar mais de duzentos mil-réis, tinha que avisar previamente. Não; não depositaria. O dinheiro devia estar sempre ao alcance da mão... Saiu e, a fim de não ser visto por algum conhecido, procurou alcançar o Largo de São Francisco, atravessando aqueles velhos becos imundos que se originam da Rua da Misericórdia e vão morrer na rua Dom Manuel e Largo do Moura. Penetrou naquela vetusta parte da cidade, hoje povoada de lôbregas hospedarias, mas que já passou por sua época de relativo realce e brilho. Os botequins e tascas estavam povoados do que há de mais sórdido na nossa população. Aqueles becos escuros, guarnecidos, de um e outro lado, por altos sobrados, de cujas janelas pendiam peças de roupa a enxugar, mal varridos, pouco transitados, formavam uma estranha cidade à parte, onde se iam refugiar homens e mulheres que haviam caído na mais baixa degradação e jaziam no último degrau da sociedade. Escondiam, na sombra daquelas betesgas coloniais, nas alcovas sem luz daqueles sobrados, nos fundos caliginosos das sórdidas tavernas daquele tristonho quarteirão, a sua miséria, o seu opróbrio, a sua infinita infelicidade de deserdados de tudo deste mundo. Entre os homens, porém, ainda havia alguns com ocupação definida; marítimos, carregadores, soldados; mas as mulheres que ali se viam, haviam caído irremissivelmente na última degradação. Sujas, cabelos por pentear, descalças, umas, de chinelos e tamancos, outras. Todas metiam mais pena que desejo. Como em toda e qualquer seção da nossa sociedade, aquele agrupamento de miseráveis era bem um índice dela. Havia negras, brancas, mulatas, caboclas, todas niveladas pelo mesmo relaxamento e pelo seu triste fado.

Cassi Jones ia atravessando aquele bairro singular e escuro, quando, do fundo de uma tasca, lhe gritaram:

-Olá! Olá! «Seu» Cassi! Ó «Seu» Cassi!

Insensivelmente, ele parou para verificar quem o chamava. De dentro da taverna, com passo apressado, veio ao seu encontro uma negra suja, carapinha desgrenhada, com um caco de pente atravessado no alto da cabeça, calçando umas remendadas chinelas de tapete. Estava meio embriagada. Cassi espantou-se com aquele conhecimento; fazendo um ar de contrariedade, perguntou amuado:

-Que é que você quer?

A negra, bamboleando, pôs as mãos nas cadeiras e fez com olhar de desafio:

-Então, você não me conhece mais, «seu canaia»? Então você não «si» lembra da Inês, aquela crioulinha que sua mãe criou e você...

Lembrou-se, então, Cassi, de quem se tratava. Era a sua primeira vítima, que sua mãe, sem nenhuma consideração, tinha expulsado de casa em adiantado estado de gravidez. Reconhecendo-a e se lembrando disso, Cassi quis fugir. A rapariga pegou-o pelo braço:

-Não fuja, não, «seu» patife! Você tem que «ouvi» uma «pouca» mas de «sustança».

A esse tempo, já os freqüentadores habituais do lugar tinham acorrido das tascas e hospedarias e formavam roda, em torno dos dois. Havia homens e mulheres, que perguntavam:

-O que há, Inês?

-O que te fez esse moço?

Cassi estava atarantado no meio daquelas caras antipáticas de sujeitos afeitos a brigas e assassinatos. Quis falar:

-Eu não conheço essa mulher. Juro...

-«Muié», não! -fez a tal Inês, gingando-. Quando você «mi» fazia «festa», «mi» beijava e «mi» abraçava, eu não era «muié», era outra coisa, seu «cosa» ruim!

Um negro esguio, de olhar afoito, com um ar decidido de capoeira, interveio:

-Mas, Inês, quem é afinal esse moço?

-É o «home qui mi» fez mal; que «mi» desonrou, «mi pois» nesta «disgraça».

-Eu! -exclamou Cassi.

-Sim! Você «memo», «seu» caradura! «Mi alembro» bem... Foi até no quarto de sua mãe... Estava arrumando a casa.

Uma outra mulher, mas esta branca, com uns lindos cabelos castanhos, em que se viam lêndeas, comentou:

-É sempre assim. Esses «nhonhôs gostosos» desgraçam a gente, deixam a gente com o filho e vão-se. A mulher que se fomente... Malvados!

Cassi ouvia tudo isso sem saber que alvitre tornar. Estava amarelo e olhava, por baixo das pálpebras, todas as faces daquele ajuntamento. Esperava a polícia, um socorro qualquer. A preta continuava:

-Você sabe onde «tá» teu «fio»? «Tá» na detenção, fique você sabendo. «Si» meteu com ladrão, é «pivete» e foi «pra chacr'a». Eis aí que você fez, «seu marvado», «home mardiçoado». Pior do que você só aquela galinha-d'angola de «tua» mãe, «seu» sem-vergonha!

Cassi fez um movimento de repulsa e que a rapariga não perdeu.

-«Oie» -disse ela, para os circunstantes-; ele diz que não é o tal. Agora «memo se acusou-se», quando chamei a ratazana da mãe dele de galinha-d'angola... É uma «marvada», essa mãe dele, uma «véia» cheia de «imposão» de inglês. Inglês, que inglês...

Soltou uma inconveniência, acompanhada de um gesto despudorado, provocando uma gargalhada geral. Cassi continuava mudo, transido de medo; e a pobre desclassificada emendava:

-«Tu» é «mao», mas tua mãe é pior. Quando ela descobriu «qui» eu «tava» com «fio» na barriga, «mi pois» pela porta afora, sem pena, sem dó «di» eu não «tê pronde í». E o «fio» era neto dela e ela «mi» tinha criado... Vim da roça... Ah! Meu Deus! Se não fosse uma amiga, tinha posto o «fio» fora, na rua, que era serviço... Deus perdoe a «tua» mãe o que «mi» fez «i» a meu «fio», «fio» deste «qui tá i», também, Deus lhe perdoe!

E a pobre negra abaixou-se para apanhar a barra da saia enlameada, a fim de enxugar as lágrimas com que chorava o seu triste destino, talvez mais que o dela, o do seu miserável filho, que, antes dos dez anos, já travara conhecimento com a Casa de Detenção...

Graças à intervenção do dono da tasca, que tinha com o guarda de ronda o compromisso de manter a ordem no «reduto», o ajuntamento se desfez, e Cassi pôde continuar seu caminho. Por despedida, porém, ainda levou uma surriada das mulheres, que o descompunham em baixo calão, enquanto Inês imprecava:

-«Marvado»! Desgraçado! Caradura! Hás de «mi pagá», «seu canaia»!

Logo que se viu livre do perigo, Cassi respirou, compôs a fisionomia, apalpou o dinheiro na algibeira e fez de si para si:

-Acontece cada uma! Para que havia de dar esta negra... Felizmente, foi em lugar que ninguém me conhece; se fosse em outro qualquer, que escândalo! Os jornais noticiariam e... Não passo mais por ali e ela que fosse para o diabo!... Fico com o dinheiro em casa.

Nenhum pensamento lhe atravessou a cabeça, considerando que um seu filho, o primeiro, já conhecia a detenção...

- X -

Clara dos Anjos, meio debruçada na janela do seu quarto, olhava as árvores imotas, mergulhadas na sombra da noite, e contemplava o céu profundamente estrelado. Esperava.

Fazia uma linda noite sem luar; era silenciosa e augusta. As árvores erguiam-se hirtas e se recortavam na sombra, como desenhadas. Nem uma aragem corria; mas estava fresco. Não se ouvia a mínima bulha natural. Nem o estridular de um grilo; nem o piar de uma coruja. A noite quieta e misteriosa parecia aguardar quem a interrogasse e fosse buscar no seu sossego paz para o coração.

Clara contemplava o céu negro, picado de estrelas, que palpitavam. A treva não era total, por causa da poeira luminosa que peneirava das alturas. Ela, daquela janela, que dava para os fundos de sua casa, abrangia uma grande parte da abóbada celeste. Não conhecia o nome daquelas jóias do céu, das quais só distinguia o Cruzeiro do Sul. Correu com o pensamento errante toda a extensão da parte do céu que avistava. Voltou ao Cruzeiro, em cujas proximidades, pela primeira vez, reparou que havia uma mancha negra, de um negro profundo e homogêneo de carvão vegetal. Perguntou de si para si:

-Então, no céu, também se encontram manchas?

Essa descoberta, ela a combinou com o transe por que passara. Não lhe tardaram a vir lágrimas; e, suspirando, pensou de si para si:

-Que será de mim, meu Deus?

Se «ele» a abandonasse, ela estava completamente desmoralizada, sem esperança de remissão, de salvação, de resgate... Moça, na flor da idade, cheia de vida, seria como aquele céu belo, sedutoramente iluminado pelas estrelas, que também tinha ao lado de tanta beleza, de tanta luz, de não sabia que sublime poesia, aquela mancha negra como carvão. Cassi a teria de fato abandonado? Ela não podia crer, embora há quase dez dias não a viesse ver. Se ele a abandonasse, o que seria dela? Veio-lhe então perguntar a si mesma como se entregou. Como foi que ela se deixou perder definitivamente?

Clara não podia bem apanhar todas as fases dessa queda; ela se lembrava de poucas e sem nitidez apreciável. Tudo foi num galope para a desgraça... Em começo, a primeira impressão simpática, os gemidos do violão, os seus repinicados, seguidos dos requebros dos olhares do tocador, que os exagerava e punha neles não sei que chama estranha, doce e, ao mesmo tempo, quente. Impressionara-se muito com isso, tão preparada já estava para os efeitos do instrumento. Depois, aquela oposição de todos, aquele falar contínuo nele, para dizer mal, tanto da parte do padrinho, como da parte da mãe e de Dona Margarida. Essa insistência em denegri-lo fizeram que ela representasse, dentro de si mesma, Cassi, como um homem excepcional, que causava inveja a todos, pelas suas qualidades de bravura, pela sua habilidade no canto e na viola. Não acreditava no que diziam dele... Pareceu-lhe, na primeira vez que o viu, tão modesto, tão reservado de modos, tão delicado, que não podia ser o que diziam. Quando conversou com ele, meses depois, pela primeira vez, no gradil de sua casa, mais esse retrato se firmou; as suas conversas eram tão inocentes e honestas, falando sempre em empregar-se e casar-se com ela; removendo as objeções e dúvidas que ela punha quanto à viabilidade do casamento deles, com segurança e franqueza; contrapondo, para mostrar a sua possibilidade, à cor dela, além da grande paixão que nutria, a sua pobreza, a oposição dos pais, a sua falta de posição, de saber, o que não permitia a ele aspirar a grandes casamentos vistosos, com mulher mais bem-educada do que ele, mais instruída...

O seu ideal era Clara, pobre, meiga, simples, modesta, boa dona-de-casa, econômica que seria, para o pouco que ele poderia vir a ganhar...

De dia para dia, ele ganhava mais fortemente a confiança da rapariga. Ela se convencia e sonhava a toda hora com aquela «casa branca da serra», onde iria aninhar o seu amor por Cassi. Indagava, em todas as entrevistas, dos passos que ele dava para obter emprego, colocação; e ele, com blandícia, com afagos, dizia-lhe com açúcar nas palavras:

-Sossega, filhinha querida! Roma não se fez num dia... É preciso esperar... Falei ao doutor Brotero, que me deu uma recomendação para o Senador Carvalhais. Procurei este e ele me disse que, para o Cais do Porto, não podia arranjar... Tinha pedido muito e muito; estava «queimado», como se diz.

Ouvindo tudo isto, Clara sentia-se desfazer, ao calor, à meiguice, ao entono amoroso daquela voz. Era mesmo um bom, um sincero, um namorado, mais que isto, um noivo, esse Cassi.

-Por que você não me «pede» a papai? -perguntou-lhe um dia.

Cassi, sem hesitação, com o mais convincente tom de franqueza, respondeu:

-Não posso ainda, meu bem. Seus pais... É verdade que seu padrinho não existe mais...

A estas palavras, Clara estremeceu e olhou-o medrosa; ele, porém, não percebeu o movimento da rapariga, como ainda não tinha notado as suspeitas que ela tinha, de quando em quando, da intervenção dele no assassinato do padrinho. No começo, Clara quase ficara certa de que ele estava metido no crime; mas, quando, daí a dias, conversou com ele, fosse a emoção da primeira entrevista, fosse a ternura com que a cobria e se expandia por ele todo, ela afastou a convicção e perdeu o terror que ele começara a lhe inspirar. A sua débil inteligência, a sua falta de experiência e conhecimento da vida, aliado tudo isto à forte inclinação que tinha e não sopitava pelo violeiro, agiram sobre a sua consciência, de forma a inocentar, a seus olhos, o tocador de violão, no caso da morte misteriosa do padrinho. Entretanto, de quando em quando, lá lhe vinha uma suspeita, mas ele era tão bom...

Cassi, sem hesitação, respondeu-lhe à pergunta, no mais persuasivo tom de franqueza:

-Não posso ainda, meu bem. Seus pais... É verdade que seu padrinho não existe mais; mas Dona Engrácia não me suporta. Além disso, essa Dona Margarida também não me traga... Que estranho o que se passou com ela e Timbó...

-Você por que anda com ele, Cassi?

-Que hei de fazer? Ele não me faz e não me fez mal; procura-me e não posso correr com ele. É por isso.

-Mas é só por isso que você não me pede? Por causa da implicância que têm com você? Por isso só, não!

-Não é só por isso. É porque estou ainda desempregado. Se eu estivesse empregado, desarmava todos; e, fique você certa, logo que me empregue, peço-te em casamento.

Recordando-se disso, Clara, mais uma vez, contemplou o céu profusamente estrelado; mas, logo, deu com a mancha de alcatrão e ficou triste.

Rememorando conversas e fatos, ela punha todo o esforço em analisar o sentimento, sem compreender o ato seu que permitiu Cassi penetrar no seu quarto, alta noite, sob o pretexto de que precisava se abrigar da chuva torrencial prestes a cair. Ela não sabia decompô-lo, não sabia compreendê-lo. Lembrando-se, parecia-lhe que, no momento, lhe dera não sei que torpor de vontade, de ânimo, como que ela deixou de ser ela mesma, para ser uma coisa, uma boneca nas mãos dele. Cerrou-se-lhe uma neblina nos olhos, veio-lhe um esquecimento de tudo, agruparam-se-lhe as lembranças e as recordações e toda ela se sentiu sair fora de si, ficar mais leve, aligeirada não sabia de quê; e, insensivelmente, sem brutalidade, nem violência de espécie alguma, ele a tomou para si, tomou a sua única riqueza, perdendo-a para toda a vida e vexando-a, daí em diante, perante todos, sem esperança de reabilitação.

Pôs-se a chorar silenciosamente. No seio da noite, um apito de locomotiva ecoou como um gemido; as árvores como que estremeceram; por sobre um capinzal próximo, um pirilampo emitia a sua luz de prata azulada; por cima da casa, morcegos silenciosos esvoaçavam; ao longe, as montanhas tinham aspectos sinistros, de gigantes negros que montavam sentinela; tudo era silêncio, e, em vão, ela apurava o ouvido e reforçava o seu poder de visão, para ver se daquele mistério todo saía qualquer resposta sobre o seu destino, ou se via o caminho para a sua salvação...

Olhou ainda o céu, recamado de estrelas, que não se cansavam de brilhar. Procurou o Cruzeiro, rogou um instante a Deus que a perdoasse e a salvasse. Andou com o olhar no céu, um pouco além; lá estava a indelével mancha de carvão...

«Ele» não vinha; os galos começavam a cantar. Fechou a janela chorando e chorando foi-se deitar. Custou a conciliar o sono; e a visão ameaçadora da descoberta, por parte dos seus, da sua falta, passou-lhe pelos olhos e aterrou-a como um duende, um fantasma.

Em casa e fora, ainda ninguém suspeitava. Os sintomas de gravidez, por ora, não se faziam sentir. É verdade que tinha náuseas, enjôos, sem causa nem motivo; mas ela dissimulava-os tão bem, que sua mãe nada percebia.

Dona Engrácia mesmo era de seu natural pouco sagaz e tinha grande confiança na vigilância que exercia sobre a filha. Joaquim, nos dias úteis, mal via a filha, pela manhã, ao sair, e à noite, quando voltava do serviço.

A morte desgraçada do seu compadre Marramaque o fizera triste, verdadeiramente triste e acabrunhado. A sua amizade era velha, e ele devia favores inolvidáveis ao pobre contínuo. Fora ele quem aperfeiçoara o pouco que ele, Joaquim, sabia, para ser carteiro. Devia-lhe esse serviço espontâneo. Mais de uma vez, arranjara-lhe recomendações para promoções, de modo que o que era, devia de alguma sorte a Marramaque. As partidas de solo, aos domingos, não se realizavam mais. Lafões tinha sido transferido para os mananciais. O sagaz minhoto farejava que aquele negócio de Cassi desandaria em desgraça. Ele não a podia impedir, mas não a queria assistir, tanto mais que se sentia arrependido de ter apresentado o modinheiro em casa do carteiro. Enganou-o, o malandro! Fizera-o de boa-fé...

O único que aparecia ainda, era Meneses. Estava, porém, amalucado, monomaníaco. Fugia de todas as conversas e teimava em expor o seu sistema de carro motor, sem rodas, absolutamente sem rodas. «Uma grande descoberta!», arrematava ele.

-A roda, meu caro Joaquim, é um atraso das nossas máquinas. No seu acionamento, devido ao atrito dos eixos nos mancais e outros meios de transmissão da força, perde-se muito do efeito útil desta, proveniente das resistências passivas. Se nós, para nos movermos; se um cavalo, um elefante e todos os animais empregassem rodas para se deslocarem de um ponto para outro, a força que despenderiam seria muitas vezes maior do que a de que efetivamente dispõem. Suprimo as rodas da minha «Andotiva» (é assim que o meu aparelho se chama) e imito o meio de locomover-se dos animais terrestres. Tenho hesitado entre os reptis e os mamíferos; mas vou tomar por modelo estes. Com juntas, jogos combinados de cadeias de distensão e contração, como as nossas cadeiras de molas, obterei uma máquina que, com o mesmo custo de força e combustível que uma locomotiva comum, produzirá o dobro do rendimento útil que esta produz.

Joaquim, ouvindo tudo isto, bocejava; Meneses, inteiramente engolfado no seu sonho mecânico, não percebia que estava enfadando o amigo. Falava, falava sobre a sua sonhada «Andotiva» e bebia parati.

Às vezes, jantava com o carteiro e família; mas, na mesa, pouco se dirigia à Clara. Tinha medo que, conversando, traísse o segredo que existia entre ambos.

O velho dentista, mesmo, havia deixado de ver Cassi, e este, por sua vez, evitava-o, temendo que Meneses percebesse os seus propósitos de fuga e contasse a todos, levantando suspeitas em Clara.

Outras vezes, o velho dentista ia procurar Leonardo Flores, para conversar e mesmo jantar com ele. Flores não passava verdadeiramente necessidade. Com a sua aposentadoria e o auxílio que os filhos lhe prestavam, sempre tinha o que comer sem se queixar da fome.

A sua casa, graças à dedicação da mulher, vivia em ordem. Ele não se intrometia em nada da economia do lar. Os seus próprios vencimentos de aposentado, ele ia recebê-los, ou ela, e os entregava intactos. Roupa, jornais, fumo, parati, tudo ela comprava e lhe dava. Em começo, a boa da Dona Castorina quis ver se suprimia a cachaça; mas viu que era pior. Ele caía num abatimento, numa apatia de coisa morta. Resolveu fazer mais este sacrifício ao seu triste casamento: dar cachaça ao marido. Quando ele queria sair, ela lhe dava níqueis para a sua predileta bebida.

As visitas de Meneses eram particularmente agradáveis à mulher de Flores, porque não só distraía o marido, como lhe tirava a vontade de sair.

Flores tinha épocas em que não se movia de casa, senão a muito custo, para ir ao Tesouro receber a sua pensão; mas tinha outra em que se lhe tomava inteiramente o delírio ambulatório. Dona Castorina, embora compreendendo que o marido não podia ficar sempre retido em casa, procurava evitar que ele saísse, devido aos desatinos que praticava. Lá vinha, porém, um dia que...

Quando Meneses ia, aos domingos, procurá-lo, Flores recebia-o com um grandiloqüente palavreado heráldico e fidalgo; mas ele dizia com grande melancolia, com uma mágoa que bem sabia não ter remédio:

-Só tu me procuras, Meneses! Os outros me abandonaram... Ah! A Poesia! Ela me tem dado bons momentos, mas me fez ir longe demais no meu grande serviço...

Punham-se a bebericar e, quando já estavam um tanto «esquentados», cada um dava para a sua mania. Meneses explicava a mecânica sutil da sua «Andotiva»; e Leonardo Flores recitava o seu último soneto, que, embora desconexo, ainda tinha música, uma imponderável nostalgia de coisas entrevistas em sonho, uma obsessão de perfume, que constituíam os característicos de sua poética.

De repente, Meneses punha-se a roncar no sofá, e Leonardo, saindo do seu mundo sonoro de versos e rimas, punha-se de pé e, contemplando o camarada, com os braços cruzados, limitava-se a dizer:

-Imbecil! Dorme imbecil! Filisteu! Burguês!

E voltava a fazer versos, a que era como que forçado até à hora do jantar. Por essa ocasião, despertava Meneses aos berros e debaixo de descomposturas e injúrias poéticas.

O jantar, conforme o hábito das nossas pequenas famílias, nos domingos, era posto à mesa, mais cedo, constituindo o que se chama o «ajantarado». Assim se usava na casa de Flores; mas, em geral, era servido tarde, quase à hora do jantar habitual. A refeição não corria alegre. Meneses tinha a sua mania; Flores a dele; e ambos, durante ela, entregavam-se às suas extravagâncias, falando de coisas que os outros não entendiam. Meneses era calmo; mas o seu amigo comia fazendo esgares, soltando rugidos, cofiando a barba, ainda negra, que terminava num cavaignac pontiagudo.

Dona Castorina, a mulher de Flores, de vez em vez, repreendia-o como a um filho menor:

-Come com modos, Flores! Você parece uma criança.

Raramente acontecia estar presente um dos filhos. Andavam pelo football e a mãe lhes reservava o jantar. Se acontecia o contrário, o rebento do poeta olhava o pai sem nenhuma expressão, sem ânimo de aconselhá-lo e sem insensibilidade para rir. A loucura de Flores era curiosa. Não só ela se manifestava com intermitências de grandes intervalos, como também as havia num curto espaço de um dia. O álcool tinha contribuído para ela; mas, sem ele, a sua alienação mental ter-se-ia manifestado, cedo ou tarde. Todos os que o conheceram moço, sabiam-no de sobra possuidor de diátese da loucura. Os seus tics, os seus caprichos, a sua exaltação e outros sintomas confusamente percebidos levavam os seus íntimos a temerem sempre pela sua integridade mental. A tudo isso, ele juntava, ainda por cima, álcoois fortes, que sempre tomou -whisky, genebra, gim, rum, parati- para se compreender a natureza da insânia de Flores.

Certa vez, após o jantar, tomando café no jardinzinho de sua casa, que ele mesmo cuidava com rara dedicação, de surpreender no seu estado, Leonardo olhou o céu e gritou para Meneses, descansando a xícara sobre uma cadeira ao lado:

-Meneses! Vê só tu como esta tarde está linda! Não é só o ouro e a púrpura do crepúsculo que vêm; não é só o azul-ferrete dos morros que, com o aproximar-se a noite, se vai enegrecendo aos poucos... Há mais, caro Meneses; há verde no céu, um verde imaterial que não é o do mar, que não é o das árvores, que não é o da esmeralda, que não é o dos olhos de Minerva, é um verde celestial, diferente de todos aqueles que nós habitualmente vemos... Vamos sair, vamos gozar a natureza!

-Deixa-te disso, Flores. Daqui mesmo, nós vemos...

-Idiota! Não és um artista... Se não me acompanhas, saio só!...

Dona Castorina interveio naturalmente:

-Para que vais sair, Leonardo? Estás tão bem aqui com o «Seu» Meneses... Precisas de repouso, descanso...

-Mulher! Sabes quem eu sou? -fez Flores, com o seu modo habitual de cruzar os braços e enterrar o queixo no peito, quando falava com solenidade.

-Sei muito bem. És Leonardo Flores, meu marido -respondeu-lhe a mulher, sorrindo.

-Não sou só isso. Sou mais! -insistiu Flores, carrancudo.

-O que és, então? -perguntou-lhe Dona Castorina.

-Sou um poeta!

Dizendo isto, entrou pela sala adentro e encaminhou-se para o quarto de dormir.

-Onde vais? -indagou-lhe a mulher.

-Vou me vestir; quero ver este crepúsculo de pedraria, de metais caros, de sonhos e de quimeras. Sou um poeta, mulher!

Dona Castorina já sabia que, quando lhe dava essa fúria de sair, era pior contrariá-lo. Nada disse ao marido e foi pedir a Meneses que o acompanhasse. O velho dentista não se sentia bem; o seu desejo era descansar; mas, à vista do pedido de Dona Castorina, não teve outro remédio senão acompanhar o camarada. Andaram a pé por toda a parte, bebendo sempre onde encontravam lugar propício; Meneses, arrastando o passo; e Flores, dilatando as narinas, fazendo horríveis contrações com o rosto, alisando o cavaignac e dizendo:

-Que beleza! Que beleza! Quero respirar, cheirar, absorver todo o perfume desse divino crepúsculo... Não fora a natureza, os céus, os pássaros, as águas múrmuras, como poderíamos viver?

Depois de uma pausa, acrescentou desolado:

-A vida é tão banal, tão chata... Nós somos também natureza; mas do que nos vale isto? Há os burgueses e os regulamentos que nos abafam...

Já tinha anoitecido de todo. Leonardo Flores não dava mostras de querer voltar para casa; Meneses arrastava o passo a muito custo. Iam atravessando um trecho deserto de rua, quando o velho dentista disse para o amigo:

-Leonardo, estou com as pernas que não posso. Vamos descansar um pouco.

-Onde?

-Sentados na relva, um pouco longe da estrada, ali, atrás daquela moita... Estou que não posso, meu caro.

Os dois abandonaram o caminho público e procuraram a tal moita. Meneses, com muita dificuldade, sentou-se; mas Leonardo foi logo se deitando. Tinham bebido muito, e a embriaguez lhes chegava. Leonardo ainda pôde dizer, olhando as estrelas que começavam a brilhar:

-Como é belo o céu! Lá não haverá por certo ministros, nem congresso, nem presidentes... Que bom será!

O dentista não se demorou muito tempo sentado; deitou-se logo; e Leonardo, mal dissera aquelas palavras, ferrou no sono. Dormiram afinal, na relva, com os olhos voltados para o céu estrelado...

* * *

Leonardo, já dia adiantado, veio a despertar naquele capinzal, atordoado, zonzo; e, ao dar com Meneses ao lado, procurou acordá-lo. Foi em vão; o velho estava morto. Um colapso cardíaco o tinha levado. Percebendo que o amigo tinha morrido, Leonardo ergueu-se, tirou-lhe o chapéu de perto da cabeça, pôs-lhe o rosto bem à mostra, com as suas brancas barbas veneráveis, e começou a exclamar:

-Sol! Sol glorioso das auroras e das ressurreições! Sol divino que conténs todos nós, homens e plantas, bestas e gênios, insetos e vampiros, lesmas e belezas! Sol que tudo fecundas e transformas! Vem tu, ó Sol!, beijar esta augusta cabeça de imperador (apontava para Meneses hirto) que vai para sempre mergulhar na treva e só te verá de novo, quando for árvore, quando for arbusto, quando for pássaro e quando de novo voltar a ser homem. Beija-o ainda mais uma vez! Beija-o, porque ele te amou e muitas vezes voou para os espaços sidéreos, desejoso de ver o teu fulgor e morrer por tê-lo visto.

Não dera fé, Leonardo, que alguns transeuntes haviam parado, para ouvir as suas palavras e ver os seus estranhos trejeitos. Os mais curiosos se aproximaram e deram com aquele estranho e bizarro espetáculo de um homem, que parecia louco ou bêbedo, a pronunciar coisas incompreensíveis e a gesticular, diante de um pobre velho morto. Chamaram a polícia; e lá foi Leonardo, gesticulando e falando só, para a delegacia. Meneses tomou o caminho do necrotério, após fotografias e outras precauções policiais.

O primeiro movimento do policial que recebeu Leonardo, foi removê-lo incontinenti para o hospício ou lugar equivalente. Na verdade, o poeta não dizia coisa com coisa; nem mesmo quem era, informava. Muitos o conheciam de vista, mas, para essas pessoas, era simplesmente «o poeta». Em chegando Praxedes, as coisas mudaram. Tinha ele o hábito de ir de manhã às delegacias, ver se pegava algum biscate, alguma coisa. Indo, naquele dia, topou com Leonardo lá e soube que um velho, que bebia muito e costumava estar com ele, havia sido encontrado morto junto a Flores e fora removido para a morgue. Viu logo que se tratava de Meneses. Muito prestável, obsequioso de gênio, Praxedes, para quem a polícia não tinha segredos, informou ao comissário quem era Leonardo e quem era Meneses. A autoridade policial encarregou-o de prevenir os parentes e amigos de ambos do que havia acontecido. Praxedes correu à casa de Joaquim dos Anjos, para desobrigar-se da missão. Foi recebido pela mulher e a filha.

-Quincas não está aí -disse-lhe Dona Engrácia-. Ele saiu cedo...

-O senhor pode telefonar para a Repartição dos Correios -lembrou Clara.

-Lembrei-me disso, mas não sabia a seção.

A filha disse-lhe e o doutor Praxedes, muito diplomaticamente, ergueu-se todo e, ao despedir-se das senhoras, desculpou-se:

-Vossas Excelências hão de me perdoar. Não podia deixar de vir até aqui. Sabia de dois amigos íntimos do doutor Meneses; um era o Senhor Cassi, mas este está fora...

Clara espantou-se:

-Está fora!

-Ué, Clara! -fez Dona Engrácia-. Que espanto!

-Não, porque ainda há dias «Seu» Meneses disse a papai que estivera com ele -fez Clara disfarçando.

-Deve ser há algum tempo, minha senhora -aventou Praxedes, com toda a delicadeza de voz-; porque há bem quinze dias que embarcou para São Paulo, em Cascadura. Eu até me despedi dele...

Praxedes saía e Clara, logo que pôde, correu ao quarto para chorar. Estava irremediavelmente perdida; ele a abandonava de vez. Como havia de ser? Como havia de esconder a gravidez, que se ia mostrando aos poucos? Que fariam dela os seus pais? Era atroz o seu destino!

Todas essas perguntas, ela formulava e não lhes dava resposta. Cassi partira, fugira... Agora, é que percebia bem quem era o tal Cassi. O que os outros diziam dele era a pura verdade. A inocência dela, a sua simplicidade de vida, a sua boa-fé, e o seu ardor juvenil tinham-na completamente cegado. Era mesmo o que diziam... Por que a escolhera? Porque era pobre e, além de pobre, mulata. Seu desgraçado padrinho tinha razão... Fora Cassi quem o matara.

Ele contava, já não se dirá com o apoio, mas com a indiferença de todos pela sorte de uma pobre rapariga como ela. Devia ser assim, era a regra. Nessa indiferença, nessa frouxidão de persegui-lo, de castigá-lo convenientemente, é que ele adquiria coragem para fazer o que fazia. Além de tudo, era covarde. Não cedia ao impulso do seu desejo, de seu capricho, por uma moça qualquer. Catava com cuidado as vítimas entre as pobres raparigas que pouco ou nenhum mal lhe poderiam fazer, não só no que toca à ação das autoridades, como da dos pais e responsáveis.

Estava aí o seu forte; o mais eram acessórios de modinhas, de tocatas de violão, de cartas, de suspiros, todo um arsenal de simulação amorosa, que ele, sem caráter e, por demais, cínico, sabia empregar, como ninguém.

Que havia de ser dela, agora, desonrada, vexada diante de todos, com aquela nódoa indelével na vida?

Sentia-se só, isolada, única na vida. Seus pais não a olhariam mais como a olhavam; seus conhecidos, quando soubessem, escarneceriam dela; e não haveria devasso por aí que a não perseguisse, na persuasão de que quem faz um cesto, faz um cento. Exposta a tudo, desconsiderada por todos, a sua vontade era de fugir, esconder-se. Mas, para onde? Com a sua inexperiência, com a sua mocidade, com a sua pobreza, ela iria atirar-se à voracidade sexual de uma porção de Cassis ou piores que ele, para acabar como aquela pobre rapariga, a quem chamavam de Mme. Bacamarte, suja, bebendo parati e roída por toda a sorte de moléstias vergonhosas.

Pensou em morrer; pensou em se matar; mas, por fim, chorou e rogou a Nossa Senhora que lhe desse coragem. Se pudesse esconder?... acudiu-lhe repentinamente este pensamento. Se pudesse «desfazê-lo»? Seria um crime, havia perigo de sua vida; mas era bom tentar. Quem lhe ensinaria o remédio? Correu o rol de suas poucas amigas; e só encontrou uma: Dona Margarida.

Nisto, sua mãe gritou-lhe do fundo da casa:

-Clara, estás dormindo? Olha que estão batendo na porta.

-Já vou, mamãe.

Era o estafeta dos telégrafos, que trazia um despacho do pai, comunicando que, devido a ter de fazer o enterro de Meneses, chegaria mais tarde, mas viria jantar.

Ela e a mãe não esperaram; jantaram antes. Clara, muito preocupada com o «remédio» que ia ver se Dona Margarida lhe arranjava; e Dona Engrácia, aborrecida com a morte de Meneses.

-Pobre Meneses! -dizia ela-. Morrer assim, no mato! Por que ele não foi pra casa? Era bem velho, não era, Clara?

-Devia ter mais de setenta anos.

-Isto não quer dizer nada. Há quem dure mais... Você tem reparado, Clara, que, de uns tempos para cá, está nos acontecendo uma porção de coisas más?

-Nem tantas! Duas só: a morte do padrinho e...

-Você acha pouco e, ainda por cima, da forma que elas nos chegam! Deus nos proteja! Tenho para mim que alguma está para nos acontecer...

-Qual, mamãe! Tudo isto é doloroso, mas são fatos que se dão...

-Felizmente, esse azar de Cassi se foi. Que vá pro diabo que o carregue!

Clara teve vontade de chorar; mas conteve-se. Estava resolvida: amanhã, pediria um «abortivo» a Dona Margarida.

Joaquim dos Anjos chegou e narrou tudo o que acontecera com Meneses e Leonardo. Aquele, por não ter ninguém que lhe fizesse o enterro, ele o fizera; e Leonardo, logo que foi afastada a hipótese de crime e ficou sabido o seu estado mental, entregaram-no à mulher. Ao chegar em casa, acompanhado de Dona Castorina, foi que Flores caiu em si e teve consciência perfeita do fim do amigo. Estava lúcido, bom; estava o verdadeiro Leonardo, que chorou o falecimento do camarada, sem mescla de delírio, pressentindo que, nele, havia aviso do seu próximo fim.

Engrácia ouviu a narração de Quincas e, ingenuamente, perguntou-lhe:

-Esse Leonardo é mesmo homem de inteligência, Quincas?

-É, Engrácia. Por quê?

-Por que ele então bebe tanto?

-Quem sabe lá? Vício, hábito, capricho da sua natureza, desgostos, ninguém sabe! -observou o marido.

-Eu vejo tanto doutor por aí que não bebe.

-Você pensa que todo doutor é inteligente, Engrácia?

-Pensei.

Clara ficou admirada de que a opinião da mãe não fosse exata. Ela também, muito popular e estreita de idéia, admitia que toda a espécie de doutor fosse de sábios e inteligentes.

Joaquim, dizendo-se cansado, fora logo deitar-se; e, em seguida, a sua mulher e filha.

Em breve, tudo era silêncio na casa e na rua. Clara não esperava mais, com a janela semi-aberta, a visita do sedutor. Havia-se fatigado de aguardá-lo muitas noites seguidas; e, agora então, depois da informação de Praxedes, tinha perdido toda a esperança. Ele fugira, e ela ficara com o filho a gerar-se no ventre, para a sua vergonha e para tortura de seus pais. Imediatamente, o seu pensamento se encaminhou para o «remédio» que devia «desmanchá-lo», antes que lhe descobrissem a falta. Tinha medo e tinha remorsos. Tinha medo de morrer e tinha remorsos de «assassinar» assim, friamente, um inocente. Mas... era preciso. Pôs-se a examinar o que lhe podia responder Dona Margarida. Pesou os prós e os contras; analisou bem o caráter da amiga russa-alemã; e, na calma do quarto, percebeu bem que não lhe daria nem indicaria o «remédio» criminoso. Margarida era uma mulher séria, rigorosa de vontade, visceralmente honesta, corajosa, e não haveria rogos nem choro que a fizessem contribuir para um crime de qualquer natureza. Então, como havia de ser? Examinou a lista das conhecidas, a ver se encontrava uma que lhe prestasse esse «serviço»... Não encontrou, e também eram tão poucas... Se tivesse dinheiro, com auxílio de Mme. Bacamarte... Acudiu-lhe então uma idéia. Ela ajudava Dona Margarida nos bordados e nas costuras, com o que já ganhava algum dinheiro. Não tinha nada a haver da amiga; mas bem lhe podia pedir emprestado, sob qualquer pretexto, uns vinte ou trinta mil-réis e pagá-los com trabalho. Qual seria o pretexto? Pensou, combinou mentiras; e, afinal, encontrou-o. Diria que era para comprar um presente destinado à mãe, cujo aniversário natalício estava a chegar. Sorriu de contentamento, quando organizou toda aquela mentiralhada. Julgava-se salva; mas, com o que ela não contava, era com a sagacidade da alemã.

Dona Margarida era mulher alta, forte, carnuda, com uma grande cabeça de traços enérgicos, olhos azuis e cabelos castanhos tirando para louro. Toda a sua vida era marcada pelo heroísmo e pela bondade. Embora nascida em outros climas e cercada de outra gente, o seu inconsciente misticismo humanitário, herança dos avós maternos, que andavam sempre às voltas com a polícia dos czares, fê-la logo se identificar com a estranha gente que aqui veio encontrar. Aprendeu-lhe a linguagem, com seus vícios e idiotismos, tomou-lhe os hábitos, apreciou-lhe as comidas, mas sem perder nada da tenacidade, do esprit de suite, da decidida coragem da sua origem. Gostava muito da família do carteiro; mas, no seu íntimo, julgava-os dóceis demais, como que passivos, mal armados para a luta entre os maus e contra as insídias da vida.

Quando Clara lhe falou no empréstimo ou adiantamento, ela se espantou. Nunca a filha do «correio» lhe havia feito semelhante pedido, o que queria dizer aquilo? Não respondeu logo à solicitação e encarou firmemente, com o seu olhar translúcido e, no momento, duro, a filha do carteiro; e, por sua vez, indagou:

-Para que você quer esse dinheiro, Clarinha?

A moça, não podendo suportar a mirada da alemã, abaixara os olhos; e, com voz sumida, explicou o suposto destino que ia dar à quantia pedida. Dona Margarida não acreditou; e, continuando com o olhar a sondar inquisitorialmente Clara, observou com energia maternal:

-Clara, você não fala a verdade; você está escondendo alguma coisa.

A moça quis negar; mas Dona Margarida, pressentindo que ela ocultava alguma coisa de grave, cercou-a de perguntas; e Clara não teve outro remédio senão confessar tudo. Ela chorou, mas Dona Margarida, sem se deixar comover, durante toda a confissão, mais arrancada aos poucos do que mesmo narrada espontaneamente, foi pensando como agir. Encheu-se, Dona Margarida, de uma infinita pena daquela desgraçada rapariga, dos seus pais, e mais profunda se tornava a pena, quando antevia o horrível destino da pobre Clara; entretanto, não deu qualquer demonstração do que lhe ia n'alma.

Num dado momento, sem dar-lhe a mínima explicação, Dona Margarida ergueu-se e, dirigindo-se à Clara, ordenou imperiosamente:

-Vamos falar à sua mãe.

A filha do carteiro, sem fazer a mínima objeção, obedeceu. Ao chegar à casa de Joaquim, Dona Engrácia estava no interior, inocentemente entregue aos seus afazeres domésticos. Entretanto, Dona Margarida chamou de parte a mãe de Clara e começou a narrar-lhe o que havia acontecido com a filha. Dona Engrácia não se pôde conter. Logo que compreendeu a gravidade do fato, pôs-se a chorar copiosamente, a lastimar-se, a soluçar, dizendo entre um acesso de choro e outro:

-Mas, Clara!... Clara, minha filha!... Meu Deus, meu Deus!

A filha aproximou-se chorando; ajoelhou-se, ajuntou as mãos, em postura de oração, aos pés da mãe e, soluçando, repetiu:

-«Me perdoe», mamãe! «Me perdoe», pelo amor de Deus!

Dona Margarida, de pé, nada dizia e olhava com profunda e desmedida tristeza, que não se adivinhava na sua calma e na segurança do seu olhar, aquele quadro desolador do enxovalhamento de um pobre lar honesto.

Afinal, quando lhe pareceu que ambas estavam mais calmas, interveio:

-Você sabe, Clara, onde mora a família desse sujeito?

Clara, ainda soluçando, respondeu:

-Sei.

Dona Engrácia indagou:

-Para quê?

Dona Margarida explicou que, antes de qualquer procedimento e mesmo de comunicar o fato a «Seu» Joaquim, era conveniente entender-se com a família de Cassi. Ela, Dona Margarida, iria imediatamente à casa dele, acompanhada de Clara. Mãe e filha concordaram; e Clara vestiu-se.

A residência dos pais de Cassi ficava num subúrbio tido como elegante, porque lá também há estas distinções. Certas estações são assim consideradas, e certas partes de determinadas estações gozam, às vezes, dessa consideração, embora em si não o sejam. O Méier, por exemplo, em si mesmo não é tido como chique; mas a Boca do Mato é ou foi; Cascadura não goza de grande reputação de fidalguia, nem de outra qualquer prosápia distinta; mas Jacarepaguá, a que ele serve, desfruta da mais subida consideração.

A casa da família do famoso violeiro não ficava nas ruas fronteiras à gare da Central; mas, numa transversal, cuidada, limpa e calçada a paralelepípedos. Nos subúrbios, há disso: ao lado de uma rua, quase oculta em seu cerrado matagal, topa-se uma catita, de ar urbano inteiramente. Indaga-se por que tal via pública mereceu tantos cuidados da edilidade, e os historiógrafos locais explicam: é porque nela, há anos, morou o deputado tal ou o ministro sicrano ou o intendente fulano.

Tinha boa aparência a residência da família do Senhor Azevedo; mas quem a observasse com cuidado, concluiria que a parte imponente dela, a parte da cimalha, sacadas gradeadas e compoteiras ao alto, era nova. De fato, quando o pai de Cassi a comprou, a casa era um simples e modesto chalet, mas, com o tempo, e com ser sua vagarosa, mas segura, prosperidade, pôde ir, também devagar, aumentando o imóvel, dando um aspecto de boa burguesia remediada. Na frente, não era alto; o terreno, porém, inclinava-se rapidamente para os fundos, de forma que, nessa parte, havia um porão razoável, onde, ultimamente, habitava Cassi. O puxado, na traseira da casa, também tinha porão, porém, com maus quartos, que eram ocupados pelas galinhas do filho e por coisas velhas ou sem préstimo, que a família refugava, sem querer pôr fora de todo.

Dona Margarida tocou a campainha com decisão e subiu a pequena escada que dava acesso à casa. Disse à criada que desejava falar à dona da casa. Dona Salustiana, que esperava tudo, menos aquela visita portadora de semelhante mensagem, não tardou em mandar entrar as duas mulheres. Ambas estavam bem-vestidas e nada denunciava o que as trazia ali. Só Clara tinha os olhos vermelhos de chorar, mas passava despercebido. Chegou Dona Salustiana e cumprimentou-as com grandes mostras de si mesma. Dona Margarida, sem hesitação, contou o que havia. A mãe de Cassi, depois de ouvi-la, pensou um pouco e disse com ar um tanto irônico:

-Que é que a senhora quer que eu faça?

Até ali, Clara não dissera palavra; e Dona Salustiana, mesmo antes de saber que aquela moça era mais uma vítima da libidinagem do filho, quase não a olhava; e, se o fazia, era com evidente desdém. A moça foi notando isso e encheu-se de raiva, de rancor por aquela humilhação por que passava, além de tudo que sofria e havia ainda de sofrer.

Ao ouvir a pergunta de Dona Salustiana, não se pôde conter e respondeu como fora de si:

-Que se case comigo.

Dona Salustiana ficou lívida; a intervenção da mulatinha a exasperou. Olhou-a cheia de malvadez e indignação, demorando o olhar propositadamente. Por fim, expectorou:

-Que é que você diz, sua negra?

Dona Margarida, não dando tempo a que Clara repelisse o insulto, imediatamente, erguendo a voz, falou com energia sobranceira:

-Clara tem razão. O que ela pede é justo; e fique a senhora sabendo que nós aqui estamos para pedir justiça e não para ouvir desaforos.

Dona Salustiana voltou-se para Dona Margarida e perguntou, pronunciando, devagar, as palavras, como para se dar importância:

-Quem é a senhora, para falar alto em minha casa?

Dona Margarida não se intimidou:

-Sou eu mesma, minha senhora; que, quando se decide a fazer alguma coisa de justo, nada a atemoriza.

Foi calmamente que Dona Margarida falou; e, à vista dessa atitude, Dona Salustiana resolveu mudar de tática. Gritou para as filhas:

-Catarina! Irene! Venham cá que esta mulher está me insultando.

As moças acudiram e, contemplando o ar enérgico da teuto-eslava e a figura lastimosa de Clara, compreenderam que Cassi estava no meio. Acalmaram a mãe e indagaram do sucedido; Dona Margarida explicou; mas, quando se falou em casamento de Cassi, Dona Salustiana prorrompeu:

-Ora, vejam vocês, só! É possível? É possível admitir-se meu filho casado com esta...

As filhas intervieram:

-Que é isto, mamãe?

A velha continuou:

-Casado com gente dessa laia... Qual!... Que diria meu avô, Lord Jones, que foi cônsul da Inglaterra em Santa Catarina, que diria ele, se visse tal vergonha? Qual!

Parou um pouco de falar; e, após instantes, aduziu:

-Engraçado, essas sujeitas! Queixam-se de que abusaram delas... É sempre a mesma cantiga... Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça, as ameaça com faca e revólver? Não. A culpa é delas, só delas...

Dona Margarida ia perguntar: «Que decide, então?», quando se ouviram passos na escada. Era o dono da casa. Entrando e deparando-se-lhe aquele quadro, suspendeu os passos e parou no meio da sala.

Olhou tudo e todos e perguntou:

-Que há?

«Papai», ia dizendo uma das filhas; mas sabendo, por aí, quem era aquele homem, Clara correu para ele, ajoelhou-se e implorou:

-Tenha pena de mim, «Seu» Azevedo! Tenha pena de uma infeliz! Seu filho me desgraçou!

O velho Azevedo descansou os embrulhos, levantou a moça, fê-la sentar-se; e ele, sentando-se por sua vez, pôs-se a olhar, cheio de pena, o dorido rosto da rapariga. Todos os olhos se fixaram nele; ninguém respirava. Afinal, Azevedo falou:

-Minha filha, eu não te posso fazer nada. Não tenho nenhuma espécie de autoridade sobre «ele»... Já o amaldiçoei... Demais, «ele» fugiu e eu já esperava que essa fuga fosse para esconder mais alguma das suas ignóbeis perversidades... Tu, minha filha, te ajoelhaste diante de mim ainda agora. Era eu que devia ajoelhar-me diante de ti, para te pedir perdão por ter dado vida a esse bandido, que é o meu filho... Eu, como pai, não o perdôo; mas peço que Deus me perdoe o crime de ser pai de tão horrível homem... Minha filha, tem dó de mim, deste pobre velho, deste amargurado pai, que há dez anos sofre as ignomínias que meu filho espalha por aí, mais do que ele... Não te posso fazer nada... Perdoa-me, minha filha! Cria teu filho e me procura se...

Não acabou a frase. A voz sumiu-se; ele descaiu o corpo sobre a cadeira e os olhos se foram tornando inchados.

As filhas acudiram, a mulher também; e uma daquelas, chorando, pediu à Clara e à Dona Margarida:

-É favor, minhas senhoras; retirem-se, sim?

Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela dolorosa cena que tinha presenciado e no vexame que sofrera. Agora é que tinha a noção exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos. Bem fazia adivinhar isso, seu padrinho! Coitado!...

A educação que recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente... O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres... Não haveria um talvez, entre toda aquela gente de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam...

Chegaram em casa; Joaquim ainda não tinha vindo. Dona Margarida relatou a entrevista, por entre o choro e os soluços da filha e da mãe.

Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou muito fortemente sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero:

-Mamãe! Mamãe!

-Que é minha filha?

-Nós não somos nada nesta vida.

Todos os Santos (Rio de Janeiro), dezembro de 1921 - janeiro de 1922.