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Opiniões e idéias de J. Sá Bragança, primeiro oficial da Secretaria dos Cultos.

É bacharel em letras pelo antigo Imperial Colégio dom Pedro II, onde foi colega do doutor Joaquim Nabuco. Conhece a psicologia clássica e a metafísica de todos os tempos.

É de história sentimental limitada. Não é casado e só amou duas vezes: a primeira vez, a filha de um visconde, num baile de um marquês; a segunda, à sua cozinheira, não sabe em que ocasião. Seguindo o seu favorito método introspectivo, analisou as duas emoções e, ao cabo de análise detalhada, achou-as idênticas em si mesmas e nas aparências.

Nunca teve ambições. Filho de um general e titular do Império, podia ter sido «muita coisa», não quis; era preciso ser doutor, formar-se, o que lhe daria trabalho, amolações...

Fez-se praticante e foi indo.

Com tão grande saber, Sá Bragança podia ser oráculo de sua repartição, e não o é. As repartições são como a vida em geral, amam os medíocres.

Contudo, ele é bom empregado. A Republica veio encontrá-lo a postos, redigindo um decreto do Defensor Perpétuo; e, ao lhe avisarem:

-Seu Bragança, o Deodoro proclamou a República no Campo de Sant'Ana.

-Qual foi? perguntou

As suas reminiscências de história não lhe davam de pronto a idéia nítida do que fosse república. Sabia de tantas e tão diferentes, que o seu embaraço não foi afetado.

-República!... Homessa!... Governo de todos nós, respondeu o servente.

-E você ainda pretende governar?

-Eu, não; mas meus filhos...

-É de esperar, meu amigo.

-Agora, outra coisa: vão restabelecer a escravatura?

-Isso não sei, «seu» Bragança.

Disse-me ele que, naquela manhã mesmo lera o seu Fustel de Coulanges, a respeito da significação aristocrática do tratamento cidadão. Despido de ambições, acabado o seu curso, não abandonou os livros. Continuou a ler e a comprá-los mensalmente, procedendo a leitura com a ordem e o vagar de quem vai escrever uma tese. Das revistas estrangeiras, a Revue des Deux Mondes é a que mais quer e cita.

-É a única que não traz figuras, disse-me ele.

Ama as letras pátrias e acompanha o seu movimento com interesse, mas sem paixão. Quando moço, admirou Fagundes Varela e Laurindo Rabelo; hoje, o seu ídolo literário é o senhor barão do Rio Branco.

-Mas não tem livros?

-É porque não quer. Se os fizesse...

E a sua fisionomia se concentrou num olhar que parece estar vendo, ao longe, o triunfo de Tito.

Nos dias de bom humor, ele me distingue com as suas piadas críticas:

-Na Canaã do Milkau, do doutor Graça Aranha, entrarão o Felicíssimo e aquele simpático «camarada» que dança o miudinho?

Não lhe pude responder. A terra de promissão do ilustre romancista fica tão na névoa e no vago -é tão alemã!- que não me atrevi a responder sim. Demais, quem é que precisa de terra de justiça e de amor? Os alemães, sem dúvida!

Para Felicíssimo e nós outros, o encorajamento.

Lentziano com a carabina do vagabundo da Tijuca, que vem a ser o mesmo.

Sá Bragança parece que adivinhou o meu pensamento, quando me perguntou em seguida:

-Você já reparou que os nossos [...].

* * *

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Aos camaradas do Esplendor dos Amanuenses comunica Aff. H. de Lima Barreto, amanuense da Secretaria da Guerra, que vai arejar no Largo da Carioca, onde, durante dois meses, para exercícios variados de artilharia... verbal, continuando, embora com tão árduos trabalhos, a tomar notas para o seu Pequeno Dicionário dos Super-Homens, título esse que o Rivarol, lá do Inferno onde está, há de gostar muito.

Mot de la fin:

Rua do Ouvidor. Passa o batalhão naval.

-Que te parece?

-O que? (para danar o Rui).

-O batalhão naturalmente...

-Os oficiais são de um país e os soldados de outro.

-Um regimento de cipangos.

-Um batalhão de sudaneses.

-Exato!

-Tal e qual!

* * *

Abril

O pai de Gonzaga de Sá devia ter nascido em 1813.

Gonzaga de Sá, em 1850, e entrou na secretaria dos Cultos em 1872; quando nasceu, o pai tinha 37 anos, e a irmã deve ser mais velha do que ele 12 anos.

O concerto do Gottschalk.

O benefício da Stoltz.

* * *

O pai de Gonzaga de Sá devia ter morrido em 1874, com, pelo menos, 60 anos -1814. Fez a campanha do Rio Grande; em 1845 voltou e fez-se professor.

PaiGonzaga
N.18101850
187457
General 1810 {G. de Sá1850 (40)Mãe morreu em 12 (1866)
Escolástica1838 (26)Mãe morreu em 24

Benefício da Stoltz - 1852 agosto - E. 14

Gottschalk - novembro de 1869.

EscolásticaGonzaga de SáPaiMãe
Benefício da Stoltz14anos2anos4227
Gottschalk311969Morta
Morte da mãe (1858)20858O

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Opiniões e idéias de J. Gonzaga de Sá, oficial da Secretaria dos Cultos.

Encontrei Gonzaga de Sá na Avenida Beira-Mar, numa tarde tépida destes últimos dias. Vinha absorto, com as mãos atrás das costas, agarrando a bengala, de cabeça caída, sem ver as fantásticas mutações nas nuvens altas.

Falei-lhe:

-Passeando, hein?

-Exato.

-É uma bela avenida, esta!

O meu amigo olhou-me um pouco como que experimentando a minha lealdade.

-Não acho, meu caro. Notei as minhas sensações e creio poder resumir o meu exame introspectivo da seguinte maneira: é o cais da Lapa alargado. Os americanos têm como critério de beleza, a altura; é possível que o nosso venha a ser a largura...

-Ainda não está acabada...

-Quando estiver, a mais só haverá os passeios, o que é insignificante.

-As paisagens? Os pontos de vista?

-Não são a avenida propriamente, e já o cais me oferecia o mesmo espetáculo.

-Contudo... quis retorquir a minha mocidade entusiasta.

-Não se agaste... «Le beau pour le crapaud...». Você sabe não é? Profunda verdade!... É possível que, se os homens não precisassem de dois sexos para se perpetuarem, não houvesse surgido entre [nós] uma tão curiosa noção. Já não sou um homem mais; a beleza para mim é uma fórmula algébrica, por isso...

-Creio que o senhor não maldiz os melhoramentos?

-Absolutamente não! Pelo contrário, tenho projeto de novos.

Dizendo isto, tirou da algibeira do velho paletó algumas tiras que me deu.

-Leia-as. Amanhã me entregue.

Eu li então o seguinte:

«Nota-se que em geral as grandes cidades, especialmente as européias, não têm um fundo de cordilheira como a nossa. Ora, se as grandes cidades não têm tal disposição natural e se o Rio quer ser das grandes à européia, deve arrasar as montanhas. Não há prejuízo algum com isso. A desvantagem única seria a supressão do Corcovado, montanha internacional e muito procurada pelos estrangeiros. Em substituição, pode-se erguer uma torre semelhante à Eiffel, em Paris. Até será muito melhor, pois ficará o Rio muito parecido com a capital da França. O aterro, proveniente do desmonte dos morros, servirá para alterar a baía, um incômodo, sepulcro de crimes e cuja beleza, no juízo dos políticos, é uma vazia banalidade de retórica.

Para o comércio, ficará uma doca; e lá para as bandas de Mauá um lagozinho destinada aos poetas.

Nota-se também que as grandes metrópoles ficam sobre rios mais ou menos consideráveis (Paris, Berlim, Londres, New York, Viena, etc.), logo se o Rio quer ser grande metrópole deve ficar à margem de um rio respeitável.

Poder-se-ia transformar o Maracanã em rio considerável. Com canalizações suplementares às nascentes, o aumento do seu volume d'água poderia ser obtido; mas seria falsificar. O melhor é um rio autêntico e bem catalogado nas geografias.

Nenhum mais adequado do que o Paraíba, para preencher um fim tão civilizador».

Apesar de tudo, mesmo depois das linhas acima, ainda não tenho uma opinião segura sobre o Gonzaga de Sá doido ou ajuizado, inteligente ou parvo? Não sei.

* * *

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XIII.- O afilhado. Primeira conversa com o Aleixo Manuel, sua inteligência, sua vivacidade. Saída para o colégio, alegre, contente, cheio de vida. O Gonzaga de Sá, em seguida, ao ir me dando livros, vai expondo suas idéias sobre a ciência. Volta de Aleixo Manuel, mal põe o pé na soleira da sala, põe-se a chorar nervosamente, muito, muito. Gonzaga de Sã o interroga:

-Que é? Que foi?

-Dindinha, dindinho, me chamaram de macaco, diz ele.

Fim.

XIV.- Escritos de Gonzaga de Sá. Dia de chuva, fico em casa. Minha irmã toca. Leio e, folheando livros de Gonzaga de Sá, encontro notas e escritos dele. Miauança, minha gata.

Primeiro.- Não há mulher, há sexo feminino.

1.- O general.

2.- A ressurreição de Barbarroxa.

3.- A aeronave e o construtor.

4.- Sapo e sapa

E alguns pensamentos.

XV.- Morte de Gonzaga de Sã. Vou visitá-lo. Está de camisolão, a rasgar papéis e notas. Muito magro, a cabeça muito grande, etc. De repente, sai do quarto, vem à sala de visitas, grita pela irmã, fá-la sentar ao piano, obrigando-a a tocar a «Bamboula» e morre num desfalecimento, recostado num divã, dizendo:

-Que complicação... que peso... foi-se... afinal!

Estou eu, a irmã, o preto velho e o Aleixo Manuel.

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Espécies parlamentares:

Augusto de Freitas: untuoso, gestos lentos, sorriso à flor dos lábios. Doce de côco.

Barbosa Lima: imprecações, gestos bruscos e convulsos, voz ora cava, ora estrídula. Apocalíptico.

James Darcy: melífluo, longas melenas oleadas, na voz «trêmolos», acompanhados de outros trêmolos na mão, que se alça devagar. Manjar branco.

Anisio de Abreu: desengonçado, desarticulado, voz tonitroante, inaudível à meia voz e gestos descompassados, estos. Sermão da quaresma.

Rui Barbosa: voz imperceptível, citações, citações... Temas arcaicos e aforismas. João das Regras.

Germano Hasslocher. Super-homem.

Augusto de Vasconcelos, O silêncio é de ouro.

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25 de novembro

Précis de Philosophie. / Rédigé conformément aux programmes officiels. / Pour la classe de philosophie./ D'aprés les leçons de philosophie de M. E. Rabier. / Par René Worms... / Deuxième édition revue. / Paris, Librairie Hachette et Cie. / 1903.

VIII-407 p.

Este livro foi-me dado pelo Antônio N. Santos, no «sebo» do Martins, em 1907.

Lima Barreto.

25-11-1907.

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Mário Pederneiras. Artigo em francês, publicado na A Revista, Rio de Janeiro, 1907.

Tolice e burrice minha.

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Manuel Capineiro. Ver do Barreto. Houve uma fome. Estrada Real, etc. Caso do capim. Expresso esmaga bois. «Ai mô gado! Antes fosse eu!».

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«A expiação». Tipo que, sem ter assassinado, acusa-se como sendo o assassino de um caso misterioso.

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«A volta» (?). Mocidade. Carnaval. Bebericos. Choro. «Pobre Chico, que quer?, não me casei».

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Sobre o humorismo. Pôr tudo na história do riso de Schopenhauer.

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O sentimento do doente nas outras crises. Brigas etc. Falta tudo.

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Mulher bonita é que não falta nesta vida; o que falta é a mulher de que a gente goste.

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5 de janeiro

O ano que passou foi bom para mim. Em geral, os anos em 7 fazem grandes avanços aos meus desejos. Nasci em 1881; em 1887, meti-me no alfabeto; em 1897, matriculei-me na Escola Politécnica. Neste andei um pouco, no caminho dos meus sonhos. Escrevi quase todo o Gonzaga de Sá, entrei para o Fon-Fon, com sucesso, fiz a Floreal e tive elogio do José Veríssimo, nas colunas de um dos Jornais do Comércio do mês passado. Já começo a ser notado. Pelas vésperas do Natal, fui ao Veríssimo, eu e o Manuel Ribeiro. Recebeu-nos afetuosamente. Ribeiro falou muito, doidamente, difusamente; eu estive calado, ouvi, dei uma opinião aqui e ali. Deu-me conselhos, leu-me Flaubert e Renan, aconselhando aos jovens escritores. Falou da nossa literatura sem sinceridade, cerebral e artificial. Sempre achei a condição para obra superior a mais cega e mais absoluta sinceridade. O jacto interior que a determina é irresistível e o poder de comunicação que transmite à palavra morta é de vivificar. Agora mesmo acabo de ler o Carlyle, Hero Worship, no herói profeta, Maomé, que ele diz ser um sincero, acrescentando: «I should say sincerity, a deep, great, genuine sincerity is the first characteristic of all men in any way heroic». O Veríssimo disse coisa semelhante, dizendo-nos que a glória dos segundos românticos, do Castro Alves, do Fagundes, do Laurindo, do Casimiro, era imperecível, tinha-se incorporado à sorte da nação, porque eles tinham sido sobretudo sinceros. Concordei, porque me acredito sincero. Sê-lo-ei? Às vezes, penso ser; noutras vezes, não. Eu me amo muito; pelo amor em que me tenho, com certeza amarei os outros.

A Floreal vai mal.

* * *

No dia 2, fui à casa do M... A... Ele vive amancebado com uma rapariga portuguesa, de vinte e quatro anos, por aí. Tenho ido lá várias vezes, sempre cheio de suspeitas que me queiram armar alguma cilada. É besta e infantil tal suposição. Eu não compreendo a ligação dos dois. Ele quase não dorme lá, passa dias sem lá ir; sob os pretextos mais infantis, passa as noites fora. Corre que tem outra amante; suspeito que tem um sócio na mulher. Eu julgo que ele não dorme em casa, para deixar o outro dormir; entretanto, pelas conversas dos dois, há noites em que dorme. Ela não o ama; ela o quer para descansar da vida fatigante, aborrecida, trabalhosa, de mulher pública. Moram numa casa de duzentos mil-réis de aluguel, têm um trem de vida de trezentos; não saem juntos; se se encontram na rua, não se falam. É enigmático. Porque se mantêm juntos, que soma de interesses representa tal ligação? A mulher é pouco para o homem que é; e o homem etc., etc.

Fui lá, dizia, entrei para a sala de jantar, sentei-me e ela veio ao meu encontro:

-... não está.

Tinha ido a um jantar, disse-me ela. Tinha esquecido o rendez-vous, etc., etc.

Em começo, tive uma alegria de devasso -quem sabe?- que passou depressa e felizmente. Ela sentou-se na minha frente, fumei desesperadamente e conversei. Nunca estive tão bem. Tenho vinte e seis anos e, até hoje, ainda não me encontrei com uma mulher de qualquer espécie de maneira tão íntima, de maneira tão perfeitamente a sós; mesmo quando a cerveja, a infame cerveja, me embriaga e me faz procurar fêmeas, é um encontro instantâneo, rápido, de que saio perfeitamente aborrecido e com a bebedeira diminuída pelo abatimento.

A Cecília, tal é o seu nome, é pequena, dá-me pelo peito; é pálida, com aquela palidez mate das prostitutas um tanto diminuída; simples de inteligência, não tem quatro idéias sobre o mundo, aceita o seu estado, acha-o natural, não deita arrependimentos, tem vontade de empregar as elegâncias que aprendeu com as francesas dos grandes bordéis em que andou (Valéry, Richard, etc., etc.). Para mim, apesar da sua maneira de apertar a mão com as pontas dos dedos, ela me fica sendo sempre uma cachopa dos arredores do Porto, meiga, simples, ignorante e um tanto obstruída de inteligência, que um vendaval de miséria trouxe para esta África disfarçada, diminuindo em sua mãe o sentimento de família, aproveitada essa diminuição pela concupiscência dos patrícios que lhe atiraram à grande prostituição, acenando-lhe com a riqueza e a fortuna, que ela não alcançou, talvez porque fosse fundamentalmente boa. Eu a tenho observado muito e, com grande medo da minha inexperiência, eu a quero boa, doce, sem arrependimento, mas a desejar um casamento que a nobilite e eleve. Quando saio de sua casa, depois de sua ingenuidade, depois de sentir que a prostituição lhe roçou de leve, posso dizer com M. de Vogué, a respeito da Casa dos Mortos, de Dostoievski: fico contente em ver que a nossa humanidade é melhor. Sinto por ela que há um cristal de pureza inalterável como núcleo eterno da pessoa humana, e que raramente ele se desagrega, mesmo sob o império das mais baixas degradações por que possamos passar.

Essa rapariga, que viu bordéis, ladrões, estelionatários, rufiões e jogadores; que se meteu em orgias; que certamente se atirou a desvios da sexualidade, aparece-me cândida, ingênua e até piedosa. Estou a ver daqui os seus cabelos castanhos, os seus olhos de um azul desmaiado, e não sei porque me lembram Maria Madalena. Há não sei que separação entre o seu passado e presente e a sua alma verdadeira, que tenho um delicioso bem-estar em vê-la. É como se ela me trouxesse «uma redoma de alabastro cheia de bálsamo». Nessa tarde, eu, com vinte e seis anos, e ela, com vinte e quatro, ainda muito lembrada da vida antiga, conversamos, das seis e meia às dez horas, inocentemente, e creio que saí com os pés ungidos de nardo, mal enxugados pelos seus lindos cabelos. Eu a olhava com o meu olhar pardo, em que há o tigre e a gazela, de quando em quando, e ela, sempre, constantemente, me envolvia com o seu olhar azul, macio e sereno, que lhe iluminava o sorriso de afeto, eterno e constante, espécie de riso da natureza fecunda e amorável por uma manhã límpida e suave de maio, quando as flores desabrocham para frutos futuros.

Nunca mais hei de me esquecer desta sua frase:

-Senhor Barreto, M... não está. O senhor janta e depois vai se embora, não é?

Esse «depois vai se embora» foi dito com tal singeleza, com tal espontaneidade, como se pronunciasse uma donzela ou uma senhora casada. E quantas destas seriam capazes de dizer isso com tanta candura?!!

Por que razão o destino tê-la-ia prostituído e atravessado no caminho da minha vida?

No jantar, nunca foi tão cordial a nossa palestra.

-Não faça cerimônia, senhor Barreto. Gosta de feijão?

-Muito, e a senhora?

-Muito também.

-Admira...

-Os portugueses gostam...

-O feijão tem uma coisa, disse eu, é feio...

-Mas é gostoso, acrescentou ela alegre, e como muita gente feia, mas gostosa.

Depois do jantar, conversamos longamente; não vi como a conversa começou e resvalou para coisas de jogo, de mulheres.

Ela bebeu mais que de hábito, e houve um instante que ela me disse, ao tomar um copo de vinho, cheia daquela espontaneidade que dominou a entrevista toda:

-Eu não posso viver sem gostar de alguém.

É de tarde, chove, embora assim olho a janela, para ver se dou no céu com um pouco daqueles seus olhos de azul límpido, com aquele seu sorriso de florescimento da natureza... É feia a tarde, névoa cerrada, moinha de carvão no ar...

Como a prostituição me parece sagrada; se não fora ela, esta minha mocidade, órfã de amor, de carinho de mulher, não teria recebido esse raio louro de um sorriso e de um olhar, para me recordar esse misterioso amor que se sofre, quando se o tem, e se padece, quando se não o tem.

Abro o Cântico dos Cânticos, leio um versículo a esmo:

«Apareceram as flores na nossa terra, chegou o tempo da poda: ouviu-se na nossa terra a voz da rola»...


Chove... Vou para a cadeira de balanço. Vou fumar e sonhar...

* * *

24 de janeiro

A esquadra americana, forte de quinze navios grandes e não sei quantas torpedeiras e destroyers, já saiu. Trazia uma tripulação de dezesseis mil homens, que, aos dois mil e três mil, encheram a cidade diariamente. Era tripulação variada. Trazia gente de diversas nacionalidades: franceses, portugueses, italianos, turcos, alemães; trazia negros e mulatos, alguns destes bem postos e fortes. Tomei um «pifão» uma noite e andei experimentando o meu inglês com alguns. Foi um fiasco. Observei fisionomias. Algumas lindas; nunca vi nas mais lindas mulheres brancas daqui o tom doce de uma fisionomia de marinheiro que me caiu sob os olhos. Entre nós, as fisionomias são mais secas, contraídas, cheias de fogo, mas não tem a limpidez dessas fisionomias saxônicas, que a gente vê nas reproduções dos quadros dos pre-rafaelistas. Há alguma coisa de primitivo nelas, de um primitivo sem selvageria, um sentimento do além, do desconhecido, visto por anjos delicados. Os selvagens são sempre graves; nós somos sempre graves, quando não, uns abandonados às contrações sagradas do «purismo».

Mesmo a Cecília e as portuguesas que conheço não têm esse ar de arcanjo que o marinheiro me fez ver. Por falar nela, voltei lá na penúltima quinta-feira. Não trouxe nenhuma convicção. A conversa foi falsa. M... estava lá, com toda a sua burrice e falta de poesia.

Quarta-feira última, chegando à secretaria, deram-me um convite para assistir à saída da esquadra de bordo de um navio do Lloyd. Fui, depois de hesitar muito.

* * *

Fui a bordo ver a esquadra partir. Multidão. Contato pleno com meninas aristocráticas. Na prancha, ao embarcar, a ninguém pediam convite; mas a mim pediram. Aborreci-me. Encontrei Juca Floresta. Fiquei tomando cerveja na barca e saltei.

É triste não ser branco.

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10 de fevereiro

Fui ontem a São Gonçalo. É um município limítrofe ao de Niterói. Fui à casa do Uzeda. Uzeda é um segundo oficial da Secretaria da Guerra, casado com uma professora pública do lugar.

Embarquei às oito e meia no Largo do Paço; fazia uma manhã quente e feia, ensombrada de nuvens. Encontrei o Pinho, um meu antigo colega da Escola Politécnica. Vinha de exercícios práticos. Soberbamente insuportável. Indagando da produção do município, não me soube informar com simplicidade. Atribuiu a falta da lavoura à indolência do povo. Tive vontade de perguntar se ele, engenheiro, tendo estudado a química, física e história natural, dava um exemplo salutar, cultivando o sítio onde morava. Calei-me, e foi dizendo bobagens. Fez uma crítica severa às tarifas do Tramway Rural Fluminense. É isto uma pequena estrada de ferro, com carros abertos ao jeito de bondes, que liga as Neves ao município de São Gonçalo. E uma coisa tosca, necessariamente exigindo para a sua manutenção uma série de medidas empíricas, que a prática dita; o idiota do Pinho quer que ela se guie pelos princípios tarifários que regem os fretes das grandes vias-férreas. Disse-me coisas proveitosas, que, por exemplo, o esforço da tração era o mesmo na descida que na subida. É profundo.

As Neves não tiveram, para os meus olhos, nada de notável. Têm o aspecto comum dos nossos postos afastados e edificados. Casas baixas, pintadas de azul, de oca; janelas quadradas; espessas escadas de tijolos e pedras, que dão acesso a portas baixas; fisionomias indolentes de homens pelas portas das vendas; mulheres: negras, brancas e mulatas; tristes, de longos olhares, em que há desejos de volúpias e sonhos de festas, de bailes, fantásticos, de envolvedoras agitações de todo o corpo, capazes de as fazerem esquecer e quebrar a monotonia daquela vida pobre e triste que levam, tão parecida ainda com a senzala, em que o chicote disciplinador de outrora ficou transformado na dureza, na pressão, na dificuldade do pão nosso de cada dia.

Tomei o tramway. Fui vendo o caminho. A linha é construída sobre a velha estrada de rodagem. Em breve, deixamos toda a atmosfera urbana, para ver a rural. Há casas novas, os chalets, mas há também as velhas casas de colunas heterodoxas e varanda de parapeito, a lembrar a escravatura e o sistema da antiga lavoura. Corre o caminho por entre colinas, há pouca mata, laranjeiras muitas, algumas mangueiras.

Eu, olhando aquelas casas e aqueles caminhos, lembrei-me da minha vida, dos meus avós escravos e, não sei como, lembrei-me de algumas frases ouvidas no meu âmbito familiar, que me davam vagas notícias das origens da minha avó materna, Geraldina. Era de São Gonçalo, de Cubandê, onde eram lavradores os Pereiras de Carvalho, de quem era ela cria.

Lembrando-me disso, eu olhei as árvores da estrada com mais simpatia. Eram muito novas; nenhuma delas teria visto minha avó passar, caminho da corte, quando os seus senhores vieram estabelecer-se na cidade. Isso devia ter sido por 1840, ou antes, e nenhuma delas tinha a venerável idade de setenta anos. Entretanto, eu não pude deixar de procurar nos traços de um molequinho que me cortou o caminho, algumas vagas semelhanças com os meus. Quem sabe se eu não tinha parentes, quem sabe se não havia gente do meu sangue naqueles párias que passavam cheios de melancolia, passivos e indiferentes, como fragmentos de uma poderosa nau que as grandes forças da natureza desfizeram e cujos pedaços vão pelo oceano afora, sem consciência do seu destino e de sua força interior.

Entretanto, embora enchesse-me de tristeza o seu estado, eu não pude deixar de lembrar-me, sem algum orgulho, que o meu sangue, parente do seu, depois de volta de três quartos de século, voltava àquelas paragens radiante de mocidade, saturado de noções superiores, sonhando grandes destinos, para ser recebido em casa de pessoas que, se não foram senhores dele, durante algum tempo, tinha-o sido de outrem da mesma origem que o meu.

Eu vi também pelo caminho uma grande casa solarenga, em meio de um grande terreno, murado com um forte muro de pedra e cal. Estava em abandono, grandes panos do muro caídos e as aberturas fechadas com frágeis cercas de bambus. Eu me lembrei que a grande família de cuja escravatura saíra minha avó, tinha se extinguido, e que deles, diretamente, pelos laços de sangue e de adoção, só restavam um punhado de mulatos, muitos, trinta ou mais, de várias condições, e eu era o que mais prometia e o que mais ambições tinha.

Ela fora mais caipora do que aquele muro sólido, porque extinguira-se, caíra de todo e não deixara da sua linha direta nenhum rastro.

Cheguei à casa do Uzeda.

Antes vi a vila. Há uma grande rua principal, com uma imensa matriz a cavaleiro dela, e toscas casas que a arruam. O trem passa embaixo e, junto ao paço municipal, é macadamizada. A câmara municipal é um caixão ignóbil. Não sei porque nós não sabemos fazer esses edifícios com o gosto que os arquitetos da Idade Média faziam os dos seus burgos. Que infâmia é a que vi! Entretanto, é moderna, tem menos de vinte anos. A capela tem o acabamento das torres em pirâmide; é sem gosto e soturna; não há uma casa com sentimento, e a gente tem o que ver, apenas nas das colunas, em que a escravidão pôs seus sofrimentos e as suas recordações.

A mulher do Uzeda é rapariga anêmica, dessas nossas que a mocidade sabe dar um brilho singular com a sua fragilidade, mas que a maternidade e o tempo empanam e estiolam de modo lastimável. É morena, de curtos cabelos. Rosto em V, bom, para um rapaz inteligente, e que nela, com seus hábitos de paciência que o professorado dá, empresta uma singular fisionomia de freira, que o olho direito mais estreito faz quebrar com certa canalhice.

* * *

15 de maio

Ontem fui à casa do Goulart, Goulart de Andrade, poeta. Já publicou um livro vitorioso. Não gosto de sua poesia, muito sábia, muito certa, muito verbal, com pouco de sua pessoal, tocando certos temas clássicos; entretanto, ele é trabalhador, poeta agradável, legível e verbal.

Leu-me uma sua peça, Inconfidentes. Trata-se de Tiradentes e os poetas da conjuração. Há versos bonitos. Fraca de espírito, pouca graça, muito pouca. O entrecho não podia ter nada de novo. Os poetas falam com ênfase no primeiro ato. Tiradentes vocifera no segundo; no terceiro, Bárbara Heliodora encontra-se com Marília de Dirceu e Maria Ifigênia, fala como uma melancólica dos nossos dias. O quarto ato é na prisão, movimentado, mas não dramático. A peça toda tem esse defeito: tem movimento mas não tem drama. Goulart não compreende o drama, não sente a paixão. A paixão, para ele, existe depois da poesia, ele só sente o verso. Ilude, no drama, na peça, essa sua fraqueza com o movimento. E um poeta, puro, um poeta de sessenta anos passados, que não parece ter aprendido mecânica, astronomia e navegação. Eu não acredito absolutamente na eficácia da ciência para fazer poetas e literatos; às vezes mesmo a julgo nociva; mas tenho para mim que o processo é o mesmo na arte e na ciência: um acordo entre o oculto e o visível, uma relação entre fatos que, só com os instrumentos do pensamento, ganham uma explicação.

Poeta, antes da poesia, eu devo ter as paixões, as emoções para exprimi-las em verso; dramaturgo, comediógrafo, romancista, da mesma forma: os costumes, as paixões, os sofrimentos, as emoções, o entrechoque delas no cenário do mundo. O estilo, na frase de alguém, é um acompanhamento.

Enfim, para que discutir? Se a poesia agrada...

Leu-me o Coelho Neto, Jardim das Oliveiras. Há algumas coisa boa, diferente do Neto comum, cantador de condessas, baronesas, misses, etc. Esse Neto de pacotilha que tem medo de dizer as suas amarguras contra «a sociedade que nos esmaga».

Contei-lhe o Isaías Caminha. Achou graça, mas ficou apreensivo. Não tinha razão: eu sou amigo dele e sei ser amigo até à última hora.

E nunca, penso eu, procurei ser inimigo do meu ex-amigo.

Cheguei em casa às onze e quarenta e li um artigo de Gaultier sobre o bovarismo na história, a propósito do último livro de Nietzsche. Considerações inatuais. Pelas doze e quarenta apagava a vela e dormia.

* * *

5 de julho

Domingo. Levantei-me às dez horas, fiz a barba, concertei a gravata, arranjei melhor a minha roupa velha; pus-me limpo e elegante, enfim. Ia visitar umas damas; isto é, ia à casa de duas raparigas de vida airada, que vivem em semi-mancebia com dois antigos colegas meus, o A... M... e o C... M... Hoje, ambos são engenheiros da Prefeitura.

Cheguei lá às duas horas da tarde. Nenhum dos dois estava. Fiquei a conversar com a amiga do A... Chama-se Maria, Cecília, Celina, ou coisa que valha. Eu simpatizo com essa mulher, porque ela me inspira piedade. E eu a ter piedade!

Elas têm outros amigos, com o consentimento deles. É uma coisa da moda, isto, hoje. Os costumes estão desse modo, permitem já a poliandria. Há muita falta de delicadeza e beleza nas nossas coisas.

Aborreci-me!

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16 de julho

Desde menino, eu tenho a mania do suicídio. Aos sete anos, logo depois da morte de minha mãe, quando eu fui acusado injustamente de furto, tive vontade de me matar. Foi desde essa época que eu senti a injustiça da vida, a dor que ela envolve, a incompreensão da minha delicadeza, do meu natural doce e terno; e daí também comecei a respeitar supersticiosamente a honestidade, de modo que as mínimas coisas me parecem grandes crimes e eu fico abalado e sacolejante. Deu-me esse acontecimento, conjuntamente com a vida naturalmente seca e árida dos colégios, uma tristeza sem motivo, que é fundo de quadro, mas pelo qual passam bacantes em estertores de grande festa. Outra vez que essa vontade me veio foi aos onze anos ou doze, quando fugi do colégio. Armei um laço numa árvore lá do sítio da ilha, mas não me sobrou coragem para me atirar no vazio com ele ao pescoço. Nesse tempo, eu me acreditava inteligente e era talvez isso que me fazia ter medo de dar fim a mim mesmo.

Hoje, quando essa triste vontade me vem, já não é o sentimento da minha inteligência que me impede de consumar o ato: é o hábito de viver, é a covardia, é a minha natureza débil e esperançada.

Há dias que essa vontade me acompanha; há dias que ela me vê dormir e me saúda ao acordar. Estou com vinte e sete anos, tendo feito uma porção de bobagens, sem saber positivamente nada; ignorando se tenho qualidades naturais, escrevendo em explosões; sem dinheiro, sem família, carregado de dificuldades e responsabilidades.

Mas de tudo isso, o que mais me amola é sentir que não sou inteligente. Mulato, desorganizado, incompreensível e incompreendido, era a única coisa que me encheria de satisfação, ser inteligente, muito e muito! A humanidade vive da inteligência, pela inteligência e para a inteligência, e eu, inteligente, entraria por força na humanidade, isto é, na grande humanidade de que quero fazer parte.

Mas não é só não ser inteligente que me abate. Abate-me também não ter amigos e ir perdendo os poucos que tinha. Santos está se afastando; Ribeiro e J. Luís também. Eram os melhores. Carneiro (o Otávio), o egoísta e frio Otávio, está fazendo a sua alta vida, a sua reputação, o seu halo grandioso, e é preciso não me procurar mais. Eu esperava isso tudo; mas não pensei que fosse tão cedo. Resta-me o Pausílipo, este é o único que se parece comigo e que tem o meu fundo, que ele desconhece por completo.

Eu os sabia desse feitio, principalmente o O. C. Ele tinha um lustre, um verniz de independência e desinteresse, de superioridade e de grandeza, mas a vida, a grande vida, a fortuna, as fêmeas e uma esposa assim, pedem outras coisas muito diferentes: submissão, respeito pelo estabelecido, companhias que não sejam suspeitas, etc.

Eu fico só, só com os meus irmãos e o meu orgulho e as minhas falhas.

Vai me faltando a energia. Já não consigo ler um livro inteiro, já tenho náuseas de tudo, já escrevo com esforço. Só o Álcool me dá prazer e me tenta... Oh! meu Deus! Onde irei parar?

Tenho um livro (trezentas páginas manuscritas), de que falta escrever dois ou três capítulos. Não tenho ânimo de acabá-lo. Sinto-o besta, imbecil, fraco, hesito em publicá-lo, hesito em acabá-lo.

É por isso que me dá gana de matar-me; mas a coragem me falta e me parece que é isso que me tem faltado sempre.

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26 de outubro

No Correio da Manhã de hoje, trecho de um artigo de Carmen Dolores:

«... e ficamos a rebolar, sempre a rebolar, tristes bolas sociais».


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Sem data

Modificações a fazer no manuscrito (12):

1) Onde está: Figueiredo Pimentel, no «Binóculo», etc. (Cap. X ou XI), escrever: Florencio Silva, no «Despacho», etc. Adiante, substituir Figueiredo Pimentel por Florencio Silva.

2) Onde diz: trezentos mil portugueses, pôr duzentos mil (Cap. XI ou XII).

3) Onde diz: sensação imperscrutável da música, etc. (Cap. XIII), pôr sensação imponderável, etc.

4) Onde diz: as extremidades dos remos luziam como prata e a nossa esteira era luminosa (Cap. XIV in fine) pôr: «As pás dos remos, caindo nas águas escuras, abriam largos sulcos luminosos de minúsculas estrelas agrupadas e todo o barco vogava envolvido naquele estrelejamento, deixando uma larga esteira fosforescente.

5) Abaixo desta frase de diálogo no Cap. XII: -Homem, você hoje está muito zangado! (Floc), acrescentar: Ele não compreendia que eu também sentisse e sofresse.

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2 de novembro

Segunda-feira.

Foi dia de finados. A exposição como já se esperava, foi muito concorrida. Entretanto, alguns pavilhões e palácios estiveram fechados, hermeticamente fechados, como túmulos. Era justo.

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3 de novembro

Terça-feira.

A chuva reapareceu. Veio fraquinha, deliciosamente fraquinha; mas veio. A exposição esteve agradavelmente vazia. Os diretores, de onde em onde, passeavam pelas ruas de chapéu-de-sol aberto, a olhar simpaticamente os raros visitantes. O doutor Antônio Olinto mesmo a um quis servir de guia. O homem, que pertencia à falange jornalística, abespinhou-se com a amabilidade do presidente. Pois não o conhecerem!...

O Restaurante Pão de Açúcar serviu jantar a seus empregados e a alguns da exposição. O bar vendeu alguns chopes ao pessoal da polícia.

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6 de novembro

Sexta-feira.

Pouco sei do que tivesse sido o dia; mas a noite foi cheia. Pelo menos, no teatro, foram levadas três peças. Foi, portanto, uma noite de máxima teatral na exposição. Nenhuma delas era de Coelho Neto; uma era de um autor falecido e as duas outras tinham sido escritas por autores jovens e já muito estimados pelo público. Um destes últimos é o nosso amável colega Agenor de Carvoliva, o gentil Carvoliva dos noticiários, que teve a felicidade de ver aplaudido, como merecia, o seu delicado trabalho teatral que intitulou: O Eterno Romance.

O outro jovem autor, que se fez representar pela primeira vez, foi dona Carmen Dolores. O público conhece sobejamente o autor pela leitura de suas crônicas e contos, cheios sempre de altos conselhos morais e animados superiormente pelo sentimento da família e da pureza do lar; mas a pessoa é totalmente desconhecida da nossa população.

É uma moça esbelta, de menos de vinte e cinco anos, reservada, vestida sempre com discretas toilettes, que quase nunca é vista nos lugares em que nos pomos à mostra. Os seus grandes olhos redondos são povoados de sonhos íntimos e toda ela, com seu corpo esguio e seu perfil espiritualizado, parece viver absorvida na arte, ouvindo a música das esferas e as harmonias dos arcanjos. Muito moça, as triviais coisas da elegância não a fascinam, nem lhe são a cogitação constante. Despreza os vestidos, os tecidos caros, as rendas, as modas, os chapéus. Pouco freqüenta as salas e salões; não acha neles atrativo algum, de qualquer ordem ou natureza; julga-os fúteis, desprovidos de atmosfera intelectual propícia à vida de seu espírito e da sua alma. Moça, e moça circunspecta, não podendo, em obediência aos costumes, viver a vida agitada e desigual de um rapaz do seu temperamento, ela se abroquela no estudo e na leitura. Vive que nem um beneditino ou um solitário do Port-Royal, toda entregue às obras e às concepções. É ela, entre nós, uma das poucas pessoas que possuem perfeito conhecimento de toda a evolução da língua francesa. A sua biblioteca é rica dos antigos documentos dessa língua, e quem a visita poderá ver além do Froissart, Villehardouin, todas as gestas do ciclo carolíngio, Renaud de Montauban, Chanson de Roland, etc., nas edições mais autorizadas.

Além desse conhecimento, que é valioso, dona Carmen Dolores possui uma ciência perfeita do inglês, traduz Chaucer, como se fosse um autor dos nossos dias; e há anos que se dedica ao estudo da metafísica alemã e dos teólogos da Idade Média. É um raro tipo de autora, entre nós: bela, não é coquete; ilustrada, não é pedante; gloriosa, não se exibe. A sua peça, Desencontro, espantou a crítica nacional, pelo rigor da concepção, arrojo das idéias e louçania do diálogo, quente e nervoso.

Foi mais uma vitória para o Grêmio Dramático Artur Azevedo, que tanto tem concorrido para o brilho do certame da Praia Vermelha, representando primores de autores falecidos e obras-primas de alguns camaradas nossos e dos organizadores da companhia.

Sem data

À tarde, um après-midi de verão, assouplissant, todas as vidas param e dormem, para que o [...] dos trópicos venha aparecer e agradeça a fecundidade que demorava pelas suas terras.

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Discussões literárias.

Estilo.

Gramática.

Critério [?] filosofia.

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Fuzilamento. Ilha das Enxadas. O enviado do marechal. Este, aquele. A lanterna. A leva. O batelão. Quaresma. [...]. A presença do poente [?]. Soluço. Será o mar?

* * *

Malaiala ou telugo.

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«A conveniência do estilo consiste em escrever sobre os mesmos assuntos que o fizeram os escritores clássicos, com as mesmas expressões e conforme o mesmo plano».

Herculano [?], 117.



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Dissonância do desespero.

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Pathos.

* * *

Ele pensava criar ambiente, a sua casa. O seu sonho é tão forte!

* * *

Quando sobe em balão e vê o Rio, ele recorda as leituras, evoca a grandeza do Brasil e o seu sonho volta com força, etc.

* * *

Ele não percebia que via com os olhos do sonho, não descontava a refração dessa atmosfera especial, para avaliar a realidade.

Anastácio.

Observações.

* * *

Floriano preguiçoso. Fraqueza. Fuzilamentos. Paternalidade [?] com os alunos da Escola Militar.

* * *

Quaresma é feito procurador do Amazonas pelo partido da concentração. Os partidos. Brasileiros, peruano se bolivianos [...].

* * *

A trama do céu se tinha alargado.

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Tibulo

Ouve, meu anjo, o canto meu

Como as cotovias sobre o mar

Quando escutam os gemidos

Das ondas de Trafalgar [?].


* * *

Esmeralda.

O exército. A matemática. A luta com os [...]. A Marinha. Monge e Lagrange.

* * *

A Duquesa, pata, parece arrastar um manto de arminho.

* * *

Os [...].

Na retirada, todos se põem a gritar: metafísicos. O general chega, repreende severamente: são fetichistas.

* * *

Falar nas matas devastadas.

* * *

E [...] indaga de Felizardo: porque não planta nas suas terras?

* * *

Casa de Maria Rita. A neta. Chateaubriand. O inventário, etc., etc.

* * *

Eschwege.

Grupiaras - cascalho aurífero solto.

* * *

Choros, folhinhas, registros, retratos [...].

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Capítulo VII.- Continuam os desgostos de Ricardo.

Cap. VIII.- É o 5o antigo.

Cap. IX.- É o 6º.

Capítulo X.- A revolta, etc. Casa de Cavalcanti, etc.

Cap. XI.- É o 7º antigo.

Cap. XII.- A defesa da legalidade.

Capítulo XIII.- Morte e enterro de Ismênia, etc., etc.

* * *

Cap. XIV.- Armação, guerra, etc. Ferimento de Quaresma. Ilha das Enxadas. Fuzilamento.

* * *

Cap. XV.- Fuzilamento de Quaresma, por ter protestado.

* * *

Desgostos de Ricardo. Subúrbios - sua moradia. Razão dos desgostos. A glória. As preocupações. O seu triunfo em casa do general. Casamento de Genelício. Florêncio, Breves, Caldas, Inocêncio Bustamante.

Ismênia.

Apesar desse triunfo, sempre desgosto. Motivos por que foi procurar Quaresma.

* * *

As unhas nacaradas dos seus longos dedos mergulhavam na maciez de cabelos negros.

* * *

Pombos, quando sai o enterro de Ismênia, voam.

* * *

Ismênia vai à casa da cartomante.

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A lua. Cap. II.- 3a Parte.

No silêncio da noite, a lívida lua dourava tudo, o céu e árvores e coisas, homens e as casas, com a sua luz emprestada e fria.

* * *

Feitiçaria, etc.

* * *

As suas terras eram de soalheira, expostas ao poente, o que não contentava Anastácio, que as queria olhando para o levante, de «noruega», melhores. Variavam muito quanto à proporção de argila, areia, húmus e calcário, de pedaço a pedaço.

Em geral, eram areno-argilosas, pouco calcário e pobres em húmus.

* * *

Queria o incrível. Tácito.

* * *

Revue de Deux Mondes, 1-8-08. Gaston Rougeot. Sobre os resultados da psicofisiologia.

* * *

Policarpo Quaresma.

Idéia que mata.

A decepção.

O prêmio.

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As paineiras estavam cobertas de flores, rosadas e brancas, que, a espaços, caíam com a doçura de ave ferida.

* * *

Bernardin de Saint-Pierre, artigo sobre a sua vida e caráter. Natura ed Arte - Setembro de 1906 a outubro.

* * *

Artigo sobre a vida, experiência de renascimento. Natura ed Arte - 5-12-06.

* * *

Os barcos passavam. Ora, eram lanchas fumarentas; ora, pequenos botes ou canoas, com as suas velas alvas, roçando carinhosamente pela superfície das águas, pendendo para um lado ou outro, como se as quisessem afagar um instante. Os Órgãos vinham suavemente morrendo na violeta macia; e o resto era azul, um azul imaterial de inebriar, de embriagar, como um licor capitoso. Ele se voltava, depois, para a cidade, que entrava na sombra, aos beijos sangrentos do ocaso.

Vinha-lhe então pensar por que força misteriosa, por que injunção irônica, ele se tinha misturado em tão tenebroso acontecimento, assistindo ao sinistro alicerçar do regímen.

* * *

O processo da vida devia ser outro. Se fosse de doçura, de bondade, talvez a humanidade depurasse [?].

* * *

Ilusões que morrem.

Ilusões e fatos.

Desenganos.

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Um oficial no hospício como deve ser considerado? Louco.

Doutrina da solidão.

* * *

Consultar a toda a hora o dicionário. Livros empregados.

* * *

Sobre os negros, em geral, e principalmente sobre as populações coloniais da Ásia e Oceania, é bom ver a Revue Scientifique, de julho de 1906. M. Louis Lapicque.

* * *

Sobre a literatura em geral, ler Brunetière, Revue des Deux Mondes - Janeiro e fevereiro de 1892.

* * *

Nietzsche: Revue des Deux Mondes - Setembro a outubro de 1892.

Pascal: Revue des Deux Mondes - 15 agosto 1879, Brunetière.

* * *

Como se deve escrever a história do Brasil, tomo VI da Revista do Instituto Histórico.

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Artigo de Littré sobre árias e semitas, 1º de julho de 1857.

* * *

O triste fim de Policarpo Quaresma:

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Leme. Pescadores seguiam as ondas com a tarrafa.

* * *

Olhos cheios d'água.

* * *

El negro se ha ido cuando se fué la fiebre, que excluía la concurrencia dominante del trabajador europeo.

El Brazil, M. Bernárdez, pág. 6.



* * *

Rouché. L'Art Théatrale Moderne.

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Sem data

I - HISTÓRIA DO MACACO QUE ARRANJOU VIOLA

Um macaco saiu à rua muito bem vestido. As crianças começaram a troçá-lo: -Olha o rabo! Olha o rabo do macaco! -Meninos, deixem-me, dizia o macaco. As crianças, porém, continuaram: -Olha o rabo do macaco! Ele foi então a um barbeiro e pediu que lhe cortasse o rabo. O barbeiro recalcitrou. Ele insistiu e ameaçou-o de lhe furtar a navalha se não lhe cortasse a cauda. O barbeiro cortou-lhe a cauda e o macaco voltou à rua muito contente. A assuada continuou: -Olhem o macaco cotó! Olhem! O macaco voltou ao barbeiro e pediu que lhe pusesse de novo a cauda. O barbeiro mostrou que era impossível. O macaco furtou-lhe a navalha. Continuou o seu caminho e veio a encontrar uma mulher que escamava peixe com a mão. -Porque você escama peixe com a mão? -Porque não tenho faca, diz-lhe a mulher. -Tens aqui uma navalha. A mulher aceitou e ambos comeram o peixe com farinha. Chegando mais adiante, arrependeu-se e foi de novo buscar a navalha. A mulher recusou, porque lhe tinha dado o peixe. -Ah! não me dás, disse o macaco, eu te furto a farinha! Dito e feito. Furtou-lhe a farinha e seguiu adiante, vindo a encontrar uma professora que dava bolos de pau às meninas. Ele, então, ofereceu a farinha. A professora aceitou e ele entrou também nos bolos. Tendo andado um pouco, arrependeu-se e veio reclamar a farinha. A professora não a tinha mais e, portanto, não a pôde restituir. Ele então arrebatou uma menina. Com ela às costas, foi indo, vindo a encontrar um tipo que tocava viola. Deu-lhe a menina em segurança e pediu-lhe a viola. Armado do instrumento, foi a esmo, topando com um rio. Não o podendo atravessar, começou a cantar as suas proezas e, acabado que foi o hino à sua astúcia, atirou-se ao rio. «Macaco, com o seu rabo, arranjou navalha; com a navalha, arranjou peixe; com o peixe, arranjou farinha; com a farinha, arranjou menina; com menina, arranjou viola».

(Contado por dona Minerva Correia Pinto, natural de Valença, à rua do Piauí, 64, Todos os Santos).

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HISTÓRIA DO LINGUADO

O linguado tem a boca torta, porque, certa vez, Nossa Senhora, tendo chegado à praia, perguntou:

-Linguado, a maré enche ou vaza?

O peixe arremedou a fala e gesto de Nossa Senhora:

-Linguado, a maré enche ou vaza?

Por castigo ele ficou sempre com a boca torta.

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II - HISTÓRIA DO DIABO QUE FOI AO BAILE

Certa vez, havia um baile animado num lugarejo da roça. Dançava-se e cantava-se, quando entra um moço muito bonito e pede licença para cantar. Toma de uma viola e canta. Encantou. Todas as moças ficaram pelo beicinho e ele continuou durante muito tempo triunfando. Eis senão quando uma criança se abaixa e diz:

-Mamãe, esse moço tem pé de pato.

Houve um cheiro de enxofre e o moço desapareceu.

Era o diabo.

(Estas duas histórias me foram contadas quando menino e são correntes).

* * *

III - O MACACO E A ONÇA

O macaco andava de implicância com a onça e a onça com o macaco. Um belo dia esta veio a encontrá-lo trepado na floresta a tirar cipó.

-Que fazes aí, compadre macaco?

-Ah, não sabes, comadre onça, que estou fazendo? É a minha salvação.

-Como?

-Pois não tens notícia de que Nosso Senhor vai mandar um pé de vento fortíssimo e só se salvará quem estiver amarrado?

A onça logo pediu amedrontada:

-Então, compadre, amarra-me também para que eu não morra.

O macaco objetou que ela lhe queria fazer mal; mas, à vista dos juramentos e promessas, animou-se a descer e amarrar bem a onça. À proporção que amarrava, perguntava ao felino: -Pode-se mexer? A onça fazia esforços e, logo que ela não pôde fazer o menor movimento, o símio deu-se por satisfeito.

Vendo-a bem amarrada, o macaco agarrou um cipó bem grosso e deu-lhe uma surra.

Veio uma seca e a onça, para vingar-se do macaco, ficou de sentinela no único lugar em que havia água. Todos os animais podiam ir aí beber, exceto o macaco. O macaco imaginou então um estratagema. Encontrou um pote de melaço, besuntou-se todo e depois espojou-se nas folhas secas... Assim disfarçado, foi para aguada.

A onça perguntou:

-Quem vem lá?

Respondeu o macaco:

-É ará (?) (ouriço).

E vem beber água, no que se demora muito.

A onça admira-se muito:

-Que sede!

O macaco, tendo se afastado e fora do alcance da onça, responde:

-Admira-se! Pois desde a surra que te meti, água jamais bebi.

(Contado com pornografia pelo A. Higino, contínuo da Secretaria da Guerra, natural do Rio Grande do Norte).

* * *

IV - O MACACO E A RAPOSA

O macaco e a raposa se juntaram para poder viver. O macaco arranjou um laço, feito de uma corda, furtada a uma fazenda; e a raposa levava uma faca. Postavam-se no trilho do gado e o macaco atirava o laço, cuja ponta ficava amarrada a um tronco de pau. Logo que a novilha era laçada e presa, a raposa atirava-se à rês e sangrava. Após comiam, e assim foram fazendo durante muito tempo. Um dia, porém, o macaco, por precipitação, esqueceu-se de amarrar o laço ao tronco da árvore.

Atirou o laço e foi arrastado. A raposa gritava:

-Compadre macaco, força na «cacunda»!

Mas não houve meio e ele assim foi arrastado até ao curral. Houve alvoroço entre o gado. Por fim o proprietário veio e descobriu quem lhe dava cabo das reses. Para vingar-se, comeu o macaco, que estava gordo.

* * *

OS MACACOS QUE SALVARAM A ONÇA

Andava uma vara de macacos em troça por sobre umas grotas. Eis senão quando, eles vêem, no fundo de uma armadilha, uma onça que lá caíra em aventura de caça. Penalizaram-se e resolveram salvá-la. Para isso, cortaram cipós e, amarrando-se às cinturas, atiraram uma ponta ao felino que se agarrou a ela e salvou se. Chegado à superfície do solo, agarrou um dos macacos que fora tardo em soltar-se da laçada que fizera na cintura.

A onça disse:

-Compadre, tenha paciência, estou com fome e você vai ser comido.

O macaco chorou e afinal resolveram submeter a questão ao juiz de direito. Era este o cágado, que dava audiência no centro de uma lagoa, num ilhote. Lá foram ambos. O juiz ouviu primeiro o macaco, que sempre a onça segurava pelo braço. No fim disse:

-Bata palmas.

Apesar de seguro, o macaco pôde bater palmas. Veio a vez da onça. Ela se explicou e por fim o juiz ordenou:

-Bata palmas.

Para o que, teve que largar o macaco, que se aproveitou e fugiu, assim como o juiz que se atirou n'água.

(Contadas pelo Santos, servente da Secretaria da Guerra, natural do Ceará).

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V - O PRÍNCIPE TATU

Estando, uma vez, o rei e a rainha à janela, viram passar um caçador com um tatu às costas. A rainha, até então, não tivera a felicidade de dar a luz a um filho, e, por isso, disse ao rei: -Ah! meu Deus! Quem dera ter o filho, mesmo que fosse como aquele tatu.

Os seus desejos foram satisfeitos e, dentro de menos de um ano, a rainha veio ter um filho, que era um tatu. Apesar de ser assim, ele foi criado com todos os cuidados de um príncipe: educado, instruído, conforme a sua ierarquia e nascimento. Tendo crescido e chegado à época do casamento, ele demonstrou desejo de casar-se com a filha de um conde, que tinha três.

A moça aceitou a coisa com repugnância e pediu que a sua casa fosse guarnecida como se fosse luto, e casamento se fizesse de preto. Assim foi. À hora de recolherem-se ao quarto, o príncipe Tatu, que já encontrara a mulher deitada disse:

-Ah! Tu quiseste um casamento de luto, pois vais ver... Morrerás!

E estrangulou a mulher, passando um ano desaparecido. Ao fim desse tempo, voltou e mostrou desejos de casar-se com a segunda filha do conde. Da mesma forma que a primeira, ela quis que o casamento fosse de luto. Aconteceu-lhe o mesmo que à primeira. Veio a vez da terceira e esta, ao contrário das outras, quis o casamento festivo. Realizado ele e entrado Tatu no quarto, ele retirou a casca e veio a ser o homem bonito, que o encantamento fizera tatu. A moça ficou muito contente e, não satisfeita de saber do segredo, contou-o à mãe do príncipe. Esta, sabedora do caso, veio ver o príncipe seu filho e, mais a nora, lembraram-se de queimar a casca óssea do tatu. Sentindo o cheiro, o príncipe despertou e disse:

-Ah! Ingrata! Faltavam-me só cinco dias para desencantar... Agora, se tu me quiseres ver, terás que ir à terra dos Campos Verdes.

Saudosa do marido, a princesa faz a trouxa e parte à procura de tais terras.

Andou e veio encontrar uma porta, junto à qual estava uma velhinha.

-Minha velha, perguntou ela, onde fica a terra dos Campos Verdes?

-Homessa, minha neta, quem deve saber isso é minha filha, a lua. Espera que ela venha.

Escondeu-se na casa e esperou a lua. A lua veio e a velha perguntou. A lua disse-lhe:

-Minha mãe, é longe, muito longe, tanto que ainda não cheguei lá.

A princesa saiu e continuou a andar, levando no seio um papelzinho que lhe tinha dado a mãe da lua. Veio a encontrar outra velha e perguntou:

-Minha velha, onde é a terra dos Campos Verdes?

-Não sei, minha filha, quem deve saber é o meu filho, o Sol.

Veio o Sol e este também não havia chegado lá e disse que só o vento podia saber.

Com um papelzinho que lhe deu a velha, partiu a princesa à procura do vento. Veio a encontrar a sua mãe, que, como as mães da lua e do sol, lhe escondeu à espera do filho.

O filho chegou furioso e gritando:

-Aqui, cheira-me à carne humana e a sangue real!

E procurou por toda a casa e não encontrou. Por fim, a mãe, usando de estratagemas, indagou:

-Meu filho, como é que se vai à terra dos Campos Verdes?

-Hi! minha mãe, ninguém pode ir...

-Ninguém?

-Só quem tiver três pedaços da minha boca.

A mãe, então, para obtê-los, disse:

-Meu filho, olha um fiapo no teu lábio.

Ele passou a mão na boca e atirou o suposto fiapo no chão. A mãe apanhou logo o pedaço da boca, e assim fez três vezes.

Possuidora dos três pedaços, a princesa soube, para chegar às famosas terras, tinha que atravessar o mar, com auxílio deles. Chegando à praia, assim fez, e, quando as ondas se queriam fechar, ela atirava outro pedaço. Chegou a Campos Verdes.

O príncipe Tatu não o era mais e se chamava dom João. Estava casado. A princesa, sabendo disso, foi morar a uma casa muito pobre. Tirando um dos papéizinhos que as velhas lhe tinham dado, viu-se coberta de um vestido magnífico.

A mulher de dom João soube e mandou indagar se ela queria vender o vestido. Ela disse que sim, porém, se ela consentisse que dormisse uma noite com dom João. Ela consentiu, mas pôs ópio no chá que ele costumava tomar à noite. A princesa não se pôde fazer reconhecer, e, tendo vestido, com auxílio do segundo papel, uma nova toilette brilhante, obteve da mulher de dom João o mesmo cambalacho.

Mas a coisa foi notada pelos criados e o príncipe determinou que o seu chá noturno fosse posto fora e substituído por outro, quando a tal moça viesse. Feito isso, eles se reconheceram e Tatu mandou chamar um ferreiro:

-Ferreiro, eu tinha perdido a chave de uma certa fechadura. Mandei fazer outra, mas agora achei a que tinha perdido. De qual me devo servir?

O ferreiro pensou e respondeu:

-Da velha.

Pelo que, resolveu ficar com a princesa e separar-se da segunda mulher.

* * *

A ARANHA

O príncipe andava em guerra e perseguido pelos inimigos. Refugiou-se numa gruta. Uma aranha fez a teia na boca da gruta e os inimigos passavam e paravam, mas resolveram não entrar, porque, se o príncipe nela tivesse entrado, teria esmigalhado a teia.

Assim, a avó mostrou ao neto que aranha servia e podia salvar a vida de um homem.

* * *

VI - MACACOS NO ROÇADO DO MILHO

Iam os macacos a uma roça de milho, quando deram na porteira com um cavalo deitado. Julgaram-no morto e, para afastar esse obstáculo, amarraram cipós na alimária e depois um nó na cintura e começaram a função.

O cavalo, que só dormia, ergueu-se e arrastou-os.

O chefe, que não estava amarrado, gritava:

-Quebra o corpo rapaziada! Senão vamos pra casa do homem do milho!

Eles não agüentaram e foram lá cair levando uma surra.

* * *

VII - O MACACO E O ALUÁ

Macaco tomou emprestado doze atilhos de milho a vários animais e também ao homem. Marcou o pagamento para o mesmo dia a todos. Eles vieram e ele os atirou um contra o outro, dando antes um copo de aluá a cada um, para refrescar, eles brigaram e a onça devorou os que ficaram; afinal veio o homem, que matou a onça, e o macaco ficou livre!

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HISTÓRIA DO CASAMENTO DA PRINCESA CHELMINAZA

O pai manda chamar a concorrer todos os que a desejam. Apresentam-se muitos. Há provas de inteligência, de destreza, etc. Dez vencem todas as provas e ele fica atrapalhado. Afinal descobre o ardil: quer saber qual o melhor. Para isso, posta no palácio, na porta, uma velha mendiga, e manda-os chamar a todos, com pressa, um por um. Quando chegam, a velha se posta aos pés deles; todos a repelem, e só um deles pára. Foi este.

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HISTÓRIA DO PRÍNCIPE BENALCAZA

Vivia triste, etc. Tudo lhe aborrecia porque queria ver tudo o que há no mundo, provar, etc.

Vai passear nos arredores do palácio e vê, na praia, um homem a afogar-se. Corre em seu socorro e o salva. É o gênio Gransar, que tudo pode, menos com água, e, por isso, o seu inimigo Bensar, com ardis, o atraiu e fizera soçobrar-lhe a embarcação.

Em troco oferece-lhe tudo que desejar. O príncipe só pede que lhe faça provar todos os frutos do pomar do mundo. O gênio não lhe quer dar esse poder. Ele insiste. Dá ao príncipe então um cinto, tocando no qual, ele, gênio, pode ir em seu socorro, mas só em perigo de morte iminente. Ele sofre tudo; perde a posição; é ferido; é roubado pelos gatunos; sofre amnésia; trabalha como canteiro, e um belo dia é encerrado num palácio encantado, onde as iguanas se empedrecem quando se as vai tocar.

Sentindo morrer à fome, chama o gênio. Este vem em seu socorro e leva-o de novo aos seus domínios. Veio a ser um bom rei, porque tudo sofreu.

* * *

O ESCRAVO PERSA

Harum Al-Raxid todo o dia quando saía de seu palácio encontrava um rapaz a olhar para o pavilhão da valida Noemi. Ele, um dia, interrogou-o e habilmente veio a saber que ele adorava Noemi e que queria ser califa para dormir com ela. Foi à casa do senhor, pois era escravo, libertou-o e levou-o a cear. Aí, deu-lhe um narcótico. E levou-o a dormir com Noemi. De manhã, ele amanheceu e devia ser morto. Ele, o califa, perdoou, etc.

Em 6 de março de 1911

Respeitáveis colegas e concorrentes.

Para sossego, tanto do meu espírito e do de vocês, declaro que não sou candidato à promoção que não me julgo com direito absolutamente. Os motivos são íntimo se particulares.

No mais sou de vocês amigo e admirador.

Afonso Henriques de Lima Barreto.

* * *

5 de maio

Ontem, fui ao teatro. Há muito tempo que não ia.

Quase há três anos. Fui com o Marques Pinheiro, irmão do Rafael Pinheiro. Rafael é o tipo do arrivista, é do que fura, de qualquer modo. Estudou medicina e não se formou. Foi tido como rapaz de muito talento, orador, etc., mas coisa alguma de valor fez, em coisa alguma. Ele não me estima, mas talvez me tema. O irmão é medroso. Ë redator da Gazeta da Tarde, de que me fiz colaborador ultimamente. Levou-me ao teatro e fui à caixa. Nunca tinha ido aí. É interessante. Há uma desordem que agrada. Batem, sacodem, arrastam panos. O contra-regra grita com uma atriz que está ao colo de um cavalheiro:

-Aqui não é bordel, é uma casa de trabalho.

As atrizes, seminuas, encostam-se a nós, mostram as espáduas, dizem coisas maliciosas, cantarolam canções do Catulo. Eu gostei da coisa. Houve uma delas que gostei muito. Tinha uma feminilidade de gato, olhos pisados sob a maquillage. Bamboleava-se toda, esfregava-se em nós, maxixava. Ela era portuguesa, mas já tinha tomado o sotaque e o ar de deboche nacionais, o nosso relaxamento, a nossa tristeza que quer ruído e aquele apelo para o erotismo truculento, que nem essas damas lascivas em que o ritmo da cópula domina e é motor. Havia costureiras. Oh! Coitadas! Velhas mulatas com a miséria no rosto, mal vestidas; algumas eram mimosas ainda; mas todas tinham um ar velhaco. Elas, na sua fealdade, na sua pobreza, olhavam a todos nós, mirones e atrizes, com uma infinita resignação.

«Nós nunca seremos como elas e não teremos esses cortejadores», talvez pensassem.

Enfim, fui apresentado a dona Guilhermina Rocha. É uma atriz de fama, fama feita antes pela sua beleza, que tanto sacode os jornalistas e os faz escachoar reclamos, do que mesmo pelos seus méritos. Ela é inteligente e caprichosa; mas o teatro não é o seu forte. Creio teve um amante rico, que a fez educar-se. Onde estaria ele? Que teria sido feito dele? Oh! Esses amantes ricos que educam as suas amigas, são sempre obscuros...

De fato, ela é bonita e quase bela; falta-lhe, para a grande beleza, espáduas, ombros de deusa. Tem um perfil fino, pernas bem feitas; mas o busto não é correto e o colo é fraco.

O que mais gostei dela foi o olhar. Tem um olhar inteligente, móbil e sequioso, olhar que, com as asas das narinas, móveis e finas, dá-lhe um grande acento de desejo, de fúria carnal, mais fúria que lascívia, mais lascívia que volúpia, mais volúpia que amor. Fedra e Safo, uma e outra coisas.

Falei-lhe. Ela me disse que me conhecia. De fato, ela morava na Rua das Marrecas e, por cima da sua casa, no sotão, o Nicolau Ciâncio. Fui lá muitas vezes e a vi com volumes de Racine, Marivaux, Beaumarchais. Ela, lembrou, estreara na É fita, uma revista, como todas as outras. «C'est le triste retour des choses d'ici bas»...

Devia ser deliciosa, essa Guilhermina.

* * *

Sem data

Publiquei um aperçu sobre a tipografia do Rio na Tribuna Popular, que o Deoclides editou, em 6-6-1911.

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Sem data

Vi hoje, no trem, uma moça, com um grande manteau de teatro, sem chapéu.

* * *

Outubro (?)

Quando Flaubert esteve no Egito, encontrou um certo Chamas, francês de origem, que, de aventura a aventura, havia chegado a ser médico em chefe do exército quedival Esse medicastro empregava o seu ócio em rimar uma tragédia clássica, intitulada Abd-El-Káder, em cinco atos, cujo verso mais citado por ele era o seguinte:

«C'est de là, par Allah! qu'Abd'Allah s'en alla!».

Dizia ele que isto era o que os antigos chamavam a harmonia imitativa. Aí se percebia perfeitamente o galope do cavalo.

«Alada planta fenda as vastidões soturnas,

Ou bruta pata passe e pise, à pressa, poças,

Cavada a um som, a noite arredonda-se em furnas».


* * *

Sem data

«Le danger de l'éducation littéraire est d'inspirer un désir immodéré de la gloire sans donner toujours le sérieux morai 'qui fixe le sens de La vraie gloire».

E. Renan, L'Antéchrist, 315.



* * *

Sem data

E já na rua, ao longe, como que continuava a ouvir os passos doidos daquelas danças lúbricas...

* * *

E ela disse, chorou, convulsamente; no salão, as danças continuavam; mas, muitos pares se desfizeram para formar em torno dela uma roda humana espessa:

-Que é Pepita?

-Nada... Nada... Eu quero casar... Não quero mais viver nesta vida.

E o choro a tomava, a tomava de novo para depois suspender, e ela toda rebenta naquele seu desejo oculto:

-Quero me casar!

* * *

Sem data

«L'homme est une corde tendue entre la bête et le surhumain - une corde sur l'abîme. Il est dangereux de passer au delà, dangereux de rester en route, dangereux de regarder en arrière, frisson et arrêt dangereux».

Les flêches du désir vers l'autre rive.



* * *

Sem data

Caçada em Petrópolis. Houve um club lá de caça. Um dia arrumaram uma grande caçada à onça. Damas, cavaleiros, pradaria. Como não havia onça, mascararam um bezerro e foi a ele que caçaram.

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Sem data

Ocaso da mulher do P... C...

Fora pedir um emprego para o marido ao Rodolfo de Miranda. Este não acedeu. Um dia, ela encontrou o tal G... A... e disse-lhe:

-Sabes, vou ao Rodolfo pedir um lugar para o J... Choro e ele há de arranjar.

Assim fez e, quando saiu, encontrou o Pompílio e vieram numa grande pândega de automóvel.

Dias depois alguém, falando ao poeta sobre a nomeação, ele lhe disse:

-É certo... Não sei como agradecer ao Rodolfo... Essa espontaneidade... Não pedi... Enfim, talvez ele seja meu admirador.

* * *

Sem data

Quintino. A sua falta de cultura, a amplitude dos seus lugares comuns. Físico: duro, lábios contraídos, aspecto hispano-americano dele. A sua incapacidade.

Pinheiro. Terror. Cultura do terror. Escravo de divertimentos sangrentos. Total incapacidade de ligar a idéia à palavra. Ignorante, ausência de idéias condutoras de governo, necessidade de discursos.

Carlos Peixoto. Ilustração relativa. Timidez diante das mulheres de alta roda, donde gosto pelas raparigas airadas.

Elói. Sagacidade, oportunismo, medo de ser chamado mulato ou negro.

Irineu. Ambição de homem humilde, fascinação pela história da revolução, brutalidade, violência sangrenta, etc.

Hermes = Zero. Jeito, donaire de anjo pelo incenso dos outros, convicção de energia, reduzida capacidade militar a uma de regimento, bondade paternal, agudo sentimento de casta, suposição de iluminado, etc.

* * *

Sem data

Seabra, dando informações de coisas reservadas ao Correio.

* * *

Não esquecer Paca. Agiotas. Fornecimentos.

* * *

A casa de pensão do Jequiriçá

* * *

Cantigas da Penha, transcritas em jornal:

«Ranchos e grupos.

Vimos no arraial os seguintes:

'Filhos da Noite', que passou cantando a seguinte quadra:

Os Filhos da Noite

A nota vão dar

Na festa da Penha

Sempre a brincar.

A 'Lira de Ouro', que assim cantava:

Oh minha lira...

Que vai chorar,

Povo do ouro

Não pode negar.


'Flor das Morenas'. Até nos faz lembrar os bons tempos do Instituto Profissional... Penha. O 'samba' é a 'nota' alegre dos festejos de outubro, no arraial da Penha:

Morena, vai, vai

Minha flor...

Morena, vai, vai

Meu lindo amor.

Meu amor.

Oh! flor!».


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Preciso de cem contos.

* * *

Sem data

O autor destas cartas, segundo os jornais, deflorou onze moças e seduziu uma porção de senhoras:

«Querida Doquinha.

Recebi a tua amável cartinha na qual pedis-me que eu não me dedique a outra mulher e que não me esqueça de ti, conserteza estaes convencida que a amizade que eu tenho-te é igual a que me tens, poriço é que tens desconfiança em mim; enfim eu perdôo porque quem ama deve ter sciu mes e desconfiança.

Doquinha eu juro-te por mais uma vez que sou teu enquanto quizeres, por tua causa eu sofro tudo que for possível, e ao mesmo tempo peço-te que tudo quanto suberes a nosso respeito escreve para meu governo, e quando quizeres falar-me pessoalmente escreve que cumprirei como se fosse uma ordem.

Estimo as tuas melhoras.

Teu do coração Assis».

«Queridinha confeço-te que hontem quando recebi a tua carta fiquei tão louco que confecei a mamãe que lhe amava loucamente e fazia por você as maiores violências ficaram todos contra mim, e a razão porque privino-te que não ligues ao que lhe disserem, por isso peço-te que peze bem o meu sofrimento e escreva-me dizendo o que passou-se durante as ultimas vinte e quatro horas, e peço-te perdão de não ter respondido a mais tempo e divido a falta de tempo.

Pense bem e veja se estaes revolvida a fazer o que me dizseste na tua amavel cartinha, responde-me com a maior urgencia sim.

Saudades e mais saudades deste infeliz que tanto lhe adora e não é correspondido.

Assis. 17-6-911.

Quando acabar de ler faz o que eu fiz com a sua, rasga e queima.

Adeus. - Assis».

«Indolatrada Doquina. Saudades.

Tive immensa satisfação quando a vi hoje pela manhã quando passei no trem estavas sentada na meza e agora as 7 horas da noite a ver-te perto da salla de jantar, porisso peço a minha ingrata que faça o possível de falar comigo hoje, não é preciso pullar a janela é bastante abri-la que eu vou falar com voce, espera-me a hora do custume isto é, se voce não estiver com raiva de mim, podes ficar crente que tão de pressa soube que estavas de camma fui ao Dr. Roma Santos saber o que voce tinha elle disse-me que voce tinha feito a loucura de molhar os peis na agua fria, pois que voce estava com inregularidade no incomudo, foi para mim uma grande tristeza em saber que o Dr. Roma Santos sabe de teus particulares moral; enfim que eu devo fazer se voce não quer ser minha inteiramente minha como eu sou teu.

Doquinha faz o possivel de não faltar porque eu tenho grande novidade a contar-te.

Teu teu do coração

A [...] de Assis».

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Sem data

Preciso descobrir O Dia do Alcindo a meu respeito. Veio na A Imprensa, quando eu publiquei no Jornal o Policarpo.

22 de março

Vou comprar um bilhete de cem contos...

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Maio

Em setembro de 1913 está pago o montepio.

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Há uma consignação que acaba em abril de 1913, outra em maio de 1913, outra em junho. Preciso ver as outras.

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14 de maio

Vou comprar um bilhete de vinte contos.

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Saião volta dos Estados Unidos, admirado que lá haja também nomes estrambóticos. Exemplos: Broadway, estrada larga; Red Star, estrela vermelha, etc.

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Imprensa, de fins de 1912

Aventuras do Doutor Bogóloff

«Lima Barreto está publicando em fascículos, que sairão sempre às terças-feiras, umas narrativas humorísticas às quais chamou: Episódios da vida de um pseudo-revolucionário russo, dando-lhe aquele título acima.

As Aventuras do Doutor Bogóloff não são apenas páginas de boa literatura, são na realidade capítulos e capítulos trabalhados com sadio humorismo, visando claramente criticar os nossos costumes, sem preocupações inferiores de agressão a quem quer.

O primeiro fascículo traz uma linda capa colorida».

Fevereiro

No volume II dos Retalhos (1), há um artigo do Forjaz de Sampaio; e no III, um de Alberto Olavo, Mário Matos, sobre o Isaías Caminha.

* * *

Sem data

J. R. (P. B.)

«Quando ele caiu na cova

Remexeu-se bem dengoso

Os vermes logo provaram

O gordo 'ioiô' gostoso».



Não sei de quem é.

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14 de setembro

Mudei-me ontem, 13-9-13, da casa em que vivi quase dez anos, à rua Boa Vista, 76, Todos os Santos. Lá entrei com uma nomeação no bolso e com muito pouco dinheiro. Nesta entrei sem um vintém na algibeira, tendo recebido antes seiscentos mil-réis. Já é progresso. Major Mascarenhas, 42.

* * *

Lia:

Em mim, não existe absoluto, nem ausência de absoluto, porque não conheci nunca elemento distinto do «eu».

-É de Kant! exclamou alguém.

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26 de setembro

Desagradar é verbo intransitivo. Pede, portanto, objeto indireto. É o mais grave erro do artigo, pois o pronome devia ser «lhe» e não «o». Que clássico! Todos são assim. Quanto mais falam em gramática, mais erram por conta própria.

* * *

Sem data

Fetichismo dos Negros do Brasil, pelo padre Etienne Brasil, Revista do Instituto, tomo LXXIV (Parte II, ano de 1911).

Este padre é um mistificador de sabedoria. Conheci-o na Associação de Imprensa.

20 de abril

Hoje, pus-me a ler velhos números do Mercure de France. Lembro-me bem que os lia antes de escrever o meu primeiro livro. Publiquei-o em 1909. Até hoje nada adiantei. Não tenho editor, não tenho jornais, não tenho nada. O maior desalento me invade. Tenho sinistros pensamentos. Ponho-me a beber; paro. Voltam eles e também um tédio da minha vida doméstica, do meu viver quotidiano, e bebo. Uma bebedeira puxa outra e lá vem a melancolia. Que círculo vicioso! Despeço-me de um por um dos meus sonhos. Já prescindo da glória, mas não queria morrer sem uma viagem à Europa, bem sentimental e intelectual, bem vagabunda e saborosa, como a última refeição de um condenado à morte.

A minha casa me aborrece. O meu pai delira constantemente e o seu delírio tem a ironia dos loucos de Shakespeare. Meus irmãos, egoístas como eles, queriam que eu lhes desse tudo o que ganho e me curvasse à Secretaria da Guerra.

O que me aborrece mais na vida é esta secretaria. Não é pelos companheiros, não é pelos diretores. É pela sua ambiência militar, onde me sinto deslocado e em contradição com a minha consciência.

Não posso suportá-la. É o meu pesadelo, é a minha angústia.

Tenho por ela um ódio, um nojo, uma repugnância que me acabrunha.

Queria ganhar menos, muito menos, mas não suportar aqueles generais do Haiti que, parece, comandaram ou vão comandar em Austerlitz.

Demais, o meu feitio é tão oposto àquela atmosfera de violência, de opressão, de bajulação, que me enche de revolta. Não sei o que hei de arranjar para substituir aquilo, e a minha gana de sair de lá é tão grande, que não me promovem, não me fazem dar um passo à frente.

Eu fiz parte do júri de um Wanderley, alferes, e condenei-o. Fui posto no índex.

Para os jornais daqui estou incompatível. Podia tentar a aventura fora, mas não tenho liberdade; era preciso que estivesse só, só.

Enfim, a minha situação é absolutamente desesperada, mas não me mato.

Quando estiver bem certo de que não encontrarei solução, embarco para Lisboa e vou morrer lá, de miséria, de fome, de qualquer modo.

Desgraçado nascimento tive eu! Cheio de aptidões, de boas qualidades, de grandes e poderosos defeitos, vou morrer sem nada ter feito.

Seria uma grande vida, se tivesse feito grandes obras; mas nem isso fiz.

* * *

13 de julho

Noto que estou mudando de gênio. Hoje tive um pavor burro. Estarei indo para a loucura?

* * *

Sem data

Estive no hospício de 18-8-14 a 13-10-14.

* * *

Basilio Seixas era um rapaz preto tipógrafo, que conheci na Tipografia Altina em 1902, quando fiz, com o Tigre, a Quinzena Alegre.

* * *

Sem data

A Notícia de 9-8-14. Afrânio Peixoto, «isto é metonimia», quando foi por sinédoque.

Março

Fiz o empréstimo no Montepio, em março de 1915.

* * *

Sem data

A Noite começou a publicar o meu livro Numa e a Ninfa, em 20 de março de 1915.

* * *

Álbum de Pelino.

-Porque a girafa tem o pescoço tão comprido?

-Porque tem a cabeça longe do corpo.

* * *

Há meses inaugurou-se iluminação elétrica em uma qualquer cidade.

Para evitar desastres pessoais dou-vos o seguinte aviso junto aos dínamos de alta voltagem, os transformadores, etc.:

«Perigo! Quem tocar nesses fios será fulminado. Pena de prisão e multa para os contraventores».

Fazer um conto. Pelino, quando vê um sujeito ser fulminado pelo fio elétrico...

* * *

Sem data

Banco, consignação, a começar a 1º de janeiro de 1916.

Fevereiro

O Policarpo Quaresma apareceu em 26 de fevereiro de 1916. A entrevista comigo na Época saiu em fins de fevereiro, 20.

* * *

Retirei três exemplares: um para Jackson, outro Vinhais e outro Milanez.

* * *

Retirei quatro volumes: dois brochados e dois encadernados, sendo para o Comércio e a Noite.

* * *

Castilhos / 50.

* * *

Brochado, 1. Pereira da Silva.

* * *

Mandei:

1 - João Ribeiro.

1 - Alcindo Guanabara.

1 - Alcides Maia.

1 - Laet.

* * *

Dei:

1 - Antônio.

1 - Benedito.

1 - Lima.

1 - Minha irmã.

* * *

Já dei quinze exemplares.

* * *

País. 1 volume. Dei.

Gazeta. 2 volumes. Dei.

Viriato. Um volume. Dei.

Prensa. Um volume. Dei.

Tribuna. Um volume. Dei.

Noticia. Um volume. Dei.

Braule. Um. Dei.

Rui. Um. Dei.

Afonso Celso. Um. Dei.

Correio Paulistano. Um.

Amadeu Amaral.

Estado de São Pauto. Um.

Teixeira (Lisboa). Dois.

Couto. Um. Dei.

Fábio. Um. Dei.

Biblioteca. Dois.

* * *

Saião. Hilário de Gouveia, 54. Copacabana.

* * *

Adriano de Abreu - 1.

Capistrano de Abreu - 1.

Mário Behring - 1, dei.

Carlos Maul - 1, dei. (Jornal das Moças. Assembléia).

* * *

Notícia da Época sobre Policarpo: 28-2-16.

* * *

Domingos - 1, dei.

A Águia - 1 (Porto), dei.

Dei 25 exemplares.

Osino - 1, dei.

Emílio - 1, dei.

Dei 28 exemplares.

* * *

Correio de Vassouras: doutor Soares Filho - 1.

* * *

Artur Mota. São Paulo.

* * *

Francisco Calmon. Farmácia do Aristides Caire.

* * *

Rui Barbosa, dei. São Clemente, 184.

* * *

Costa Macedo - 1, dei.

Jacob - 1, dei.

Gilka - 1, dei.

Dei 33 exemplares.

Lambert - 1, dei.

Bilac - 1, dei.

Malagutti, dei.

* * *

Carlos Restier - 1, dei.

* * *

Paulo Hasslocher. Nossa Senhora de Copacabana, 72

* * *

Dei 36 exemplares.

Dei um ao tipógrafo.

Dei 37.

* * *

Arnaldo Pereira. Arquivo da Prefeitura.

* * *

Mota - ? Reis - 1.

Dei 38 exemplares.

* * *

Bastos Tigre - 1.

Antônio Torres - 1.

Araújo Jorge - 1.

* * *

Doutor Afonso Machado. Largo da Lapa, 106.

* * *

Alfredo Morais Rego - 1.

* * *

Dei sete mais = 45.

* * *

Prensa.

* * *

Cartier.

48 livros.

* * *

Dei 49.

P. Curio - 1.

* * *

Nos nossos militares (exceto a Marinha), a necessidade de mudança de uniformes eqüivale à da moda nas mulheres.

* * *

1 - Henrique Magalhães.

Dei 51.

Dermeval - 1, dei.

52.

* * *

Cardim. Rua Fernandes, 91.

* * *

Março

Meu livro, o Policarpo, saiu há quase um mês. Só um jornal falou sobre ele três vezes (de sobra). Em uma delas, Fábio Luz assinou um artigo bem agradável. Ele saiu nas vésperas do carnaval. Ninguém pensava em outra coisa. Passou-se o carnaval e Portugal teve a cisma de provocar guerra com a Alemanha. As folhas não se importavam com outra coisa senão com o gesto comicamente davidinesco de Portugal. Enchiam colunas com noticias como esta: «A esquadra portuguesa foi mobilizada. Acham-se em pé de combate o couraçado Vasco da Gama, o cruzador Adamastor, a corveta dona Maria da Glória, a nau Catarineta, a caravela Nossa Senhora das Dores, o brigue Voador e o bergantim Relâmpago». E não têm tempo de falar no meu livro, os jornais, estes jornais do Rio de Janeiro.

* * *

O Policarpo Quaresma foi escrito em dois meses e pouco, depois publicado em folhetins no Jornal do Comércio da tarde, em 1911. Quem o publicou foi o José Félix Pacheco. Emendei-o como pude e nunca encontrei quem o quisesse editar em livro. Em fins de 1915, devido a circunstâncias e motivos obscuros, cismei em publica-lo. Tomei dinheiro daqui e dali, inclusive do Santos, que me emprestou trezentos mil-réis, e o Benedito imprimiu-o. Os críticos generosos só se lembravam diante dele do dom Quixote. V. Oliveira Lima e Afonso Celso. Audaces fortuna juvat.

* * *

O Numa e a Ninfa foi escrito em vinte e cinco dias, logo que saí do hospício. Não copiei nem recopiei sequer um capítulo. Eu tinha pressa de entregá-lo, para ver se o Marinho me pagava logo, mas não foi assim e recebi o dinheiro aos poucos. Escrevi-o em outubro de 1914. O Marinho era diretor da A Noite.

* * *

Encontrei, na estação, T. S., um vagabundo, companheiro de P. Disse-lhe que tinha estado doente, e ele me confessou que também, à guisa de quem faz uma confidência, explicando-me, ao ouvido, que tinha levado uma navalhada na barriga da perna. Penso que ele tinha perebas.

* * *

W., cantora, interpelou o espectador por ter posto a mão em concha no ouvido.

* * *

Numa dependência do quartel-general, diversos soldados conversavam; diz um a outro:

-Foi preso esse Paiva Couceiro.

-Quem é?

-É um anarquista aí.

* * *

O Isaías, os primeiros quatro capítulos, escrevi-os lentamente; o resto em dias, mas copiando-os, logo que os acabava.

* * *

Os jornais que não noticiaram absolutamente o aparecimento do meu segundo livro foram: o Correio da Manhã e a Tribuna, do Rio de Janeiro.

No Correio sou excomungado; e é justo. Na Tribuna, não sei porque, tanto mais que o mandei ao Lindolfo Cólor.

* * *

Sem data

Vilarinho morreu em 8-4-1916.

* * *

Junho

Encontrei em Ouro Fino na boca do povo o neologismo «fumal», para designar plantação de fumo.

E o vício de dizer «ponhar» em vez de «pôr», em todos os tempos e modos.

* * *

Sem data

Manuel de Oliveira morreu a 8 de novembro de 1916, dia de anos de minha irmã.

Eu o conheço desde os onze anos e creio que ele foi para casa, quando eu tinha doze ou treze anos. Viveu conosco cerca de vinte e dois ou vinte e três anos e muito nos serviu e foi útil. Era preto cabinda e tinha de sua nação um orgulho inglês. Hei de escrever-lhe um artigo.

* * *

«Amplius!», A Época, de 10-9-16.

Março

Devo unicamente ao Lima, pela impressão do Policarpo, a quantia de quatrocentos e quarenta e dois mil réis.

* * *

7 de março

Hoje, 7 de março de 1917, estive na Garnier, como ontem, como anteontem. Vou agora lá sempre rondar. Troquei palavras com este, com aquele, e cada vez me capacito mais de que eles não tem nenhum ideal de Arte. São muito inteligentes, escrevem e falam como Rui de Pina, mas ideal em Arte não tem nenhum. Não me entendem ao certo e procuram nos meus livros bandalheiras, apelos sexuais, coisa que nunca foi da minha tenção procurar ou esconder.

Chamam-me de pudico. Ora bolas!

* * *

Eu vendi ao Jacinto quatrocentos Policarpos por duzentos mil-réis. Vendi ao Garnier a mil-réis cem, por cem mil-réis. Vendi ao Alves setecentos a oitocentos réis, quinhentos e sessenta mil-réis 1200 = 860 mil-réis.

Devo ter recebido uns seiscentos mil-réis de consignações. 860 + 600 + 1.460$000˜

Dei cerca de mil e duzentos exemplares. Tenho ainda a receber cem mil-réis, se tanto.

* * *

Enquanto que Latino Coelho -livro sobre o Marquês de Pombal, diversas vezes, nas páginas 357 [...].

* * *

Lutero também condenou o sistema de Copérnico. Ver Latino Coelho, Marquês de Pombal, página 371.

* * *

Dona Luisa de Oliveira Costa, poetisa das Mágoas Secretas, Rua da Candelária, 92A.

* * *

Paguei a Gazeta até 14.

* * *

Preço médio do açúcar exportado é de 462 réis o quilo.

Vide Correio da Manhã, de 15-9-17.

O último da Bruzundanga, veio no A.B.C., de 5-5-17.

* * *

7 de junho

Minha irmã acaba de chegar da rua (sete e meia da noite) e me traz a notícia de que um grande prédio em construção no Largo do Rossio acaba de desabar, matando quarenta operários. O antigo prédio era uma arapuca colonial, mas que, apesar da transformação, de ter tido as paredes eventradas, resistia impavidamente. O novo ia ser uma brutalidade americana, de seis andares, dividido em quartos, para ser hotel: Hotel New York (que nome!), um pombal, ou melhor: uma cabeça-de-porco.

Somos de uma estupidez formidável. O Rio não precisa de semelhantes edifícios. Eles são desproporcionados com as nossas necessidades e com a população que temos. Com pouco mais, o seu construtor adquiria os prédios vizinhos e faria coisa decente, proporcional, harmônica com a nossa vida e os nossos gostos. Mas a mania de imitarmos os Estados Unidos leva-nos a tais tolices. Uma casa dessas, servida por elevadores, povoada que nem uma vila povoada, é sempre uma ameaça para os que a habitam. Em caso de desastre, de acidente, os pequenos elevadores não a poderão esvaziar, a sua população. Mas os americanos...

É o que eles chamam progresso. Fresco progresso!

* * *

Sem data

Há dois acréscimos a fazer no Policarpo: o requerimento do maníaco que quer ser major por ter dois galões, como tenente honorário, e outros dois, como tenente reformado, pois a soma 2 ± 2 = 4 dá o número de galões de major; e falar nas cobras - a morte do Dicomarte.

* * *

Sem data

Para Clara dos Anjos. Ver Correio da Manhã, de 31-5-17.

* * *

Piramidamento. Piramidar - colocar em pirâmide.

* * *

Sobre a vida de João Laje, ver Correio da Manhã, artigo do Edmundo e de 6-9-17.

* * *

Sem data

«Un écrivain ne doit songer, quand il écrit, ni à ses maitrês, ni même à son style. S'il voit, s'il sent, il dira quelque chose; cela sera intéressant ou non, beau ou médiocre, chance à courir».

Remy de Gourmont, Le probleme du Style, p. 31.



«Volupté - c'est pour les coeurs libres quelque chose d'innocent et de libre, le bonheur du jardin de la terre, la débordante reconnaissance de l'avenir pour le présent».

Nietzsche, Zarathrusta.



* * *

«Loué par ceux-ci, blâmé par ceux-là, me moquant des sots, bravant les méchants, je me hâte de rire de tout, de peur d'être obligé d'en pleurer».

Figaro, Beaumarchais.



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Carta régia de 30-7-1766, proibindo as fábricas. Vide Matoso Maia, página 222, e a que proíbe a cultura da cana-de-açúcar no Maranhão, de 19-6-1768, no mesmo autor.

* * *

Quando se está perto de uma mulher, ou dizemos asneiras, ou nos calamos.

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Sem data

O Paraná (que em tupi significa mar) toma este nome... Serve de limites às províncias de Minas, Goiás, São Paulo e Paraná; dividindo outrossim o Brasil do Estado Oriental e da Confederação Argentina. Recebe então o Paraguai e o Uruguai, adquirindo o nome de Rio da Prata.

Nota do Cônego Fernandes Pinheiro à História do Brasil, de Robert Southey, volume III, página 433.

Há aqui um equívoco do Southey. É inexato que o rio Uruguai... serve de limites do Império do Brasil à República Oriental.

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«Cette question de savoir si son (du Grec) toujours grandissant désir de beauté, de fêtes, de réjouissances, de cultes nouveaux, n'est pas fait de vice, de misère, de mélancholie, de douleur?».

Nietzsche, L'Origine de la Tragédie.



Em que fica a joie de vivre dos gregos? Ora bolas!

* * *

Só em Ciudad Real, a Inquisição, em 1486, processou mais de três mil pessoas; em Sevilha, desde este ano até o de 1489, calcula-se em três mil sentenciados, dos quais perto de quatrocentos foram queimados vivos. Herculano, História do Estabelecimento da Inquisição, página 71 (2ª edição).

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3 de junho

Hoje, depois de ter levado quase todo o mês passado entregue à bebida, posso escrever calmo. O que me leva a escrever estas notas é o fato de o Brasil ter quebrado a sua neutralidade na guerra entre a Alemanha e os Estados Unidos, dando azo a que este mandasse uma esquadra poderosa estacionar em nossas águas.

A dolorosa situação dos homens de cor nos Estados Unidos não devia permitir que os nossos tivessem alegria com semelhante coisa, pois têm. Néscios. Eu me entristeço com tal coisa, tanto mais que estou amordaçado com o meu vago emprego público.

A escolher, sim senhor, eu preferia mil vezes a Alemanha. Não posso dizer nada e nada direi; mas aqui fica o meu protesto mudo. Coisa curiosa, o Lauro não quis dar o seu assentimento a tal coisa; o Nilo deu. Ao primeiro, chamam de alemão; e ao segundo, de moleque?

Em que parará isto? Não sei bem, mas se a sangueira já é grande, julgo que ela vai ser ainda maior depois. Tudo o que é revoltante e grosseiro vai por baixo disso tudo, sob o pretexto de pátria. É de causar horror, tanto mais que os fortes burgueses querem, aproveitando o estado dos espíritos, matar o indivíduo em proveito do Estado, que são eles.

Spencer tinha razão: o mundo retrograda. O escopo utilitário matou todo o ideal, toda a caridade e quer cada «besta» na sua manjedoura.

Antes o feudalismo!

Antes a nobreza!

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18 de junho

Nada mais devo da impressão do meu livro. O pulha do Vasconcelos, empregado na Secretaria do Exterior, no meio de outros pulhas, cônsules ou coisa que o valha, teve o topete de perguntar-me onde fui buscar um conto e oitocentos mil-réis. Certamente não foram nas gratificações que na repartição dele se distribuem a mancheias. F. da p.!

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Hoje me contaram que o Getúlio das Neves, lente da Escola Politécnica, demitiu-se de diretor da Carteira Cambial do Banco do Brasil, porque, encontrando o câmbio, por exemplo, a 11 1/32, no dia seguinte, julgando que o fazia subir, mandou que o Banco o cotasse a 11 3/32. As cifras não são exatas, mas o fato em si é.

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O Raul Pederneiras fez concurso de anatomia artística, de que deve entender muito pouco. Agora, está tratando de fazer de grego, de que estudou umas coisinhas no Ginásio.

Que homem e que país!

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Setembro

A segunda edição do Isaias apareceu em setembro de 1917.

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5 de setembro

De há muito sabia que não podia beber cachaça. Ela me abala, combale, abate todo o organismo, desde os intestinos até à enervação. Já tenho sofrido muito com a teimosia de bebê-la. Preciso deixar inteiramente.

No dia 30 de agosto de 1917, eu ia para a cidade, quando me senti mal. Tinha levado todo o mês a beber, sobretudo parati. Bebedeira sobre bebedeira, declarada ou não. Comendo pouco e dormindo sabe Deus como. Andei porco, imundo.

Ia para a cidade, quando me senti mal. Voltei para casa, muito a contragosto, pois o estado de meu pai, os seus incômodos, junto aos meus desregramentos, tornam-me a estada em casa impossível. Voltei, porque não tinha outro remédio.

Deitei-me, vomitei e andava com fluxo de sangue, que me levava à latrina freqüentemente. Numa das vezes em que fui, caí e fiquei como morto. Meus irmãos acudiram-me e trouxeram-me a braços, inclusive o Elói, o filho da Prisciliana, meu afilhado e de minha irmã. Não sei o que se passou; o que sei é que as senhoras da vizinhança acudiram e eu despertei duas horas depois com equimoses nos tornozelos e cercado por elas, cheias de susto.

Chamaram médico, o Caire, estudante do meu tempo; e estou sofrendo a medicação mais penosa que me podia ser imposta. Estou em dieta de fruta e água de arroz, pois o meu organismo tem deficit.

Se não deixar de beber cachaça, não tenho vergonha. Queira Deus que deixe.

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Outubro

«Exmos Srs.

Tendo nós notado que artigos de certos dos nossos autores, quando aparecem em publicações difundidas, são lidos com interesse e avidez; e notando também que muitos escritores não possam faze-los com independência e necessária autonomia intelectual, para não ferir interesses e susceptibilidades das grandes empresas dos nossos quotidianos, revistas e magazines; resolvemos editar uma pequena revista quinzenal em que coubessem artigos de semelhante natureza e onde também fossem feitos, sem a dependência de pequeninos interesses do momento, largos e francos comentários aos sucessos da nossa atividade, em todos aqueles departamentos onde os nossos colaboradores entendessem buscar assunto.

Não se trata de uma revista de descompostura, não se trata nela de insultar esta ou aquela personagem em evidência. Não precisamos disto. O que nós desejamos é esclarecer fatos e opiniões, sob a luz de uma livre crítica, de forma que aqueles leitores, pouco enfronhados nos bastidores de certos aspectos da nossa vida e deles só tendo diante de si o fato bruto, possam melhor julgar o desenrolar dos acontecimentos políticos, literários e outros, assim também as individualidades envolvidas nesses acontecimentos.

Um programa destes é necessariamente assintótico. Começamos modestamente e, com o tempo, a curva irá se aproximando gradativamente, insensivelmente, da assíntota, para nunca atingi-la. É da definição.

Com esse espírito, resolvemos pôr, na direção intelectual da publicação, o senhor Lima Barreto, moço autor, cujos livros, por demais conhecidos, são fiadores da diretriz que ele imprimirá a Marginália, de acordo com o que desejamos.

Procuraremos o mais breve possível organizar o nosso quinzenário, de forma a torná-lo o mais atraente possível. Na medida do razoável, não fugiremos aos moldes das publicações mais procuradas. Sem faze-la semelhante aos chamados semanários humorísticos, nem tampouco aos modelos das grandes revistas clássicas -o que no nosso meio é quase impossível-, esforçar-nos-emos por editar a Marginália de modo que, participando de um e outro gênero de publicidade, ela possa satisfazer o gosto de qualquer espécie de leitor, sem depender de nenhuma delas.

É mais uma tentativa que entre nós se faz nesse gênero de imprensa de período longo; e, seja qual for o seu futuro, ficaremos satisfeitos só em tentá-la.

Esperamos, pois, a boa vontade dos senhores para a publicação que encetamos agora e, desde já, agradecemos o acolhimento que derem a Marginália.

Rio de Janeiro, 28 de outubro de 1917.

Os Editores.

P.S.- Não aceitamos, por ora, assinaturas».

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Sem data

Otacílio Sampaio de Macedo. Ensaio de uma Psicologia Nacional. Capítulo II. Cita Policarpo.

21 de janeiro

Eu beijei por uma ou duas vezes E., cunhada do H.M. Isto foi há dias e eu estava esquentado. Se aquela ocasião fosse propícia, talvez consumássemos o ato. Ela é casada com um demônio de um inferior da Marinha, estúpido a roçar na idiotice. Tem todas as manifestações da compressão militar, em que o puseram desde a meninice. Tem dois filhos.

A E. não é uma beleza, mas é farta de carnes e tem aquele capitoso das caboclas, quando moças. Foi sempre ela quem me provocou. Naquele dia, eu fui adiante... O G. a ronda também, mas penso que não chegou tão longe...

O que eu queria dizer é que, agora, quase um mês passado, eu não tenho nenhum interesse em continuar a aventura. Não lhe tenho amor, não me sinto atraído por ela, por isso não encontro justificativa em mim mesmo para arrastá-la, como se diz, a um mau passo. Havemos de ver...

(Morreu no fim do ano e o G. também. Gripe).

* * *

Álbum de Pelino Guedes

«Ida e volta»

A Osório Duque Estrada

«Quando chorosa partiste,

No dorso do mar bravio,

Sobre a tolda do navio

Vi-te, dolente, a cismar...

No ocaso o Sol se escondia,

Gemia o mar nos abrolhos

Chorava a dor em teus olhos

Tudo chorava no lar...

Hoje que voltas contente,

Do teu sorriso inocente

De luz doura-se o arrebol...

Ontem, partias chorando,

Hoje, sorrindo e cantando

Beijam-te as flores e o Sol!».

«Por mais que te escarafunches

Por mais que rimas arranjes

Serás sempre um pobre Dunshee

Um pobre Dunshee de Abranches».


Artur Azevedo, vide A Lanterna, de 30-10-17.



* * *

«Aucun âge n'a le droit d'imposer sa beauté aux âges qui précèdent; aucun âge n'a le devoir d'emprunter sa beauté aux âges qui précèdent. Il ne faut ni dénigrer ni imiter, mais inventer et comprendre».

Taine, Essais, página 255.



* * *

Helmholtz, citado por Metchiníkoff: «La Nature a comme exprès accumulé les contradictions dans l'intention de repéter tous les fondements d'une théorie d'harmonie préexistente entre le monde extérieur et le monde intérieur», página 100.

* * *

O conto meu «Sua Excelência» foi transcrito na Platéia, de São Paulo, em 24-1-18.

* * *

O doutor Luís Ribeiro do Vale, na sua tese de doutoramento em 1918 (ano letivo de 1917), refere-se ao meu livro Policarpo Quaresma. O título é Psicologia Mórbida na Obra de Machado de Assis.

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Lenine, Trotski, Kólontai. (mulher?).

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Páginas 146, 147, Sóror Mariana Alcoforado, Luciano Cordeiro, sobre adornos pagãos nos conventos de Conceição de Beja e no de Odivelas.

* * *

Mariana Alcoforado.

Nasceu - 22-4-1640.

Morreu - 28-7-1723.

83 anos.

Convento Conceição (da Nossa Senhora da Conceição) de Beja (Alentejo).

* * *

«Daqui a poucos dias vai fazer um ano que toda me entreguei sem escrúpulos».

Carta II.



«Receava muitas vezes que a afeição que parecia ter por mim pudesse de algum modo prejudicá-lo (a Chamilly)».

Carta V.



«Em nada mais faço consistir a minha honra e a minha religião do que em amar-te perdidamente toda a vida já que comecei a amar-te».

Carta IV.



«Também (Deus?), separando-nos, parece-me que nos fez todo o mal que poderíamos recear dele. Não conseguirá separar os nossos corações: o amor que pode mais do que ele uniu-os para toda a vida».

Carta I.



«O que me fazem por aliviar-me, acirra a minha dor, e nos próprios remédios acho razão particular para me afligir».

Carta II.



«Fizeras a sangue frio o propósito deste incêndio em que me abrasaste toda».

Carta III.



* * *

Há dez anos eu não compreenderia estas cartas (1918).

* * *

«Triste de mim! que sinto vivamente a impostura desta idéia (nunca tê-lo visto), conheço, mal a exprimo, que estimo bem mais ser desventurada, amando-te, do que não te haver visto jamais».

Carta III.



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Heloísa diz coisa semelhante.

* * *

«Mas agradeço-te, do fundo do coração, as mortificações que me causas, e aborreço a tranqüilidade em que vivia antes de conhecer-te».

Carta III.



«Vi que (o senhor) era menos caro do que a minha paixão e tive mágoas desconformes em combatê-la, depois ainda que os maus procedimentos do senhor o tornaram para mim odioso».

Carta V.



«Desconfio muito dos sentimentos violentos para que me aventure a esse».

Carta V.



«Parece-me contudo que se os homens pudessem ter mão na razão quando escolhem os seus amores, mais se inclinariam a elas (religiosas) do que a outras mulheres».

Carta V (1).



* * *

Sem rival, Chamilly. Eu sou seu rival.

* * *

O indeferimento do meu requerimento de montepio em 1916.

* * *

Não cobra nada pelas minhas receitas, pois só prescreve remédios para os amigos.

Seria muito melhor que o fizesse para os seus inimigos.

* * *

O filho do Leão Veloso aceitou a Legião de Honra. Vide Correio da Manhã, de 5-5-1918.

O Júlio Novais agrediu o Álvaro de Oliveira, em 8-5-96, em frente à igreja de São Francisco, por causa de reprovações.

* * *

  • Fim do governo:
    • Ocupar-se das substâncias.
    • Fornecer a abundância.
    • Cuidar da segurança.
    • Favorecer a igualdade.

Bentham - Filon - Literatura inglesa.

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Um epitáfio de um marinheiro grego que naufragou:

O marítimo que aqui jaz diz-te: «Veleja! O golpe de vento que nos fez naufragar aqui, fazia vogar ao largo toda uma flotilha de barcos felizes e contentes».

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A prorrogação do contrato da São Paulo Railway foi no governo do Prudente. O Adolfo Gordo foi o intermediário.

* * *

Frase de Nilsa Faceiro (caso da casa do Faria - retalhos em notas oportunas), tratando do filho que tem no ventre: «Sim, é dele; e só a ele (o amante) é que eu amo».

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Bolchevismo.

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Conde de Belfort, Visconde de Gurupari - morou na Rua Formosa, perto do velho Antônio Lourenço, num sobradão junto ao Colégio de Santa Cândida.

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Sem data

O artigo do Amaral tem o mesmo plano que o do Miguel Melo; o do Antônio Torres o mesmo que o daquele último; o do filho de Leão Veloso o mesmo que o do Torres.

Parece que o plano foi ditado pelo chefe de polícia, devendo tocar nos seguintes pontos:

a) acoimar de estrangeiros os anarquistas, e exploradores dos operários brasileiros;

b) debochar os seus propósitos e inventar mesmo alguns bem repugnantes e infames;

c) exaltar a doçura e o patriotismo do operário brasileiro;

d) julgar que eles têm razão nas suas reivindicações; que a dinamite não deve ser empregada, etc.; que devem esperar, pois a câmara vai votar o código do trabalho, etc., etc.

Seria melhor mandar o Celso Vieira redigir uma circular, em papel da chefatura de polícia, e, mediante pagamento razoável, publicá-la em todos os jornais.

Viver às claras.

* * *

Hélio Lobo, sua defesa, em A Noite, de 1-12-18.

* * *

Quando eu passo, à noite, pelo Flamengo, que as gentes elegantes, com as suas horríveis casas, fizeram banal, lembro-me do Helesponto, de Leandro e de Hero, que deve estar lá, em Icaraí. Infelizmente, eu não sei nadar.

* * *

A Gazeta, de 1 e 2-12-18, denuncia uma violência do delegado da 17ª sob o pretexto de anarquismo.

* * *

João Francisco comprou um apito e uma gaita, para atrair os pardais.

* * *

27 de dezembro

Hoje, aqui, no Hospital Central do Exército, estando na varanda, das seis para as sete, eu vi um grupo de irmãs atravessar o jardim, em demanda a uma outra enfermaria. Uma delas, ao pisar nas terras, recentemente trazidas para um canteiro, passou levantando os pés, como se estivesse a atravessar um terreno encharcado, e levantou a bata com os ademanes bem femininos, com ambas as mãos. Tarda muito a morrer na mulher a coquetterie. A menina burguesa, mais ou menos rica, surgiu debaixo da irmã.

* * *

João Francisco Filho continua a chamar os pardais e a ouvi-los cantar óperas, valsas, etc.

* * *

No retrato de Josefina, que ilustra as minhas memórias de Barras, compradas em segunda mão, havia a seguinte nota, da mão naturalmente do primeiro possuidor:

«Veja o retrato na obra de J. Turquan, pág. 1».

* * *

Escrever alguma coisa sobre o João Francisco e os pardais. Foi meu companheiro no Hospital Central do Exército.

João Francisco, alferes reformado, tipo raté da Escola Militar, as suas manias matemáticas, a sua terminologia, megalômano, etc.

Encontrei no Hospital Central do Exército. Escrevia cartas a todos os reis e potentados, aconselhando isto ou aquilo.

Tinha um tratado de mecânica, etc. Caso patológico das manias dos militares saídos da Escola Militar há trinta anos.

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Chagas - boêmio.

Nezumano - positivista.

Nepomuceno - caricato.

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Sem data

Fui aposentado por decreto de 26-12-1918. Presidente da República, vice em exercício, Delfim Moreira e ministro da Guerra, Alberto Cardoso de Aguiar.

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Sem data

No Peau de Chagrin, de Balzac, há o seguinte pensamento muito semelhante a um de Nietzche: «L'homme est un bouffon qui danse sur des précipices».

Janeiro

Estive no Hospital Central do Exército, de 4 de novembro de 1918 a 5 de janeiro de 1919.

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25 de fevereiro

O meu Gonzaga de Sá, editado em São Paulo, apareceu no Rio de Janeiro em 25 de fevereiro de 1919.

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«Mais que diable allait-il faire dans cette galère?».

Molière, F. de Scapin.



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Março

O negócio do Antônio Claro, diretor da fábrica de tecidos, está no artigo de Ramos da Paz, Jornal do Comércio, de 10 ou 11 de março de 1919.

* * *

«Le Latin, qui dans les mots brave l'honnêteté»...

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A mulher do H., com quem estive em avançadas intimidades, narrou-me há tempos que o pai gastava razoáveis dinheiros para levar toda a família a Petrópolis. Falando-me em passear com ela, lembrei-lhe a Tijuca, o Jardim, o Pão de Açúcar, as Paineiras, o Corcovado. O pai é fiel da Armada e se tem em grande conta. Eles e ela saíram todos assim.

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Eu veria a Vitória de Samotrácia com o mesmo olhar e a mesma emoção com que vejo um manipanso africano. São documentos sociais ambos.

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13 de março

«A Liga contra o football».

Lima Barreto, entrevistado pelo Rio-Jornal expõe os inconvenientes do football.

Um jogo de pés que concorre para a animosidade e a malquerença entre os filhos de uma mesma nação.

A notícia de que Lima Barreto e alguns companheiros tratavam de fundar uma 'Liga contra o Football', levou-nos esta manhã à sua casa, para obter mais esclarecimentos sobre os destinos e fins da liga. Lima Barreto reside, há dezesseis anos, na pacata estação suburbana de Todos os Santos. A sua casa é modesta, porém clara e ampla, cercada de fruteiras e respirando sossego. A sua sala de trabalho, ao mesmo tempo dormitório, é também clara e ampla, tendo livros, móveis, quadros -tudo em ordem. A desorganização de Lima é para uso externo. Estava lendo os jornais matutinos, quando chegamos.

-Você por aqui! exclamou ele logo ao ver-nos.

-É verdade. Quero saber bem esse negócio da 'liga' que você fundou.

Nós já nos havíamos sentado e o Lima, na cadeira de balanço, deixou os jornais e respondeu:

-O negócio é simples. Há cerca de um ano eu e o Valverde... Você não conhece o Valverde?

-Conheço.

-Bem. Eu e ele, conversando sobre os sports, em uma confeitaria do Méier, Valverde me expôs, com a sua competência especial de médico que conhece o seu ofício, os prejuízos de toda a ordem que o abuso imoderado dos sports, sobretudo o football, trazia à nossa economia vital. Ele mós explicou singelamente, sem pedantismo, nem suficiência doutoral. Impressionei-me. Dias depois, ele me lembrou a fundação da liga. Passaram-se dias e meses e não mais falamos nisto; ultimamente, porém...

-Com a decisão da congregação do Pedro II, proibindo o football?

-Não; antes. Eu explico a você. Nos últimos meses do ano passado, estive no Hospital Central do Exército, tratando-me. Lá, sem ter que fazer, nem distrações, eu, por desfastio, lia todas as seções dos jornais, inclusive as esportivas que são as únicas enfatuadas e enfáticas. Verifiquei que havia uma irritação inconveniente entre os players.

-Você já sabe a técnica do football?

-Isso é técnica? Player está ali no Valdez.

-Vamos adiante.

-... entre os players, amadores, torcedores, enfim entre o público do bola-pé de lá e o daqui. Você sabe disso?

-Sei.

-Saindo do hospital, tive notícias mais completas. Entre a gente do football de lá e a daqui há uma rivalidade feroz que se manifesta em chufas, vaias, apelidos deprimentes, até em rolos. A esse respeito escrevi dois ou três artigos...

-Onde?

-No A.B.C.... Mas, a coisa não seria tão importante, se nestes últimos dias, realizando-se no Recife, um match entre um club de lá e um daqui, não se repetisse as chufas, as vaias e os rolos.

-Concluiu você, daí...

-Concluí que, longe de tal jogo contribuir para o congraçamento, para uma mais forte coesão moral entre as divisões políticas da União, separava-as:

-Não será exagerado, Barreto?

-Julgo que não. Entre São Paulo e Rio foi assim; entre Rio e Recife também; e o lógico é provar que as coisas se repetirão entre Rio e Belém, entre Rio e Porto Alegre, etc., etc.

-É um argumento.

-E não é só este. Os grandes oclubes daqui, aqueles que têm para cerimoniais o caucásico Coelho Neto, são portadores de uma pretensão absurda, de classe, de raça, etc., você não pode negar isto!

-Não nego; é verdade.

-Está aí, uma grande desvantagem social do nosso football. Nos nossos dias em que, para maior felicidade dos homens, todos os pensadores procuram apagar essas diferenças acidentais entre eles, no intuito de obter um mútuo e profundo entendimento entre as várias partes da humanidade, o jogo do pontapé propaga a sua separação e o governo o subvenciona.

-Subvenciona?

-Sim. Parece que a Liga e a tal Confederação estão inscritas no orçamento da despesa da República. Não estou certo, vou verificar; mas, favores e favorezinhos, elas têm recebido do governo para lançar cizânias entre Estados da União e criar distinções idiotas e anti-sociais entre os brasileiros.

-Que favores são esses?

-Os poderes governamentais reconheceram de utilidade pública a tal Confederação, o que naturalmente redunda em alguma vantagem de ordem administrativa; e aquela casa de espantos, que é o Itamarati, quando há os tais matches internacionais, subvenciona clandestinamente as équipes que vão para as repúblicas vizinhas 'defender as nossas cores', como dizem eles infantilmente. De modo...

-Você é capaz de provar que receberam essas subvenções?

-Nem eu nem ninguém. O Itamarati, depois de Rio Branco, fez-se a caixa dos segredos e das mistificações da nossa administração. Não há quem arranque de lá a mais simples certidão...

-Então, como você?

-Como? Digo, sob a responsabilidade de meu nome, denuncio, e chamem-me a juízo. Espero. Contudo...

-Mas, Barreto, penso em que vocês não ficarão nesse aspecto político-social-administrativo do football, não é?

-Não ficaremos aí. Esta é a minha parte, mas a que se refere à higiene pessoal, ao funcionamento da boa saúde, às reações de ordem psicológica, às perturbações ao desenvolvimento mental que ele possa trazer, esta parte difícil, árdua e técnica é com o Valverde. Eu tratarei da minha, no que tenho o apoio de todos, pois nenhum de nós está disposto a admitir que o Brasil pague impostos, para o governo obter dinheiro e ele venha a dar um pouco desse dinheiro à sociedade dos que cavam a separação, não só das divisões políticas da nação, mas entre os próprios indivíduos desta nação. Você pode dizer que nós não estamos dispostos a consentir que se forme, à custa dos contribuintes, uma aristocracia que se baseia nas habilidades dos pés... Representaremos ao Congresso...

A conversa ameaçava eternizar-se, despedimo-nos, pois; o serviço do jornal nos esperava.

Sem data

A segunda vez que estive no hospício de 25 de dezembro de 1919 até 2 de fevereiro de 1920.

Trataram-me bem, mas os malucos, meus companheiros, eram perigosos. Demais, eu me imiscuía muito com eles, o que não aconteceu daquela vez que fiquei de parte.

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Tenho um conto no Malho, segundo semestre de 1919, que não guardei. Não sei o número.

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Sem data

O cálculo do valor das terras de São Paulo, segundo o Cincinato Braga. Fazer uma charge a respeito.

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Revista da Semana, de 7-8-20. Logo no primeiro artigo aconselha reformas suntuárias na cidade. Em seguida sob o título «Um prado de corridas no Leblon», pede que a Prefeitura e o Ministério da Agricultura o construam, visto «gastar-se muito dinheiro em coisas inúteis» (textual).

Por aí vai nas suas elegâncias.

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A ordenação do Reino (manuelina) que equipara as bestas aos escravos é encontrada no livro IV, título xvi.

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«A saudade escreve entranhado».

Camões, Elegia.



Sem data

Num domingo de fevereiro de 1921, houve um grande rolo, quando, na Praia de Botafogo, jogavam uma partida de water polo os clubes Natação e São Cristóvão. Foi tremendo e dentro d'água.

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Setembro

João Henriques de Lima Barreto. Nasceu em 19 de setembro de 1853. Foi chefe de turma das oficinas de composição da Imprensa Nacional, depois de trabalhar como tipógrafo em várias oficinas particulares e de jornais do tempo; mais tarde, chegou a mestre da referida oficina da mesma Imprensa, donde foi demitido com o estabelecimento da República, em 1889.

Pouco depois, foi nomeado para as Colônias de Alienados que o Governo Provisório acabava de fundar, na ilha do Governador, como escriturário; anos após, foi almoxarife, administrador, aposentando-se, em 1902, devido a pertinazes sofrimentos que o impossibilitaram de toda e qualquer atividade até à data do seu falecimento.

Era viúvo e deixa três filhos e uma filha, solteiros, todos os quatro, e o mais velho é o escritor Lima Barreto.

Traduziu e publicou um volume, o Manuel de l'apprenti compositeur, do célebre impressor francês Jules Claye.

* * *

21 de setembro

(Cópia).

«John C. Branner

Stanford University

President Emeritus

July 27, 1921. Califórnia

Ilmo. Sr. Capistrano de Abreu. c/o F. Briguiet & Cia. Rua Nova do Ouvidor.

Rio de Janeiro, Brazil.

My dear Capistrano: I received your letter of April 26, and the book and papers you kindly sent, but I have been in poor health for more than six months on account of my heart, and my correspondance has necessarily been very much neglected.

Only a few days ago was I able to read Lima Barreto's Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. I am delighted with it. I thank you very much for sending it.

I don't remember whether I ever thanked you for calling my attention to some of the writings of Monteiro Lobato. Some of them seem to me remarkably well done.

Though I am still shut up indoors by the physicians, such strength as I have is spent in the preparation of an autobiography. Naturally there is a good deal about Brazil in it.

Remember me kindly to my friends.

Faithfully yours,

(a) Branner».

Observação:

O original o Capistrano deixou para que eu o visse na livraria Schettino, Sachet, 18, com o Francisco Schettino, em começos de setembro de 1921. Mandei-o traduzir oficialmente pelo Guaraná.

* * *

13 de dezembro

Hoje, 13 de dezembro de 1921, recebi de dona Rafaelina de Barros, que viveu com Emílio de Meneses, um terno de fraque, um de casaca, quatro camisas, gravatas, etc., etc., que foram dele. Obrigado à dona Rafaelina e que Deus fale n'alma do Emílio. Amém.

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Sem data

As alfaces de Deocleciano - Diocleciano.

* * *

«Quando a natureza nos deu lágrimas, foi para mostrar que nos criou para a piedade».

Juvenal, Diálogo dos Oradores.



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Criptomnésia - conflito do inconsciente com o subconsciente. Vide Delírio em Geral, Franco da Rocha, caderno VIII.

Ch. Labitte Divine Comédie avant Dante. Aroux:

«Dante hérétique, revolutionnaire et socialiste».

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Maus quartos de hora de um plantador de mangas, o plantador de mangas.

Jurujuba + pescoço louro, amarelo. Papagaio louro. Tamoios assim chamavam os franceses. Vi no Benício.