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Clara dos Anjos

Primeira versão incompleta - 1904

«L'oeuvre d'art a pour but de manifester quelque caractère essentiel ou saillant, lus complètement que ne le font les objets réels».

(Taine)



- I -

A cidade do Rio de Janeiro é regularmente edificada.

Não se infira daí que ela o seja conforme o estabelecido na teoria das perpendiculares e oblíquas; antes se conclua que a cidade se tem erguido, acorde com a topografia do local onde se assentou e com as vicissitudes históricas que sofreu.

Se não é regular com a estreita geometria de um agrimensor, é, entretanto, com as colinas e encostas, que a distinguem e fazem-na formosa. Enquadra-se garridamente nelas, explicando-as e continuando-as.

Ao nascer, no topo do Castelo, não foi mais que um escolho branco, surgindo no revolto mar de florestas e brejos. Aumentando, desceu pela venerável colina abaixo, coleou-se, pelas várzeas, em ruas estreitas. A necessidade de defesa externa obrigou-as a ser assim, e a polícia recíproca dos habitantes contra malfeitores prováveis fez com que elas continuassem do mesmo modo, quando de piratas pouco tinham a temer.

O quilombola e o corsário projetaram a cidade.

Surpreendida pela fereza das lavras de Minas, que fizeram dela seu entreposto de exportação, a velha São Sebastião aterrou apressada alguns brejos; e todo e qualquer material foi-lhe útil para tal fim. A população, preguiçosa de subir de novo morros, construiu sobre um solo de cisco, e o rei dom João veio descobrir praias e arredores cheios de encantos, cuja existência ela ingenuamente ignorava. Uma coisa compensou a outra; e logo que a Corte quis se firmar e tomar ademanes solenes...

Quem observa uma carta do Rio e tem de sua antiga topografia modestas notícias, define plenamente as preguiçosas sinuosidades das suas ruas e as imprevistas dilatações que elas oferecem. Ali, uma ponta de montanha empurrou-as; aqui, um alagadiço dividiu-as em duas azinhagas simétricas, deixando-o intacto, à espera de um lento aterro.

Na fisionomia das casas estereotipam-se as coisas da nossa história. Um observador amoroso e perspicaz não precisa ler, ao alto, a data, entre os ornatos de estuque, para saber quando uma delas foi edificada. Esse casarão de dois andares que vemos na Rua do Sabão ou da Alfândega, é dos primeiros quinze anos da Independência. Vede-lhe a segurança afetada; a força demasiada das paredes; a valentia dos alicerces que se adivinha... Quem a fez, sabia das lutas do Primeiro Reinado, vinha seguro de possuir uma terra sua para viver a vida eterna da descendência. O tráfico de escravos imprimiu ao Valongo e aos morros da Saúde alguma coisa de cubata africana, e a tristeza do cais dos Mineiros é saudade das ricas faluas que não chegam mais de Inhomirim e da Estrela, pejadas de mercadorias.

O bonde, porém, perturbou essa metódica superposição de camadas. Hoje, o geólogo de cidades atormenta-se com o aspecto transtornado dos bairros. Não há mais terrenos paralelos; as estratificações inclinam-se; os depósitos baralham-se; e a divisão da riqueza e novas instituições sociais ajudam o bonde nesse trabalho plutônico.

No entanto, este veículo alastra a cidade; cria nas pontas de seus trilhos núcleos de condensação urbana. Onde ele chega, desenha-se uma venda, surge um botequim, um quiosque; em torno, edificam-se casebres. Ondulações concêntricas a esse núcleo encontram as de outro próximo, dando nascimento a uma travessa mal povoada, tristonha, esquecida das autoridades municipais, e que vive anarquizadamente, fora de toda a espécie de legislação, a poucas centenas de metros de outras, apertadas num cinto de posturas.

Por elas, o capim medra viril e orgulhoso; os cabritos desembaraçadamente pastam; as lavadeiras sem cerimonia coram as roupas; e as poucas casas que há, hesitam entre casa e casebre e dão-se ao luxo de ter jardim na frente. As casas são em geral isoladas, separadas, umas das outras, por cercas de espinheiros ou bambus; mas, às vezes, juntam-se em grupo, cavalgam-se umas às outras, de jeito que, quem as vê, considera a extensão da terra e a muita que por aqueles lugares sobra.

A população que as povoa é heteróclita. Na generalidade, operários e pequenos empregados; mas, se algum descuidado se aventura por uma dessas travessas adentro, surpreender-se-á sem razão ao cruzar com algum elegante da Rua do Ouvidor.

Cavalheiros de extraordinária exuberância amorosa, e de apoucados rendimentos, resolvem o problema de sua natureza, gastando com a família o mínimo, num desses corredores, e o máximo, nos alfaiates e aperitivos platônicos com as cocottes nas confeitarias.

Entre Rio Comprido e Catumbi, numa travessa dessa espécie, residia, em 1886, com sua família, Manuel Antônio dos Anjos, contínuo da Secretaria da Agricultura. Era pequena a família: ao contínuo e à mulher se juntavam unicamente uma filha, a orçar, por esse tempo, pelos dezesseis anos, e uma velha preta, a babá, que, já escrava já livre, rolara até aos cinqüenta e tantos anos, quando viera parar às mãos deles.

Desde 1882 que se estabeleceram ali e, como gostassem do lugar e a casa fosse em conta, ficaram. Viviam bem. Os hábitos regulares do marido e a sagaz economia da mulher extraíam do mesquinho ordenado do contínuo o bastante para um passadio medíocre e igual, que satisfazia a todos. Sempre que tinham ocasião de se referir ao seu feijão quotidiano, dona Florência ou seu marido repetiam:

-Deus nos dê sempre isso! E quem dera, acrescentavam, que todos o tivessem!

De manhã, às oito e um quarto, o Manuel Antônio descia para a cidade em bonde certo; muma-se, na curva da Rua do Conde, de um jornal, lia-o atento até à Rua da Constituição, onde, ao acabar a leitura, dobrava-o cuidadosamente, a fim de que sua filha pudesse ler o folhetim. Findo o expediente, volteava pelas ruas centrais da cidade; dava dois dedos de palestra aqui, ali; e, pelas quatro horas, subia a jantar e a descansar em família. Era assim a sua vida. Dos trezentos e sessenta e cinco dias do ano, excetuando os de gala e os de descanso, que ficava em casa, nenhum merecia do austero contínuo a honra da menor discrepância naquele programa. Sua mulher, também, pouco saía; em um ou outro domingo, excepcionalmente, assistia à missa em Sant'Ana e dos festejos fugia com resignação satisfeita. Não era de festas, dizia, e o que de divertimento ainda lhe pudesse caber, ela, de bom grado, legava à Clara, que, com efeito, não só recebia esse legado, como também concentrava todas as fortes energias de seu pai. Durante a sua segunda infância, ele de modo decisivo se esforçara por lhe ministrar uma melhor educação. Para isso, aduziu, ao trabalho habitual, outros extraordinários, que lhe deram com que custear a estadia da filha no Externato de Nossa Senhora do Amparo, no Estácio de Sá. Há uns tempos atrás, como se sentisse fatigado com aquela dupla labuta, retirara-a do colégio, embora, para completar o estudo de português faltasse, a Clara, a sintaxe, e do piano trouxesse alguns prolegômenos, suficientes para fazê-la tocar as valsas em voga, o que ela desandou a fazer sofregamente, furiosamente. Fechado esse parêntese da educação da filha, o viver de Manuel dos Anjos voltou a ser aquele equilibrado de antigamente. Para Clara, porém, a vida não era tão monótona e encarrilhada, como para seus pais. Havia sempre uma diversão, um desvio: por novembro e agosto, e algumas vezes em outros meses, ia às festas em casa do padrinho, onde as suas habilidades de pianista eram gabadas e requeridas. Constituíam esses festejos a sua forte preocupação. Em setembro, chegava-se ao pai e dizia:

-Papai, preciso de botinas para ir ao aniversário do meu padrinho, em novembro.

Em abril era costume ela recomendar:

-Olhe, papai, em agosto é aniversário de casamento de meu padrinho, e ainda não tenho um vestido para ir.

Afagando a face do velho mulato, a filha lhe pedia eloqüentemente o que as palavras só deixavam perceber.

Seu padrinho era o senhor Carlos Alves da Silva, primeiro oficial da Secretaria do Império, a quem o Manuel dos Anjos, quando voltou do Paraguai, em 1869, conhecera ainda amanuense. Partindo para o Rio da Prata, logo em começo da companha, o contínuo a fizera até à ocupação de Assunção, onde deu baixa de um batalhão de voluntários. De volta à Corte, obtivera com alguns empenhos e aquele seu título de voluntário um lugar de contínuo interino da Secretaria do Império e pouco depois efetivo na da Agricultura.

Durante a interinidade, o antigo voluntário travou conhecimento com o Alves da Silva, ainda nesse tempo um rapazola franzino, tagarela, de qualquer modo poeta, abolicionista, e que viera ter à burocracia com um curso gorado de Direito e o peso da manutenção da mãe, pois que seu pai, major do Exército, morrera em Lomas Valentinas, legando-lhes uma velha escrava, uma casinha em São Cristóvão e o exíguo meio soldo.

A entranhada simpatia do contínuo pelo Alves da Silva não nascera, porém, do trato diário da repartição, que era severo e não permitia demasias. Essa afeição nascera-lhe forte em uma tarde, que ficou célebre na sua vida.

Havia pouco que o Brasil definitivamente domara o Paraguai: com essa vitória o país tinha tomado consciência de si mesmo, era como um tímido que, superada grave dificuldade de sua vida, acredita na sua energia, no seu valor e, quiçá, na efetividade de sua existência. Um tal sentimento que naquela época se apoderara fortemente da nação, traduzia-se num explosivo desejo de progresso, de engrandecimento. Àquela chuva de borrasca, que foi a guerra, pelo Brasil rebentaram tumultuariamente novos e vigorosos brotos. Conjuntamente, vieram agitar-se as grandes questões de povoamento, de instrução e viação.

Mas o que veio a constituir, depois dela, a verdadeira questão palpitante de norte a sul do Império foi a que se chamou a do elemento servil. A guerra, pondo em apertado contato senhores e recentes escravos, fazendo-os sofrer os mesmos perigos e as mesmas agruras, aproximou-os, dando nascimento a uma mútua simpatia entre eles e a uma melhor compreensão das suas necessidades. Com o pleno sucesso das armas imperiais, espalharam-se por todos os recantos do país gente tomada de generosos sentimentos pelos escravos, e essa foi a sementeira donde brotou mais tarde a árvore da abolição. Entretanto, a poesia nacional, que mais ou menos já colaborara em algumas das nossas transformações políticas, muito antes, já começava a preparar os artigos de fundo de alguns anos depois. As escolas de Direito eram o seu centro de irradiação e o Carlos Alves da Silva, chegado do Recife, vinha impregnado dela, e mesmo para o seu gasto pessoal trazia alguns tropos escolhidos e cinco ou seis argumentos irrespondíveis, que, ao seu julgar, seriam as pedras com que o minúsculo David havia de matar o Golias negreiro...

Fora o Manuel dos Anjos, como bom contínuo que era, ajudar a servir na festa que o seu chefe dava pelo batismo do seu primeiro neto.

Bailara-se e já o baile ia em meio, quando, no fito de descansar os pares infatigáveis, alguém lembrou que se recitasse. dona Adelaide, a filha mais moça do dono da casa, convidara já a quatro rapazes, quando convidou o amanuense Alves da Silva.

-Seu Carlos, recite qualquer coisa, disse a moça.

-Oh! Minha senhora, estou constipado (tossiu.), rouco e não tenho toda a poesia de cor, retrucou, desculpando-se.

-Não faz mal. Recite o que souber, objetou dona Adelaide, logo interrogando, indagou:

-Qual era?

-As Vozes d'África... Conhece?

-Sim, senhor! Não é de Castro Alves?

-Pobre rapaz; refletiu o chefe, que estava em frente sentado num sofá. Na flor da idade, com aquele talento, continuou ele, abanando desconsoladamente a cabeça, morrer assim, foi uma pena! De que morreu ele, senhor Silva? perguntou, fechando a reflexão.

O amanuense não teve tempo de responder, pois, como essa conversa parecesse querer se prolongar e desviá-lo recitativo, algumas moças pressurosas vieram reiterar o pedido de dona Adelaide.

Instado, o Alves da Silva acedeu. Encostando-se ao piano, onde já havia quem acompanhasse, começou:

«Deus! ó Deus, onde estás...».



Continuando, as estrofes voavam pela sala, impetuosas, guindadas, enquanto o piano respondia com notas veladas e dolentes. Em meio do recitativo, o Carlos estava extraordinariamente animado. A gesticulação não correspondia à letra do poema, e, com um murro erguido ao teto, foi que ele sublimou:

«O universo, após ela, doido amante

Segue cativo», etc.



A assistência não notava as discordâncias. Hipnotizada, bebia as suas palavras como se contivessem grandes e novas verdades. Percebendo o efeito, o Carlos Alves dobrava a sua incongruente dramatização, continuando:

«Negro, sombrio, pálido», etc.



No fim, com toda a ênfase de que era capaz, imprecou, erguendo as mãos espalmadas à altura do olhos:

«Escuta o brado meu lá no infinito,

Meu Deus! Senhor, meu Deus!».



A sala recebeu o final com um triplicado bravo, e o Carlos, agradecendo e enxugando o suor, partiu em direção à sala de jantar.

Foi durante esse recitativo que a alma do Manuel dos Anjos se sentiu invencivelmente presa à do amanuense. Da porta que ligava a sala de visitas ao corredor, ele ouvira-o todo e quando, com trêmulos na voz, o amanuense Alves disse: «Se choro... bebe o pranto a areia ardente!», o pobre do contínuo quase chorou, abrangendo de um só lance de vista o hediondo e vazio espetáculo das fazendas. O eito, o tronco, o banzo apavorante, a encher de aluados as melancólicas senzalas, para ele, naquele instante, tiveram existência concreta. Ele os sentiu em si e palpou-os; e, conquanto não houvesse sido escravo, se julgava preso à sorte dos cativos por fortes laços de sangue e raça.

Saiu já alta madrugada. Partilhando o padecer do cativeiro e exuberante de afeição pelo Alves da Silva, o contínuo Manuel vinha descendo o morro vagarosamente. Aquelas retumbantes palavras, compreendidas a meio, tinham-lhe revolvido a alma e a memória. Tênues sentimentos obscuros afloravam; rompiam com reminiscências fugaces a forte couraça de sua rudeza. Quis entrar na causa das coisas, na lógica oculta da vida, no sobrepor fatal dos acontecimentos.

O dia surgia. O Sol, ainda escondido por detrás das montanhas, anunciava a aurora com um feixe de claridade aberto em leque para as nuvens. Aos poucos vinha; e antes que o rosicler tingisse de ouro e sangue as franjas do céu, a luz opalescente espalhava-se, esgarçava-se pelos altos morros, cujas curvas doces e caprichosas eram como dobras de pernas, arredondados de colos, anfractuosidades de tórax emergindo de um lençol de gaze. Pareceu-lhe que, pela noite, estreitados, dormiam os dois, aos casais, trocando beijos de paixão, delirando em espasmos, e que, mal vinha a alvorada, despertavam bruscamente para de novo ser os rudes cerros do dia claro. Quantas vezes não vira já o amanhecer? Quantas! Pelos quatro anos de campanha, o sol nascente encontrara-o mil vezes de olhos abertos nas sentinelas regimentais. Mal apontava, as cornetas do Exército estridulavam pela amplidão em fora. Uma seguia outra; as notas delas se perdiam, esvaíam-se ondulando, as da primeira empurrando as da segunda, e por fim um retinido pairava no ar, logo abafado pela agitação da tropa, que se movia desordenadamente, como um formigueiro atacado. Minutos depois, tudo era ordem. Os corpos formavam. Guardas que iam, guardas que voltavam...

Fora uma vez -lembrava-se como se fosse hoje- nas vésperas da batalha do Estabelecimento, que esse caso se dera. Ia ele com outro soldado fazer não sei o que... O certo é que ia com o Urbano... Um negro, alto, delgado, de pele macia e reluzente, vindo do Norte, onde, escravo, libertado, fora dado como substituto do filho do barão de Cajaí... Iam os dois de manhã, caminhando. Madrugada ainda. Frio que Deus dava. Num encontro de caminhos, uma moeda de ouro no chão atraira a atenção de Urbano. Um soldado oriental, que a vira também, correra ao mesmo tempo que o nortista. O brasileiro agarrou-a antes do uruguaio, que não se satisfazendo com essa prova de propriedade, alterou-o:

-Es mio. Yo lo vi primeiro (?).

-Qual teu o que! É minha, esta aqui, e mostrou a mão fechada.

O montevideano olhou Urbano de alto abaixo e, desdenhoso de lábios e ombros, disse:

-Suyo... negro... Vá-te (?).

Muitas ocasiões depois lembrou-se desse fato. Sempre que o Exército formado se lhe apresentava aos olhos, considerava um a um os homens que o compunham. Via-lhe os matizes da pele e com amargura recordava a frase do gringo. Alguns milhares de suyos levavam pelos pantanais do Paraguai o prestígio do Império e um enxame igual borrifava no país com sangue a sua riqueza! Faziam jus a um futuro melhor, então o gringo...

A rua a que chegara começava a se animar. Vacas de leite arrastavam bezerros, plangendo compainhas. As tavernas se abriam, e os sacolejos dos jacás de uma tropa, voltando do mercado, dava um tom de roça à paisagem urbana. Pretos do ganho, quitandeiros, ainda pretos, passavam. De repente, de uma esquina adiante, veio ter à rua uma leva de escravos, em marcha para a casa de comissão. Eram poucos. Dois ou três guardas bastavam. Uma anafada «crioula», com o bamboleio dos quadris, polvilhava de sensualidade o grupo a andar. Insidiosamente veio-lhe à mente os versos do recitativo. Esforçou-se recordá-los. A memória rebelde resistia. Chegavam duas palavras, as antecedentes não vinham, e as seguintes, arrancadas, não faziam sentido com as que já achara. Por fim, já o grupo se esbatia no fundo da perspectiva, quando na memória boiou-lhe esforçado um verso inteiro:

«Quando o chicote do simum dardeja»...



A cena da sala se lhe representou novamente. Imaginou, então, o Alves da Silva, armado com milhares daquelas poesias, derrubando senhores de fazenda com a mesma facilidade que as balas do Bahia derrubavam as cristas de Humaitá. A imagem do amanuense brilhou-lhe resplandecente de santidade. Era como um apóstolo e doravante queria a sua benevolência; os seus menores gestos, havia de interpretá-los como os de um orago, como os de um santo padroeiro...

Quando chegou em casa -na casa em que morava com sua mulher- tinha decidido que o Senhor Carlos Alves da Silva seria o padrinho do seu filho a nascer.

O apaixonado declamador das Vozes d'África entrara em casa momentos antes e, ao entrar, mal sabendo que a sua filantrópica tirada lhe valera um compadreco, repreendeu severamente a velha escrava, porque, aquela hora, ainda não tinha aprontado o café matinal. Eram os restos -quem sabe?- das inflamadas estâncias de Castro Alves.

Recebendo o convite do contínuo para levar à pia batismal um filho dele a nascer, Alves da Silva não lhe deu resposta definitiva. Sorriu, intimamente lisonjeado, e risonho, com um «veremos» entre os dentes, encareceu a distinção que havia no aceitar. Pela segunda vez, depois de nascer-lhe a filha, quando novamente Manuel dos Anjos foi lembrar o convite, o Carlos da Silva lhe disse:

-Filho, teria muito prazer, mas, tu sabes, com essa canalha de padres não quero conversa.

-Seu Silva, obtemperou-lhe o contínuo, a coisa dura instantes, é rápida, num segundo a menina está batizada. O senhor marca um domingo, nós vamos à igreja, e em menos de meia hora está realizada a cerimônia.

-Oh! Manuel! Não é lá pela demora, retrucou o amanuense. São outros motivos. Indo batizar, terei que me ajoelhar, que rezar, não é?... e isso constitui uma quebra de opinião. Sou contra padres, como tu bem sabes, foi dizendo ele, erguendo um tanto a voz, e compreendes que, homem de responsabilidades futuras como sou, devo ter uma inflexível linha de conduta. Devo pôr de acordo os meus atos com os meus pensamentos. Não, filho, não. Que dirão os meus inimigos mais tarde, sabendo que fui rezar a uma igreja? Que dirão? Hein?

O simples do contínuo, na sua santa simplicidade, não compreendia que alguém jogasse seu futuro só porque fosse rezar um Credo, e uma Salve Rainha, a surdina. Não percebia, e, como não respondesse, Alves da Silva asperamente falou:

-Nada... Nada... Precisamos ter firmeza de opiniões. O Brasil nada é por causa dessa nossa mudança contínua de crenças. Hoje liberal, amanhã conservador, depois republicano. Nada... Precisamos de caráter... Não posso...

O humilde voluntário ficou estatelado. Todos os seus castelos, todas as suas esperanças derruíam-se. O padroeiro não o queria e ele ia andar pelo mundo sem anjo da guarda. As rugas de seu rosto paralisaram-se e, fazendo esforço por falar, calou-se, porque lhe parecia que, falando, se ia abrir em pranto. Com voz meiga pôde, minutos depois, dizer:

-Mas, «Seu» Silva, eu já disse a toda a gente que o senhor era o padrinho. Já preparei tudo. Como há de ser? Com que cara vou ficar, Seu Silva?

A isso, sem pronunciar palavra, eles ficaram ao lado um do outro. Alves da Silva ia devagar escrevendo no papel timbrado: «À S. Exa, o Exmo Sr Ministro...», enquanto o Manuel dos Anjos, encostado à mesa, olhava amorosamente as letras, uma a uma, escorrendo da caneta. Por fim, o Silva levantou a cabeça e ternamente indagou:

-Quem é a madrinha?

-É Nossa Senhora da Conceição.

-Qual Nossa Senhora da Conceição! motejou o Carlos da Silva. Pois Nossa Senhora pode lá ser madrinha de alguém!

-É um modo de dizer, Seu Silva. Nossa Senhora é a protetora, mas quem leva à pia é uma amiga de minha mulher.

-Bem. Está direito. Pelos reis... É tarde?

-Não senhor.

-Pelos reis batizarei tua filha.

E, depois de uma pequena pausa, o amanuense Silva inquiriu:

-Já tem nome a tua filha?

-Já, sim senhor. Clara foi o que lhe pusemos. Se não lhe agradar, o senhor pode escolher outro.

-Não. Não precisa. Fica esse mesmo.

O batizado realizou-se na época marcada, e, como Alves da Silva ficasse noivo, algum tempo antes, foi sua noiva a madrinha. O contínuo relutou entre a noiva do amanuense e Nossa Senhora da Conceição, já escolhida para madrinha; e, depois de maduramente refletir, decidiu aceitar a noiva do amanuense. Era mais pronta a proteção, mais fácil de solicitar-se, conveio.

Depois de casado, o Alves da Silva e sua mulher passaram a tratar a família do contínuo com uma benévola proteção. Recebiam ao Manuel e à mulher, em sua casa, sentavam-se com o humilde par à mesa, mas sempre, com um mínimo qualquer, faziam sentir a distância que os separava. Longe de se agastarem com esse tratamento, o contínuo e a esposa acolhiam-no com orgulho. Guardando a convicção de sua real inferioridade, um tal tratamento era para eles, como um prêmio conferido à retidão de sua honesta vida de casal.

Em começo, o casal Silva levou uma vida trabalhosa. O amanuense, para fazer face às despesas do ménage, foi obrigado a procurar trabalhos fora da secretaria. Pelas casas de comércio, levava as tardes a escriturar e, ao chegar ao lar fatigado, aborrecido, os beijos da mulher estavam longe de lhe tirar o azedume de que vinha forrado. Dois anos depois, porém, devido a influência de parentes de sua esposa, fora promovido e, alguns meses em seguida, recebera, por morte de um parente seu, uma pequena herança, que lhe deu com que comprar uma casa regular no Engenho Novo. Repentinamente a depressão fugiu-lhe, e a pontinha de arrependimento, que já começava a ter do seu novo estado, aparecia-lhe agora como um grande crime. Dormia cedo, satisfeito, convicto de possuir uma vida inabalável; e de manhã, logo aos primeiros albores da madrugada, erguia-se e olhava o sol a escalar o nascente, amaciando o sonho da chefia da sua seção e um bom casamento para a filha que já tinha. Crescendo-lhe a filha, Alves da Silva procurou dar reuniões. Ele por si não gostava, mas era preciso que, desde menina, Olímpia se acostumasse à sociedade, porquanto, com o futuro que lhe preparava, impunha-se que, desde já, ela se fosse habituando.

Escolheu alguns dias nos anais da família e nesses dias festejava com ruído os obscuros acontecimentos que simbolizavam. Aos primeiros festejos, o Manuel dos Anjos e a mulher não foram, embora convidados, mas, por fim, animados por convites reiterados, foram sempre. Chegavam cedo, antes de todos; e o contínuo tirava o paletó e ajudava nos últimos preparativos.

-Oh compadre! Você me faz um favor, dizia dona Adélia da Silva prazenteiramente.

-Pois não, comadre.

-Você me vai ali na padaria buscar um quilo de farinha de trigo.

Ou senão:

-Florência!... Florência! gritava o Alves da Silva da sala de visitas.

-Senhor, compadre, respondia.

-Faz-me aí uma limonada e me manda trazer. Está ouvindo?

De tarde, porém, vestiam-se convenientemente e, cheios de respeito, ficavam na sala de jantar assistindo a festa que ia na de visitas. Mais tarde, com o crescimento da filha, a maneira do casal de Catumbi cumprimentar os seus compadres do Engenho Novo mudou. O pai levava a filha, deixava-a lá, vinha-se, e no dia seguinte ia buscar.

* * *

Nesse ano, o aniversário natalício do padrinho de Clara prometia ter um brilho desusado. Caindo em domingo, era obrigatório que a festa começasse sábado e durasse se prolongando, até segunda-feira de manhã. Ao contrário, porém, de toda a expectativa, o sábado amanhecera chovendo. O céu enfarruscado era atravessado por grossas nuvens a galopar de um quadrante para outro. De quando em quando, uma forte pancada de chuva desabava, interrompendo qualquer esperança de melhor dia. Dona Adélia não cessava de se lastimar:

-Oh! os doces! Meu Deus! Tanta coisa... e não vem ninguém! Que diabo!

E antes do marido sair, recomendou muito que fosse buscar Clara. O Manuel estava adoentado e com certeza ela não tinha com quem vir, dizia dona Adélia.

-Demais, acrescentava, você sabe, Carlos, não temos ninguém pro piano. O Zezé toca duas contradanças e mais nada. Sem Clara, filho, não temos festa. Olha bem. Vai até lá.

O Silva, cheio ainda das recomendações da mulher, entrou pelas quatro horas em casa do Manuel dos Anjos. O dia continuava chuvoso, e, deixando o guarda-chuva a escorrer na modesta sala de visitas da casa, ele foi entrando para a sala próxima, onde o contínuo repousava numa cadeira de balanço.

Vendo o Silva, o velho mulato levantou-se a custo e estendeu-lhe a mão para cumprimentar. O antigo amanuense dirigiu-lhe com amabilidade pequenas perguntas de boa educação.

-Não é nada, compadre. Umas dores... O reumatismo que não me deixa.

-Tens te tratado, Manduca?

-Sim, senhor. Fui aí a um médico, receitou-me umas fermentações, mas, com essa mudança de tempo, piorei. Não há de ser nada com ajuda de Deus.

-Assim espero. Você se deve agasalhar melhor, Manuel. Olha, estás sem meias e quase de costas para o vento.

-Não é o que te digo, Manuel? interrompeu dona Florência. Há que tempo, compadre, estou dizendo ao Manuel: calça as meias, muda essa cadeira de lugar, e ele teima em ficar; depois...

-Qual o que! Aqui não há vento nenhum, objetava o contínuo.

Convencido, afinal, de que havia corrente de ar no lugar, o contínuo mudou a cadeira para um canto da sala mais abrigado.

A Babá tinha começado a pôr a mesa e, sendo convidado para jantar, o Silva respondeu:

-Não, obrigado. Eu vinha buscar Clarinha. Você estava doente, dirigiu-se ao Manuel, e por não ter ela com quem ir, talvez não fosse lá em casa, o que entristeceria a mulher e Olímpia.

-Mas, compadre, objetou dona Florência, com esse tempo... e Manuel assim...

-Que diabo! Florência, eu não estou à morte. Deixe a rapariga ir... disse agastado o contínuo.

-Não é isso que quero dizer. O compadre bem me compreende. Pode-se precisar qualquer coisa, de noite. Babá está velha...

-Qual nada! Deixa-te disso, Florência. Clara, disse o contínuo com império, vai te vestir para ir com teu padrinho.

O Carlos da Silva que até ali se mantivera calado, disse afinal:

-Eu não quero obrigar. Mas se a comadre não acha bom, ela não vai; entretanto...

-Não... Não... Porque não há de ir? Não estou à morte. Anda Clara.

Dentro de meia hora, Clara voltava vestida e, quando ela se despediu do velho pai, ele lhe disse:

-Diverte-te. Diverte-te, minha filha, enquanto sou vivo.

O dia continuava chuvoso.

Grandes nuvens negras esgarçavam-se aqui, contraíam-se ali e por vezes baixavam tanto, que pareciam roçar na cobertura do veículo em que iam a afilhada e o padrinho. Abriam uma fresta entre elas, em outras, e um pedaço de sol rompia bruscamente aquela espessura macia. A luz, então, respigava pelas encostas, e fracas manchas de tons claros mosqueavam o verde escuro que as atapetava. Depois, continuavam a agitar-se. Acumulavam-se nas dobras das montanhas e vinham de vôo, como grandes aves agoureiras, roçar de novo o carro de ferro. Clara pela primeira vez supôs grave a moléstia do pai. Que seria? Tantas dores, e ainda a noite passada gemera tanto! O padrinho virara-se e, olhando as bandas da Tijuca, prognosticou:

-Amanhã não teremos chuva. Aposto até.

Clara entrou em casa do Alves da Silva satisfeita e alegre, e recordando muito a recomendação do pai:

-Diverte-te, minha filha, diverte-te enquanto sou vivo.

- II -

-Oh! como está lindo, madrinha! disse Clara ao chegar à janela da sala de jantar. Venha ver só...vem Olímpia. Olha como se vêem os Órgãos daqui, continuava a menina entusiasmada.

-Deixa-te disso, Clara, vem tomar café e depois então te fartarás de ver. Anda.

E as três à roda da mesa, sentadas, começaram a mastigar a refeição matinal. A sala estava clara, de uma luz azulada, penetrante e macia; e o ruído do pão entre os dentes era como um cantar de cigarras. Tendo acabada a refeição, todas as três se puseram na janela, olharam em roda; no começo, trocaram algumas palavras, mas depois ficaram minutos a fio caladas, recolhidas, a olhar diferentes pontas de horizonte.

Tivera razão o Alves da Silva: amanhecera fazendo bom tempo, e mais do que bom tempo surgira um belo dia. Pelo céu não havia mais nem uma nuvem. Era límpida, tranqüila, azul, a abóbada que se engastava nas colunas verde-negras dos morros. Dava gosto olhar; a claridade jorrava; não havia pelo céu alto um canto escuro; e o olhar, passeando vagaroso, detinha-se tristonho ante aquela massa de montanhas. Ela manchava melancolicamente o esplendor da manhã e espalhava pelo ambiente uma vaga sombra. Dir-se-ia que, apesar de límpido, o céu ainda tinha nuvens e que essas nuvens escondidas debuxavam nas coisas uma fugace tristeza, prestes a fugir a um súbito arrepio de contentamento.

Na casa do antigo amanuense se ergueram cedo, e a cantante beleza do dia estimulou-lhes a espera dos convidados. Esperavam com ânsia e impaciência. Pelas duas horas, foram chegando aos poucos.

-Quase não vínhamos, dizia dona Eugênia Gomensoro, ao chegar, acompanhada dos filhos. Imagine, dona Adélia, que o Zezé, o pequenino, tem passado mal...

-Que é que ele tem?

-Nada. Uma pontinha de febre, que está teimosa. Coisa dos dentes. Demais, essa sua moradia, aqui, tão longe, e com aquele tempo de ontem. Depois, o Chico anda tão atarefado. É chamado pr'aqui; é chamado pr'ali. Inda se pagassem! Não pagam, todos pensam que o médico vive de «brisas», que não tem mulher e filhos. Um inferno!

O Chico, de quem dona Eugênia falava, era seu marido, doutor Francisco Gomensoro, médico clínico em São Cristóvão, que pela monotonia do seu receituário parecia ter descoberto a panacéia universal. No campo de sua visão clínica, só havia uma moléstia; para essa moléstia uma única medicação: um purgante e sulfato de quinina. Era invariável. Um doente tremia de sezões, lá ia o especifico; escarrava sangue, o mesmo. Gozava no entanto de boa reputação. Lhano, afável, todos estimavam: chamavam-no. Às vezes, pagavam, em geral, não. Ele não se incomodava. Continuava a tratar do mesmo jeito e com a mesma solicitude. Receitava pelos bondes e da ponta de um banco inquiria, na janela, do estado de um cliente:

-Vai melhor?

-Sim, senhor doutor.

-Repita.

E, o bonde afastando-se, ele se voltava para o companheiro mais próximo, continuando a discutir a queda do gabinete. Não viera com sua esposa, mas pelas quatro horas, quando a casa estava cheia, achava-se lá, na varanda, a conversar com o primeiro oficial Alves da Silva, seu antigo colega de colégio, e alguns outros convidados.

O Alves da Silva centralizava a palestra. Sentado em uma cadeira de vime, tinha ao seu lado o doutor Gomensoro, junto ficava-lhe o «seu» Monteiro, um velho português, calvo e gordo, baixo e sangüíneo, em quem um rosto cheio sempre barbeado dava um esquisito realce aos bigodes brancos, cingindo uns lábios polpudos e jovens. O Senhor Monteiro era homem de fortuna, ganha muito, muito honestamente, em empreitadas de estradas de ferro. No interior do Império, onde vivera os primeiros anos, a construção de uma via dessas viera supreende-lo com uma pequena taverna. Em falta de lugar melhor, o engenheiro encarregado da construção tomava refeições em suas casas e animara-o a aceitar a empreitada de um trecho. Ganhara dinheiro na tentativa, experimentara uma segunda. Fora feliz, e daí por diante a fortuna cresceu-lhe com segurança. Há oito anos enviuvara, e os seus filhos educavam-se na Europa, em companhia de parentes de sua mulher.

Alves da Silva animava essa amizade, mais do que a do doutor Alfredinho, com quem também conversava, bacharel novel e filho do visconde da Meia Ponte, senador por Goiás. Doutor Alfredo estava em pé, encostado ao gradil da varanda, tendo ao lado o alferes Boaventura, um conhecimento do Feliciano, sobrinho do antigo amanuense, que também fazia parte da sociedade. Boaventura, Boaventura Iperoig da Silva, alferes-aluno, era um rapaz de estatura meã, que roçava então pelos vinte e três anos. Com as bochechas fortemente salientes, o seu rosto redondo e acobreado repousava, atormentado, sobre um pescoço demasiado delgado para o volume da cabeça, que era grande e coberta de grossos cabelos, lisos e muito negros. Acabava na Escola Militar da Praia Vermelha o curso de engenharia militar, gozando nesse estabelecimento de uma fama de geômetra que o próprio Newton invejaria. Se sobre o Boaventura, de qualquer seu colega se fosse ouvir a opinião, seria essa só:

-Boaventura! É habilíssimo. Tem talento, sabe muito bem matemática. O curso todo é só distinção e quem tira distinções no templo da Ciência é porque é coisa como diabo!

De fato, Boaventura tinha um curso brilhantemente distinto. Seus atos anuais congregavam uma larga assistência.

-Hoje, era do «zunzum» dos corredores, Boaventura faz exame, você não vai assistir?

A princípio, isso acanhou-o; com a continuação, porém, ele se foi habituando e, como tivesse grandes sonhos de mando, aproveitou para ensaiar efeitos oratórios. Preparava-se para as truculentas sessões das assembléias políticas.

Desde muito que abraçara o positivismo científico e filosófico, mas, há alguns tempos atrás, convertera-se à religião da humanidade. Baniu dos seus hábitos o café, o fumo e o álcool. para o qual, justiça lhe seja feita, fora sempre remisso.

Transformara-se em quase positivista ortodoxo e a toda a gente se lastimava de ainda não se poder considerar como tal. Com estar já demasiadamente avançado na «doutrina regenadora», Boaventura, entretanto, não lhe sentia pesar na consciência a sua posição de cientista oficial e, sobretudo, a de militar.

Achara (ele ou outro iluminado) pequenos acomodamentos com as «suratas» da Politique; e o apóstolo da extinção de todas as academias -os entraves à total regeneração- continuou a fazer placidamente os seus atos escolares. No exame de Mecânica, já completamente assimilado ao «regímen definitivo», como incidentemente um examinador se referisse ao teorema de Sturm, raivoso e solene, Boaventura contestou desabridamente

-O teorema é de Fourier, porque, na série dos grandes servidores da humanidade, Fourier fica muito mais alto que Sturm, que foi um puro algebrista.

O velho docente olhou-o e sorriu com bonomia; e, aprovado grau dez, distinção, pela escola correu, para sua maior glória, que «espichara» o lente F.

Vogava assim o distinto Iperoig da Silva envolvido na névoa acariciadora que dá a fama; e ao seu orgulho de oficial (era alferes-aluno), de bom grado juntou o de cientista e filósofo. Era de ver como ele se referia aos senadores, ministros, à gente em evidência enfim. Uns literatos! Metafísicos! Ignorantes!

Literato era na sua boca uma extraordinária infâmia. O que de injurioso havia nesse vocábulo empregado por ele, sobrevalia aos mais soezes que um carroceiro da Saúde empregasse. Não é que Boaventura detestasse a literatura; muito ao contrário, prezava-a, distinguindo somente a alta e «a que anda por aí». E tanto Boaventura prezava a alta literatura é que, às escondidas, sacrificava as musas. Lia o Guerra Junqueiro e depois pingava em quatorze versos a sua profundeza sabichona. A lei dos três estados merecera-lhe nove sonetos; e a Revolução Francesa, comemorada, data à data, tipo a tipo, uma profusão deles.

Os episódios da história pátria estimulavam a sua musa. Tiradentes provocava-lhe um poema.

Certa vez, fundaram na escola uma revista e Boaventura, convidado a colaborar, aparecera pelas páginas dela, assinando um soneto «Augusto Comte». A obra foi lida e relida, e um verso, creio que o último -mostrando aos homens o dever do justo- foi citado, gabado, e viveu durante muito tempo na memória dos seus condiscípulos. Como lhe parecesse que a sua fama exigia um trabalho de ciência ou filosofia, no quinto número, o Boaventura publicou «A classificação das ciências».

Estes dois trabalhos muito ajudaram a cimentar a alta autoridade científica de que ele veio a gozar.

Boaventura Iperoig da Silva foi sempre, como dessa vez, coerente com a sua teoria, prezou a alta literatura:

-Dante, Petrarca, Shakespeare... esses, sim! como ele dizia.

Com todos esses predicados, Boaventura tinha uma conversa desagradável. O seu espírito rígido falava por dogmas; e não possuía a flexibilidade precisa para borboletear pelos pequenos assuntos.

Em conversa sobre coisas altas, se era fortemente contraditado, fraqueava; e pouco e pouco se acastelava em breves axiomas invariavelmente os mesmos. Seu espírito não amava à análise. Discutindo, do mais insignificante argumento, retrucava com uma suntuosa generalização sabida e decorada.

Às vezes, no palestrar, se enfurecia; e por seus olhos perpassavam os mesmos relâmpagos que fuzilaram nos dos chefes árabes, ao tempo da expansão islâmica. Utopista, ele tinha um grande descontentamento da realidade, a se manifestar num constante azedume, agressivo e insolente para tudo e para todos. Tudo o irritava. O que, a qualquer de nos, pareceria coisa de nonada, aos seus olhos ganhava a proporção de um sacrilégio. Bastava a fórmula de um decreto, o comparecimento de um governante a uma festa anódina, uma condecoração conferida ou recebida.

Azedo, quase sempre, e hostil, seu gênio lhe valera múltiplas desavenças entre os colegas; e, se não fora o seu prestígio de inteligente e estudioso, teria tido péssimas conseqüências. Sua irritabilidade era uma fúria a lhe perseguir, turvando-lhe os melhores momentos da vida; entretanto, na casa do Alves da Silva, se transformava um tanto. Palestrando polidamente, quase que se não adivinhava nele o feroz dilatador da fé positivista na Praia Vermelha.

A palestra, que, na varanda, até ali se mantivera fria, começava a se animar. O velho português, que, com seus hábitos de viúvo vagabundo, bisbilhotava a vida de toda a gente, preparava-se para contar um caso escabroso, acontecido há dias. A criada veio interromper-lhes oferecendo vermute.

O velho Monteiro já havia citado os nomes e a parentela das pessoas em jogo, quando de novo foi interrompido por um bando de moças, entre as quais ia Clara. Ele lançou um olhar furtivo sobre o grupo e, quando afastado, recomeçou. Relatou-o em poucas palavras.

Uma moça e um rapaz, casados de pouco, se separaram, havia dias, com grande escândalo, trazendo a moça uma moléstia horripilante.

Entre risotas, comentou-se compadecidamente o caso. Boaventura fechou o rosto e nada disse. Fez exceção.

O Alves da Silva aventou um remédio pra evitar no futuro casos idênticos.

-O pai, dizia ele, ao se lhe pedir uma filha em casamento, deve pesquisar não só a limpeza da família de que procede o noivo, como também lhe incumbe descobrir os costumes íntimos do rapaz, os seus defeitos, etc. Só assim, só assim, repetiu, se evitariam desgraças dessa natureza.

A opinião do Alves da Silva foi ouvida com acatamento, mas o doutor Alfredo aventurou-se a contradita-la:

-Qual, Seu Silva. Isso era inútil, perfeitamente inútil.

-Como inútil, doutor? Então, se...

-Inútil, retrucou o bacharel. Inútil. A um noivo esperto seria fácil embair o pai; mesmo porque, ao pai, a menos que não fosse um profissional, faltaria a competência científica, legal, por assim dizer. Não acha, doutor Gomensoro?

-Perfeitamente. Sou da sua opinião.

-Então, não há remédio? perguntou o dono da casa.

-Há. Como não há! Na legislação sobre os casamentos, pode-se estatuir que eles não se realizem, senão depois dos noivos apresentarem certidões comprobativas de que não estão afetados de moléstias transmissíveis.

O doutor Alfredo falava devagar, pesando bem as palavras, a sua justeza e a propriedade delas. Parecia estar redigindo um artigo de lei; e, quando acabou de expor, disse com firmeza, sacudindo o cigarro na mão esquerda:

-É o único remédio plausível, no meu fraco entender.

Preguiçosamente o doutor Gomensoro apoiava-o com freqüentes: de acordo, de acordo; e logo que o legista acabou de falar, disse com indolência:

-Eu já tinha pensado nisso.

Recostou-se na cadeira em que estava sentado puxando uma forte fumaça.

O Alferes Boaventura julgava a medida uma exorbitância do Estado, porquanto, afirmou ele, na época de transição em que estávamos, a sindicância, a haver uma, competia às famílias; e quando chegássemos ao regímen normal, em plena sociocracia -então sim!- a situação regular-se-ia perfeitamente com os «casamentos castos».

O auditório ficou surpreso e se entreolhou, prendendo uma gargalhada. Quiseram meter à bulha a «história» dos casamentos castos, mas lembraram-se logo da fúria com que o alferes recebera a troça, feita, há tempos atrás, numa das suas idéias.

Afinal o doutor Gomensoro indagou:

-Admite, então, o senhor que, enquanto não vem essa época normal, o governo deve consentir nesse contínuo apodrecimento da raça?

-Admito, pois não.

-O senhor admite isso? inquiriu admirado o velho empreiteiro.

-O papel do Estado moderno deve unicamente consistir na manutenção da ordem interna, não intervindo na esfera espiritual de forma alguma, quer seja religiosa, científica, ou mesmo artística, disse Boaventura tal qual como se recitasse um trecho de catecismo.

-Dir-me-á o senhor como ele deve manter essa ordem, se?... ia interrogando o Alves da Silva.

-Muito simplesmente, cortou-lhe a palavra o Boaventura. Mantendo plenamente a propriedade e...

-Se assim é, observou o bacharel, o tenente chega à conclusão que a escravatura deve ser mantida. Mantendo plenamente a propriedade, repisou lentamente o doutor Alfredinho, como querendo fazer melhor compreender o seu raciocínio.

-É um sofisma. A escravatura é nos tempos modernos imoral e criminosa. Restabelecida na América, foi um retrocesso na História. A influência do catolicismo, benéfica quando a fez desaparecer da Europa, foi criminosa apoiando-a na América. Portanto, não há fundamento na sua objetação.

-Como não, tenente? Bem examinando, nas suas origens, nos seus primórdios, qualquer espécie de propriedade é imoral e criminosa, retrucou com segurança o bacharel novato.

-Ora! Ora! meu caro, exclamou o Boaventura. Isso é divagação metafísica muito estimada dos pedantocratas acadêmicos. Não forme opinião por eles. A secura de suas almas, os baixos pendores que os movem, tudo isso não permite que eles tenham um verdadeiro pensamento social, humano e altruístico, pois que, como já resumiu numa admirável máxima um moralista moderno, «os grandes pensamentos vêm do coração».

Estas palavras foram ditas com calor, cheias. A fisionomia do alferes, ao dizer as últimas, tinha uma estranha expressão de beatitude.

Os vermutes, nos seus copos, sobre uma cadeira, pacientemente esperavam lábios que os bebessem. O doutor Gomensoro foi o primeiro a servir-se, os outros imitaram-no, exceto o Boaventura, que não bebia

O sobrinho do Alves da Silva, que até ali nada dissera, animou-se a entrar na conversa, perguntando:

-Você é abolicionista, Boaventura?

-Não sou abolicionista nem escravocrata, como não sou nem a favor nem contra os eclipses. Os acontecimentos sociais regidos como quaisquer outros por leis invariáveis, desvendados pelo maior dos filósofos de sempre, realizam-se independentemente da nossa vontade. É em vão querer ou não querer, respondeu o alferes.

-Eu, cá para mim, sempre quero alguma coisa, atreveu-se a motejar o antigo amanuense. Não quero a abolição, pois trará desastradas conseqüências econômicas. Deixei os liberais...

-Não se preocupe com liberais e conservadores, interrompeu com fogo o alferes. Quer uns, quer os outros, são incapazes de nos dirigir. Ignorando por completo as leis que regem a atividade do homem no planeta, são perfeitamente inábeis para presidir a passagem do regime metafísico para o positivo, porquanto, segundo afirma uma lei de filosofia primeira, todo intermediário deve se subordinar aos extremos, cuja ligação ele opera.

Boaventura falara extraordinariamente animado. Excepcionalmente se conduzira polidamente na conversa. Mais ou menos, os convidados do Alves da Silva conheciam o gênio do alferes; e, sabendo a consideração em que o tinha o dono da casa, evitavam agastá-lo; e muito a medo animavam-se a discutir-lhe as idéias. Ele tomava a fraqueza da réplica como uma prova de inferioridade mental dos outros, chegando a adivinhar em alguns uma ponta de conversão à sua magnífica doutrina. O alferes tinha também a mania da catequese, e não é de admirar que a tivesse, quando sem número eram os incrédulos.

Já um tanto amável, o Boaventura preparava-se para continuar, quando a presença de uma pessoa no portão cortou-lhe as primeiras palavras:

-Que é comadre? disse o Alves da Silva, levantando-se.

-O Manuel tem passado mal; arqueja; pergunta por Clara. E eu vinha pedir licença ao senhor pra levá-la.

O antigo amanuense coçou a cabeça e por fim, com alguma rudeza, disse:

-Licença! Pois é sua filha, leve-a.

-O compadre há de me desculpar, mas o Manuel pede... chora, fez dona Florência com humildade.

-Deixe estar, minha senhora, interrompeu o doutor Gomensoro, amanhã irei vê-lo. Há de ser uma forma de impaludismo e mais nada.

Clara saiu em meio de uma tristeza geral. Levava metade da festa, e com ela o piano também parecia ir.

Anunciado o jantar, o Carlos Alves da Silva pôs-se a carregar cadeiras para a sala de jantar; e, como uma se atravancasse no corredor e resistisse os seus arrancos, o despeito contido rompeu-lhe:

-É isso! Essa gentinha pilha-se assim, assim, julga-se gente... Tem uns dengues, uns derriços...

A mesa esperava-o. Contados antes cautelosamente, os convivas eram quatorze. A sopa fumegava em frente ao anfitrião, na cabeceira. O porco, o assado, o peru, atravancavam a mesa com o arroz de forno, a salada etc., etc.

Discutiu-se abolição; e a república também. Boaventura achava a república fatal, porquanto, dizia ele, no Brasil não havia tradições, nem nobreza, e por isso...

-Não há nobreza! contestou o Alves da Silva. Há, sim senhor. Está aqui um que é. Sou nobre; por parte de minha mãe, descendo dos marqueses de La Rochart, fidalgos franceses. Há, sim senhor! Como não?

O militar evitou a questão e, pela sobremesa, em seguida ao bacharel Alfredo, que brindara ao dono da casa, saudou o belo sexo -a providência moral do homem- na frase do grande filósofo Augusto Comte.

Pouco depois de findo o jantar, o médico caridoso despediu-se, saindo em companhia da mulher, as filhas e a ama. A viagem foi feita no mais absoluto silêncio. A negrinha, a cochilar, levava ao colo o pequeno Zezé a dormir. O Oscar, o mais velho, de dez anos, sentado, dormia recostado nos joelhos da mamã. O doutor vinha absorto, cogitante. Olhava fixamente uma fresta do teto. Sonhava... Cismava. De onde em onde, aspirava fortemente o cigarro; e, entre duas fumaças, sua fisionomia vincava-se, contraía-se rudemente. Sua mulher olhava-o de esguelha, com a fisionomia aberta de satisfação. Seguia dobra a dobra as contorsões do seu rosto; parecia querer entrar na sua cogitação, no alto pensamento que o devorava. Logo, ao chegar ao lar, mesmo antes de despir-se, o doutor correu à biblioteca, tirou um volume, consultou-o nervosamente, em seguida outros, e depois veio para sua mulher, exclamando:

-Filha! Que desgraça, meu Deus! Que desgraça! Tantos anos perdidos em vão!

Soluçando, enchia o quarto com as suas longas passadas. Passado o espanto, sua mulher, enternecida, perguntou com doçura:

-Que é, Chico? Que é que você tem? Diga, que é...

Gomensoro nada dizia. Mastigava monossílabos. Deixou-se ficar numa cadeira e, com as mãos na cabeça, curvara-se sobre uma pequena mesa. Sua mulher insistia; afinal, arrancou a causa do seu incômodo:

-É a língua, filha! É a língua!

-Mas que língua é essa?

-A língua em que hei de escrever a minha obra.

-Ué! Pois não é português?

-Em português, sim; eu não sei português...

-Como? Você não fala, já não escreveu alguma coisa, como é, então?

-Falo, escrevo, Genica. Mas a língua que falo não é português, não é nada. É um vazadouro de imundícies, cheio de galicismos, anglicanismos, africanismos, indianismos, cacófatons, cacotenias, erros de regência, o diabo, filha. A obra imperecível deve ser escrita no português de Barros, de Vieira. Como há de ser? Que trabalho! disse o médico com angústia.

Sua mulher, com quinze anos de casamento, já estava habituada àquelas deliqüescências. Elas aumentavam-lhe o orgulho que tinha do marido. Casada pouco depois de sair do colégio das irmãs, Genica só conhecera dois sábios: o capelão do colégio, um padre francês, sabido nos manuais do bacharelato; e seu marido. Pelos seus sete anos, sua mãe fugira de casa e com um caixeiro janota do pai, um probo negociante português da Rua da Quitanda. Seu pai, que se casara por amor, recebeu a injúria com uma sobranceria superior. Meteu a filha no colégio da Imaculada. Fugiu do mundo. Fez-se provedor, andador, benfeitor de várias ordens terceiras, e, quando sua mulher lhe escreveu dizendo-se na miséria, enviou-lhe uma pensão mensal até que ela se veio a findar de tuberculose no Porto. Aos domingos, invariavelmente, ele ia buscar a filha para passeios. Andavam pelos arrabaldes silenciosos, cada um entregue aos seus pensamentos; jantavam juntos em hotel, e pela tardinha entregava a menina à irmã superiora. Durante os oito dias, Genica vivia no colégio a decorar frases do manual de conversação francesa e a fazer trabalhos vistosos de bordado e desenho. Aos bocados, o temperamento da menina se firmou frio, cauteloso, mas doce e resignado. E, quando ao sair do colégio, seu pai a aproximou do Francisco Gomensoro, ainda quintanista, ela ingenuamente se tomou de amores pelo rapaz com quem veio o casar. Dentro de um ano, após o consórcio, seu pai morrera. O velho negociante conhecera o pai de Gomensoro, de quem fora amigo. Era ele um espanhol que, tendo fugido de Espanha por ocasião de um pronunciamiento abortado, refugiara-se em Portugal. Casado aí, veio para o Rio como guarda-livros de uma casa de objetos cirúrgicos. As lojas ficavam perto e os dois, à tarde, com mais outro companheiro, jogavam o solo pachorrentamente. Em poucos anos, o revolucionário espanhol tornara-se proprietário da loja, e o filho que aqui nascera-lhe, tratando diariamente com médicos e estudantes, tomou-se de gosto pela arte deles.

O velho Gomensoro morreu logo após o menino encetar os preparatórios; e a viúva ficou com a casa, dirigindo a educação do órfão, até o terceiro ano, quando morreu.

O probo negociante português, pai de Eugênia, liquidara a casa na melhor forma, tutelou o jovem Francisco com munificência; e, ao morrer, sentindo-os casados e felizes, foi leve e sorridente apresentar-se a Deus.

Fizera uma felicidade e a regara com algumas dezenas de contos.

Terminadas as formalidades do luto, o casal partiu para o velho mundo. O doutor freqüentou clínicas, notabilidades, hospitais, e a dona Eugênia viu as cidades pelas portinholas da carruagem e das janelas dos hotéis em que se hospedara. Em vão seu marido chamava-lhe a atenção para as maravilhas. Ela não queria. Tinha medo, acanhava-se. Tanta gente, todos a olhavam; e impertinentemente pediu a volta. Estabelecendo-se de vez na cidade natal, Gomensoro começou a aprofundar a teoria concebida desde os tempos de estudante: o paludismo é o fundo de todas as moléstias nos países quentes. A sua biblioteca de rapaz decuplicou. Lia obras, tratados, memórias, revistas, em três línguas. Nervosamente tomava notas em papelinhos e, como se fosse esquecendo das notas, por fim deu para tomar nota das notas. Lia, lia, doidamente, desordenadamente. Fugia sempre de escrever, porém há oito dias começara a passar para o papel o resultado de suas meditações. E foi por isso que a questão da língua surgira-lhe.

Sua mulher tinha por ele um respeito religioso. Era o sábio, o homem que conhecia um outro mundo que rege este. Era o doutor, o bonzo-homem, formado, respeitável e grandioso; e, ao lhe vir um desespero daqueles, ela o animava, dizia-lhe pequenas lisonjas sinceras. O Chico sorria, acalmava-se e beijava-a muito. No dia seguinte, continuava: lia, lia, desordenadamente e doidadamente.

O patrimônio deixado pelo português filantrópico já estava gasto a meio. Gomensoro não se incomodava com a direção dos seus bens. Sua idéia cegava-o e a tola educação que sua esposa recebera não lhe permitia corrigir as desmandadas despesas do médico. Uma vez, ele lera, numa revista francesa, a notícia de um livro: As Formas Palustres nas Índias Neerlandesas, do doutor Van Bree. Imediatamente mandou buscar um exemplar; e, como não compreendesse o holandês, correu a cidade, foi ao consulado, ao cais; e arranjou um marinheiro que o traduzisse, mediante oito libras por capítulo, e para meio português. Recebendo o estipulado pelo primeiro capítulo, o marinheiro saiu. Logo adiante tomou uma grande bebedeira; esfaqueou um polícia e foi recolhido à detenção.

Gomensoro empreitou advogados; pagou-lhes regiamente, e o marítimo morreu de beribéri antes de entrar em julgamento.

O paludismo tudo exigia.

Fora dessa idéia, pouco lhe preocupava o resto da atividade mental. Não lia filosofias, nem teorias sociais e muito menos literaturas; e, se por acaso era chamado a falar sobre esses assuntos, a sua lucidez era segura, perfeita, própria, com algo de paradoxal, o que o admirava por supor a de toda a gente.

Não conhecendo as teorias a respeito, só via os fatos, dos quais tirava conclusões pessoais e imprevistas.

Como de costume ao vê-lo em diluimento, sua esposa tratou de o consolar. Animando-o, interrogou-o:

-Chico, essa língua é diferente da de hoje?

-Muito, querida. Muito... Nem se compara.

-Então é como se fosse outra, continuou a dona Eugênia.

-É... É... É como se fosse outra, acabou, afinal, o Gomensoro por dizer.

-Então você não tem mais que comprar uma gramática e estudá-la, concluiu triunfantemente a esposa do médico.

-Mas é verdade, Gênica, fez admirado o Chico Gomensoro. Mas é verdade! Amanhã seguirei o teu conselho.

E num afluxo de ternura, elogiou-lhe o talento, beijando-a nos olhos, no rosto e na boca. Sossegou, dormindo quieto.

No dia seguinte, logo pela manhã, viu alguns doentes, e depois do almoço desceu à cidade, donde depois iria ver o contínuo Manuel em Catumbi. O médico, perseguido pela idéia tenaz de uma língua lídima, andou pelas ruas de comércio, buscando nas livrarias a famosa gramática do século XVI. Num sebo da Rua de São José, encontrou, sossegadamente esquecido, um velho exemplar da Enssynança de bem cavalgar, d'El Rei dom Duarte e adquiriu-o, para servir de leitura da nova língua que ia estudar, embora o livro fosse do século XV.

Eram três e um quarto quando procurou o ponto dos bondes da companhia de São Cristóvão. Aí veio a encontrar o doutor Alfredinho, filho do visconde da Meia Ponte, senador por Goiás.

-Oh, doutor! Por aqui?

-É verdade! Vou ver um doente. E o doutor, onde vai?

-Vou ao Rio Comprido, procurar o conselheiro Rosemiro. Esse negócio da legação tem me dado um trabalho, que o senhor não imagina... Que bonde toma?

-Eu? Itapiru. Porque?

-Em que rua vai? perguntou o bacharel, sem responder a pergunta.

-Na Travessa do Laje.

-Podemos fazer uma coisa, doutor: vamos juntos no bonde na Estrela, que lhe deixa próximo, propôs o advogado.

O médico relutou um pouco; e, concordando afinal, os dois embarcaram, quando o veículo se punha em movimento para as ruas estreitas da velha cidade.

Logo assentados, relembraram o dia anterior, a palestra, o jantar, as pessoas; e as «coisas» do Boaventura vieram à baila.

-Doutor, perguntou o médico ao advogado, esse Comte era militar ou monge?

-Nem uma nem outra coisa. Porque?

-A sua doutrina é ferrenha, cheia de regrinhas, de disciplinas estreitas, medidas. Parece uma ordenança militar ou uma regra monacal.

-Não há dúvida; mas até, ao contrário, o Comte prega a transformação dos exércitos em milícias e quer a paz universal, disse o bacharel, após curta pausa.

-Admira então que, refletiu o Gomensoro, admira que os nossos militares, de uns tempos para cá, convertam-se e propaguem-na.

-É simples. Uma questão de vaidade profissional. A matemática é a pedra angular do sistema, e os militares estudam um pouco dessa ciência, dai... Demais, o prestígio do Benjamim concorre.

-Oh! o Benjamim, o Benjamim, disse o médico, com um risinho de escárnio.

-É um geômetra, doutor.

-Geômetra, é muito, ou antes é pouco. Benjamim, para geômetra, faltam-lhe obras, documentos quaisquer de sua sabedoria. É antes.....

-E «A Teoria das Quantidades Negativas»? indagou o filho do visconde.

-Um artigo de estudante «furão», e mais nada. Para mim, como ia lhe dizendo, fez o Gomensoro, Benjamim é um visionário, um utopista perigoso. Em resumo: bom homem e amigo do Pedro II. E riu devagar, concertando os óculos, ao tempo que o bonde parava na cauda de outros enfileirados na rua.

Os poucos passageiros levantaram-se:

-Que há? Que foi? Não anda? indagaram.

-Nada, responderam o cocheiro e o condutor, já pachorrentamente sentados no meio-fio da calçada. Um caminhão que está descarregando uns fardos numa loja, e não deixa o carro da Tijuca passar.

O bacharel pôs-se impaciente. Erguia-se, olhava raivoso, cofiava os pequenos bigodes e, por fim, disse para o médico com lancinante desprezo:

-Isso não é terra, doutor. É uma «droga»...

-Porque, porque houve uma pequena interrupção no tráfego dos bondes?

-Não. É tudo! É tudo! Uma cidade feia, suja, esburacada, sem estética, sem parques. Um relaxamento... maldita colônia...

O médico não tinha o que responder e sentia-se constrangido disso. Calou-se. O bacharel, adivinhando-o magoado, virou-se para o Gomensoro e lhe disse confidencialmente:

-Sabe o que nos matou?

-Não, respondeu com simplicidade o paciente esculápio.

-Foi o negro.

O médico pareceu não se admirar muito do segredo e com alguma ironia retrucou:

-Pois olhe, doutor. Eu julgava o contrário. Eles fizeram o Brasil. Lavraram as minas; plantaram a cana; guerrearam; e hoje colhem o café e cavam estradas. Chegava a pensar que fizeram a nossa unidade. Vejam como são as coisas, doutor Alfredo?

-De fato fizeram alguma coisa disso, mas são inferiores, incapazes pra civilização. Não são árias, doutor Gomensoro, não são árias.

-Que diabo é isso?

-Oh! doutor. Não conhece a teoria dos árias? interrogou espantado o moço advogado.

-Árias, árias... Ah! Espere... Recordo-me... Quando estive na Europa, alguém me falou nisso. É, se não me engano, uma hipótese alemã muito engraçada, que expli...

-Hipótese, não, doutor. Uma conquista da ciência. A Filologia, a Lingüística, a Arqueologia, a Pré-História comprovam-na, e os recentes estudos de religiões comparadas afirmam-na soberanamente. Não é uma hipótese, absolutamente.

-Não importa, retrucou o médico. Seja uma verdade... vá... mesmo porque o que é hipótese na Europa é certeza aquém da linha equinocial. Diga lá a teoria, doutor Alfredo.

O moço bacharel atirou fora o cigarro que fumava, enquanto o médico dava duas olhadelas a um passageiro próximo. Depois, expôs a teoria.

-Em uma época anterior a todo o testemunho histórico, e que se esconde na noite dos tempos, uma raça cresceu no plateau de Pamir, na antiga Bactriana, Ásia Central. Em migrações sucessivas e em instantes diversos, irradiou pela Europa e foi ao norte da Índia. Já no plateau originário, tinha uma língua admirável, onde se vinham refletir suas afeições meigas, suas admirações ingênuas e arroubos para um mundo superior. Eram pastores, crê-se que também agricultores. Conheciam o ouro, a prata, o bronze, exceto o ferro, que não conheciam. Como se fossem raios do sol -um dos focos da elipse de translação da terra- os árias, mestres, senhores -emitidos do plateau de Bactriana- seguiram vetores e pararam aqui, ali, pela Europa, pela Ásia, ao norte, ao noroeste, a oeste e a sul, com os nomes de lituanos, eslavos, germanos, celtas, gregos, latinos, persas e hindus, que quase fecharam a elipse alongada. O que caracteriza o ária é a capacidade para a civilização. Rapidamente evoluíram e vão ficando senhores do mundo. É o que veio revelar as afinidades do latim com o grego, do grego com o alemão, do alemão com o persa, e deste com o sânscrito... Eis, doutor, esboçada a teoria dos árias, a teoria da raça civilizadora.

-Bonito! exclamou sem querer o calmo doutor Gomensoro.

-Do grego-latino, continuou o filho do titular, do iraniano e do ramo hindu surgiram civilizações poderosas, o que...

-E dos lituanos, eslavos, germanos, celtas, não? disse de repente o médico.

-Estes povos mantiveram um relativo estado de cultura até que foram absorvidos na civilização romana, objetou o filho do senador por Goiás.

-Estado de cultura, fuzilou Gomensoro, que de forma alguma é uma civilização...

-Sim... concordo, mas é cultura...

-De modo que dos árias, a raça da civilização, só os gregos criaram uma civilização. Os que ficaram no mágico plateau nada fizeram e os da Índia, imobilizados nas castas, estão se deixando roubar pelos primos da Europa?

-Com os da Índia aconteceu isso, devido às condições do meio e a presença de raças inferiores, retrucou o doutor Alfredo.

O médico calou-se, pensou, olhou o passageiro que o interessava e levantou a objeção:

-Com as condições favoráveis da França nada fizeram, entretanto os da Índia...

-Foram as raças inferiores, objetou apressado o doutor Alfredo.

-Raças inferiores, respondeu, depois de uma pausa, o médico. Como essas raças se influiriam maléficamente? Por ação de presença, só? Não é possível? Na humanidade, as reações se fazem por via sexual, e esta, terminantemente, não operou nos Ganges, pois a religião proibia, e os costumes também, que os casamentos e até a mais simples união sexual se fizesse entre indivíduos de castas, e, sobretudo, raças diferentes.

O bacharel não sentia a argumentação valiosa. Pareciam-lhe argumentos de um simplório e, entretanto, não sabia combatê-los. Para fechar a conversa disse:

-O que lhe acabo de dizer é resultado de pacientes trabalhos. Max Muller, Pictet, Juin e outros sábios criaram essa teoria, desenvolveram-na e demonstraram-na. Demais, doutor, ligou ele rapidamente, se todos os outros ramos nada tivessem feito, bastava Grécia e Roma.

-Concordo, disse frouxamente o médico, e concluo que a civilização não é intrínseca na raça, não depende... Ah! Espere... E sofregamente correu o banco vazio até a ponta e daí falou ao passageiro que ia na frente:

-Desculpe-me..., desculpe-me... Sou médico e o senhor vai perdoar-me... Nunca teve maleita, sezões, febres?

O desconhecido voltou-se com ar estúpido e obedientemente respondeu:

-Nunca.

-Tem estado doente?

-Algumas vezes. Tive sarampão, bexigas doidas e que me lembre nada mais.

-Sofre de prisão de ventre?

-Não, senhor.

-É curioso, insistiu o médico. E dores de cabeça tem tido?

-Às vezes, tenho, retrucou o desconhecido um tanto impacientado.

-Sempre?

-Não, doutor. Uma vez ou outra.

-E seu pai?

-Meu pai, fez aborrecido o interrogado, meu pai teve febres, sezões, maleitas, prisões de ventre.

-Ah! exclamou o médico satisfeito. Tome quinino, amigo; tome quinino.

E, depois de pedir muitas desculpas, voltou ao seu lugar e disse baixo ao bacharel:

-É um caso de paludismo hereditário, perfeito, tachado. Aquelas «orelhas de abano» não negam. O doutor Polyenesky, de Varsóvia, verificou seiscentos e vinte e sete casos idênticos na Bessarábia, e eu...

O bonde corria célere pelo Rio Comprido, e o Alfredinho, que tinha consultado o relógio, verificou que chegava à hora de jantar em casa do conselheiro.

-Doutor Gomensoro, onde vai?

-Eu já não lhe disse? Vou ver o compadre do Carlos.

-Aquele contínuo? Agora me lembro... Sua mulher esteve ontem lá. Eu conheci-o. Era um bom homem. Obediente, honesto, trabalhador, bom chefe de família... Quando meu pai foi ministro, ia sempre lá em casa levar papéis. Uma coisa. Vou com o senhor, doutor. Há inconveniente?

-Nenhum.

E, logo ao chegar no lugar propício, os dois saltaram e se embrenharam pelo labirinto de ruas ainda mal povoadas.

- III -

A medicação do doutor Gomensoro não fora milagrosa.

O doente pouco melhorou e, levantando-se dias depois, recaiu em seguida mais gravemente. De recaída em recaída, ora melhor, ora pior, o ex-voluntário morreu numa quarta-feira de fevereiro, fulminado por moléstia do coração.

Precavido, ele se fizera inscrever em algumas sociedades de socorro mútuo, as quais, dando pequenas quantias para o enterramento, pouparam à família dificuldades com esse piedoso ato. A viúva economizou alguma coisa dos auxílios; e os cuidados com a vida futura atenuaram em alguma coisa a dor da perda que sofrera.

Durante os primeiros tempos, tendo delineado um plano a seguir, tratava de cumpri-lo. Para ela, queria roupa a lavar, e a filha iria trabalhar em um atelier de costuras, onde a sua virtude correria menor perigo. A preta velha encarregar-se-ia da casa; e assim levariam a vida até quando Deus quisesse.

Diariamente saía e dava os passes que julgava precisos. Pedia a um, pedia a outro e, pela tardinha, voltava à casa, naquela travessa esquecida, às vezes desanimada, em outras esperançada de encontrar no dia seguinte o trabalho desejado.

No fim de alguns dias, arranjou alguma roupa, mas era a de uma família residente no Catete, e, lavada que ela fosse, as despesas de transporte absorveriam o lucro possível. Não acertou. O plano lhe pareceu mau, pensou outro.

Alugar-se-ia como criada; colocaria a filha como «ama» em alguma casa. Mas a babá? Que havia de fazer dela? Empregá-la? Estava tão velha, enferma, reumática, num estado de saúde que não permitia prestar trabalho fixo, certo... Além do que, Clara inquietá-la-ia, se o executasse. Moça ainda, com finura de mãe, adivinhava os perigos que ia correr. Fora de suas vistas estaria exposta a ser desviada do bom caminho. Conhecera tantas que como «ama»... Coitada da filha! Tão moça! Tão boa!

E, toda a vez que ela evocava tais coisas, redobrava de energia em seguir o seu primitivo plano. Ao sair, olhava Clara, púbere ainda, de seios túmidos meio formados, contemplava-a em instantes enchendo os olhos d'água, e, com a vista empanada, jogando o xale aos ombros, antes que a filha lhe percebesse a comoção, punha-se em campo com ânimo. Deus Nosso Senhor havia de ajudá-la! Casaria a filha, estava certa, pobre naturalmente, humilde também, mas seria honesta, honrada. Entretanto, os seus esforços eram vãos; os dezessete anos de casada, sem ter que prover a subsistência, não lhe tinham dado a prática, o faro de viver. Os conhecimentos eram poucos e desvaliosos; e, mesmo da família de que fora cria, nenhum restava capaz. Semeados pelo Brasil, aqui, acolá, arrastavam uma vida desgraçada de infortunados. As relações do marido esquivavam-se delicadamente; e, já sem crédito qualquer, na vida das três mulheres havia fome. As coisas de algum valor foram vendidas e a casinha estava quase nua de trastes. Atrasada nos aluguéis, eram diárias as ameaças do proprietário ou seu preposto. Desenvolvia um tato enorme para contê-los. Nem sempre era feliz; suas palavras por vezes erravam o alvo e, longe de apaziguá-los, enfurecia-os mais. Como certa vez ela lembrasse a pontualidade do falecido Manuel, o cobrador se enchera de raiva e raivoso dissera que, assim fazendo, não fizera nenhum favor algum; era obrigação dele unicamente.

Dona Florência, em desespero de causa, resolveu procurar o Alves da Silva. Uma manhã, na estação inicial de Pedro II, pôs-se a aguardá-lo, cheia de angústia. Tinha oito dias para mudança, assim a intimava o procurador, a menos que não quisesse sofrer despejo judicial: havia quase três meses de atraso, e não estava pra isso... nada tinha com dificuldades... não era pai de ninguém, dissera ferozmente, numa cena violenta, que a resignada dona Florência ouvira toda com pejo e ódio.

A viúva saiu cedo. Chegada à estação, encostou-se bem perto do lugar de desembarque e, entre os passageiros que chegavam, com o olhar, catava sofregamente o compadre. O calor era sufocante. O dia de mormaço, baço, tristonho, enchia as almas de opressão. Todos andavam cabisbaixos; não havia um riso. Esperando até às onze horas, não via chegar o Alves da Silva, contudo ele não lhe teria podido escapar. Devorava angústias. Figurava resoluções. Talvez fosse melhor dar um pulo até à casa do compadre. Ia incomodá-lo. Não havia de gostar; e tinha razão - que tinham os mais com sua sina? Nada. Devia agüentar-se só; não tinha nada que importunar os outros...

Veio até à porta do edifício. O jardim em frente tinha as árvores abatidas à temperatura do dia; uma névoa quente crestava tudo. Era como um bafio de forja. O rolar dos veículos levantava muito pó; e a poeira ficava pairando à meia altura, sobrecarregando ainda mais o ambiente já por si pesado.

Alguém chegou e lhe falou:

-Dona Florência, como vai?

-Oh! É o senhor, seu doutor? respondeu ao dar com a pessoa.

-Eu já lhe tinha visto, mas não a conheci logo. Agora, ao se virar, é que lhe pude ver bem as feições. Soube, acrescentou, soube que seu marido morreu... Meus pêsames. De que foi?

-Muito obrigada. Do coração. O Manuel não se tratava; era teimoso..., foi uma desgraça, disse a viúva com um suspiro.

-Coitado! Era moço? perguntou o interlocutor.

-Quarenta e cinco anos, seu tenente.

-Moço... Vai tomar o trem ou vem de cima? perguntou o Alferes Boaventura.

-Não, senhor. Esperava o compadre, mas...

-O senhor Alves da Silva?

-Sim, senhor.

-Está doente, afirmou o militar.

-De que, seu doutor?

-Nada, uma coisa ligeira. Uma constipação, um pouco de febre. Não há gravidade.

Boaventura tinha se chegado à humilde mulher muito naturalmente. Ao seu temperamento fundamental, acessível e compassivo, sem preconceitos -a não ser o de militar e sábio- as doutrinas utópicas que professava, e com as quais estava fabricando de si mesmo uma imagem diversa, se soldavam para que fosse mais chão e mais ameno de trato com os pobres. Com estes, o seu azedume habitual se apagava e falava-lhes com doçura mesclada de piedade.

Não temia que o vissem na rua a discretear com eles, pois a ninguém fazia mistério de suas idéias igualitárias e da sua simpatia pelo sofrimento do povo. Sempre que tinha dois minutos de reflexão, procedia de acordo com elas.

Detestava a riqueza, a burguesia, o fausto; queria a paz universal, mas tinha as pequeninas idéias dos seus companheiros de profissão. O Exército era uma coisa sagrada, intangível, a arca santa da pátria, na sua frase. As concessões especiais de foro, de prisão, de instrução separada, para filhos e netos de militares, ele as achava legítimas, naturais, defendia-as extremamente. Desse modo, de um salto, passava das inovações generosas, para admirar a Alemanha militar. Os teoristas da guerra desse país juntava às prédicas do fundador da religião da humanidade. E, como os humildes não percebessem essas contradições e se curvassem também ao seu saber matemático, Boaventura junto a eles perdia o azedume nascido da comparação da grandeza do seu sonho com a zombaria que era recebido. Era notável que, considerando o saber matemático a única forma de sabedoria, condenasse, no entanto, toda a exploração já feita ou nova, tendente a alargar o domínio dessa ciência. Afora determinadas explanações sobre teorias elementares, qualquer outra incursão no campo da análise matemática era para ele, além de sem significação, imoral. A ciência estava completa, o mais era algebrismo acadêmico, dizia.

Viera, conforme dissera à viúva, consultar o horário e voltava ao quartel-general, indo à tarde fazer uma visita ao Alves da Silva.

Depois das primeiras explicações trocadas, dona Florência insensivelmente foi lhe fazendo confidências. Boaventura ouvira-a atento e triste, sinceramente triste. Enterneceu-se. O seu fundo emotivo, exagerado com sonhos humanitários, interessou-se por aquele padecer. Mesmo sem saber como, ofereceu-se a ajudá-la, prometendo-lhe que a procuraria no dia seguinte em casa.

-Contudo, disse ao despedir-se, não é mau ir ver seu compadre. Vá.

Quando a envelhecida Florência entrou em casa de seu compadre, o doutor Alfredo saía. Saudou-a cerimoniosamente, ao encontrá-la na escada de pedra, enquanto da porta a menina Olímpia dava grandes mostras de agrado. Mal falou com a moça, foi ter com o compadre.

Conversava Alves da Silva, na sala de jantar, com o doutor Gomensoro. Vestia de linho branco e tinha chinelas de tapete. A fisionomia estava algo abatida. O rosto anguloso tinha um tom mate, e o nariz adunco e firme perdera um pouco de sua dureza habitual. Os cabelos grisalhos saltavam da moldura azul que um gorro oferecia, cobrindo-lhe a calva. A barba estava crescida. As primeiras palavras que dirigiu à comadre foram exatamente as mesmas que lhe dissera no dia do enterro.

-Paciência, comadre. Paciência. As coisas hão de se arranjar com o tempo. É triste, eu sei, a morte de um chefe de família, mas o que se há de fazer?

Omédico maníaco mantinha-se calado. De vez em vez, firmava muito o seu olhar vivo, de costume inquieto, sobre a viúva, medindo-a de alto abaixo. Logo que era percebido, disfarçava, fugia com olhos, passeando-os em torno pelos quadros pendentes das paredes. Reparava a reprodução da Ceia em oleogravura, a lagosta muito vermelha, o quadro das frutas, depois descia a vista palpando o étagère, o guarda-louças e o pano da mesa com guarnições encarnadas. Fatigado, mirava as pontas dos pés separados, e com os dedos nodosos tilintava sobre a beirada da cadeira.

O oficial de secretaria continuava a repetir consolos. A comadre, mal sentada na cadeira, contemplava-o respeitosamente. O seu rosto miúdo, de traços empastados, com rugas precoces, não tinha uma expressão definida. Havia respeito, desespero, dúvida e esperança a um só tempo.

-O que eu sinto, comadre, dizia com fadiga o Alves da Silva, o que sinto é que a minha casa não tenha cômodos, senão.

O médico quis dar volta à conversa. Perguntou ao Carlos se ia à cidade no dia imediato. Respondida afirmativamente, os três estiveram por algum tempo mudos. A viúva, animando-se, com a voz embargada, falou nas dificuldades, na mudança, na necessidade de dinheiro... Alves da Silva, coçando a cabeça, encostou-se melhor na cadeira de lona e murmurou:

-É, comadre. As coisas estão tão ruins. Ainda agora, essa moléstia...

Nesse ponto, chegou do interior a mulher. Vinha de matinée de cassa, sem colete e com uma saia de ramagens claras.

-Oh! Florência, como está você? Pensei que você estava zangada!

De repente, sentindo que o seu acolhimento benévolo surpreendia o grupo, dona Adélia fechou a fisionomia, fez que procurava um objeto num móvel, apanhou-o e, olhando o marido de soslaio, saiu da sala dizendo:

-Florência, antes de você ir, fale comigo.

O Gomensoro, então, indagou:

-Mas quais são as dificuldades, dona Florência?

A viúva as explicou redundantemente. Contou as diabruras do proprietário, as vergonhas que estavam sofrendo.

-Tenha paciência, espere hoje e amanhã, depois vá, ou mande sua filha lá em casa, que lhe poderei fazer alguma coisa.

A fisionomia apalermada da mulher iluminou-se. Os seus olhinhos de conta muito abertos agradeceram melhor do que os repetidos: obrigada doutor, obrigada, que ela dizia.

-É isso, comentou no fim o Alves da Silva, você se sofreu tudo o que contou, foi porque quis; se nos tivesse procurado há mais tempo tinha evitado esses desgostos.

A mãe de Clara pediu licença e foi ao interior falar com dona Adélia. Olímpia fazia crochet na saleta, ao lado de sua mãe, que lia um jornal. Chegando a viúva, arredou um pouco a folha e indagou:

-O que trouxe você aqui, Florência?

Antes que pudesse responder, Olímpia por sua vez perguntou:

-Como está Clara? Porque não veio?

Florência respondeu à menina e explicou a dona Adélia os motivos que a traziam.

-E você arranjou o que queria?

-Sim, arranjei.

-Foi o Carlos quem te ofereceu?

-Não. Foi o doutor.

-Ahn! fez a dona Adélia.

-Quem te disse que o Carlos estava doente? perguntou ela logo em seguida.

-Foi seu alferes Boaventura.

-É verdade! exclamou dona Adélia...

Depois, refletindo um pouco, disse para a filha:

-Olímpia, fica aí, enquanto eu vou com Florência ate ao quintal.

A dona da casa, logo que ficou fora dos ouvidos da filha, disse para a viúva:

-Florência! eu queria saber uma coisa. Mas fica entre nós, olhe lá!...

-Oh! comadre! Eu sei guardar segredos; sou de caixa encouradas...

Assegurada da discreção da comadre, dona Adélia perguntou:

-Clara nunca te disse se o Boaventura «gostava» de alguém?

-Nunca. E como ela me podia dizer, se pouco conversava com «seu» Boaventura?

-Não... Sim... É...

E depois de uma série de volteios e meias palavras, a mulher do Alves da Silva contou à sua humilde comadre que, pelo seu sobrinho Alípio, soubera que o alferes «gostava» da filha. Por ela, dona Adélia achava um bom casamento, mas, sondando o marido, este lhe objetara.

-Não lhe conhecemos a família. Ele diz que tem, mas nunca fala dela.

E figurando mais o caso como sendo possível, dona Adélia havia já interrogado o marido assim:

-E se ele te pedir a menina em casamento?

-Se ele ma pedir, retrucou o Alves da Silva, exigirei um prazo e investigarei os seus precedentes de lar. Se forem bons, sim; senão, não. É coisa muito delicada.

O segredo comunicado, mútuas promessas de guardá-lo foram feitas; e a viúva do contínuo, embora muito admirada que sua comadre, à vista das suas dificuldades, só achasse valioso falar-lhe dos namoricos da filha, prometeu, todavia, indagar de Clara alguma coisa de positivo.

Entrando na sala em que o médico e o seu antigo companheiro de colégio conversavam, Florência não encontrou o Alves da Silva. Recebia, na sala da frente, uma visita de cerimônia. E, enquanto esteve só com o médico, Gomensoro lhe reiterou a promessa, dando-lhe conselhos.

-É mude-se. Vá morar pra Laranjeiras ou Botafogo. Por lá arranja trabalho facilmente. Há muitas famílias ricas. Minha mulher poderá mesmo lhe recomendar a algumas de suas antigas colegas bem casadas. Conhece o chefe de esquadra Valadão? Sua mulher foi colega da minha. Mora na Bica da Rainha, e assim muitos outros.

* * *

Andamos pela vida apavorados, trêmulos de medo do futuro e, quando o que se conta no dia seguinte e no de hoje é mediano, nós nos pomos quietos, a olhar os astros, e na nossa alegria há menos palavras que na nossa dor.

O júbilo é interno e tememos que o exteriorizando ele se evole como um perfume sutil, contido em frasco frágil. Clara, sua mãe, e a preta velha, acabados os arranjos domésticos, se puseram sossegadas na porta da cozinha. As fraldas de Santa Teresa cobriu-as com a sua sombra e as três, sentadas no chão, poucas palavras trocavam. Antes, no tempo do contínuo vivo, ele também se sentava e -como homem, andava pelas ruas e lia jornais- tinha sempre o que contar...

* * *

Naquela tarde, pela primeira vez, depois da morte do Manuel, elas voltavam ao seu antigo hábito. Sem acordo algum, as três, uma a uma, se foram chegando, sentando-se, com as suas respectivas tarefas.

A velha Florência, de onde em onde, soltava um longo suspiro, olhava a ponta do Corcovado, punha-se de olhos parados para o morro, estupidamente. Parecia temer que ele desabasse...

Conforme o costume, ao anoitecer, a conversa se animou. Clara tinha vindo de interrogação em interrogação, nesse salteio caprichoso de diálogo, até perguntar à preta velha como viera até nós...

* * *

A babá, ao saber que a escravatura vai acabar, se admira, não acredita, acha impossível e diz que o mundo vai acabar. Clara retruca-lhe que não, e porque ela (a babá ) indaga quem vai trabalhar nas fazendas:

-Os livres, os que quiserem.

-Qual! Qual!

-Mas porque? Na Inglaterra, na França, não há escravos e há fazendas!

-Mas é que lá não há negros (babá).

* * *

A visita do alferes foi o assunto do dia seguinte. Dona Florência estava certa que ele viria, mas que ele lhe poderia ser útil não atinava. Se fosse dinheiro, ele lhe teria dado ontem, e, em todo o caso, bem podia ser que, não tendo, fosse adquiri-lo e delicadamente lhe trouxesse. Incapaz de compreender espontâneo o ato do oficial, a viúva procurou inutilmente um motivo, mas, quando comparou o movimento dele com as confidências da comadre. num clarão lhe veio explicada a sua generosidade.

Em começo, aquilo lhe pareceu baixo, naturalmente ele lhe iria pedir pequenos serviços de apaixonado, cartas a levar, cartas a trazer, flores, e se não fosse a ela, seria à filha. Mas não tinha razão dona Florência. Boaventura, lhe oferecendo auxílio, procedera muito generosamente e desinteressadamente; e, embora ele já se sentisse tomado de amores pela filha de Alves da Silva, desprezando os comezinhos meios dos namorados de profissão, não queria de Florência nem da filha os serviços que aquela suspeitava.

Saindo da estação central, ele subira para uma das portas do quartel-general, até o pavimento superior e, logo ao sair, dera com o capitão Meireles. Era de infantaria, mas tinha suas letras. Fora jubilado no segundo ano do curso da Praia Vermelha, quando tenente, e voltara a servir na sua arma. Nas rodas militares, falava-se muito do seu nome, a sua profusão de anedotas picarescas, a sua jovialidade inquebrantável, e o seu estro de poeta satírico eram os motivos da sua popularidade. Com já estar na casa dos quarenta, desse seu gênio colegial pouco perdera; contudo, de alguns anos para cá, embora não se fechasse em grande taciturno, andava calado e mastigando idéias ultimamente se soubera o que o perseguia. Era nem mais nem menos que a adoção dos pombos correios no Exército. Uma ponta de inveja o movera a isso. Verificando que uma série de oficiais, por gênio tumultuário ou por estudos, atravessavam o âmbito estreito das companhias e estabelecimentos, para viver na fama da plena rua, ele também sonhara ter um nome assim. E estudara para isso os pombos correios, tão importantes na organização dos exércitos europeus.

Assimilara ligeiramente noções de anatomia e fisiologia das aves; lera tratados e artigos históricos e, justamente naquela ocasião em que encontrara o Boaventura, trazia o memorial em que lembrava ao ministro da Guerra a conveniência de adotar aqueles mensageiros no Exército.

Era um calhamaço de cinqüenta páginas manuscritas em papel almaço, e ele ia lê-lo do começo ao fim, quando o Boaventura objetou-lhe que tinha pressa.

-Ah! lhe respondeu, ouve só uma parte da introdução. Ouve: «A colombofilia militar evidenciou sua utilidade no último cerco de Paris, e nenhuma nação européia desmereceu dos seus meios de defesa a telegrafia aérea. Esse fato veio despertar as grandes nações germânicas e, enquanto estas se aprestavam para defender, os países latinos, renunciando o próprio desdém, suicidam-se. A ciência da guerra é também uma necessidade inerente à conservação social. Diz um insigne intelectual: 'não crede senão na força temperada por uma longa disciplina'.

»A força é a grande lei da natureza, indiscutível e insuprímível. O mundo tem por base a força, mas o olhar dos povos, principalmente os da raça latina, nas crises da sua história, só vê o momento presente. Baldado é o intento de faze-lo alcançar mais longe. Desmintamos estas asserções. Entre os auxiliares do exército se deve contar como um dos mais proveitosos os pombos correios».

-Bem! Mas você é atrasado, Meireles. A missão do Exército não é mais esta...

-Qual é então?

-É a regeneração da sociedade. Formados como a elite do povo, a nossa forte cultura científica nos prepara para governarmos no período científico-industrial. Estamos destinados a substituir os bacharéis em Direito. Até logo...

E saiu, deixando boquiaberto o capitão, com o calhamaço descansando sobre o peitoril da janela.

* * *

Como houvesse fogos em vários trechos da cidade, e um se queimasse em Vila Isabel, no Boulevard, bem perto da sua casa, Clara, com algumas outras raparigas da vizinhança e um irmão de uma delas, foi vê-los.

A rua era cheia, e, se bem que larga, a multidão se espremia, contida entre os dois lados. Aproveitando os largos terrenos vazios que havia nas margens, o povo derivava por eles, enchendo-os. Clara e os companheiros, muito a custo, avançaram por entre o povo até à altura da Rua d'Aldeia Campista e, aí, sendo boa a posição para ver os fogos, ficaram.

Tudo ofegava. A noite feia ameaçava chuva; entretanto, ninguém desanimava. Desde quinze...

* * *

-Que é?

-Um rolo...

-Onde?

-Espera, eu vou ver, disse o rapaz que acompanhava as moças.

-Pouca coisa, disse ele, voltando. Ali, junto à confeitaria, havia um grupo: um rapaz, filho, parece-me, de um capitão de mar e guerra, acompanhava umas moças, sendo, me parece, uma delas namorada dele, e como um sujeito a olhasse muito insistentemente, ele tomou satisfações; o outro, que não era mole, respondeu no mesmo tom, e o final foi que o tal rapaz das moças saiu ferido com a cabeça quebrada...

-Coitado! fizeram as raparigas.

-Não, pouca coisa: uma racha aqui, e apontou o parietal esquerdo.

-Ele desmaiou... Foi pra botica? inquiriu Clara de repente, mostrando muito interesse.

-Desmaiou e foi pra botica.

-Mas não tem novidade o ferimento? perguntou, ainda, Clara.

-Não. Alguns pontos falsos e daqui a dias está curado, não foi nada.

-Que diabo! Que interesse! Você conhece o rapaz?

-Não conheço, não. Nunca o vi.

-Pois não parece, retrucou a outra com malícia.

-Está sempre com essas coisas, Adelaide. A gente não pode ter pena, dó, de um rapaz que se fere, que você não venha com «coisas», disse Clara, meio zangada.

-Não te zangues, Clarinha. Estou brincando, disse a outra, animando a rapariga.

Quando eles vinham pra casa, Clara ouviu um grupo, que acaso parara junto de onde eles pararam, a narração do caso. Adquiriu certeza de que o caso se passara com o adolescente, mas ao fim da conversa chegou um latagão forte, um desses rufiões de arrabalde, que foi indagando pormenores.

-Ah! Se eu estou lá... O sujeito conhecia o jogo?

-Não sei. A verdade é que lhe foi assestando a bengala e o Alfredo caiu.

-E a noiva, a namorada?

-A noiva deu um faniquito e foi levada para o interior da confeitaria.

- IV -

A casa de Clara era uma pequena habitação de telhado cortado ao jeito de chalet, edificada ao lado de outras iguais, a correr numa só linha, como o que se denomina atualmente uma avenida... Na frente, um corredor comunicava-as com a travessa, que ia terminar na Rua de São Francisco Xavier. Aos fundos, um capinzal cobria um grande baixado. Essa última rua, por esse tempo, estava parcamente povoada; de extensão a extensão, alguns grupos de casas pontuavam vastas porções de terreno, coberto de capim plantado. Na esquina da travessa em que ela morava com a Rua de São Francisco, havia uma grande chácara, vasta como um sítio, que, murada do lado da rua principal, era na orla da travessa cercada por uma sebe compacta de bambus. Quando Clara desembarcava do bonde, costumava encontrar a babá ou sua mãe que a vinham esperar; nas noites de verão, porém, as duas velhas se poupavam desse trabalho.

Na tarde de segunda feira, nenhuma das duas viera, e Clara, de volta do atelier, andando vagarosamente, muito concentrada nos seus pensamentos, foi surpreendida, logo ao dar os primeiros passos, com o encontro do adolescente que a esperava. A lua brincava nas pontas dos bambus que balouçavam, e a projeção da touceira dividia a rua em duas partes, negra e branca, quase iguais. Era como uma bandeira bicolor estendida e, aos meneios da sebe, ela se agitava tal qual uma bandeira que estivesse desfraldada.

A angústia daqueles três dias de separação atirou-lhe fremente para o rapazola e se explicaram com palavras entrecortadas pela comoção. Sua mãe, justificava o adolescente, quisera dele uma comissão em Santa Cruz, no curato, e ele fora sem poder avisá-la. Uma carta despertaria suspeitas; não tinha como prevenir; o trem partia cedo, de madrugada, ele foi.

-Se te vim esperar aqui, dizia ele, foi porque temi que me recebesses mal, e se isso se desse no bonde seria um destempero.

-Oh! Qual! Eu gosto tanto de ti...

-E eu, meu anjo, tanto, tanto... que não sei mesmo...

-Meu Deus, como eu te gosto, tu não me amas mesmo, hein?

-Muito! Muito!

Insensivelmente os dois se foram aproximando, de tal jeito o fizeram que não se poderia dizer bem qual dos dois beijou o outro primeiro. Por alguns minutos estiveram aos beijos, e palavrinhas doces, ditas pela metade, entremeavam-nos.

Por fim, o rapazola, temendo que alguém viesse a passar e o visse ali com ela, rematou:

-Adeus! Aqui não é bom lugar para nos explicar-mos. Espera-me amanhã... Sai um pouco antes e vai-me encontrar no Largo de São Francisco, atrás da Escola Politécnica. Quero-te falar.

Saindo dali, o rapazola conteve a comoção, pois que seria feio ele se apresentar aos outros comovido por ter dado uns beijos numa mulata, e foi ao encontro da roda.

-Então? indagaram em coro.

-Oh! Não conto nada! A mulata está «embeiçada» por mim... Quando me viu... Dá-me um cigarro?

-Toma.

-Quando me viu quase chorou. Caiu que nem um patinho. Quem tem fósforos?

-Eu!

-Amanhã me vai esperar. Está tudo arrumado.

-Olha lá!

-Qual! Não há nada. Se a coisa arrebentar, papai me passa um «carão» e abafa a coisa. Você empresta-me a chave do chateau? Sim? Está ouvindo, Freitas?

Ao sair de casa, Clara pediu a sua mãe que a mandas-se esperar, pois, esperando serão, viria mais tarde.

No atelier, Clara, pretestando moléstia, obteve da contramestra permissão para sair mais cedo. Pilhando-se na rua, ela apressou o passo em demanda do ponte de encontro. Ia entre sôfrega e inquieta. Que queria ele? Oh! Se fosse isso, nunca! Ela resistiria. Deus a livre guarde. Coitada da sua mãe, se soubesse, morria. Depois ela estaria desgraçada pra sempre. Ainda se... qual... filho de quem ele era, nada aconteceria. O capitão de mar e guerra não deixaria que fosse amante. Havia de pôr empenhos, dinheiro, e a coisa ficaria em nada. Na altura da Rua de Uruguaiana, quis voltar, tomar logo o bonde. Arrependeu-se e continuou. De mais a mais, ela tinha prometido, e em ir não havia mal algum. Quando dobrou a esquina, encontrou o empreiteiro.

-Oh, dona Clarinha, onde vai com tanta pressa?

-Não... Nada... Vou aqui fazer uma compra e ainda volto ao atelier. Boa tarde.

-Boa tarde.

O Largo de São Francisco, àquela hora, ainda estava movimentado. Grandes magotes de povo atravessavam-no em várias direções. Da Rua do Ouvidor, a onda a chegar era volumosa, e para lá marchava a maior parte. Nas outras ruas e travessas, o espetáculo era o mesmo. Delgados filetes de gente iam e vinham, cruzavam-se, baralhavam-se. O largo mantinha inalterável a mesma quantidade: era como um reservatório a se encher e a se esvaziar eqüitativamente.

Clara atravessou-o aos últimos raios do sol de verão, em procura da travessa atrás da Politécnica.

-Tardei?

-Não. Chegaste a tempo.

-O que é que você quer comigo?

Disseram os dois ao se encontrar.

-Que pressa; se é com ela que vieste, vai t'embora, que não é coisa pra minuto, disse o rapazola azedamente.

O adolescente tinha percebido que Clara estava «arisca» e, certo disso, atirou fora o ar de timidez com que se cobrira durante o namoro todo e armou-se de atitude firme, que melhor lhe parecia servir aos seus fins, Clara, recebendo aquela resposta, ficou rapidamente enternecida. Para que aquilo? Aquele desabrimento? Ela não tinha razão e meigamente respondeu:

-Você se zangou?

-Não... Não me zanguei... Mas tu vens assim, dessa maneira. Uma pessoa fica espantada. Parece que vou te engolir...

-Você sabe, se eu demorar... Se alguém passa por aqui..., retrucou Clara com a voz meio embargada.

-Tem razão. Saiamos daqui.

Clara como um cachorrinho acompanhou-o. Os dois foram andando calados. A noite caía vagarosamente. As últimas estavam no Largo do Rossio...

-Entra, disse o rapazola. Entra.

Era uma pequena confeitaria pouco freqüentada. Nas poucas mesas, quase ninguém havia.

-Que querem?

-Cerveja, não é? indagou o adolescente. Olhe, traga cerveja e uns doces, recomendou ele ao caixeiro.

-Cerveja e doces?

-Sim.

Enquanto ia buscar o caixeiro, o adolescente começou a animar Clara. Ela, inquieta, olhava de um lado a outro. Nada dizia; só pela sua fisionomia transtornada se percebia o desencontrado dos seus sentimentos.

-Sabe porque é isso, Clara?

-Não.

-Faço anos hoje e quis te oferecer um banquetezinho.

-Parabéns. Parabéns.

-Tanto mais que eu, dando uma fugida de casa, aproveitei a ocasião para te declarar que sou, de hoje em diante, o teu noivo; entretanto, como não quero que se saiba já, peço-te que não o digas a ninguém.

Com estas palavras, Clara se acalmou um pouco, e o copo de cerveja que bebeu veio lhe dar uma lassidão, uma vontade de dormir que a dominou. Estiveram algum tempo calados e depois saíram; os combustores já brilhavam acesos. De braço dado, eles seguiram ao longo da grade do jardim. Ao atravessar de novo a praça, numa olhadela, ela percebeu o velho empreiteiro, que a vigiava. Lembrou-se de sua mãe: «Olha, minha filha, esses homens...».

-Onde é que vamos? disse ela, estacando subitamente.

-Vamos aqui. Que diabo, não sou teu noivo? Vamos, disse o efebo imperiosamente.

Clara se tinha deixado tomar de inércia. Alcoolizada, com as promessas do rapaz e sobretudo aquele seu temperamento de torrão de açúcar, não lhe ajudavam a resistir ao forte querer do adolescente. Ela se sentia arrastada, puxada. Queria despedir-se, mas não podia. O bafo quente do rapaz, a esquentar-lhe a carne palpitante e sequiosa de outra, impelia-a a ir com ele, ao seu lado, a dar-lhe beijos, abraços; mas, bem depressa, cortando-lhe o frêmito que lhe resolvia as entranhas, surgiam-lhe as recomendações de sua mãe. Então, atemorizada, esforçava-se por despregar-se, por fugir dele, que a prendia magneticamente. Não tinha forças e, amolentada, seguiu-o. Dobrou uma esquina e achou-se num beco. Entrou por uma casa escura, meio suja e, em pé, petrificada, esperou uns instantes que o seu companheiro achasse a chave na algibeira, com a qual abriu a porta do quarto, onde os dois penetraram. Pelas paredes, algumas figuras eróticas despertaram-lhe logo idéias sinistras. Olhou desvairada em roda e na reles cama de ferro, que guarnecia o aposento, sentou-se chorando. Chorava de um choro nervoso, de quando em quando interrompido; quando assim, com os olhos abertos, a lacrimejar, olhava o adolescente em pé, que procurava sossegá-la.

-Que é isso, Clara? Deixa-te disso! Olha se ouvem e se vem a polícia.

O adolescente, temendo que a ocasião escapasse, ameigava a rapariga, ora terno, ora áspero, ia empregando o velho arsenal da sedução. Ajoelhou-se, jurou por Deus, sob sua palavra de honra, que se casaria, que não faria a infelicidade dela, e para que esperar mais um mês, um ano, dois, quando ela, agora, poderia felicitá-lo, provar o seu amor por ele. Já fatigada e amaciada com aquelas juras, que lhe saíam bem ao paladar, a mulata sentada na cama ficou sem ação. O rapazola, meio inclinado, beijou-a no rosto pela primeira vez, na segunda no pescoço, desabotoou-lhe o casaco, com um fraco protesto dela, beijou-lhe os seios. A rapariga parecia outra. Não arquejava, trepidava de volúpia, como uma caldeira de vapor. Os olhos cheios brilhavam, parecendo querer ver longínquas regiões, satisfações não vistas e muito desejadas. Entontecida de amor e de desejo, foi deixando, deixando. Quando os beijos deixaram de estalar no quartinho, já eram quase dez horas. Clara, mais leve, lepidamente tomou o bonde para o lar. A babá esperava-a e sua mãe angustiada também.

-Oh! mamãe! Foi o serão, adiantou-se. Há muitas encomendas. Com as festas que devem haver, tem havido muito serviço. Foi por isso só.

-Amanhã haverá ainda?

-Creio que não. Se houver, eu não farei. Já disse lá que moro longe e que minha mãe é doente e sozinha.

Os encontros no beco se repetiram; agora menos demorados, mas mais gostosos. Clara, habituada e segura que nada se suspeitava, ia para lá contente e dele voltava transbordando de satisfação.

* * *

Clara, de temperamento ardente, apreciava aqueles encontros, mas o adolescente, satisfeito, e temendo as conseqüências judiciárias, procurava fugir. Certa vez, ela lá indo, em vez de encontrá-lo, encontrou um outro. Convidando-a a entrar, ela recusou e, ao sair, mal tinha dado alguns passos, deu com o Monteiro. Dissimulou, mas por melhor que o fizesse, ela não pôde deixar de trair-se. Sua mãe ia aos poucos definhando, apatetara-se e dentro de seis meses definhou de tal forma, que...

* * *

O lugar dos encontros era ainda no tal beco e no mesmo quarto meio sujo, meio escuro, para onde, naquela tarde, o adolescente a levara. Com o gênio ordeiro de Clara, o aposento, entretanto, tinha ganho mais limpeza, e uma arrumação mais cuidada disfarçava a exiguidade de seus móveis. A cama de ferro, calçada, tinha o colchão de capim coberto de lençóis limpos, alvos, e uma colcha de chita de ramagens cobria-a por dois terços. As figuras eróticas das paredes substituíra Clara por cromos de folhinhas, e, disponho-os ingenuamente simétricos, o ar do quarto era de um aposento de moça pobre.

As suas relações duravam há oito dias, e, com ser ainda recentes as relações, o adolescente parecia à Clara um tanto aborrecido. Não mais carinhos, pedidos, coisas mínimas, que ela tanto estimava. De tarde, ao sair, ela dirigia-se rapidamente ao beco. Subia, já o encontrava, sentado, esperando-a. Mal chegada, antes mesmo de repousar os embrulhos, ela ia muito humilde, muito doce, amimá-lo. Os carinhos eram quase indiferentemente recebidos pelo rapaz, respondia a um beijo ou a uma carícia e, como fatigado, dizia mal-humorado:

-Deixa-te disso... Deixa-te disso...

Clara murmurava uma queixa, mas continha-a e ficava em pé com as mãos nos cadarços da saia, a olhá-lo, com os seus olhos redondos, humildes, parados, espantados. O adolescente, então, intervinha e com império mandava:

-Despe-te. Anda.

Satisfeito, ele se levantava rápido, aborrecido, respondendo monossilábicamente às perguntas da rapariga, obrigava-a a vestir-se de novo, fazia-a sair, e ela, logo que o imaginava longe, saía a se coser pelas paredes, envergonhada, vexada, apreensiva.

Dentro de dias, havia já nele um grande arrependimento, nascido do sentimento confuso do temor das leis, da sociedade, da honra, dos preconceitos. Aquelas carícias, aquela intimidade da rapariga não eram próprias, não competiam a ele, era uma confiança. E como mesmo lhe fora tão forte o desejo dela que lhe chegara a prometer casamento? Ele e ela, casados... Oh! Oh! E continha a risada. A risada que queria explodir era contida pelo temor do código, do escândalo, da polícia. Mas daí não havia senão perigo passageiro.

Seu pai repreendê-lo-ia, amarraria a cara, evitaria o código, a polícia e, afinal, havia de achar coisa de somenos, pândega de rapaz. Entretanto, o que mais aborrecia-o eram as carícias dela. A demasiada doçura com que o tratava, os afagos de noiva, uma criada, quase. Convinha pôr um termo àquilo; já tinha o que queria, e se a coisa continuasse podia «pegar», era o diabo!

Na última vez que estiveram juntos, no sábado; ele pedira à Clara que viesse segunda-feira cedo, almoçariam juntos no chateau, passariam o dia e a tarde, iriam ver as festas, mesmo porque, acrescentou ele no fim, tinha muita coisa a dizer-lhe, relativamente ao futuro de ambos.

Naquele dia, Clara, dizendo à sua mãe que ia com sua companheira assistir as festas da Libertação, saiu de casa por volta das nove horas e foi direito ao quartinho do beco. As ruas cheias eram atravessadas pelo bonde entre ululos, a multidão não satisfeita com as provas públicas de regozijo continuava a enchê-las, percorrendo-as animada, a parecer que, sem destino nem fim, teimava a andar pela via pública de baixo para cima. No quartinho, como de costume, a rapariga encontrou o adolescente e de contrário do habitual ele aparentava mais gentileza e se esforçava por ser prazenteiro. O almoço, que fora frugal e breve, veio pô-los em maior intimidade.

-Clara, disse o rapazola, eu te queria dizer alguma coisa, mas espero que, com o que te vou dizer, não te ponhas aí a fazer um escarcéu, mesmo porque não há razão para isso...

-Que é?

-Vou te dizer, mas primeiro hás de me prometer que tu não farás nada, isto é, não te surpreenderás, nem te irás pôr a chorar e a dizer bobagens... Prometes?

-O que é?

-Promete, primeiro, senão...

-Prometo. Que é, então?

-Vê-lá. Prometes? Juras?

-Juro. Juro. Diz lá.

-Bem. Como você sabe, eu estou estudando, vivo da pensão que meu pai me dá, tenho que lhe dar contas de mim e, nessa época de exames, eu fui reprovado nos últimos que me faltavam para me matricular; sendo a segunda vez, meu pai zangou-se, repreendeu-me, aborreceu-se, mas acontece que agora, num dos Estados do Norte, haverá exames para o mês que vem, uma segunda época, e meu pai, que é amigo do presidente da província e tem muitas relações lá, com os professores do liceu, vai me mandar lá completar os preparatórios. Mas o que e isso? Que cara! Deixa-te disso. Você me prometeu...

-Você volta?

-Volto. A coisa é segura, os exames lá são fáceis, mesmo com empenhos que levo nem que fossem difíceis, e, dentro de um mês e tanto, estou aqui e matricular-me-ei em medicina. Portanto, como você vê, é uma separação breve, eu voltarei e então tu já sabes.

A rapariga tinha ouvido o adolescente, contendo a máxima angústia. De quando em quando, ela queria dizer qualquer coisa, objetar que ela sentia a verdade, que ele não ia só prestar aqueles exames, mas separar-se dela, cortar as relações que ia mantendo, retirar-lhe a promessa e deixá-la por aí, desonrada, isolada, desgraçada, tanto mais que lhe era agora a coisa abominável, pois que já se suspeitava, e já, entre dentes, ela ouvia referência indiretas e aproximações.

O trabalho do empreiteiro não fora em vão e, se bem que ela não o visse nas proximidades do quarto, nem tampouco ele lhe houvesse dito qualquer coisa, ela sentia que ele sabia, tinha certeza que ela vinha ali naquele quarto reunir-se com um rapaz. E, ele sabendo, saberia seu padrinho, e ela perderia com isso a única proteção. Que ia ela ser, desonrada, sem ajuda de ninguém, desprotegida? E lhe passou, então, pelos olhos, a visão rápida, dramática, de um futuro doloroso. Seria assim como aquelas que, na janela, passam dia e noite, a chamar homens, a arrebatá-los pelo casaco, viveria assim de tamancos ao meio do pé, vestida com chitas ralas, a se ver a metade do corpo, a bebericar, até que um dia o ciúme de um ébrio, de um mau, com quem naquela vida ela estava arriscada a travar conhecimento, a matasse cosendo de facadas, no fundo horripilante de uma daquelas alcovas. Não pôde então impedir de chorar. Chorava, com um choro seco, em começo, e depois, como se o choro contido tivesse aberto todas as válvulas, ela chorou abundantemente e livremente. O adolescente, sentado, afagava-a, fazia-se terno, amimava-a, e ela, entre soluços, disse-lhe:

-Você volta? Você vai me deixar?

-Volto, Clara, volto, quem te disse...

-Você quer me deixar. Eu sei. Eu sei. Se você não me queria, porque então me namorou, me desviou? Ah, eu logo vi! Logo vi. Bem me dizia minha mãe.

-Mas, Clara, ouve. Atende. Se eu te quisesse abandonar, viria te dizer? Eu não poderia ir me embora, sem nada avisar, hein?

-É... É... Mas, fez Clara, abalada com a argumentação do rapazola, mas, continuou, mas não sei, eu penso que você não volta, que você vai me deixar.

-Mas que interesse tinha eu em te avisar? Para que? Diz?

-Não sei. Não sei.

-Ouve, Clara, eu volto dentro em breve, e nós haveremos de ser felizes, vamos morar numa casinha, eu, você e tua mãe; eu me empregarei, enquanto tirar meu curso. Então...

Clara, pouco a pouco assegurada, acalmou-se; o choro não lhe vinha mais, e, quando de toda sossegada, o rapazola disse-lhe:

-Lava o rosto. Endireita as tuas roupas. São quase três horas e eu preciso sair.

Obedecendo, Clara pôs-se a concertar o vestuário e a tirar da fisionomia os vestígios da cena que vinha de ter. Servia-se pra isso dos poucos objetos de toilette que havia no chateau e procurava o pente, quando na porta severamente bateram.

-Que é?

-Não sei, Clara. Eu vou ver, disse ele, abrindo a porta e saindo.

-Foi um sujeito, disse ele, em breve, voltando, que, por engano, julgou que morava aqui um tal de Costa.

Clara olhou-o algo desconfiada, mas de tal forma a sua fisionomia era leal, que ela continuou placidamente a pentear o cabelo.

-Clara, disse o adolescente de repente, você espera aí um pouco, que eu já volto, vou aqui à Rua do Senado levar essa carta, que meu pai pediu-me que levasse e já volto.

Saindo o rapazola, Clara nem sequer lembrou-se de fechar a porta, pôs-se em frente ao espelho do lavatório de ferro a dar a última mão no penteado. Quando ela punha o último grampo, ela sentiu que lhe entravam no quarto, virou-se e deu com um rapaz na sua frente:

-Não se assuste, benzinho. Não se assuste.

Não respondendo, Clara foi olhando o rapaz. Era alto, membrado, de testa quadrada e curta de estúpido obstinado. De repente, como se virasse um pouco, ela viu que, pelo pescoço dele, atrás da orelha, lhe saía uma mancha vermelha, e lembrou-se logo que o havia visto. Onde? Quando? Ah, foi na noite dos fogos, com o rapazola que ali a trouxera. E compreendeu, então, a armadilha que lhe fora armada, e nitidamente se lhe desenhou a sua situação.

-Benzinho, não se espante. Sou eu, que lhe quero muito bem.

O seu andar tortuoso, cambaleante, denunciava-lhe a embriaguez, e o seu olhar de crapuloso desferia chispas.

Clara não sabia o que dizer, calada, olhava o rapaz em frente e recuava até a janela. O rapazola ia chegando, aborrecido com aquela resistência, começava a se enfurecer, as suas palavras não eram as mesmas, melosas, de ainda então; um vocabulário de injúrias soezes saía de sua boca.

-Vá, sua negra. Deixe-se disso.

Clara, aproveitando uma ocasião em que tropeçara no lavatório, empurrou a velha enxerga de ferro para o meio da sala e, de uma das guardas, suplicava:

-Deixe-me, pelo amor de Deus. Deixe-me.

O latagão do outro lado armava o salto para um lado e outro, no fim de engancha-la. Por fim, de um salto, agarrou-lhe pela toalha, que ela tinha ao redor do pescoço, que lhe ficou nas mãos. Enfurecido, ele corria da direita para a esquerda, atrás de Clara, saltava a cama, enganava-a, e sempre a rapariga, murmurando pedidos, escapava dos seus botes, com um seguro instinto de conservação. Por fim, já sentindo que as forças lhe iam faltar, Clara pôs-se a gritar por socorro; gritou uma, duas, três, seis vezes, ao fim das quais, violentamente empurrada, a porta do quarto se abriu, e algumas pessoas entraram e levaram os dois até o rondante e daí para a subdelegacia. O rapagão, a quem o exercício curara de algum modo a semi-embriaguez com que entrara, tomara acordo de si e, à ordem de prisão recebida, quis resistir a princípio, depois disse que iria só, não com polícia, que era estudante, filho de boa família. Afinal, tendo obedecido, os dois foram à subdelegacia.

* * *

-Vossa Excelência compreende que a situação é delicadíssima. Eu, que o conhecia muito de nome, vendo que ele vinha à tona em semelhante coisa, parei, embaí um pouco e obtive que a coisa ficasse nisso mesmo. Entretanto, não foi tanto que os jornais não pudessem pegar, e agora, de manhã, ao lê-los, foi com surpresa que vi o nome da rapariga por extenso e o dos rapazes pelas iniciais, com o seu também desse modo, denunciando a filiação... Eu sou velho, tenho perto de sessenta anos, e nos meus tempos de rapaz essas coisas não tinham nenhum valor, eram pândegas de rapazes, muito natural na sua idade, e mesmo com o seu filho a coisa talvez não tivesse nenhuma repercussão, se não fora esse estouvado amigo dele, que, semi-ébrio, e de um comportamento abaixo de qualquer estima, se não fosse, dizia, se não fosse ter consentido que ele se introduzisse no quarto e quisesse violentar a rapariga, mas...

-Senhor major, há provas contra meu filho?

-Muitas. O depoimento da vítima, da mulatinha, disse ele, emendando logo, a denúncia do valentão, seu amigo, que foi preso quase em flagrante, contou a coisa por miúdo, e o encarregado da casa de cômodos, que, depondo, afirmou que desde um mês ela, a vítima, digo a mulatinha, e um rapaz, com os sinais de seu filho, se reumam ali, entretanto...

-E qual é a pena que o código crimina para «isso»?

-A não ser que o indiciado queira proceder casamento...

-Oh! isso absolutamente não, disse ele com um imperceptível «isso». Não se compreende que a lei obrigue a se casar gentes de situações diferentes, de cores, de educação, só porque se encontraram...

-Vossa Excelência...