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A gruta

A gruta! Mas saberá o leitor porventura o que é a gruta que nos referimos? Acaso já viajou o leitor pelos difíceis montes do Rio Comprido, para saber onde fica esse belo tesouro de pedra, que jaz oculto por entre a luxuriante vegetação daquele arrabalde? Se ainda não gozou tal espetáculo, como é muito natural, tenha a bondade de seguir os passos de Gregório, porque este, de braço dado à cismadora Olímpia, vai empreender essa bela excursão.

Estamos em dezembro. O duvidoso relógio do Papá Falconnet balbuciou há pouco duas horas da tarde. É domingo, e, apesar da estação, o sol não constrange a quem deseja passear. Há um doce recolhimento na floresta, que nasce aos fundos da Avenida Estrela; dir-se-ia que está para anoitecer, tão nuviosa vai a atmosfera. As aves saltam cantando na espessura da folhagem e a luz do céu filtra-se por entre as nuvens, derramando-se suavemente pela terra.

Faz gosto sair de casa; meter uma flor na gola do paletó de brim, tomar um guarda-sol de linho, derrubar o chapéu de palha sobre os olhos, e enveredar por entre os tortuosos caminhos do campo.

É bom levar consigo uma forte bengala ou pedaço de bambu, porque o terreno é muito acidentado e sujeito a cobras. Às vezes quase que se torna impraticável a viagem: encontram-se ângulos de pedra nua, que surgem por entre a verdura como os cotovelos de um mendigo por entre mangas rotas.

Em tais casos o remédio é subir de gatinhas e passar depois a ponta do bambu ao companheiro para lhe poupar aquele incômodo. Outras vezes são os espinhos que se apresentam para obstar a passagem; entra então a gente, deixando-se arranhar à vontade pelos espinhos, e grita para trás aos companheiros que se acautelem.

Se estes porventura são pessoas de expediente, afastam com a bengala os galhos espinhosos, e passam adiante; se o não são, melhor será que voltem para casa e se deixem de passeios à gruta, porque depois dos espinhos aparecem cipós da grossura de todos os dedos, e os quais se nos enredam pelas pernas, pelo tronco e pelo pescoço, só nos deixando continuar o passeio depois de os havermos cortado com um facão.

Foi nestas circunstâncias que se achou Olímpia no tal domingo a que nos referimos.

À mesa do almoço, em conversa, se falara da gruta.

-Que gruta?... perguntou ela, já mordida de curiosidade.

O Papá Falconnet tratou logo de explicar o que vinha a ser a gruta, encarecendo-lhe o valor, conforme era de seu costume sempre que se referia a qualquer objeto relacionado com a Avenida Estrela.

-Vou visitá-la, disse a filha do comendador, com um gesto resoluto.

-Mau! resmungou o pai, sem ânimo de a contrariar. E acrescentou em voz alta: -Faço idéia do que não será a tal gruta!...

-Em todo o caso tenho vontade de ir vê-la, e irei! respondeu Olímpia.

-Não sei se V. Exa. fará bem... observou o padre Almeida, que até aí parecia não haver prestado atenção à conversa. Aqueles caminhos são perigosos...

E, como Olímpia o interrogasse com um gesto, ele acrescentou:

-É que V. Exa. pode perder-se...

-Não deve ser tanto assim, replicou ela.

-Todavia, é bom não se fiar muito, minha senhora! volveu o padre, pondo intenção nas suas palavras.

-Não tenho medo! disse Olímpia, sacudindo os ombros. E resolveu que depois do almoço faria uma excursão à gruta. Gregório ofereceu-se logo para acompanhá-la.

-Aceito com muito prazer, respondeu ela, agradecendo-lhe o oferecimento.

Outras pessoas aderiram em seguida à idéia, e ficou decidido o passeio.

-Queira Deus que te não suceda alguma coisa!... observou o pai de Olímpia, assim que a pilhou só. Tu andas fraquinha, minha filha; não deves abusar muito!...

-Ora! redarguiu ela, sacudindo os ombros; não hei de morrer de velhice!... Além de que, o médico me aconselhou fazer exercício!...

-Mas não indo à tal gruta, que, ouvi dizer, é muito longe daqui e quase inacessível!

-Não deve ser tanto assim!...

E às duas horas puseram-se todos a caminho. O comendador não resistiu ao desejo de acompanhar a filha; mas, depois de subir uns duzentos passos, já não podia ir adiante e debalde procurava convencê-la de que devia voltar com ele. Olímpia, apesar de muito cansada, declarou que o pai queria um absurdo, e continuou a excursão.

O comendador ainda tentou prosseguir na viagem, mas toda a sua boa vontade foi inútil. Assentou-se por terra com outros companheiros que haviam desistido igualmente, e pouco depois voltava com estes para casa.

Só três não desistiram: Olímpia, Gregório e o Augusto.

Este último ia à frente rompendo a marcha, o que aliás pouco lhe custava, graças à destreza de que dispunha e ao seu vivo instinto de fragueiro. Às vezes o caminho se fechava de todo ou tomava uma direção despercebida à primeira vista, Augusto suspendia-se então por um cipó, ou singrava por entre o mato, gritando pouco depois aos companheiros.

-Tomem a esquerda! Cá está o caminho! Cuidado com os espinhos à direita!

Outras vezes era a ladeira que se fazia mais íngreme, e Augusto tinha de improvisar um corrimão para que os outros dois a pudessem galgar.

E, só depois de muito matejar, foi que os três chegaram a um ponto mais elevado da montanha, planalto que se debruçava pitorescamente sobre um vale profundo e sombrio.

-É ali em baixo a gruta! exclamou Augusto, apontando para a várzea. É preciso agora descobrirmos a descida. Ah! ei-la! Por aqui! por aqui! Cuidado no sentar o pé, porque esta pedra escorrega muito!

Gregório dava a mão a Olímpia, para ajudá-la a descer.

Ela quase não falava por toda a viagem, mas sentia um grande encanto em tudo aquilo. Nunca fizera um passeio tão penoso e tão agradável; nunca houvera visto de perto os rebentões das matas, formando os mais caprichosos arabescos; nunca se penetrara desse ar embalsamado dos campos, que nos alegra o sangue e nos faz amar a natureza; nunca ouvira os sons eólios da floresta, que nos despertam na alma as notas adormecidas da infância; nunca bebera a luz do sol depois de filtrada por uma abóbada de verdura, e nunca ouvira tão perto o concerto amoroso dos pássaros e o crepitar harmonioso das folhas secas estalando ao sol.

Ao chegarem ao fundo sombroso do vale, Olímpia não pôde conter a comoção. Era um lugar ameno, misterioso, cheio de encantos. De lá não se via a terra nem se via o céu; tudo era verdura. O chão desaparecia, alastrado pelas trapoerabas, que recamavam a grama com as suas mimosas florzinhas azuis. Das árvores só se viam as grandes copas aveludadas, porque os troncos desciam obliquamente dos montes que sitiavam o vale; algumas se equilibravam de cima, presas pelos pés, como enormes ramalhetes voltados para a terra. As infinitas trepadeiras, as caprichosas parasitas vingavam e serpenteavam por todos os lados, como se quisessem enastrar interiormente aquele ninho ideal de verdura pelo modo por que fazem os pássaros seus ninhos.

Por todos lados rebentavam flores, por todos lados se penduravam cipós, entrelaçados de avenca, e se agitavam as palmas esteladas dos coqueiros, forcejando para romper por entre as largas palhetas dos tinhorões e as línguas espinhosas da babosa.

A luz do sol só penetrava naquele doce interior de verdura depois de peneirada pela folhagem, pálida e amortecida como a claridade melancólica de um crepúsculo.

Os três excursionistas estacaram sem dar palavra, inteiramente dominados pelo religioso aspecto daquele rústico santuário panteísta. Tudo ali respirava uma grande paz, que ia, pouco a pouco, voltando nossos olhos para Deus, chamando nossos joelhos para a terra e nos abrindo o coração aos êxtases da prece.

Depois de mais alguns instantes de mística contemplação, os três seguiram para a gruta.

Entrava-se nela por uma abertura natural, indicada pela própria folhagem, que nesse ponto se tornava mais sombria. Mal porém transposta essa passagem, afastando com ambas as mãos os ríspidos galhos que a defendiam achava-se a gente num lugar inteiramente contrário ao que se acabava de deixar. Era uma estreita galeria em pedregal escuro e úmido, feita de penhascos acumulados uns sobre os outros, formando medonhas cavernas, onde apenas de espaço a espaço escorria algum trêmulo fio de luz.

Os negros pedregulhos, como sustidos por uma força estranha, empinavam-se muitos metros fora da sua base, serpenteando por entre eles um corredor irregular e trevoso. Augusto seguiu por aí e os outros dois o acompanharam. À proporção que avançavam, ia o ar se tornando mais frio e o silêncio mais intenso. De todos os rumores de fora só chegava lá dentro um vozear confuso, que esfuziava de rocha em rocha. Olímpia parecia encantada pelo passeio e apertava no seu o braço de Gregório.

Depois de andarem um quarto de hora, deram a um lugar mais amplo e descoberto. Via-se então o céu por entre o rendilhado da floresta, que lá em cima crescia zombando dos rochedos. Algumas árvores se debruçavam no abismo e estendiam pela aridez da pedra seus retorcidos braços de gigante.

Mais alguns passos e começaram a ouvir o murmúrio de uma pequena cascata que corria lá embaixo. Era preciso agora segurar-se a gente com mais cuidado, porque o limo dificultava o caminho transformado em ladeira. A pedra aparecia rachada em vários pontos, cujas fendas só se podiam galgar com um salto.

Olímpia principiava a cansar de novo; as fendas reproduziam-se mais amiudadamente. Vão agora rareando as pedras; vão avultando as fisgas d'água. Terminou afinal a descida; já se não está sobre uma rocha, passeia-se num lago, guarnecido de ilhotas negras, que surgem aqui e ali, como para facilitar a viagem.

É este o ponto mais bonito da gruta. A vegetação surge de cima com mais abundância; os despenhadeiros são enfeitados com as trepadeiras e parasitas, que sobem e descem por eles, numa variedade riquíssima de flores. A água corre placidamente debaixo de nossos pés; ouvem-se cantar os pássaros e sentem-se os sopros embalsamados da floresta. De um lado principia de novo o campo, vê-se a terra e ouve-se o marulhar das folhas; do outro se agrupam penhascos, por entre os quais já não é possível transitar sem risco de vida.

Gregório deu a mão a Olímpia, fê-la subir a uma das pedras que se erguiam defronte deles e mostrou-lhe a cascata. A rocha era fendida em toda a sua extensão, formando magnífico efeito com os pedregulhos que se entremetiam por ela.

Augusto galgou uma das arestas do rochedo, disse aos companheiros que o esperassem um instante, enquanto ia ele observar se havia saída pelo outro lado da gruta. Olímpia e Gregório opuseram-se; achavam muito arriscada semelhante tentativa: a rocha era lisa de todo e escorregadia. Mas antes que os dois tivessem tempo de despersuadi-lo disso, já o temerário havia atingido uma das pedras que ficavam entaladas na fenda, e procurava, equilibrando-se, alcançar uma outra adiante. Afinal conseguiu e desapareceu pelo lado contrário do penedo.

Os companheiros ficaram sobressaltados. Gregório fez Olímpia assentar-se; procurou distraí-la conversando e ofereceu-lhe uns cajus, que nessa ocasião acabava de colher. Mas Augusto não reaparecia e a senhora tornava-se cada vez mais inquieta.

Afinal ouviu-se-lhe a voz, chamando pelos outros. A voz saía justamente da parte mais baixa da rocha, no lugar em que principiava a enorme fenda.

-Onde estás tu? perguntou-lhe Gregório, aproximando-se o mais que pôde do lugar donde vinham os gritos de Augusto.

-Estou aqui embaixo! Só há uma fenda, por onde nem um gato pode passar!

-E por que não voltas por onde foste?!

-Impossível! Vim deixando-me escorregar e não consigo subir! Já tentei várias vezes!

-E agora?!

-Agora é seguirem vocês por aí, que eu os vou encontrar mais adiante!

-Mas eu não conheço estes caminhos!...

-Não há que errar, disse Augusto, procurando meter a cabeça na fenda da rocha; tomas esse caminho, onde estão as palmeiras, e vais sempre seguindo à esquerda, até chegares à pedreira. Vão. Eu não posso ficar aqui por mais tempo, tenho água até aos joelhos! É verdade! não esqueças de levar o saco que trazia eu a tiracolo e que tirei para passar a rocha. Até logo!

-Até logo, repetiu Gregório.

-Sempre à esquerda! ainda recomendou o outro.

Olímpia não deu uma palavra durante o diálogo dos dois rapazes, mas deixou pela fisionomia bem patente o seu sobressalto.

-Nós o encontraremos ali mais adiante... disse Gregório, dando-lhe o braço. Vamos.

E puseram-se a andar silenciosamente. O caminho por onde voltavam era encantador, mas muito agreste. Olímpia por duas vezes queixou-se de que os espinhos lhe feriam o rosto. Gregório contentou-se em lembrar-lhe a coragem com que ela empreendera o passeio.

-É que tenho medo de nos perdermos aqui!... respondeu a senhora, com um princípio de mau humor. Além disso já estou fatigada e sinto sede!

-Tome um pouco de vinho, e se quiser podemos descansar um instante.

-Não! não! prefiro ir adiante; estou impaciente por chegar ao tal ponto em que nos encontraremos com o Augusto.

-Mas que mudança tão rápida foi essa?... ainda há pouco estava de tão bom humor, e agora...

-Parece-lhe que não devo estar aflita?...

-Não sei porquê...

-Imagine que não damos com o caminho e nos desencontramos do Augusto!

-Havíamos de achar saída!...

E, assim conversando, encontraram-se defronte de três picadas. Gregório hesitou qual devia escolher entre as duas que ficavam à esquerda.

-Que lhe dizia eu!... observou Olímpia, cruzando os braços.

-Deve ser esta. Não se mortifique... É por aqui com certeza!

E seguiram. Mas pouco depois tiveram novo embaraço: todos os caminhos deparados tomavam para a direita.

-Com certeza já estamos perdidos! observou Olímpia.

-É melhor seguirmos por aqui, disse Gregório. Esta picada vai com certeza dar ao ponto de que nos falou o Augusto.

A viagem, entretanto, ia cada vez se tornando mais difícil. Reproduziam-se os obstáculos. Olímpia observou que antes tivessem voltado pelo mesmo caminho. E continuaram a andar. De repente, porém, acharam-se defronte de mato virgem; era preciso voltar atrás, mas na volta já não encontraram o lugar por onde haviam ido: tomaram o primeiro caminho que apareceu, e desde então se puseram a andar à toa, ora para a esquerda, ora para a direita. Gregório gritou várias vezes, na esperança de ser ouvido por Augusto ou por qualquer outra pessoa; nada veio em seu auxílio. A floresta continuava a sussurrar indiferentemente.

Assim se escoaram duas horas talvez. Olímpia afinal declarou que não podia dar mais um passo sem ter descansado. Gregório conduziu-a para debaixo de uma árvore e fê-la repousar. Depois abriu o saco de Augusto, tirou uma garrafa de vinho, encheu um copo e passou-o à companheira.

-Temos aqui também o que comer, disse ele, apresentando uma empada, queijo e frutas.

Olímpia aceitou sem responder. Gregório foi buscar duas palmas largas de pindoba, estendeu-as defronte da rapariga e assentou-se ao lado dela.

Começaram a comer silenciosamente. Olímpia parecia muito preocupada; percebia-se todavia que a dificuldade de achar o caminho não era a causa principal do seu mau humor, e Gregório sentia-se constrangido por aquela situação a ponto de não encontrar o que dizer.

Nunca a influência amorosa, que aquela estranha mulher exercia sobre ele, o perturbara tanto, e nunca ele se achou tão tímido como naquela ocasião.

Depois da merenda, Gregório convidou Olímpia a prosseguir na jornada.

-Estou tão abatida!... disse ela, erguendo custosamente as pálpebras e estendendo os braços ao moço, para que a levantasse.

-Sente-se indisposta?... perguntou este com solicitude, segurando-lhe a mão.

-Não, disse ela suspirando e tentando pôr-se de pé. Mas Gregório teve que ampará-la, porque a histérica fechou os olhos e, empalidecendo, cambaleou.

-Que sente, minha senhora?... interrogou ele, empolgando-lhe a cintura.

Olímpia não respondeu e deixou-se cair no colo do rapaz. Vieram logo os soluços e os suspiros estalados na garganta.

Gregório, na candura dos seus dezoito anos e na predisposição lírica do seu pobre espírito, não podia apreciar o alcance daquela crise: todos os fatos da vida real e todos os fenômenos humanos tinham para ele uma explicação romântica. Mal-educado pela metafísica do colégio em que se desenvolveu, e dominado pela corrente sentimentalista da sua época, repugnava-lhe a verdade fria e tudo aos seus olhos se prestigiava de um sedutor caráter de idealismo poético.

Para ele, Olímpia, com os seus ásperos arrebatamentos e com as suas míseras ternuras de rola enferma, não podia deixar de ser um mito irresistível e adorável. Gregório a amava, mas não a compreendia; aspirava-lhe o doce perfume através do véu nebuloso que a envolvia, aceitando-a na sua cega adoração, como o crente religioso aceita um dogma.

Que estranhas comoções não se apoderaram dele enquanto sustinha no ombro a formosa cabeça de Olímpia; enquanto lhe via de perto a fresca brancura do pescoço, e lhe sorvia os perfumes do cabelo, e lhe bebia o salmodiar do pranto?...

Ela parecia ir serenando à proporção que lhe fugiam as lágrimas e os soluços. Gregório, cheio de hesitação e receoso de afligi-la, mal ousava passar-lhe a mão à flor dos seus cabelos.

-Veja se consegue tranqüilizar-se um pouco... aconselhava ele com a voz trêmula, todo possuído de uma deliciosa agonia.

E, como se tivesse nos braços uma criança nervosa, batia-lhe carinhosamente nas costas e dizia-lhe todas as meiguices do seu amor ingênuo.

Olímpia, sem responder, continuava, não ainda a soluçar, mas a embalar-se num fluxo e refluxo de suspiros, que lhe faziam arfar o corpo inteiro, como a ressaca ao navio depois que a tempestade passou.

-Eu talvez a esteja constrangendo... arriscou Gregório, procurando delicadamente desviá-la dos seus braços.

-Não! respondeu ela, puxando-se para ele e chegando o rosto para os lábios do rapaz. Mas logo o repeliu, como se arredasse da sua carne palpitante um cadáver já frio.

Entretanto a tarde principiava a encher a natureza de sombras. As aves despediam-se do sol com os seus últimos gorjeios, e as árvores se retraíam no misterioso recolhimento do crepúsculo.

O acrobata

Só às sete e meia conseguiram alcançar a casa. Todos os esperavam com ansiedade. Augusto havia chegado muito antes, mas ao saber que os dois companheiros não tinham aparecido, e receoso de que estivessem perdidos no campo, voltou à procura deles e trouxe-os consigo. Olímpia, com grande espanto geral, longe de chegar aborrecida e contrariada, entrou em casa muito satisfeita, atirou-se rindo aos braços do pai, e ordenou gracejando ao hoteleiro que lhe servisse o jantar.

Vinha tão expansiva e folgazã que a todos causou verdadeira surpresa. O sol emprestara-lhe às faces um vivo cor-de-rosa, que lhe enfeitava o rosto com muita graça; os seus olhos jamais luziram com tanta vida, e ela toda nunca parecera tão bem disposta e tão sã.

O comendador, que havia passado o dia em sobressaltos com a demora da filha, era de todos o mais encantado por aquela metamorfose. Olímpia parecia-lhe agora como nos bons tempos, quando governara com o espírito toda a sociedade em que se achasse.

-O Dr. tinha razão! dizia o velho consigo; os exercícios são de evidente efeito! Hei de fazê-la, uma vez por outra, visitar a gruta! Se as melhoras continuarem deste modo, em breve tenho minha filha perfeitamente curada!

E o comendador chorava de alegria.

O jantar foi de uma animação sem exemplo na Avenida Estrela; os mesmos hóspedes que haviam comido já, voltaram à mesa atraídos pelas gargalhadas explodidas em torno da descrição que Olímpia fazia do seu passeio. Gregório, entretanto, não parecia o mesmo: estava abatido e concentrado. Por duas vezes seus olhos cruzaram-se no ar com os da caprichosa senhora, e ele por duas vezes os abaixara, dominado pelo mais estranho acanhamento.

-Pois eu pensei que chegasses aqui sem uma hora de vida! observou o pai, embebido a olhar para a filha, enquanto lhe servia a sobremesa.

-Nunca me senti tão bem disposta! respondeu ela, a estender o copo ao Falconnet para que lhe desse vinho. Sinto-me tão bem que estou resolvida a ir hoje a qualquer teatro!

-Que dizes?! exclamou o comendador, arredando a cadeira, com um salto.

-Que espanto! observou a rir a filha.

-Se te lembra cada loucura!

-Oh! Pois não é o senhor mesmo que me tem pedido todos os dias para ir aos teatros, aos bailes e aos passeios?...

-Sim, mas não depois de um dia como este!...

-Pois em outra qualquer ocasião não me lembraria semelhante coisa. Se recusei das outras vezes e aceito agora, é porque só agora tenho vontade de ir...

-Mas é que talvez venha a fazer-te mal!...

-Isso mesmo me dizia o senhor antes do passeio à gruta.

-Não desejo contrariar-te, mas...

-Vai sempre me contrariando, não é verdade?

-É que já são oito horas; tu deves naturalmente estar muito fatigada e...

-Ora, valha-me a paciência! Sinto-me, ao contrário, perfeitamente disposta.

E Olímpia, ameigando o pai, ordenou-lhe que se fosse vestir.

O comendador obedeceu, a dar de ombros. Papá Falconnet trouxe para a mesa os jornais do dia e discutiu-se qual seria o espetáculo preferível. Olímpia, sem se pronunciar por nenhum, recolheu-se ao quarto com a criada, enquanto ia chamar-se um carro e às dez horas partia com o pai para a cidade.

Em caminho decidiram-se pelo teatro S. Luís, onde trabalhava essa noite o Furtado Coelho, mas, no momento de comprar os bilhetes, Olímpia tomara outra resolução: queria ir ao Chiarini.

E o carro voltou para a Guarda Velha.

Funcionava o segundo ato, quando ela entrou no circo pelo braço do pai. Havia uma grande enchente; o entusiasmo explodia por toda a parte e todos os lados gritavam:

-Scott! À cena o Scott!

Dois sujeitos de libré azul com alamares dourados conduziam para o interior do teatro um cavalo que acabava de servir. Muitos espectadores estavam de pé. Das galerias trovejava um barulho infernal: batiam com as bengalas, com os pés; gritavam, gesticulavam. E por entre aquela descarga contínua e atroadora, só um nome sobressaía, exclamado por mil vozes:

-Scott! Scott!

Olímpia sentiu-se aturdida no meio daquele pandemônio. De repente, um grito uníssono partiu da multidão estalaram de novo as palmas, choveram os chapéus, agitaram-se os lenços, arremessaram-se os leques, os ramalhetes e as bengalas.

Scott havia reaparecido.

-Bravo! gritavam. Bravo!

E os aplausos estouraram com mais intensidade.

-Bravo, Scott! Bravo, Scott!

O acrobata, que entrara de carreira, parou em meio do circo, aprumou o corpo, sacudiu a cabeleira, e, voltando-se para todos os lados, atirava beijos e agradecia sorrindo, entre uma tempestade de aplausos.

Era um belo americano, rijo, atlético, ágil e robusto ao mesmo tempo. Olímpia, do lugar em que estava, via-lhe perfeitamente o azul dos olhos, a linha pura do perfil e a cintilação dos dentes.

Ele, depois de agradecer, estalou graciosamente os dedos e despediu-se, a dar cambalhotas no ar.

Rebentou de novo a tempestade das palmas, e as bocas dispararam uma sonora descarga de bravos.

Olímpia, entretanto, com a cabeça pendida para frente, olhar fito, a boca mal cerrada, caía na sua habitual tristeza e parecia a tudo indiferente.

Quando se retirava do teatro com o pai, um menino à saída apregoava a dez tostões, fotografias de Scott.

Ela comprou uma.

No dia seguinte, levantou-se muito tarde e de mau humor. Sua primeira frase, quando se encontrou com o pai, foi para lhe dizer que não ficava nem mais um dia na Avenida Estrela.

-Fizeram-te alguma coisa? perguntou o extremoso velho, esquecendo-se por um instante do prazer que lhe dava aquela resolução.

O comendador estava, como se costuma dizer, pelos cabelos, para deixar a casa do Papá Falconnet. Olímpia respondeu que não, com um gesto de cabeça, e acrescentou depois muito aborrecida:

-Estou farta de tudo isto! Preciso sair daqui quanto antes!

-Como quiseres, minha filha!

E ficou resolvido que partiriam naquele mesmo dia. Às duas horas da tarde apareceu o Dr. Roberto; o comendador tomou-o de parte e relatou-lhe minuciosamente as caprichosas mudanças de humor que a filha experimentara desde a véspera.

O médico ficou pensativo depois de o ouvir.

-A que horas voltou ela do tal passeio? perguntou afinal.

-Às sete e meia da noite.

-Jantou logo que veio?...

-Logo, e com uma boa disposição que há muito tempo não tinha. Depois quis ir ao teatro, coisa de que ela não podia ouvir falar...

A que teatro foram?

-Ao circo, ao Chiarini.

-Ah! resmungou o médico. Talvez ficasse nervosa à vista dos equilíbrios arriscados.

-Não sei... disse o pai; o fato é que ela estava ontem muito bem disposta e hoje, ao contrário, está impertinente como nunca!

E, depois de se conservarem ambos calados por algum tempo, o comendador acrescentou:

-Agora entendeu que não pode suportar mais esta casa e quer mudar-se hoje mesmo.

-E o comendador está resolvido a fazer a mudança?

-Pois não! já está tudo pronto. Partiremos daqui a pouco.

Olímpia apareceu já em trajos de sair. O Dr. Roberto foi pressurosamente ao seu encontro e perguntou-lhe pela saúde.

-Assim... respondeu ela sacudindo os ombros. Estou muito aborrecida.

-Tem tido dores de cabeça?...

-Um pouco, mas ontem passei muito melhor.

-Por que não dá de vez em quando um passeio como o de ontem? Eles lhe são de grande utilidade!...

-Talvez não seja tanto assim...

-Voltou muito fatigada?

-Muito menos do que supunha. Quando cheguei à gruta, sim, estava tão prostrada, que me parecia impossível voltar a casa.

-Veio depois a reação?

-É verdade, e fiquei então muito bem disposta.

-Foi em companhia de muita gente?

-A princípio, respondeu Olímpia, impacientando-se com as perguntas insistentes do médico; depois ficamos três, apenas.

E, como se quisesse fugir daquela conversa, saltou logo para outros assuntos muito diversos, e afinal pediu licença e afastou-se quase com arremesso.

O médico a viu ir, pensativo.

-É esquisito! disse ele consigo, e passou a prestar atenção ao Papá Falconnet, que ao seu lado lhe fazia rasgados cumprimentos em francês. O hoteleiro precisava que o doutor fizesse uma visita a um de seus locatários que amanhecera doente.

Tratava-se de Gregório. O médico foi conduzido ao quarto deste. Entrou quase às apalpadelas, porque vinha da grande claridade de fora. Só ao fim de algum tempo começou a distinguir o que tinha defronte dos olhos. Papá Falconnet o acompanhava, sempre a desfazer-se em cortesias e palavras agradáveis.

-Abra um pouco aquela janela, recomendou-lhe o médico.

Falconnet correu a cumprir a ordem.

Gregório estava assentado na cama, com os travesseiros entalados nas costas. Tinha o ar muito abatido e preocupado.

-Quem é? perguntou ele, ao sentir os passos do médico.

-É o doutor, respondeu Falconnet, entrando. Veio ver D. Olímpia e aproveitou a ocasião para fazer-lhe uma visita.

-Que tem ela? interrogou o rapaz.

-Está, como sempre, sofrendo dos nervos, explicou o Dr. Roberto.

-Mas não tem alguma novidade?

-Não, disse o médico sacudindo os ombros.

E, assentando-se à cabeceira do doente, indagou do que este sofria.

-Indisposição de corpo, respondeu Gregório. Nem valia a pena o incômodo de vir cá. Afinal não estou doente...

O Falconnet havia se aproximado e explicava que aquilo devia ser da soalheira apanhada na véspera.

-Ah! o Sr. foi ao tal passeio da gruta? perguntou-lhe o médico.

-É verdade, respondeu o enfermo.

O Falconnet principiou então a narrar o que a respeito do passeio ouvira na véspera contado por Olímpia.

-A ela entretanto fez bem!... considerou o Dr. Roberto, tomando o pulso de Gregório. E depois de examiná-lo, receitou e prometeu voltar.

Olímpia retirou-se com o pai nesse dia, como estava combinado. Não se despediu de Gregório, mas o comendador foi à procura dele para agradecer o incômodo que tomara o rapaz na véspera com a filha.

Gregório ficou surpreendido com a notícia da partida de Olímpia. Não podia acreditar! Pois ela ia assim, sem mais nem menos, sem lhe dar uma palavra, como se nada tivesse havido entre eles dois?...

Entretanto o comendador lhe oferecera a casa, e Gregório pensava com prazer em aproveitar esse obséquio. No dia seguinte, sem ter aliás experimentado melhoras, levantou-se da cama, vestiu-se e saiu. Na ocasião em que ganhava a rua deu com o Dr. Roberto, que o ia visitar.

-Pois o senhor já de pé? perguntou-lhe este com um gesto de censura.

-Estou perfeitamente bom, respondeu o outro.

-Não me parece. Ainda ontem tinha febre...

-Não era coisa de monta... O passeio há de fazer-me bem. Vou visitar o comendador.

-Ah! nesse caso vamos juntos; eu tencionava também ir para lá quando daqui saísse.

E os dois começaram a descer a rua do Rio Comprido. O Dr. Roberto ia preocupado: a singular moléstia de Gregório e aquela pressa do rapaz em visitar, ainda doente, o comendador; as melhoras efêmeras de Olímpia, a circunstância de haver Gregório tomado parte no passeio à gruta; tudo isso dava tratos à imaginação do médico.

-Ah, rapazes, rapazes, dizia ele consigo. E oh, mulheres! mulheres!

Em casa do comendador foram surpreendidos por uma novidade: Olímpia não queria ficar em Botafogo e exigia agora que o pai a levasse para a Tijuca.

Estavam tratando da nova mudança quando os dois entraram. Olímpia recebeu Gregório com muita frieza, mal lhe deu as pontas dos dedos e não lhe dirigiu palavra durante o tempo em que estiveram juntos. Parecia que nunca houvera absolutamente nada entre eles. Gregório ficou enfiado; no seu raciocínio aquele procedimento significava nada menos que cinismo. Olímpia aparecia-lhe agora ao espírito como uma mulher vulgar, friamente dissimulada e capaz de todas as hipocrisias. Mas se ela o tratava desse modo, o comendador, pelo contrário, procurava cercá-lo de obséquios e cortesias.

-Apareça-nos sempre, dizia o bom velho. O senhor dá-nos muito prazer com a sua visita.

Gregório chegou a casa possuído de um aborrecimento extraordinário; tudo o enfastiava, tudo o constrangia. Já não podia suportar as palestras do Papá Falconnet, quando este disparava no seu entusiasmo a falar de Bonaparte; já não encontrava prazer nos jogos de exercício com os outros rapazes da Avenida. Tudo o contrariava, tudo o enchia de tédio, porque tudo lhe recordava a ausência de Olímpia.

O velho divã da sala de jantar, onde ela às vezes se quedava esquecida com um livro abandonado no regaço, as flores que ela preferia para as suas jarras, a escada em que ela subira no momento em que Gregório a viu pela primeira vez; tudo o atormentava, tudo o mergulhava numa nostalgia insuportável e sem fundo. Quanto mais se convencia de que ela o desprezava; quanto mais se compenetrava de que ela o não queria; mais assanhado o desejo lhe trincava o coração e lhe chibateava os sentidos.

O Dr. Roberto foi o único que compreendeu tudo isso.

Nestas condições Gregório resolveu abandonar a Avenida Estrela. A preocupação do seu amor infeliz absorvia-lhe a melhor parte da atividade; já não estudava, pouco trabalhava, sentia-se ir enfraquecendo e acovardando todos os dias. O desgosto secara-lhe a coragem com que até aí cometia qualquer empresa e que lhe assegurava o bom êxito antes de dar o primeiro passo. Estava mais magro, mais descorado e mais tímido.

O Dr. Roberto principiou então a interessar-se por ele. Gregório piorava, só um bom tratamento o salvaria; o pobre moço tinha os pulmões fracos e predispostos para a tísica, porque, participando moralmente do caráter generoso e do gênio dócil de Cecília, herdada, pelo lado paterno, as conseqüências mórbidas da vida libertina de Pedro Ruivo.

O médico, quando o viu em risco de vida, carregou com ele para casa e transformou-o no objeto dos seus cuidados. É que Roberto ainda não tinha família e precisava dedicar a alguém essa porção de ternura e generosidade que traz consigo todo o coração bem construído, pronto a franqueá-lo ao primeiro que se apresente disposto a conquistá-la. Em pouco tempo os ligava a mais inquebrantável amizade.

E, de resto, não era difícil amar Gregório: ele dispunha em alto grau dessa irresistível simpatia, que é como o perfume das almas cândidas e que em geral se manifesta pelo sentimento da justiça. Não tinha os encantos brilhantes do homem de talento; não possuía a capitosa sedução de um espírito original e criador, mas cativava com a doçura da sua voz, com a simplicidade dos seus costumes e com a meiga ingenuidade do seu coração. Ele não deslumbrava, mas seduzia.

No fim de algum tempo o Dr. Roberto tinha por ele a afeição que se pode ter por um filho adotivo. O comendador Ferreira, a quem Gregório freqüentava com mais assiduidade depois que se restabeleceu, fora também pouco a pouco se penetrando do mesmo sentimento pelo rapaz e acabou por não poder dispensar a companhia dele.

Só faltava Olímpia, mas a respeito desta não devemos adiantar idéia, sem primeiro voltarmos ao ponto em que a deixamos à saída do espetáculo. Todavia, para fazer justiça a Gregório, convém declarar que este, ao saber com certeza da posição da sua bem-amada, e logo que reconheceu a afeição com que o comendador o acolhia, se sentiu envergonhado e tratou de retrair os impulsos que o impeliam para Olímpia. Foi o pior. É muito perigoso contrariar uma mulher nas circunstâncias daquela. Mas deixemos por enquanto tudo isso de parte e vamos colher a caprichosa filha do comendador na ocasião em que ela entra no carro que a esperava à porta do circo Chiarini.

O pai havia já por duas vezes lhe dirigido a palavra, perguntando-lhe o que a fazia preocupada e triste. Olímpia respondera sacudindo os ombros, e durante o caminho não articulou palavra.

Mal, porém chegou ao seu quarto, atirou-se sobre o divã e abriu a chorar com desespero.

A nova casa que eles foram habitar na Tijuca era um pequeno e elegante chalé pintado de azul, com guarnições de mármore branco. Havia no jardim um belo renque de palmeiras, que ia desde o portão de ferro até à varanda da sala de visitas.

Olímpia quase nunca se mostrava agora, comprazia-se em ficar no quarto, entretida com algum romance ou a bordar à luz da janela. Saía às vezes à noite com o pai, para ir ao circo Chiarini, mas isso mesmo já principiava a enfará-la. Gregório ia aos domingos jantar com eles; a senhora o tratava com frieza, e muitas vezes nem vinha à sala. O Dr. Roberto teve de fazer uma viagem ao norte e partira, deixando a roda do comendador mais reduzida e mais fria. Olímpia piorava.

Uma vez estavam no circo, ela, o comendador e Gregório. Olímpia não dava uma palavra; tinha os olhos presos em Scott. O acrobata fazia nessa ocasião o seu melhor e mais arriscado trabalho.

Era a sorte dos vôos. Tomava um trapézio, deixava-se arrebatar por ele, depois soltava as mãos, dava uma cambalhota no ar e ia agarrar-se afinal a um outro trapézio que o esperava do lado oposto.

A cada um desses saltos seguia-se uma explosão de palmas.

Scott havia já por duas vezes feito o seu vôo arriscado, faltava-lhe só o último e o mais difícil. Consistia este no mesmo que os primeiros, com a diferença de que o acrobata, em vez de se arrojar de frente, tinha de atirar-se de costas e voltar-se no espaço para alcançar o trapézio fronteiro.

Scott assomara no trampolim armado além das torrinhas, ao pé do teto. Havia um grande silêncio comovido nos espectadores, os corações batiam com sobressalto. Todos os olhos estavam cravados na esbelta figura do acrobata, que, lá do alto, nas suas roupas justas de meia, parecia uma bela estátua de mármore. Destacava-se-lhe bem o peito largo e abaulado, via-se-lhe a riqueza dos braços e a nervosa musculatura das coxas.

Scott tomou o trapézio com uma das mãos, enquanto limpava com a outra o suor da testa; depois colocou o lenço a cintura, esfregou pez nas palmas das mãos e agarrou-se ao braço do trapézio. Ouvia-se a respiração ofegante do público. Scott sacudiu o corpo, experimentou o trapézio e deixou-se arrebatar por este, de costas. Em meio do círculo desprendeu-se, gritou: «Hop!», deu uma volta no ar, e lançou-se de braços estendidos para o outro trapézio. Mas o vôo fora mal calculado e o acrobata não encontrou onde agarrar-se.

Um terrível bramido ecoou por todo o teatro. Viu-se a bela e máscula figura de Scott, solta no espaço, virar para baixo a cabeça e cair estatelada no chão, com as pernas abertas. O recinto do circo encheu-se logo. Nos camarotes mulheres desmaiavam em gritos; algumas pessoas fugiam do teatro, espavoridas como se houvesse um incêndio; outras jaziam pálidas, a boca aberta e a voz gelada na garganta. Ninguém mais se entendia; davam-se encontrões. Nas torrinhas passavam uns por cima dos outros para poder ver se distinguiam o acrobata. Este, entretanto, sem acordo e quase sem vida, agonizava por terra, a vomitar sangue.

Olímpia, sem saber como, estonteada, trêmula da cabeça aos pés, achou-se ao lado dele. Ajoelhou-se no chão, tomou a cabeça do acrobata e pousou-a no regaço.

Scott estremeceu, esticou os membros, torceu a cabeça para trás, revirou os olhos, contraiu a boca e deu o último suspiro.

Olímpia soltou um grito, caiu de costas e começou a estrebuchar.

D. Teresinha

Olímpia só acordou de si em casa, ao lado do pai.

Acompanhara-os desde o circo um médico ainda moço, que se achava no teatro por ocasião do desastre. Era o Dr. Dermeval da Fonseca.

Dos três parecia ser este o único que conservava o sangue frio na alcova a que recolheram a desfalecida. O comendador nada mais fazia do que ir de um para outro lado, sem nunca acertar com os objetos que lhe pedia o assistente. Expediram-se receitas para a botica, vieram os remédios, e às onze horas a enferma voltava a si. Abriu os olhos, olhou espantada por algum tempo para o pai e para o Dr. Dermeval; depois, reconstruindo as idéias, lembrou-se do fato que a fizera desmaiar, soltou um novo grito e recaiu em convulsões. O Dr. Dermeval e o comendador apoderaram-se dela. Olímpia queria morder os pulsos e gritava, agatanhando-se.

Gregório, na sala próxima, passeava muito agitado, impacientado por descobrir um meio de ser útil àquela situação. Mas não tinha ânimo de aproximar-se do quarto de Olímpia; receava com isso cometer erro maior. Ao mesmo tempo o seu amor-próprio se sentia acirrado pelo desastre do acrobata: Gregório sentira ciúmes desde a primeira vez que observara o modo apaixonado pelo qual Olímpia acompanhava com a fisionomia as difíceis e graciosas evoluções do gentil funâmbulo.

Não é que ele contasse ou ambicionasse merecer algum dia o amor da caprichosa senhora; não, porque estava no firme propósito de nunca deixar transparecer o menor vislumbre dos seus desejos, ainda que para isso fosse necessário afogá-los em sangue. Mas o coração também vive desse dúbio querer e não querer; desse vago desejar, que nasce e avulta em nossos sentidos, sem o menor concurso do raciocínio. Gregório era sem dúvida um espírito sumamente romântico e sempre voltado para o ideal, mas era latino e tinha dezoito anos; não podia, por conseguinte, furtar-se às tendências naturais do meio em que nascera e à fatal idiossincrasia de sua raça; educara o seu caráter e o seu gosto artístico pelos velhos moldes líricos, cuja influência lhe chegava ao espírito por intermédio de alguns livros, às vezes mal escolhidos, e de alguns jornais quase sempre pouco escrupulosos. Lamartine foi um dos primeiros que se apoderaram dele, que lhe, fascinaram a alma com a sua sedutora tristeza apaixonada; depois Musset, Gautier e Vítor Hugo terminaram a obra. Gregório não resistiu ao desejo de sentir com eles. Era tão agradável chorar na sua idade! É tão bom sofrer quando sofremos por gosto!...

Olímpia, depois da morte de Scott, ficou muito pior; o pai já não contava com ela e deixava-se mergulhar em fundo e surdo desespero.

O Dr. Dermeval não poupava esforços para salvá-la. Fizeram-se várias conferências médicas; a opinião predominante era que Olímpia, se escapasse da morte, viria a sofrer para sempre das faculdades mentais. Só o Dr. Dermeval discordava.

E principiou este, mais do que nunca, a interessar-se por ela. Ia visitá-la todos os dias, procurava distraí-la, contava-lhe histórias espirituosas, oferecia-lhe de vez em quando um livro e falava-lhe de teatros e bailes. Olímpia, com efeito, ao fim de pouco tempo, experimentava melhoras, e daí a dois meses passeava no jardim pelo braço do pai.

Depois da moléstia ficara muito amiga de Gregório, tratava-o agora com extrema condescendência, quase com amor. Uma vez apareceu ele mais cedo que de costume (acabava-se de tirar a mesa e o comendador fazia a sesta no gabinete). Olímpia, ao ver entrar aquele, soltou logo uma exclamação de prazer e correu ao seu encontro com os braços abertos.

-Oh! disse ela; o senhor foi hoje verdadeiramente amável...

E abraçou-o.

O rapaz ficou perplexo com semelhante recepção, e nada mais conseguiu do que gaguejar algumas palavras de agradecimento. Em seguida, assentaram-se os dois no mesmo divã e puseram-se a conversar. Olímpia mostrava-se aquela tarde de uma estranha expansão, e Gregório, ao contrário, parecia como nunca retraído e contrafeito.

Falaram vagamente sobre todos os assuntos de que se podiam lembrar para encher a conversa. Ela ofereceu-lhe café, e foi pessoalmente buscar uma garrafa de licor; pediu-lhe depois que lhe desenhasse alguma coisa no álbum. Gregório obedeceu; mal, porém, tinha principiado o desenho e já a caprichosa lhe arrancava o lápis dos dedos e lhe pedia para fazer-lhe antes um pouco de leitura. Gregório foi à biblioteca, tomou os Primeiros cantos de Gonçalves Dias e principiou a recitar o episódio do Pirata.

-Não! disse Olímpia, pousando-lhe a mão na boca. Leia-me outra coisa... faz-me mal esse poeta!... Não gosto de lhe ouvir os versos senão quando preciso chorar...

Gregório lembrou Casimiro de Abreu, ofereceu Castro Alves, intercedeu por Fagundes Varela. Ela, porém, não aceitou nenhum deles.

-Olhe! cá está o Machado de Assis! Quer?...

Olímpia respondeu que não, sorrindo com faceirice e agitando o indicador da mão direita.

-O Luiz Guimarães?...

-Não...

-Ah! Cá está o Muniz Barreto!

-Não! não!

-Quer antes um poeta francês?... prefere ouvir um trecho de prosa?...

-Não! Já não quero nada disso. Dê-me aquele álbum que ali está...

Gregório foi buscar sobre o piano o álbum indicado.

-Agora sente-se aqui. Aqui justamente, neste banquinho. Bem; vejamos juntos estes desenhos.

Gregório ficara muito encostado ao divã em que estava Olímpia. Esta abriu o álbum sobre os joelhos e passou a primeira folha.

-Sabe quem fez isto? perguntou sorrindo.

Gregório inclinou-se mais para ver.

-Fui eu, explicou Olímpia. Não está bem feito?...

-Está muito bonito, disse o rapaz, prestando pouca atenção ao desenho.

-E este?... Que tal acha? continuou ela, voltando a folha.

-É, respondeu Gregório, quase sem olhar para a página.

-Olhe para cá! repreendeu Olímpia, segurando-lhe a cabeça e obrigando-o a olhar para o álbum.

Gregório riu-se.

-Chegue-se mais! acrescentou ela ainda em ar de repreensão. Parece-me tolo!...

-A senhora está hoje muito amável!...

-Faça-se engraçado! Pensa que não sou capaz de puxar-lhe as orelhas!...

E terminou esta frase, segurando amorosamente a cabeça do rapaz e puxando-a para junto dos lábios.

Gregório retirou a cabeça de suas mãos e ergueu-se.

-Não! não! balbuciava ele a desprender-se-lhe dos braços.

-Você é um idiota! exclamou Olímpia, repelindo-o com raiva. E afastou-se da sala muito apressada.

Nessa ocasião acabava o comendador a sua sesta no gabinete e preparava-se para apresentar-se, como sempre, de colarinho limpo, barba feita e cabelo bem escovado.

Ele não era homem capaz de aparecer mal a ninguém. A filha nunca o vira em mangas de camisa. Apurava-se muito na roupa; tratava cuidadosamente dos dentes, que os tinha magníficos; e trazia freqüentemente, na algibeira do seu colete de seda preta, um canivetinho com que às vezes se entretinha a brunir as unhas.

Jacó era o seu braço direito. Era o Jacó quem lhe fazia a barba, quem o vestia, quem lhe cuidava dos sapatos, quem lhe metia os botões na camisa. Ninguém mais fazia isso a gosto do comendador.

Ainda em vida da mãe de Olímpia, já o desvelado doméstico invadia todas essas atribuições e gozava do valimento do amo. Foi ele, até, entre os íntimos do comendador, quem tomou parte mais ativa no segundo casamento deste. O comendador consultara a opinião do criado.

Jacó achava a noiva um pouco moça demais para o amo. O comendador já não estava criança!...

O pai de Olímpia opunha então a circunstância de que tinha filhos, de que precisava de uma senhora que lhe tomasse conta da casa e dirigisse a educação das crianças.

-Ora, replicava o velho criado; a Sinhazinha não está tão pequena que precise de madrasta!... (Esta Sinhazinha, a que se referia o bom Jacó, era Olímpia). E o Nhonhô, acrescentava ele, sai do colégio apenas duas vezes por ano...

Mas, apesar de tudo, o comendador contraiu novo matrimônio, do qual lhe resultaram aquelas duas malogradas gêmeas de que já tratamos. Não foi feliz nas segundas núpcias: o criado tinha razão quase inteira. Ao casar, o comendador não estava totalmente velho, mas caminhava muito de perto para isso. A velhice às vezes é uma janela que se abre de repente, e por onde fogem no mesmo instante os últimos raios da mocidade.

A segunda mulher do comendador orçava então pelos vinte anos e era rapariga muito bem constituída de corpo. Sem ser bonita, ostentava esse encanto inestimável da saúde e da força, que tem para o homem as mesmas qualidades atrativas que a brilhante clorofila das flores, segundo Darwin, tem para os insetos voláteis.

Pelos seus olhos vivos e travessos, pelo moreno quente das suas faces coradas e viçosas, pelos seus lábios carnudos e vermelhos, pelo vigor da sua larga respiração e pela sedutora frescura dos seus dentes, a segunda mulher do comendador estava a pedir um marido mais esperto e mais senhor de si; de sorte que, por ocasião de escancarar-se a janela de que há pouco falamos, se escaparam logo, de envolta com os últimos raios da mocidade do infeliz marido, as estopinhas da fidelidade conjugal, cujos votos a esposa do comendador principiava a romper com toda a força dos seus ricos vinte anos.

Uma janela aberta e que se não pode fechar, é um perigo constante para a casa a que pertence, principalmente se nesta houver uma flor, porque os insetos andam soltos lá por fora.

O primeiro inseto que entrou pela janela foi o Portela, aquele morigerado e belo moço do comércio, convidado por Henriqueta e Leão Vermelho para servir de padrinho de batismo à nossa Clorinda, e o qual, mais tarde, vimos transformado em comendador, a conversar em companhia do Adelino Fontoura e do Duque-Estrada em casa da afilhada.

Portela estava por esse tempo no vigor dos anos; teria quando muito vinte e cinco, porque justamente na mesma época batizara ele a filha natural de Leão Vermelho.

Vejamos agora quais foram as circunstâncias que o aproximaram da mulher do comendador Ferreira, porque elas se ligam às futuras cenas desta narrativa.

O pai de Olímpia ainda então se achava no comércio ativo, de sociedade com um tal João Figueiredo, tão comendador como ele, porém muito menos fino e menos traquejado nas salas. O nosso Portela era caixeiro da casa. Nesse tempo, como deve saber o leitor, os empregados do comércio não gozavam em geral de certas regalias, que só mais tarde lhes foram conferidas pelos patrões. O bigode, a gravata, o fraque, por exemplo, eram fruto proibido para os caixeiros.

Entrar em um café, fumar um charuto, saber dançar uma quadrilha francesa, tudo isto, para os infelizes moços, eram verdadeiros crimes de lesa-moralidade comercial. Mas o comendador Ferreira não se deixava levar por tão mesquinhos preconceitos e dava aos seus empregados plena liberdade de deixar crescer o bigode, vestir um fraque, penetrar nos raros cafés dessa época e fumar os charutos que quisessem.

O Figueiredo opunha-se amargamente contra semelhante liberdade do sócio.

-Você me quer estragar os rapazes!... dizia ele, penetrado de um grande desgosto. Pois você não vê, seu Ferreira, como tudo por aí anda já tão desmoralizado!... Não vê como hoje só há pelintras?! Não vê que hoje em dia os rapazes, em vez de aproveitarem o domingo para ir à missa, querem ir fumar charutos ao Passeio Público e meter-se à tarde na patifaria do teatro?!...

E o Figueiredo, possuído cada vez mais da sua indignação, revoltava-se contra o sócio; mas o comendador Ferreira não se deixava catequizar e continuava a dar folga aos rapazes.

É porém seguro que, entre os caixeiros da casa, só um se aproveitava verdadeiramente dessas regalias, e esse era o Portela. Aos domingos, em vez de ir para o canto da rua, como faziam seus companheiros, assentar-se a um banco de pau e ver quem passava, o pretensioso caixeiro ataviava-se com roupas de casimira francesa, metia um charuto entre os dentes, e punha-se de passeio pelas ruas. Estas especialidades davam-lhe aos olhos das moças suas conhecidas certa distinção simpática: Portela era citado por ela como a flor dos rapazes do comércio.

E o fato é que ficava um rapagão, quando envergava o fraque de pano fino, vestia um par de calças novas, armava o seu chapéu alto e ganhava a rua, rangendo as botinas e picando a calçada com a biqueira da bengala. Dos empregados do nosso comendador foi ele o único que compareceu ao casamento do patrão. O Figueiredo teve uma vertigem quando o viu chegar de carro e casaca.

-Ora com efeito!... resmungou o caturra, a sacudir a cabeça. E afastou-se para não disparatar ali mesmo com o sócio.

Portela dirigiu-se mais de uma vez à noiva, felicitou-a, disse-lhe palavras muito bonitas e pediu-lhe que lhe reservasse um dos seus alfinetes dourados. À mesa ergueu-se com desembaraço para brindar o patrão, e seu discurso foi muito bem recebido. Desde esse dia o comendador o convidou para jantar aos domingos, e Portela não faltou a nenhum deles. Às vezes havia dança e ele dançava; se havia jogos de prenda, brincava; e, se havia meninas solteiras, namorava.

D. Teresinha, como tratava ele a mulher do patrão, não lhe votava entretanto mais do que uma pequena estima, mais generosa que outra coisa, e perfeitamente compreendida no círculo dos seus deveres conjugais.

Por essa época já ela estava grávida das duas gêmeas a que nos referimos. O tempo passou; nasceram as meninas, e Portela sempre a freqüentar a casa do comendador, cada vez mais considerado e mais querido.

Quando a peste, que nessa época assolava o Rio de Janeiro, entrou em casa do bom negociante e lhe arrebatou dos braços os adoráveis frutos do seu segundo matrimônio, o pobre homem recebeu o golpe em cheio no coração e caiu desanimado e sem forças. Portela foi o único que teve o segredo de distraí-lo da desgraça, chamando-o de novo à vida.

Foi então que uma forte rajada dos ventos da velhice se atirou de súbito contra a tal janela e abriu-a de par em par. O comendador envelheceu da noite para o dia.

A transição da virilidade para a decrepitude é tão sobressaltada como a passagem da meninice para a puberdade. O desgraçado sentiu faltar-lhe a coragem para tudo; não queria festas, não queria distrações; o próprio trabalho já não tinha para ele nenhum dos atrativos de outrora. E, enquanto os fatos assim se sucediam, o Portela empregava todos os esforços para alcançar a mão de Olímpia, cujos encantos principiavam a vestir as galas da mulher, resplandecendo dentro da auréola de seus quinze anos. Distinta, rica, inteligente e formosa, a filha do comendador representava, para o caixeiro, o melhor partido que este poderia ambicionar.

O comendador estava por tudo; só faltava que a menina se resolvesse. Ela recusou. O pai tentou ainda defender a pretensão do amigo; Olímpia voltou-lhe as costas.

Foi por esse tempo que o comendador, sentindo-se esgotado e precisando descansar, resolveu sair do comércio ativo. João Figueiredo, logo que liquidou as contas do sócio e ficou só, declarou ao Portela que não o suportaria nem mais uma semana em sua casa.

-Até ali era preciso respeitar a vontade do comendador Ferreira; agora não havia razão para aturá-lo!

O comendador, sabendo do fato, ficou furioso e chamou o rapaz para sua companhia.

-Havemos de arranjá-lo, prometeu ele; mas enquanto não aparecer emprego, ficará ao meu serviço. O senhor terá um ordenado, casa e comida.

Portela mudou-se logo para a casa do comendador. De muito pouco serviço dispunha este para lhe dar a fazer; não passava todo ele das contas de suas propriedades alugadas e uma ou outra carta comercial exigida pelas pendências com a praça. Compreende-se, por conseguinte, que o rapaz tinha folga e grande folga.

Trabalhava no próprio escritório do patrão, ao lado da biblioteca, perto da sala de jantar, onde Teresinha costurava. Às vezes o Portela punha de lado a pena, fechava a sua costaneira e ia dar dois dedos de palestra à patroa. Ela o tratava com muita deferência.

Um dia, seriam duas horas da tarde e o comendador não estava em casa. Teresinha parecia entretida de todo com a sua máquina de costura, e Olímpia passeava na rua do Ouvidor com as amigas.

Fazia muito calor: outubro nunca estivera tão insuportável e tão cheio de moscas.

O ar morno e pesado produzia quebrantes no corpo e convidava a gente a estender-se no chão, sobre a esteira, e deixar-se ficar de olhos fechados em plena preguiça. Quase que se não podia respirar. As cortinas da janela tinham uma imobilidade de pedra.

O comendador morava já em Botafogo, na mesma casa donde mais tarde o arrancou Olímpia para dar com ele na Avenida Estrela e depois no modesto chalezinho da Tijuca. Via-se da sala de jantar a baía defronte reverberar aos raios do sol: o Pão de Açúcar, completamente nu de nuvens, se refletia por inteiro no ardente espelho das águas, e o céu, descoberto e brilhante, parecia feito de porcelana azul!

Teresinha largara o trabalho para resfolegar e refrescar as faces com a palma de sua mão gorda e macia. Portela apareceu à porta do gabinete e fez uma exclamação sobre o calor, despregando com os dedos abertos o seu rico cabelo, preto e anelado, que o suor grudava ao casco da cabeça.

-É! respondeu ela; está horrível!

-Não se pode trabalhar, considerou Portela, soprando afrontado. E foi assentar-se perto de Teresa.

-Então, como passou desde ontem dos seus incômodos nervosos? perguntou a mulher do comendador, referindo-se a uma conversa da véspera.

-Ah! ainda se lembra disso?...

-O senhor queixou-se tanto!...

-Qual! Eram manhas; o meu mal é outro. Não sei se mais difícil ou mais fácil de curar!... E, depois de fazer um gesto de convicção, acrescentou: Nasci para ser casado; não me serve a vida de solteiro...

-Não caia nessa asneira!... aconselhou Teresinha, fazendo-se muito séria.

-Mas asneira, por quê?...

-Ora! É uma desilusão! Eu preferia estar ainda hoje solteira e vivendo como dantes em casa de minha madrasta...

-Todavia a senhora não tem razão de queixa...

Teresinha respondeu dando um grande suspiro.

-Não vive então satisfeita?... perguntou ele, pondo na voz uma extrema doçura.

-Ai, ai! Mudemos antes de conversa...

E passou abruptamente a falar sobre uma bela tartaruga amazonas, que o comendador, dias antes, recebera de presente.

-Era um bicho esquisito, muito grande, fazia aflição olhar para ele! Uma verdadeira raridade!

Portela mostrou desejo de ver o animal, e os dois desceram à chácara.

Levaram algum tempo à borda do tanque, ao lado um do outro, acompanhando os movimentos preguiçosos do anfíbio. Portela declarou que de cara o achava parecido com o João Figueiredo, e esta rancorosa comparação fez rir à senhora.

-Ali sempre era melhor de estar que lá em cima, considerou depois o rapaz.

-É mais fresco, disse Teresinha, dirigindo-se para uma rua de bambus que costeava a casa e ia dar afinal a um agrupamento de árvores no fundo da chácara. Portela acompanhou-a, oferecendo-lhe o braço. Ela aceitou, e puseram-se ambos a passear muito vagarosamente por entre a rumorosa sombra da alameda.

Ouviam-se estalar as folhas secas debaixo de seus pés. Teresinha não dava uma palavra, toda segura ao braço do rapaz caminhava vergada para ele, como se prestasse atenção a uma conversa de muito interesse. A certa altura pararam; e ela parecia fatigada, a julgar pela dificuldade com que respirava. Os dois olhares se encontraram, mas ao mesmo tempo se fugiram, porque cada um compreendeu de relance o que se passava no pensamento do outro.

E tornaram a caminhar, sempre em silêncio, mas desta vez Portela tinha entre as suas uma das mãos de Teresinha. Chegados ao fundo da chácara, sentaram-se juntos debaixo de uma mangueira, sobre um banco que aí havia. A senhora, de olhos baixos, fitava com insistência um ponto no chão, e suspirava de vez em quando, como se um pensamento doloroso a torturasse.

Portela chegou-se mais para ela, passou-lhe meigamente um braço sobre o ombro e perguntou-lhe com muito carinho o que a fazia assim tão triste.

-Não era nada!... segredos de sua pobre vida!... Coisas que não poderiam interessar a ninguém...

E Teresinha continuava de olhos imóveis, quase a chorar.

-Não! insistia o rapaz com a voz cada vez mais doce; a senhora sofre qualquer coisa. Não me diz o que é, porque não lhe mereço confiança, mas sofre...

E afagava-lhe os cabelos e o pescoço. Teresinha sentia-lhe o tremor nervoso da mão e percebia-lhe a comoção da voz.

-Não é feliz com o comendador?... perguntou Portela em voz baixa, chegando a boca ao ouvido dela.

-Foi uma asneira este casamento! respondeu Teresa. Eu passo uma vida de viúva. Ele, por bem dizer, não é meu marido. Entretanto, juro-lhe que desejava ser a esposa mais fiel e dedicada deste mundo!...

E começou a chorar aflita.

-É mesmo desgraça de cada um! acrescentou soluçando.

-Não se aflija dessa forma! disse o rapaz, puxando a cabeça de Teresinha para o seu ombro. Tenha uma pouco de resignação!...

-Mas não acha que devo passar uma vida estúpida e aborrecida?! Ando nervosa, sem apetite, tenho vertigens! tenho coisas de que nunca sofri até agora! Além disso, ele, porque já aborreceu os divertimentos, entende que os mais também não se devem divertir! Eu não vou a um baile, não vou a um teatro, não apareço a ninguém... Que diabo! eu tenho apenas vinte seis anos!

Portela dava-lhe toda a razão, e pedia-lhe que não se mortificasse.

-E você ainda pensa em casar... continuou ela, já em outro tom, não caia nessa! É uma asneira! É um engano! Se quiser aceitar o meu conselho, fique solteiro toda a vida! Ah! se eu fosse homem!...

E Teresinha suspirou de novo, e sacudiu a cabeça com um gesto cheio de intenções.

-Se fosse homem não se casaria? perguntou ele.

-Eu?! exclamou a rapariga, apertando os olhos, nunca!

-E a velhice depois, o abandono, as moléstias?...

-Ora! eu sei que não chegaria à velhice!... Além de que há muito quem cuide da gente, sem ser preciso casar.

-Mas também a vida assim, sem termos uma companheira constante ao nosso lado...

E, passando o braço na cintura de Teresinha, concluiu:

-Não pode ser grande coisa!

Ela continuou a queixar-se, falou amargamente da sua vida; disse que naquela casa representava o papel de um «dois de paus»; a verdadeira senhora era Olímpia!

-Já tenho medo de dar qualquer ordem aos criados, acrescentou com um gesto desabrido; porque posso ser desmoralizada mais uma vez. Isto é vida!? Como senhora não tenho força moral, como mulher não tenho marido! Não tenho nada!

E as recriminações recrudesciam, acompanhadas de soluços. Portela, todas as vezes que lhe puxava a cabeça para junto dele, sentia-lhe o nariz frio e os lábios trêmulos.

Quando o comendador voltou, daí a uma hora, encontrou-os já dentro de casa; Teresinha a costurar na sala de jantar, e Portela a fazer escrituração mercantil no gabinete.

Desde esse dia, a mulher do comendador principiou a melhorar dos nervos; em breve não se queixava mais das tais vertigens, comia com apetite, dormia muito bem e cantarolava durante a costura. Só quatro meses depois que o Portela se hospedara em casa do comendador, conseguiu este arranjá-lo em uma empresa comercial que se acabava de criar. Tal fato veio alterar um pouco a vida do caixeiro e enchê-lo de enormes saudades pelas horas sobressaltadas e felizes que conseguia passar ao lado da amante. O amor de Teresa constituíra-se para ele em hábito, em necessidade, sem todavia perder o encanto dos primeiros tempos, graças às circunstâncias que o dificultavam e que faziam dele um objeto proibido.

No dia em que se lhe cortassem as dificuldades e lhe suprimissem o perfume do mistério, Portela haveria de aborrecer-se e de enfastiar-se da amante, como sucede fatalmente em todos os casos idênticos.

Mas, nem ele, nem ela, se lembraram de fazer semelhante reflexão, pois se a fizessem, não cometeriam a leviandade de praticar o que vamos expor no capítulo seguinte.

À beira do precipício

O comendador principiava a sarar das suas mortificações; voltava pouco a pouco aos seus antigos hábitos; ia-se finalmente restituindo ao amor pela vida e aos gozos tranqüilos que lhe permitiam os anos.

A dura morte das suas duas adoradas filhinhas anuviara-lhe o semblante, azedara-lhe o gênio, mas não lograra quebrar-lhe a linha.

Nas crises do seu mais fundo desgosto jamais desmanchara o penteado ou amarrotara os punhos. Chorou sempre engravatado e limpo; as lágrimas correram-lhe livremente pelo rosto escanhoado, e os suspiros saíram-lhe da boca impregnados de cheiroso dentifrício. Por triste e magoado não esqueceu ele nenhum dos requisitos do cavalheirismo com as pessoas que lhe foram dar pêsames; e, no meio da grande opressão, encontrou galanterias sutis para oferecer às damas que o acompanharam naquele inconsolável transe.

Não perdeu o prumo, o que ele perdeu foi o apego da esposa, porque entre os dois cônjuges se havia intrometido a pujante figura do Portela.

Meter no coração de qualquer família um homem, que não seja parente imediato e por conseguinte solidário natural da sua dignidade e da sua honra, eqüivale quase sempre a meter um poraquê num tanque de outros peixes. O choque produzido pelo elétrico intruso é o bastante para destruir os companheiros de casa.

Teresinha descobriu no Portela todas as regaladoras qualidades físicas que não encontrou no marido. Até aí fazia ela um juízo bem triste do amor; julgava-se desiludida a esse respeito.

-Sempre supunha que fosse outra coisa! confidenciara a uma amiga poucos dias depois do casamento.

O amante, porém, logo lhe invertera radicalmente tão falso ponto-de-vista, apresentando-lhe o amor pelo brilhante prisma da mocidade, da força e do arrebatamento da paixão. Teresinha ficou surpreendida, ficou maravilhada.

-Quanto havia sido injusta! dizia depois consigo, toda palpitante de felicidade.

E, desde então, tudo se transformou em torno dos seus sentidos: o mundo exterior apresentava-lhe agora encantos inesperados; tudo lhe sorria, tudo a namorava, tudo lhe falava com uma voz afetuosa e doce. Os seus gostos e as suas aptidões intelectuais foram acordando, como ao toque da varinha encantada de uma fada. Achava prazer na leitura, nos divertimentos, no trabalho, na preocupação dos arranjos da casa, e até, o que é mais extraordinário, principiava a experimentar pelo marido certa simpatia respeitosa e compassiva. O comendador, até então, era perfeitamente insuportável a Teresa; ela não o podia ver com a sua calva escondida nos longos fios de cabelos emplásticos, com o seu inalterável ar de diplomata aposentado, e com o seu olhar entorpecido através dos óculos. Antes de raiar a aurora do seu amor com o caixeiro, ela por mais de uma vez tivera ímpetos de esbordoar o marido, quando o via de costas, meio vergado sobre a mesa de trabalho, com o pescoço embainhado no enorme e teso colarinho. O cheiro da água-de-colônia fazia-lhe engulhos, porque esse era o perfume predileto do comendador.

Entretanto, à proporção que Portela lhe despertava os sentidos entorpecidos e lhe acordava nas veias o latente calor do sangue, Teresa ia se conformando com o marido e a ele se prendendo por uma espécie de amizade filial.

Dormiam em quartos separados. Pela manhã, Teresa saltava da cama, fazia a toilette cantarolando, enfiava uma flor no cabelo e ia logo cumprimentar o marido, que a essas horas, já pronto e preparado, tornava o seu chá preto no gabinete de trabalho.

Ela o beijava na face, perguntava com pieguices de criança, como o seu «paizinho» havia passado a noite e depois de fazer-lhe uma festinha no queixo escanhoado, afastava-se, muito sacudida e escorreita, para a chácara, onde suas plantas a esperavam.

O comendador notava com satisfação as mudanças que a mulher ultimamente apresentava. Nunca a vira tão meiga, tão satisfeita e tão carinhosa com ele; já não o tratava secamente como dantes, agora, ao contrário, tinha sempre uma palavra afetuosa, um riso agradável para recebê-lo e já não lhe chamava mais «Seu Ferreira», como antigamente; agora ela só o tratava por «Seu velho», por «Seu paizinho», por «Seu nhonhôzinho».

Mas, uma noite, o comendador, aproximando-se da mulher, ficou muito surpreendido de a encontrar esquiva.

-Não! dizia Teresa, com um gesto entre meigo e repreensivo; não!... Deixe disso!...

Parecia que o comendador lhe propunha alguma coisa ilícita. O fato afigurava-se a Teresa como uma espécie de incesto. Queixou-se de que estava indisposta, fingiu muito sono, e, como o marido insistisse, levantou-se zangada e deixou escapar uma frase grosseira. O comendador ficou pasmado.

No dia seguinte houve frieza entre o casal; e a graça é que Teresinha era justamente dos dois a que se mostrava mais ressentida. O desventurado marido contou discretamente o fato ao Jacó.

-Hum! hum! resmungou o criado com um profundo ar de desconfiança. E aconselhou ao amo que abrisse os olhos com a mulher.

Por esse tempo deixara o Portela a casa do comendador. Teresa muito sentida com a mudança, não pôde esconder totalmente o seu desgosto; mas o rapaz aparecia de vez em quando e havia de passar os domingos em sua companhia.

Ele com efeito cumpriu a promessa; porém as suas visitas, longe de acalmarem a mulher do dono da casa, traziam-na em constante martírio. Não havia meio de ficarem a sós; ora Olímpia, ora o comendador, ora o Jacó, não os deixavam um momento em liberdade. Portela era de uma discrição e de uma prudência desesperadoras; estava sempre receoso de que lhe surpreendessem alguma palavra ou algum gesto comprometedor.

À mesa Teresinha tocava-lhe nos pés e nas pernas, e ele se retraía todo, a olhar para os lados. Se ela se demorava um pouco a apertar-lhe a mão, quando Portela chegava ou se despedia, ele lhe opunha um olhar severo e não lhe dava mais palavra.

E Teresa sofria muito com tais contrariedades. Aquele amor era toda a sua preocupação, o seu bem, a coisa boa de sua vida; era aquele amor o que lhe dava a alegria, o apetite, o sono; privarem-na dele seria privá-la da saúde e por bem dizer da existência. Levassem-lhe tudo, com a breca! posição social, regalias de dinheiro, jóias, casa, o que quisessem; contanto que lhe deixassem aquele amor! Sem ele do que lhe poderia servir o resto?!

E, quanto mais lhe obstavam o curso dos desejos, quanto mais lhe cortavam a ela os meios de se aproximar do amante, mais este lhe enchia o coração e lhe tomava o espírito. A corrente ameaçava transformar-se em pororoca; o amor, se insistissem em represá-lo, podia de súbito converter-se em paixão louca e desenfreada.

Um mês depois de sair da casa do comendador, Portela recebeu o seguinte bilhete:

«Meu Luiz.- Arranja, por amor de Deus, uma casa, um lugar, qualquer parte, onde nos possamos encontrar. Não posso mais! Marca uma hora e eu lá estarei sem falta.- Tua T.»

Portela sentiu um grande prazer ao receber estas palavras, mas ao mesmo tempo teve medo.

-Não fossem vir a saber!... considerava ele. Era o diabo!

Durante toda a noite não pensou noutra coisa. Seu desejo, estimulado pela falta dos carinhos da amante, encarecia-lhe as saudades e fazia avultarem na sua memória os encantos de Teresa. Não podia sossegar: o corpo pedia-lhe aquele amor com uma exigência irracional; desejava amar como o faminto deseja comer.

No dia seguinte, quando foi à casa da mulher do comendador, levava pronta a resposta em um pedacinho de papel, receoso de não ter ocasião de falar com ela.

Arranjara de antemão um cômodo no campo de Santana. O lugar nesse tempo prestava-se maravilhosamente para as empresas desse gênero.

A entrevista seria às onze e meia da manhã. Portela apresentara-se às dez, muito aflito.

Nunca se sentira tão sobressaltado: desde a véspera que o coração lhe pulsava agoniadamente; não pudera comer, nem pudera dormir. Doía-lhe levemente a cabeça e amargava-lhe na boca o gosto do fumo de que ele, naquelas últimas horas, abusara. Não tinham decorrido dez minutos, quando se ouviram duas pancadinhas na porta da saleta.

Portela correu a abrir.

Ainda não era Teresa; era o homem encarregado de limpar a casa.

Luiz Portela atirou-lhe um olhar interrogativo.

-Vinha varrer o quarto, explicou aquele, um pouco perturbado por não conhecer o novo locatário.

-Deixe isso para outra ocasião, aconselhou este.

E, quando o outro ia a sair, acrescentou entregando-lhe uma nota de dois mil reis:

-Traga-me uma garrafa de cerveja e guarde o resto.

O homem voltou com a garrafa, abriu-a, encheu um copo de cerveja e retirou-se. Portela fechou de novo a porta, depois de ter recomendado que precisava ficar só.

Mas não podia sossegar um instante: ia da alcova à janela, da janela à sala; abria um livro sobre a mesa, não conseguia ler duas linhas; sentava-se, para se levantar logo ao menor rumor que sentia na escada.

E Teresa nada de aparecer. Portela tornava-se cada vez mais inquieto e mais sobressaltado. Estava indisposto; os goles de cerveja caíam-lhe no estômago como pedras.

Os minutos arrastavam-se lentamente. Ele acendia cigarros consecutivos; e passava de vez em quando pelo espelho, olhando a sua figura um pouco desfeita pela irregularidade daquele dia.

Deram as doze. Portela perdeu a paciência.

-Ora! exclamou ele, gesticulando consigo. Isto não se faz! Há duas horas que estou aqui a olhar para as moscas! Mas suspendeu as suas considerações, porque sentiu parar na rua uma carruagem e ouviu, logo em seguida, passos agitados subirem a escada.

O rapaz deu uma carreira para a porta; abriu-a; e disse apressadamente para quem acabava de chegar:

-Aqui! É aqui!

Teresa vinha vestida de preto; um véu cobria-lhe o rosto, e toda ela tremia de comoção. Ao entrar, descobriu logo a cabeça; estava muito pálida e assustada. Portela recebeu-a nos braços e levou-a para o sofá. Ela não podia dar uma palavra.

-Descansa, descansa um pouco, dizia ele, a desafrontá-la do chapéu e da capa.

-Ah! suspirou a mulher do comendador, como quem descarrega a consciência de um grande peso e, sem dar uma palavra, pendurou-se ao pescoço do rapaz e ficou a olhar para ele com a voluptuosidade de quem bebe com muita sede. Depois principiou a conversar; disse que estivera arriscada a não poder vir ter ali: todos pareciam acertados em contrariá-la. Narrou pormenores, contou as pequeninas circunstâncias que precederam à sua saída de casa.

Portela ouviu tudo isso com muito interesse, mas o seu sobressalto, longe de diminuir com a chegada de Teresa, avultava cada vez mais.

-Felizmente, acrescentou ela, tenho uma amiga íntima, uma rapariga de muita confiança, que foi minha companheira de colégio e a quem revelei todo o nosso segredo...

-O quê? interrompeu Portela contrariado. Pois meteste mais alguém neste negócio?!...

-Ah! É que tu não conheces a Chiquinha... daquela não temos que recear coisa alguma... Não! lá por esse lado estou segura!

-Sim, sim, volveu o rapaz, cada vez mais preocupado; mas é que as coisas podem mudar de um dia para outro! Quem nos diz a nós que a tua Chiquinha há de ser sempre a mesma discreta?...

Teresa censurou aqueles receios do amante.

-Ó homem, disse ela, você também tem medo de tudo! Safa! nem eu que sou mulher! Ah! se eu fosse homem!...

-Mas bem, disse ele; como afinal conseguiste vir?

-A Chiquinha foi buscar-me a casa para darmos um passeio. Eu estou passando o dia com ela.

-Sim, mas isso é um expediente de que se não deve abusar. No fim de pouco tempo desconfiariam...

-Não tenho medo por esse lado. Além disso, eu não podia deixar de estar hoje contigo! Se soubesses como tenho passado!... Ah! é uma coisa horrível! Era impossível resistir por mais tempo! Ando estonteada, louquinha!

E, tomando a cabeça de Luiz Portela, disse-lhe com os lábios encostados aos dele:

-Tu me enfeitiçaste! Tu és a minha perdição!

-E o comendador?... perguntou Portela, sem corresponder àquelas carícias; não desconfia ainda de coisa alguma?...

Teresa respondeu com um gesto muito expressivo. E acrescentou depois, com um ar mais sério:

-Coitado! nem lhe passa semelhante coisa pela idéia!

Portela fez ainda várias perguntas sobre o Jacó, sobre Olímpia, sobre as pessoas que apareciam em casa do comendador. Teresa respondia por comprazer.

Aquele assunto frio e cheio de prudências a irritava:

-Deixa lá isso! respondeu ela. Ainda não me deste um beijo!...

Portela apressou-se a cumprir essa ordem, mas a rapariga notou que o impulso não era natural. O amante parecia fora de si.

-Estás insuportável, exclamou ressentida.

Portela confessou que se achava sobressaltado.

-Não sei o que tenho! disse ele. É a primeira vez que me acho neste estado. Sinto tremores pelo corpo. Olha como tenho as mãos frias!

-Eu também estou assim! respondeu ela, abraçando-se ao rapaz. Mas não podia deixar de vir! Afigurava-se-me que morreria se não estivesse hoje contigo... Ah! tu não calculas o que isto é! Que noite! Que dias! Tudo me enjoava, tudo me fazia nervosa! Não podia suportar ninguém! Se soubesses como eu ficava, quando te via perto de mim sem te poder falar! Oh! Luiz! um verdadeiro suplício!

E interrompeu-se, reparando que o rapaz, em vez de lhe prestar atenção, parecia preocupado com outra coisa.

-Mas que diabo tens tu hoje?! Estás distraído! Quase que não olhas para mim!

Portela respondeu puxando-a para os joelhos e cobrindo-a de carícias. Naquela ocasião fazia ele essas coisas por condescendência, por honra da firma. E Teresa compreendeu tudo perfeitamente.

-Já não gostas de mim! queixou-se ela, tornando-se igualmente pensativa.

-Que idéia a tua! respondeu o outro, procurando fazer-se apaixonado. Nunca te amei tanto! Nem sei mesmo onde isto irá parar!...

-Mas então por que estás assim tão esquisito?!...

-Sei lá, disse ele, mas não me sinto bem...

Dai a duas horas Teresa entrava de novo no carro e seguia para a casa da tal amiga.

Ia furiosa. Portela naquela entrevista não levara, absolutamente, nenhuma vantagem ao comendador.

-Já me não ama! repisava consigo a leviana no seu desapontamento. Já me não ama!

E as lágrimas saltaram-lhe dos olhos.

Ao contrário do que sucedera com o marido, a frieza incidental de Portela, em vez de a fazer aborrecê-la, puxava-a cada vez mais para ele com todos os liames do desejo e do ciúme.

Depois daquela entrevista, Teresa de novo piorou de gênio, tornou-se frenética e nervosa; voltou a tratar o marido por «Seu Ferreira», e a não poder suportar Olímpia, nem o Jacó. As suas plantas na horta foram abandonadas; afinal já não cantarolava à costura e estava sempre a pedir que a não importunassem.

Portela, como todo homem fútil, ficara igualmente muito preocupado com o malogro da entrevista, e tratou de realizar uma nova, só com a vaidosa intenção de destruir o mau efeito da primeira. Depois seguiram-se outras, e outras; até que o rapaz alugou em Catumbi uma casinha adequada aos seus amores e principiou a receber a amante, regularmente, duas vezes por semana. No fim de dois meses já se riam eles dos seus primeiros sobressaltos.

Teresa tornara-se um pouco descuidada com a vizinhança. Já não tinham entre si a menor cerimônia; tratavam-se já como velhos amigos, à vontade, cônscios de que qualquer um faria falta ao outro, por uma questão de hábito. Já não havia entro eles frases apaixonadas, havia agora as pilhérias da intimidade velhaca e pagodista.

Teresa possuía uma chave do latíbulo, entrava sem sobressaltos, mudava de roupa, porque ela já tinha roupa em casa do Portela, e depois esperava que chegasse o amante.

Um dia apareceu fora da hora em que costumava, e disse resolutamente que não estava disposta a voltar para o lado do marido.

Portela fez um grande ar de surpresa.

-É o que te digo! sustentou ela; não volto!

-Mas filha, pense um pouco antes de fazer semelhante asneira! Tu sabes que nem tudo neste mundo são rosas!...

-Ora! respondeu ela, sacudindo os ombros. Estou farta de ouvir conselhos!

-Mas é que eu...

-Não podes ter mulher, não é isso?... Ora escuta lá e depois me darás a resposta...

-Então já tens um programa?! perguntou Portela, a sorrir.

-Um programa? Sim, e tenho também coisa ainda melhor! tenho um dote, disse ela; um dote em ações, que me fez meu marido por ocasião de casarmos...

-E daí?... perguntou o rapaz.

-Daí é que deixamos o Rio de Janeiro; metemo-nos em qualquer província ou onde melhor te pareça, e tu te estabeleces com o meu dote, o que será fácil, pois, com o talento que possuis para o comércio...

-Isso é asneira!

-Asneira, por quê?!

-Porque, desde que abandones o comendador, nenhum direito terás ao dote que ele te fez.

-Diz a Chiquinha que não.

-A Chiquinha não entende disto!

-Eu então não tenho direito a coisa alguma?!

-Sei cá; só um advogado o poderia dizer...

-O que me parece é que tu não tens vontade de ficar comigo...

-Não sejas tola! Se não tivesse já o teria declarado há mais tempo.

E, depois de guardarem ambos um silêncio de alguns segundos, Portela disse vagamente:

-Se o comendador se lembrasse de morrer agora!... Isso é que seria obra!...

Teresa olhou para o rapaz com um ar cheio de interrogações.

-É! justificou ele; se o comendador morresse, as coisas correriam naturalmente... Eu casava-me contigo, estabelecia-me, e iríamos viver juntos, independentes e felizes...

E acrescentou, depois de uma pausa:

-Imagina que amanhã teu marido amanhece indisposto. Vem o médico e declara que a moléstia não é de cuidado. «Achaques da velhice!» Recomenda regularidade na vida, abstinência de uns tantos prazeres e receita qualquer calmante. O comendador principia a tomar o remédio, mas, de dia para dia, se vai sentindo pior. Afinal, uma bela manhã, quando ninguém espera por isso, encontra-se o homem morto... O médico passa o seu atestado; tu te cobres de luto, recebes as visitas de pêsames das amigas, choras naturalmente em presença de algumas delas, e, um ano depois, os nossos amigos lêem com prazer a notícia do nosso casamento... Uma vez casados, iríamos morar aí em qualquer arrabalde, escolheríamos um chalezinho próprio para a lua de mel... Eu tratarei de te fazer esquecer a perda de teu comendador, e tu serias minha, minha, sem sobressaltos, nem receios ridículos, pertencendo-me a todas as horas e a todos os momentos!

E Portela, depois de beijar e abraçar a amante, continuou como se falasse em um sonho:

-Parece que já me vejo dentro dessa felicidade, voltando à tarde aos teus braços, cansado do trabalho, comido pela fadiga, mas com o coração satisfeito por encontrar-te em casa alegre, viva, contente com o nosso amor! Parece que pressinto as nossas noites de casados: calmas, doces, descansadas!

Teresa suspirou.

-Devia ser delicioso!... continuou Portela. Uma existência completa entre nós dois!... A mesa bem provida; a casa bem iluminada; o amor bem confortado!...

-Cala-te! disse Teresa.

-Além disso, os passeios, os bailes, as noitadas de palestra com os amigos, em volta à mesa de chá. Depois a nossa independência, o nosso bem-estar, a nossa felicidade!...

Teresa ficou pensativa.

-Não achas que tudo isso seria muito melhor?... perguntou-lhe o rapaz, beijando-lhe os braços carnudos.

-Se acho!...

-Pois olha que está tudo em tuas mãos! segredou ele.

-Hein?! Como?! Estás gracejando!

-Não! Para tudo isso era bastante que o comendador morresse.

Teresa estremeceu e abaixou os olhos, receosa de compreender o pensamento do amante.

-Vês este frasquinho? perguntou Portela, tirando um frasco de uma gaveta. Tem cinqüenta gotas. Dando-se uma delas por dia ao comendador, no fim de um mês ele morreria, sem que ninguém soubesse qual o motivo...

-Veneno!

-Sim, mas muito lento!... É um veneno quase inocente...

-Não tenho ânimo de fazer isso! balbuciou Teresa, perturbada em extremo.

-Nem eu te aconselho que o faças; apenas disse que, se nos tivéssemos de desembaraçar dele, devíamos preferir este expediente a outro qualquer...

-Ele me ama tanto!...

-Pois então, filha, deixa-te ficar como estás. Ora essa!

-Mas eu não o posso suportar!

-Não o suportes!

-Mas não posso mais viver sem o teu amor!

-Então não sei o que te faça!

-Antes, fugíssemos! Ficaríamos, bem sei, em uma posição muito mais falsa, mas teríamos ao menos a consciência tranqüila...

-Pois isso é que não estou disposto a fazer! Lá fugir, ser talvez perseguido, vir a sofrer qualquer afronta, ter, quem sabe? de comparecer a tribunais, não é comigo! Gosto muito de ti, não há dúvida! tu és a única mulher pela qual seria eu capaz de fazer uma infâmia; mas arranjar as coisas de modo que, afinal de contas, viesse a ficar privado tanto de ti como da minha liberdade, isso é o que não faço! porque, vamos e venhamos! continuando o comendador a existir, que diabo de felicidade pode ser a nossa?!... vivermos por aí odiados, escondidos, sem poder gozar coisa alguma?! Ora seria isso um inferno para qualquer um de nós! Ao passo que, não existindo o comendador, fico eu herdeiro de todos os seus direitos. Tu nesse caso, não serás minha amante, serás minha esposa; eu te poderei levar para toda a parte, apresentar-te dignamente em todas as rodas, e, o que é melhor, viver sossegado, sem ter de evitar conversas a teu respeito, sem ter de quem recear e de quem fugir!...

-Mas é abominável matar uma criatura! considerou Teresa, ofegante.

-Ora, filha! abominável é um velho daqueles lembrar-se de casar contigo! Que diabo! quem não quer ser lobo não lhe veste a pele! Pois aquele homem não devia logo compreender que tu não te poderias contentar com ele?... Para que então casou?! Se algum de vocês dois tem razão, és tu, minha tola, porque tu foste a lesada, foste a vítima! Casando-te, levaste um capital de mocidade, de frescura e de amor; tinhas direito a exigir de teu noivo uma parte correspondente! Se o matares, não farás com isso mais do que cortar a grilheta com que te amarraram os pés! Eras inexperiente, não tinhas sequer idéia do que fosse a vida, a felicidade conjugal; teu corpo de virgem nada exigia, porque nada conhecia. Entretanto; um homem, decrépito e inútil, ambicionou amarrar o teu destino ao dele; pediu-te à tua família; ele era rico: deram-te ou, melhor, venderam-te. Mas tu, um belo dia, acordaste, mulher; tiveste então as tuas aspirações, os teus desejos; o amor reclamou os seus direitos! Bem; o que te competia decidir em semelhante caso?! Das duas uma: ou abraçares o papel de vitima e resignar-te a aturar o trambolho a que te prenderam; ou então reagires, entregando-te francamente ao homem que escolhesses. Tu escolheste um; fui eu! Agora está dado o passo; voltar atrás seria loucura, e para prosseguir, só há um meio: é dar cabo do comendador!

-Mas isso é um crime horrível! respondeu Teresa, segurando a cabeça com ambas as mãos.

-Crime horrível, torno-te a dizer, foi o teu casamento com aquele velho! Isso é que é um crime horrível, porque é a morte sem a morte, é a morte sem a insensibilidade e sem o esquecimento!

-Em todo o caso, considerou a rapariga, desafrontando o peito com um enorme suspiro; se ele se casou comigo, é porque me amava e porque supunha fazer-me feliz!...

-Criança! exclamou o outro com um gesto de compaixão. Porque te amava! Grande fúria, na verdade! Compreendo que houvesse nesse amor alguma porção de generosidade e abnegação, se fosses uma mulher feia e difícil de suportar; mas tu, moça, encantadora e cheia de atrativos; tu que tens esses olhos, esses dentes e essas carnes, não podes, nem deves receber como um obséquio o amor que porventura te consagrem. Não! porque esse amor nada mais é que urna manifestação do egoísmo! O comendador casou-se contigo, não para te prestar um serviço, mas sim para prestar um serviço a ele próprio. Amou-te por amor dele e não por amor de ti! Não há por conseguinte no ato de teu marido a menor idéia de sacrifício e de abnegação. Mas, dada a hipótese que ele não se limitasse a dar-te unicamente o nome de esposa e te desse também todos os regalos que se possam imaginar na vida, ainda assim não haveria nas suas ações a menor intenção altruísta, porque, se ele fizesse tudo isso, era simplesmente porque sentiria muito prazer em te agradar e estaria, por conseguinte, tratando de deliciar o seu próprio gosto!

-Acredito!... volveu Teresa meio convencida; mas é que...

-Em todo caso, filha, uma coisa única tenho a dizer-te e é que, no pé em que estamos, eu, só me casando contigo, tomarei conta de ti; de outro modo, não! Não quero, porque sei que iria criar futuras dificuldades. Vai para casa, pensa bem no que me ouviste, e depois então decidiremos!...

-É que já não me amas! disse Teresa, limpando os olhos.

-Ó senhores! não te amo! Mas eu estou justamente disposto a casar contigo, e dizes que não te amo?! Ora deixa-te de tolices!

Teresa retirou-se para casa muito abatida e contrariada. O amante colocara a questão em pé deveras espinhoso para ela; mas enfim, era preciso tomar uma deliberação. No dia seguinte estaria tudo decidido.

Os desgraçados, porém, não sabiam que Jacó havia seguido a mulher do patrão nesta última entrevista e, oculto, ouvira tudo o que os dois disseram.

Vejamos agora como chegou ele a fazer semelhante coisa, e quais foram as tempestuosas conseqüências do seu ato.

Tempestade solta

Jacó desde o momento em que desconfiara que Teresa enganava o marido, nunca mais a perdeu de vista. Os passeios ao campo de Santana e depois à nova casa de Portela em Catumbi não lhe passaram despercebidos; uma ocasião acompanhou de perto a mulher do amo e ficou inteirado do lugar onde ela ia. Saber ao certo do objeto dessas visitas clandestinas era toda a sua preocupação; de sorte que, na última, em que vimos Portela falar tão cinicamente a respeito da vantagem de matar o comendador, o fiel Jacó se havia precisamente introduzido, pela primeira vez, em casa do sedutor, e escutara o conluio entre os dois amantes.

Jacó, chegando a casa, sem mais rodeios contou tudo ao patrão.

-Hein?! E impossível! exclamou o comendador.

-Pois se lhe estou a dizer, meu rico amo!... Vossemecê estaria de passagem tomada para o outro mundo, se a fortuna não me pusesse a par dos projetos daquele malvado. Ele quer dar cabo de vossemecê, para ao depois tomar conta da Sra. D. Teresinha...

O comendador passeou agitado no quarto por alguns segundos, e tornou logo a interrogar o criado. Jacó explicou-lhe tudo.

-Bem! disse o pai de Olímpia. Obrigado. Eu tratarei de defender a minha vida!

Teresa nesse dia apareceu ao marido muito mais expansiva e risonha. Todavia, um espírito observador teria notado que a sua alegria era fingida e que toda aquela expansão encobria algum projeto traiçoeiro.

O comendador, às horas do chá, queixou-se de que estava indisposto e recolheu-se ao quarto; Teresa não lhe abandonou a cabeceira da cama, senão quando o doente declarou que precisava ficar só.

No dia seguinte, na ocasião em que a esposa lhe foi dar os costumados bons dias, ele a encarou de modo estranho e disse-lhe, com uma resolução que Teresa lhe conhecia:

-Veja ali o papel e a pena!

-Quer escrever?... perguntou a manhosa, fingindo grande solicitude. Não vá isso lhe fazer mal!...

-Não sou eu quem tem de escrever; é a senhora! Vamos! faça o que lhe digo!

A porta do quarto estava previamente fechada. Teresa foi buscar o que o marido lhe ordenara.

-Bem, disse o velho, estendendo-se no leito; agora escreva o que lhe vou ditar.

-Para quê?! perguntou Teresa, empalidecendo.

-Mais tarde o saberá... Alguém duvida que a senhora seja uma esposa virtuosa e eu desejo provar o contrário. É um capricho da velhice ou talvez uma fantasia da enfermidade.

-Estou às suas ordens, balbuciou a mulher com a voz trêmula.

-Nesse caso faça o favor de escrever: «Meu caro Luiz». Teresa sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo; quis opor qualquer razão à ordem do marido, mas não encontrou uma palavra.

-Escreveu? perguntou ele.

-Está escrito, respondeu ela; mas confesso-lhe que não compreendo o que tudo isto quer dizer...

-Nem é necessário, afirmou o comendador tranqüilamente. E continuou a ditar: «Estou por tudo o que desejas...»

Teresa hesitou.

-Então?!... reclamou o marido. A senhora escreve ou não escreve?!

-Mas o senhor exige de mim um sacrifício superior às minhas forças; eu não sei a quem isto será dirigido!...

-A senhora sabe perfeitamente... Continue!

-Não! disse ela; não posso continuar! O senhor com certeza delira sob a influência da febre!

-É possível... disse o velho sorrindo ironicamente. Pode ser que tudo isto não passe de um delírio... em todo caso, a senhora há de escrever o que lhe estou ditando ou me obrigará a tomar resolução mais séria!

-Mas para que exige o senhor que eu escreva semelhante coisa?!

-Já disse que mais tarde o saberá! Por enquanto basta que me obedeça!

E o comendador, possuído de inesperada energia, levantou-se de um salto da cama e, segurando a mulher por um dos pulsos, exclamou arremessando-a contra a mesa:

-Escreva, ou eu a mato aqui mesmo!

-Socorro! gritou Teresa.

-Pode gritar à vontade, bramiu ele. A única pessoa que está em casa é o Jacó, e esse não se importará com os seus gritos!

-Nesse caso é melhor que o senhor me dê logo cabo da existência, em vez de obrigar-me a sofrer desta forma!

-Nessa não caio eu! exclamou o marido. Hei de amarrá-los, um ao outro, e tanto me bastará para minha vingança! No dia em que qualquer responsabilidade os unir, estarei mais que vingado, porque vocês dois, miseráveis, hão de odiar-se em breve! e cada um se encarregará então de punir o companheiro de crime!

-Não o compreendo! disse a mulher, afetando grande surpresa.

-Não seja hipócrita! gritou o velho procurando reaver o seu sangue frio. Já sei de tudo. Ele espera uma resposta sua para remeter o veneno com que a senhora me tinha de assassinar!

-Valha-me Deus! exclamou Teresa. Isso é uma terrível calúnia!

-Pois se é calúnia, escreva; que nesse caso a sua carta lhe servirá de defesa...

-Mas como hei de eu escrever uma coisa que não sinto?!

-Não me interrogue, porque não estou disposto a dar-lhe explicações. A senhora, ou escreve o que lhe vou ditar, ou não sairá viva deste quarto!

-O senhor não pode dispor assim de minha vida!

-E poderia a senhora, por acaso, dispor de minha honra como dispôs?

-Eu não o desonrei!

-Veremos agora. Escreva!

-Pois escrevo! O senhor ficará convencido de que sou inocente.

O comendador ditou então:

-«Estou por tudo o que me propuseste. Manda o frasquinho e...»

-Não faço semelhante coisa, exclamou Teresa, arremessando a pena e levantando-se com ímpeto.

-Pois farei eu... disse o comendador, tomando o lugar que a mulher acabava de deixar. E gritou para fora: -O Jacó!

O criado bateu à porta.

-Abre e entra, respondeu o amo.

Ouviu-se ranger a fechadura, e em seguida surgiu no aposento o respeitável vulto do velho flâmulo.

-Tens de arranjar um portador para este bilhete, ordenou-lhe o comendador. Já sabes do que se trata. Recomenda que esperem pela resposta e entrega-ma logo que chegar.

E voltando-se para a mulher, acrescentou:

-A senhora não sairá daqui enquanto não vier a decisão!

Teresa atirou-se aos pés do marido, a soluçar.

-Perdoa exclamou ela, abraçando-lhe os joelhos; perdoa! Eu não sei o que digo! eu não sei o que faço! Juro-te entretanto que não sou tão culpada como pareço! Desejava ser honesta; desejava ser o modelo das esposas; todo meu sonho era cumprir à risca os meus deveres! mas a natureza me arrebatava para os crimes de que me acusas; tudo me impelia para o mal, tudo me puxava para o adultério! Ah! tu não sabes decerto o que é ter a minha idade, o meu temperamento, o meu sangue! Tu não sabes o quê é a mulher! o que é a natureza! o que são estes nervos, esta carne, e tudo isto que grita dentro de nós, como bocas com fome! Já agora falo-te com toda a franqueza. Eu nunca tive a idéia de faltar-te ao respeito; estimava-te, como se fosses meu pai; desejava o teu bem-estar, a tua felicidade, a tua alegria, como se deseja a ventura do melhor amigo mas eu precisava de amor, não do amor frio e adormecido que me proporcionavas, mas de um amor ardente, fecundo, apaixonado, de alguém que tivesse a minha idade. Sei que fiz mal em sucumbir aos reclamos desta miserável matéria; mas que queres tu?! não fui eu quem me fez e quem decretou as leis que haviam de reger os meus sentidos! Sucumbi, mas não sou a responsável pela minha queda! Se quiseres, mata-me; faze o que entenderes de mim; eu te não amaldiçoarei; mas, por amor de Deus! poupa aquele moço, que de nenhuma culpa tem do que sucedeu. Fui eu quem o arrastou, quem o seduziu! Ele não seria capaz de cometer essa infâmia, porque é homem e não está como nós outras, míseras mulheres, seguro pelas carnes e pelos cabelos às unhas do pecado!

-Tu o adoras, desgraçada! exclamou o comendador, ferido no coração.

-Sim! respondeu Teresa, pondo-se de pé e olhando friamente para o marido. Eu o adoro! Se me tivessem casado com um moço, é natural que me não lembrasse de ter um amante; mas tu és um velho, tu és um destroço; a ti poderia dedicar minha alma, mas meu corpo, esse teria de pertencer fatalmente a alguém que o escravizasse, a alguém que lhe pudesse domar os ímpetos!

E Teresa, ao terminar estas palavras, caiu arquejante sobre uma cadeira, a resfolegar aliviada, como se acabasse de despejar um grande peso da consciência.

O marido, imóvel ao lado dela, não lhe tirava de cima o seu frio olhar de cólera ciumenta.

-Já nada existe de comum entre nós... disse afinal a desgraçada, passando a mão pelo rosto. Foi até melhor que nos entendêssemos por uma vez! Eu, confesso, não podia suportar o senhor por mais tempo... Pesava-me enganá-lo; não sirvo para a traição e para o embuste: sou capaz de uma loucura, mas repugna-me praticar uma covardia...

-Por que então se casou comigo!?... perguntou o comendador com a voz trêmula. Para que consentiu, se me não podia suportar, que ligassem o meu triste destino ao seu? Se me não amava, ou se não sentia a coragem de conservar-se fiel aos votos do matrimônio, por que o não declarou com franqueza antes de arriscar meu nome e minha honra? Para que me iludiu?! Oh! a senhora é perversa! Um pouco de bondade a teria levado a proceder de outro modo; se o marido, se o homem, não lhe merecia amor e dedicação, o pobre velho devia ao menos inspirar-lhe dó ou piedade! Que lhe custava esperar um pouco que eu fechasse os olhos?... Não tenho tanto a viver... e a senhora depois poderia fartar à vontade todos os seus instintos desordenados. Mas não! preferiu amargurar-me o resto da vida, preferiu cobrir-me a velhice de vergonha e desgostos; não consentiu que eu pudesse retirar-me para a sepultura sem ir amortalhado nos farrapos da minha pobre dignidade, que a senhora estraçalhou nos seus momentos desenfreados de luxúria!

-Oh! exclamou Teresa, cobrindo o rosto com as mãos. É demais!

-Tarde, bem tarde lhe assiste o pudor, minha senhora! continuou o velho, fazendo um gesto de desprezo. Não acredito que minhas palavras, por muito duras e grosseiras, possam encontrar eco em coração tão corrompido!

-Mas para que me há de o senhor insultar desta maneira? perguntou Teresa, erguendo-se de novo. Se me casei com o senhor, se consenti em ligar-me ao seu destino, não foi, repito, porque o quisesse enganar; foi porque não conhecia absolutamente os segredos do meu destino de mulher. Podia eu, porventura, prever o que me esperava? sabia eu por acaso o que é amar ou aborrecer um homem?... Uma criatura nas circunstâncias em que me casei nada entende dessas coisas. Aceita o primeiro marido que atiram sobre ela, como aceitaria qualquer outro! Por que o iludi? perguntou o senhor; e eu, porventura, não fui também iludida?...

-Iludida?! interrogou o comendador, escancarando os olhos.

-Decerto! respondeu a adúltera. O senhor, durante o tempo em que me procurou agradar, não denunciou nenhum dos seus defeitos, nenhum dos seus achaques, nenhum dos seus lados antipáticos; fez, ao contrário, todo o possível para os encobrir com artifício e grande habilidade. Escondeu-me as suas misérias de velho, disfarçou a sua decrepitude e afetou entusiasmo pelas coisas do espírito; volveu-se moço, terno, apaixonado, estudou frases sedutoras, recitou versos, falou de prazeres ideais, fingiu abnegação, heroísmo, coragem, enfeitou-se enfim de poesia; e, entretanto, uma vez apoderado de mim, uma vez que me julgou segura para todo o resto de sua vida, atirou com os disfarces pela janela e pôs à minha disposição um resto de homem, egoísta, fraco, cheio de asma, rabugento e inútil!

-Senhora!

-É essa a verdade! Iludir! iludir! Iludida fui eu, porque eu era justamente a mais ingênua, a mais cândida e passiva, a mais fácil de enganar! Acredito que o senhor fosse igualmente iludido, mas foi por si próprio, porque se acreditou capaz de inspirar amor a uma mulher da idade que eu tinha então!

-Não foi isso o que me cegou, disse o comendador. Todo o meu erro foi supô-la virtuosa.

-Ora, meu caro senhor, a virtude é sempre uma coisa muito relativa; é sempre uma conseqüência e nunca um princípio. Toda mulher é virtuosa, desde que ela tenha a quem dedicar essa virtude; é uma questão de gratidão, de reciprocidade e às vezes de interesse próprio. Mas por onde fez o senhor para merecer minha virtude?... Por que era meu marido? Mas que espécie de marido era o senhor?! Admito que me lançasse em rosto aceitar o amor de um estranho, se eu tivesse à minha disposição o amor que o senhor me dedicasse. Mas onde está ele? por onde mo revelou? Trazendo-me para esta casa e dando-me o que comer?! Isso não basta!

-Belas teorias! não há dúvida!... disse o comendador, sacudindo a cabeça.

-São pelo menos verdadeiras! respondeu Teresa, já cansada de falar.

E, depois de tomar fôlego, acrescentou:

-E ainda vem o senhor dizer, no seu fraseado cheio de afetação, que eu devia ao menos ter dó ou piedade do pobre velho, já que o homem, o marido, não me havia merecido amor! Mas valha-me Deus! Eu não me casei para ter dó de quem quer que fosse!... Eu não me propus ser uma irmã de caridade; eu apenas me propus dar amor em troca de amor; ceder o meu valimento de mulher em troca da competência de um homem! «Devia ao menos ter dó do pobre velho!» E o velho teve porventura dó de mim?! Não sabia ele que, o ligar-se a uma rapariga forte, perfeita, em plena saúde e em pleno vigor do sangue, eqüivalia a encarcerá-la num convento, entregue aos sobressaltos da sua mocidade e ao jugo inquisitorial dos seus desejos?! Se entre nós houver um mau, sem piedade e sem dó, foi o senhor, porque, jungida como me achei ao seu destino triste e desconsolado, tinha eu fatalmente, ou de me conformar com o círculo de ferro que o senhor traçou em volta dos meus sentidos, ou tinha de romper com ele e cair no desprezo da sociedade, sem nunca mais poder arrancar de mim o terrível estigma do adultério!

-E é isto naturalmente o que me está reservado... acrescentou ela, depois de uma pausa, enquanto o comendador meditava; com a diferença de que o senhor continuará a freqüentar as suas relações, jogará o seu voltarete, ouvirá o seu bocado de música em casa dos amigos, terá a sua chávena de chá, como dantes, e continuará a ser respeitado, ouvido e galanteado pela sociedade; ao passo que eu, desde que transponha aquela porta, terei de renunciar a tudo isso e de conformar-me com a obscuridade e com o abandono do meu novo estado. Qualquer um se julgará, desde então, com o direito de me lançar em rosto a falta pela qual aliás não sou responsável, e todos me apontarão às filhas e às esposas como um monstro venenoso e traiçoeiro que é preciso evitar com o maior desvelo! Para o senhor: toda a indulgência, toda a compaixão, todas as simpatias de vítima; para mim: todo o desprezo, todo o ódio, toda a indignação e toda a repugnância! Oh! Esta teoria sim, esta teoria é que o senhor acha sem dúvida razoável!...

-E então o seu amante?! Esqueceu-se de que deve contar com ele?! Pois esse grande amor, que os impeliu um para o outro até ao crime, não é quanto basta para encher a vida de ambos?!...

E o comendador sorriu sarcasticamente.

-O senhor faz-me perder a paciência! respondeu Teresa com tédio. A que vem agora semelhante pergunta?! Está bem claro que o amor é indispensável para a vida da mulher e que sem ele não encontramos encanto em coisa alguma; mas a nossa vida compõe-se de duas partes: a privada e a exterior; nascem ambas à porta de nossa casa, uma, porém, se estende para dentro e a outra para fora. A primeira, com efeito, baseia a sua felicidade essencialmente no amor, mas a segunda precisa de outros alicerces; sem as considerações sociais, sem a estima de umas tantas pessoas, sem o concurso de umas tantas coisas, não poderá esta última existir e nem terá razão de ser. Não se confundem as duas, é verdade, mas auxiliam-se mutuamente. Uma é o complemento da outra. Se a vida exterior nos fatiga, a privada nos retempera; e vice-versa. De sorte que, por maior felicidade íntima de que possamos gozar, esta nunca produzirá o seu verdadeiro efeito, se não a pudermos constatar de vez em quando com as regalias do meio exterior; da mesma forma se converterá este em puro martírio e aborrecimento se, ao sair dele, não encontrarmos em casa o consolo tépido de um amor legítimo e duradouro.

E Teresa, recuperando inteiramente o sangue frio, acrescentou ainda, como se conversasse com um estranho:

-Vê o senhor, por conseguinte, pelos meus raciocínios e por esta calma, que, antes de sucumbir, calculei bem o alcance da minha queda. Sabia eu de antemão tudo o que ia perder e tudo o que tinha de afrontar; e, tão grande reconheci meu sacrifício, que desdenhei compadecer-me de mais ninguém que não fosse eu própria. Incontestavelmente, meu caro, quem mais perde e quem mais sofre em tudo isto, não é decerto, o senhor... o senhor continuará a ser: «O Sr. comendador Ferreira» e eu irei ser: «Uma mulher de reputação suspeita...»

-Queixe-se de si própria, disse o comendador.

-Não! não é de mim que me tenho de queixar; é do senhor, que nunca devia ter sido meu marido; é de meus pais, que consentiram neste casamento imoral e disparatado; é da sociedade, que não sabe fazer justiça a ninguém; e é, finalmente, das leis que não nos facultam o direito de desfazer-nos licitamente de um marido, quando este nos sai errado e se torna incompatível conosco!

O comendador ia replicar, mas foram ambos interrompidos pelo velho Jacó, que voltava com o resultado da sua delicada missão contra o Portela.

Portela em apuros

Portela saía do escritório para almoçar, quando lhe entregaram a carta, principiada por Teresa e terminada pelo comendador. Sorriu ao recebê-la; já contava com aquilo. Teresa, estava segura, havia de sacrificar tudo por amor dele.

E, na sua presunção de homem sagaz, sentia-se lisonjeado pelo bom êxito daqueles planos. Foi com um riso vitorioso que ele abriu a carta e leu o seguinte:

«Meu caro Luiz.

Estou por tudo o que desejas. Manda o frasquinho pelo portador e escreve-me como hei de ao certo ministrar as doses a meu marido. Hoje mesmo podemos principiar a obra.

Tua Teresa.»


-Venha comigo, disse Luiz ao portador da carta, logo que terminou a leitura e, sem mais pensar no almoço, tomou a direção da casinha em que morava.

Ia muito agitado com as palavras da amante.

-Agora sim! considerava ele pelo caminho; tudo se vai transformar em torno da minha vontade! O comendador daqui a dois meses já não existirá... Algum tempo depois estarei amarrado à viúva e entrando na fortuna do defunto!

E o velhaco, sacudido por estas idéias, sonhava-se já em todas as regalias do dinheiro. Via-se rico, cercado de adulações, no meio da opulência de um bom palacete; imaginava a cor da libré dos seus lacaios, o feitio do seu cupê, a estampa dos seus cavalos. Sentia-se já estendido nos custosos divãs de damasco, a olhar para os quadros e para os ricos espelhos do seu salão. Via-se em viagem para a Europa; imaginava-se em Paris, a passear nos bulevares o seu vigoroso tipo meridional.

E Portela, sem parar na rua, sentia despejar-se-lhe no coração uma abundante cornucópia de deslumbramentos e de prazeres de todos os gêneros, cujos vapores lhe subiam à cabeça como uma vaga sufocadora, tomando-lhe a respiração e produzindo-lhe um princípio de vertigem. Carruagens, dançarinas, bailes, espetáculos, cavalos, baixelas de prata, diamantes, crachás, banquetes, brindes, todo o bric-à-brac da sua ambição e da sua fantasia, lhe dançava confusamente dentro do cérebro. Em torno do seu delírio passavam as sombras dos transeuntes. Tudo lhe parecia pequeno, miserável, ao lado dos seus futuros esplendores. Olhava com desdém para os vultos que se cruzavam pela rua, e a sua fisionomia armava já insensivelmente o ar superior dos ricos fartos e aborrecidos.

Ao entrar em casa, acompanhado pelo portador da carta, atirou-se a uma cadeira.

-Espera um pouco, disse ao outro, procurando acalmar-se; e foi a alcova, encheu um cálice de conhaque e bebeu. Depois assentou-se à secretaria e escreveu o seguinte:

«Teresinha.

Aí vai o frasco. Uma gota por dia é o bastante. No caso que chamem o médico, procura evitar que ele veja e analise qualquer líquido já preparado por ti.

Ânimo! Lembra-te da felicidade que nos espera.

Teu Luiz.»


-Pronto! exclamou, fechando a carta. E passou-a juntamente com o frasco, ao sujeito que estava à espera, entregando-se ele de novo aos seus sonhos de ambição, logo que o portador saiu.

Apesar da grande sobreexcitação em que se achava, uma idéia fria atravessou-lhe o espírito. Era a leviana facilidade com que entregara àquele homem desconhecido o veneno e a resposta à carta de Teresa.

-Ora! não haverá novidade! disse, levantando-se disposto a ir almoçar.

Mal porém tinha chegado à porta, quando foi surpreendido pelo barulho de passos apressados no corredor.

-Oh! exclamou Portela, vendo Teresa entrar esbaforida e atirar-se sobre a primeira cadeira. Tu aqui?! Que significa isto?!

Ela não podia responder logo; vinha ofegante. O caixeiro empalideceu.

-Tudo perdido! disse afinal a desgraçada entre dois arquejos.

-Hein?! Como?! perguntou o miserável, sem poder ordenar suas idéias. Perdido?! Explica-te!

-Meu marido sabe de tudo!

-E a tua carta então?

-Foi escrita por ele...

-E a minha resposta?!

-Não sei...

-Jesus! exclamou Portela, segurando a cabeça com ambas as mãos.

-Eu disparatei com ele! acrescentou Teresa, respirando com dificuldade. O Jacó, escondido aqui, ouvira toda a nossa conversa àquela tarde em que combinávamos dar cabo da peste! Meu marido quis obrigar-me a escrever-te uma carta e eu não consenti...

-Mas por que não me preveniste, criatura?!

-Não pude. Ele prendeu-me no quarto. Só agora consegui sair, arrombando uma porta. Não volto mais ali, nem à ponta de espada!

-Ora esta!... exclamou o rapaz, atirando-se no sofá e escondendo a cabeça nas palmas das mãos.

Ouvia-se Teresa resfolegar de tão cansada que estava.

-E agora?!... disse afinal Portela, descobrindo o rosto.

-Agora é que estou resolvida a sujeitar-me a tudo... Fico contigo! respondeu a mulher do comendador.

-É impossível, filha! sentenciou o perverso, erguendo-se e pondo-se a passear em todo o comprimento da sala.

-Hein?! interrogou ela, fazendo-se lívida.

-Eu te preveni! Só casado podia tomar conta de ti!...

Teresa ergueu-se; deu dois passos para a frente.

-Tu és um canalha! gritou com a voz arrastada, e deixou-se cair sem sentidos.

Portela correu a suspendê-la do chão. A infeliz havia batido com a cabeça contra um móvel, fazendo uma pequena brecha no crânio, donde corria sangue.

-Com todos os diabos! praguejou o caixeiro, sentindo-se entalar cada vez mais pela situação. E eu que nunca me vi nestes apuros!... Ó seu Antônio!! seu Antônio! principiou ele a gritar.

Antônio era um sujeito da vizinhança, que se encarregava de fazer-lhe a limpeza da casa. Ninguém respondeu.

-Isto não é para pôr um homem doido?! exclamou Portela, no auge da perplexidade.

Rebentaram então duas palmas na porta.

-Quem é?! perguntou ele.

-Da parte da justiça bradou de fora uma voz.

Portela estremeceu.

-Abra!

-Já vai! respondeu o caixeiro, arrastando Teresa para a alcova.

O sangue, que escorria da cabeça desta, desenhava no chão arabescos vermelhos.

-Abra! insistiu a voz, fazendo-se desta vez acompanhar por duas fortes pancadas na porta. Portela abriu finalmente, e deu de cara com um homem magro e alto, vestido de negro até ao pescoço.

-O senhor é Luiz Portela? perguntou o recém-chegado.

-Como?...

O homem fez um gesto de impaciência e repetiu a pergunta.

-Que deseja dele? indagou o caixeiro, sem conseguir disfarçar a sua perturbação.

-Venho intimá-lo a comparecer em presença do chefe de polícia.

-Para quê?...

-Saberá depois.

-Eu agora não posso ir! Estou muito ocupado...

O oficial de justiça afastou-se um pouco da porta, fez um sinal para fora, e apareceu então o comendador, acompanhado de duas praças.

É este o homem? perguntou aquele ao comendador.

-Justamente, disse o velho, que havia entrado na sala e olhava atentamente para as manchas de sangue no soalho.

-Guardem esse homem à vista! ordenou o oficial aos dois soldados, franqueando-lhes a entrada. Um destes foi defender as janelas, e o outro se conservou de vigia à porta da sala.

-Naquele quarto está alguém, que acaba talvez de ser ferido neste instante! disse o comendador, apontando para a alcova. Este sangue ainda não coagulou. E dizendo isto investiu para o quarto onde Portela escondera a amante.

-O senhor não pode entrar aqui! opôs o dono da casa, atravessando-se na porta da alcova.

-Ali dentro está talvez o corpo do delito de algum novo crime!

-Vejamos! disse o homem da justiça. Creio que não será preciso empregar a força, acrescentou ele, desviando Portela.

-Pois entrem, respondeu este; mas peço-lhes que me deixem ao menos explicar a razão por que esta senhora se acha aqui neste estado.

-Descanse que terá ocasião oportuna de explicar tudo. A mim não compete sindicar de semelhante coisa.

E dizendo isto, o oficial de justiça principiou a tomar notas.

O comendador havia parado perto da cama em que estava Teresa, e olhava para a desfalecida com um frio olhar de ódio.

-Conhece esta senhora? perguntou-lhe aquele.

-É minha mulher, respondeu secamente o comendador.

-Ah!... disse o outro, mostrando certa solicitude. Que tem ela?...

-Perdeu os sentidos e quebrou a cabeça, explicou Portela. E preciso socorrê-la. Os senhores não me deram tempo para isso...

-Bem, disse o marido, isso lá com o senhor; eu nada mais tenho que ver com essa mulher.

-Sr. comendador, suplicou-lhe Portela em voz baixa; peço-lhe que não proceda contra mim, antes de ouvir-me...

-Eu nada tenho a lhe ouvir, senhor! Sei, pelos documentos em meu poder, que alguém tentou dar-me cabo da vida; não faço mais do que a defender e entregar os criminosos à justiça.

-Mas eu não quero fugir à punição da lei, explicou o rapaz, com um aspecto infeliz; desejo apenas que o senhor não me fique julgando um monstro; desejo apenas explicar-lhe as circunstâncias que me colocaram na atual situação...

-E que se adiantava com isso?...

-Adiantava-se muita coisa, para mim e para o Sr. comendador. Ao menos ficaria bem patente que eu lhe não tenho ódio e que lamento em extremo lhe haver causado tamanho desgosto...

-Mas afinal o que quer o senhor de mim?!

-Quero que me ouça a sós por alguns instantes. Tenha a bondade de afastar esses homens.

O comendador ordenou aos soldados que se retirassem para o corredor. Portela cerrou a porta do quarto em que estava Teresa, e chegando-se para junto do velho, disse-lhe com voz alterada e trêmulo:

-Minha vida está em suas mãos! O senhor vai decidir da minha sorte!

E acrescentou, tirando um revólver da gaveta da secretária:

-Estou resolvido a matar-me aqui mesmo, em sua presença, se o senhor não me conceder o seu perdão...

O comendador sacudiu os ombros, com a mais profunda indiferença.

-Do que me pode servir a vida, continuou Portela, tendo eu de representar no mundo o papel de um criminoso, de um homem mau e corrompido? Entretanto, juro-lhe comendador, que o que acaba de suceder não foi conseqüência da perversidade, nem da baixeza de sentimentos. Sei que procedi como um infame, mas sei igualmente que não podia proceder de outro modo. Na situação em que me colocou a fatalidade desta desgraça, eu não tinha outro caminho a seguir! Fui talvez mau e desumano; juro-lhe porém que não o fui por cálculo e premeditação. Para cumprir o meu destino, precisei abafar todas as vozes que me arguiam de dentro, precisei de amargar todas as lágrimas envenenadas pela consciência do crime. Quantas vezes não amaldiçoei este amor insensato, que me fazia esquecer tudo o que eu devia à sua generosidade e à sua filantropia? Oh! sofri! sofri muito! Para sua completa vingança bastava que o senhor pudesse avaliar a dor, o remorso, a vergonha, a humilhação, que me pungiam constantemente, ao lembrar-me de quanto era eu ingrato e desconhecido! Uma terrível mão de ferro empolgara-me o coração e espremia de dentro dele todo o fel das minhas negras dores. Tudo me atormentava, tudo me perseguia! Dormindo ou acordado, tinha sempre defronte dos olhos o fantasma do meu cruel segredo. Nem uma hora de repouso! nem uma hora de felicidade! Não podia encarar para o senhor, sem sofrer todos os tormentos do inferno; a sua figura, austera e veneranda, produzia-me o efeito de punhaladas no coração; o seu calmo ar de bondade, brandura do seu gênio, a franqueza do seu caráter, eram para mim um suplício constante! Pensei na morte; quis por uma vez destruir esta vida inútil e miserável, e só Deus sabe quanto me custou não poder consumar esse desejo!...

-Faltava-lhe coragem para suicidar-se, disse o comendador; mas não lhe faltava para matar-me...

-Juro-lhe que me custaria muito mais destruir a sua vida do que a minha própria!

-Nega então que tentou contra os meus dias?...

-Não, não nego. Afianço-lhe, porém, que o fazia, não por mim, mas pelos seus próprios interesses e pelo interesse de sua mulher.

-Explique-se!

-Eu não podia fugir da fascinação que Teresa exercia sobre mim, mas igualmente não queria aviltá-la, fazendo dela minha amante; como não queria que o senhor em qualquer tempo corasse defronte da adúltera. Matando-o, ela passaria a ser minha esposa legítima, e a memória do primeiro marido ficaria intacta e respeitada...

-De sorte que ainda lhe tenho de agradecer essa delicadeza?... observou o outro, com um ligeiro sorriso de ironia amarga.

-Não zombe, Sr. comendador. Juro-lhe que é sincero o que acabo de dizer; eu queria evitar a sua desonra! Entretanto, está tudo perdido; está tudo acabado! Resta-me apenas propor-lhe uma última coisa...

-Uma proposta?!...

-E verdade. Estou convencido de que o senhor não me perdoará. Pois bem! Tomarei outro expediente: mato-me no mesmo instante, e o comendador, depois de minha morte, releva minhas culpas e recolhe de novo Teresa à sua proteção. Aceita?!

E, dizendo isto, Portela engatilhou o revólver e aproximou-o da boca.

-Nunca! respondeu o comendador. Para Teresa não há perdão possível!

-Nem com a minha morte? interrogou o rapaz, desviando a arma.

-O senhor não morrerá! exclamou o velho. Prefiro que viva e tenha de trazer aquela miserável às costas. É essa a minha vingança! Mais tarde, ou o senhor a desprezará ou ela lhe dará de beber as mesmas amarguras que me entornou ao coração! Em qualquer dos casos, eu me julgarei satisfeito. O amante será enganado muito mais facilmente do que foi o marido...

-Mas, disse Portela, se era esse o seu propósito, para que então me denunciou à polícia?... para que me perseguiu desta forma?...

-Descanse que não o quero punir judicialmente; quero obrigá-lo a tomar conta da sua cúmplice. Foi para isso que vim prevenido!

-Não era necessário tanto! respondeu Portela, com um gesto de orgulho. Eu sei cumprir com os meus deveres...

-Mas eu tenho pouco confiança em tais promessas, e prefiro assegurar melhor o negócio...

-Que diz o senhor?

-Digo-lhe que exijo uma obrigação por escrito, um termo de responsabilidade em que se comprometa o senhor a tomar conta de Teresa e manter-lhe os meios de vida enquanto ela existir. Eu tinha preparado tudo isso para mais tarde, o senhor porém precipitou os acontecimentos. É o mesmo! O que tinha de ser feito por intimação da autoridade policial, far-se-á por minha simples intimação. Leia!

E o comendador tirou da algibeira um papel selado que passou ao rapaz.

-Mas para que toda essa formalidade?... perguntou Portela, depois de ler.

-Caprichos de marido enganado respondeu o comendador. Assine!

-Eu não assino semelhante coisa!

-Bem! nesse caso o entregarei à justiça. Escolha!

-Prefiro isso! Este papel, assinado por mim, seria uma terrível arma com que o senhor poderia perseguir-me em qualquer tempo!

-Bom, meu caro senhor, visto isso, deixemos seguirem as coisas o caminho que eu lhes havia traçado, e repito então o que disse no princípio da conversa: «Nada tenho a ouvir do senhor». Entenda-se com as autoridades competentes!

-Espere! atalhou Portela, quando o viu disposto a sair. Pense um instante! Que interesse tem o senhor em perseguir-me deste modo?!... Para que exige a minha assinatura em um documento humilhante e vergonhoso para mim?!... Sei perfeitamente que o comendador não está seguindo os impulsos do seu coração... Não queira fazer-se mau! Não queira fingir o que não é! Lembre-se de que sou pobre e preciso conservar limpa a minha reputação para poder ganhar a vida...

-Oh! disse o comendador. E a sua bela resolução de suicidar-se?!

O outro abaixou a cabeça. E o comendador acrescentou:

-Quanto à sua reputação... se o senhor não se importou com ela, quanto mais eu!

-Mas do que lhe pode servir esse documento assinado por mim?

-Isso é cá comigo! respondeu o marido de Teresa, e, fazendo nova menção de sair, acrescentou resolutamente:

-Então, assina ou não assina?!

-Assino, malvado, mas juro-te que te hás de arrepender desta violência!

-Pode ser! disse o comendador, perfeitamente calmo.

Portela assinou o documento.

-Aí o tem! exclamou, empurrando o papel com arremesso.

-Bem! respondeu o comendador, dobrando o escrito e guardando-o na algibeira. Está o senhor livre! Deixo-o em plena liberdade!

E saiu, depois de despedir os soldados.

Portela deixou-se cair em uma cadeira.

-Não há de ser como supões, meu pedaço de asno! monologou ele. Tu não sabes com quem te meteste!

Tia Agueda

Quando Teresa voltou a si, inutilmente chamou repetidas vezes pelo amante; afinal levantou-se, apoiando-se aos móveis, e foi até à sala próxima. Não havia viva alma em casa.

-Com efeito! disse ela.

Portela antes de sair, pensara-lhe a pequena ferida da cabeça com esparadrapo.

-Que teria sucedido na ausência da sua razão? considerava a infeliz, consultando a memória; recordava-se vagamente de ter escutado, na sonolência do desmaio, o som de passos repetidos no corredor e a voz do marido com as de outras pessoas que pareciam altercar. Mas tudo isso podia ser causado simplesmente pelo delírio...

De repente uma idéia lhe atravessou o espírito. Calculou que Portela, denunciado pelo comendador, estivesse àquela hora detido na polícia.

-Com certeza não é outra coisa! pensou ela aflita a contemplar as suas roupas sujas de sangue. E como havia de sair daquela situação?... No estado em que se achava, não tinha ânimo de aparecer na rua... Portela não poderia vir naturalmente em seu auxílio... Ah! se chegasse ao menos o tal Antônio que fazia a limpeza da casa!...

E Teresa arrastava-se de um para outro lado, cada vez mais ansiada e oprimida. O sangue que derramara, produzia-lhe certa fraqueza, e os olhos enfumaçavam-se-lhe como por efeito de uma formidável enxaqueca.

-Além de tudo, sinto vertigens! disse ela, deitando-se na cama.

E, daí a pouco, dormia de novo.

Vejamos, entretanto, o que por esse tempo fazia Portela.

Logo que se retirou o comendador, o astucioso caixeiro, depois de curar a cabeça da amante, meteu o revólver na algibeira e ganhou a rua com direção à casa do seu compadre Leão Vermelho, que então, como se deve lembrar o leitor, morava no Campo de Santana, em companhia daquela nossa conhecida Henriqueta, de cuja extinta casa de pensão, já outrora fizera parte o amante de Teresa.

Leão Vermelho sofria por essa época a implacável perseguição de que falamos, e partia no dia seguinte para Buenos Aires.

-Compadre, exclamou Portela, assim que se achou defronte dele; venho disposto a seguir com você!

O comissário fez um gesto de espanto e pediu ao outro que se explicasse.

-Vai sempre amanhã? perguntou o padrinho de Clorinda.

-Definitivamente.

-Pois vamos juntos. Não me convém ficar mais tempo no Rio de Janeiro. Tenho poucos recursos; irei como seu empregado, serve-lhe?

-Mas que resolução foi essa? interrogou Leão Vermelho.

-Questões de amor! explicou Portela, fazendo-se contrariado. Não posso ficar aqui... Já deixei o emprego. Já liquidei todos os meus negócios. Só desejo saber se posso ou não contar com você...

-Pois não; eu até estimo. Nunca lhe propus semelhante coisa, porque sempre me pareceu que ela lhe seria pouco vantajosa; mas uma vez que você o quer...

-Posso então preparar-me?

-Decerto.

-Pois até amanhã.

E Portela saiu da casa do compadre para se ir despedir do emprego, que lhe havia arranjado o comendador; recolheu as suas economias, pagou uma ou outra pequena dívida, e seguiu afinal para Catumbi.

Encontrou Teresa dormindo.

-O quê?! disse ele entrando assustado no quarto. Pois esta mulher ainda não voltou a si?!...

Ela acordou logo, fez um grande espanto quando o viu e desfez-se em perguntas; queria saber tudo o que havia sucedido, os perigos a que o amante se expusera.

-Tu deves estar caindo de fome! observou ele. É quase noite. Eu vou arranjar-te o que comer. Espera.

-Não, conta-me primeiro o que há, o que se passou aqui. Estou louca por saber de tudo!

-Resume-se tudo em duas palavras, disse Portela: Teu marido procedeu contra mim, tenho a justiça sobre a cabeça e fujo amanhã mesmo do Rio de Janeiro...

-Eu vou contigo! exclamou ela, abraçando-o.

-Impossível! respondeu o rapaz. Para fazer semelhante viagem, precisei arranjar-me como secretário de um sujeito que sai, amanhã ou talvez depois, para a Europa; ele consente em levar-me com a condição de que eu vá só...

-E eu?! perguntou a mulher do comendador, empalidecendo.

-Tu voltas para a companhia de teu marido. Ele está resolvido a perdoar-te tudo e a receber-te de novo.

-Isso é que é impossível, nem tampouco me convém!

-Mas, filha, olha que é o único recurso que há!

-Pois então mato-me!

-Deixa-te de tolices!

-Duvidas?!

-Não duvido, mas reprovo.

E ficaram calados por algum tempo.

-Eu vou buscar-te a ceia, disse afinal Portela, erguendo-se da cama, onde se tinha assentado.

-Não quero nada! respondeu ela de mau humor.

-Deixa-te disso comigo! pediu o outro, ameigando-a por condescendência.

-Solta-me! resmungou ela, empurrando-o. Deixa-me! Deixa-me!

E pôs-se a chorar.

-Agora temos choro! disse o rapaz, coçando a cabeça.

Teresa soluçava a chamar-se desgraçada, a maldizer-se, a pedir que a matassem.

-Tu me fazes perder a paciência! exclamou Portela, zangando-se afinal. Estou a dizer-te os apuros em que me vejo; e tu a te fazeres desentendida! Ora sebo!

E depois de passear pelo quarto, com as mãos nas algibeiras, parou defronte da amante e disse-lhe em voz áspera:

-Pois, filha, se não queres ir para a casa de teu marido, vai para o inferno! Eu não posso tomar conta de ti! Aí tens!

-Tu és um vilão! respondeu ela, quase sem alento.

-É melhor não puxarmos pela língua! replicou Portela, porque te sairias muito mal!

-Quem sabe se tenho medo de ti?!

-Pior!

-Se te parece dá-me agora bordoada! Também é só o que falta!

-Ó mulher! cala-te com todos os diabos!

-Foi bem feito! Quem me mandou acreditar em um canalha de semelhante espécie!?

-Não! Isso agora tenha a paciência... Foi a senhora quem me provocou... Eu estava perfeitamente sossegado!

-Hein?! Como?! Você não me provocou?! É a quanto pode chegar o cinismo!...

E, ambos, de fato convencidos que o sedutor era o outro e não ele próprio, discutiram, a palavrões, ainda por algum tempo. Teresa afinal declarou que não saía daquela casa e que o Portela não faria a tal viagem, ou ela o havia de acompanhar!

-Esta casa está paga somente até amanhã. Tu hás de ir hoje mesmo para a companhia do comendador!

-Eu não hei de apresentar-me lá neste estado! Você não vê que estou toda suja de sangue?!

Ficou resolvido que Teresa iria primeiramente para a casa da madrasta, que morava nesse tempo no Catete, e daí então escreveria ao marido. Com muita repugnância aceitava ela esse alvitre, porque entre as duas senhoras houvera antes do casamento constantes desavenças, e depois deste poucas vezes se visitaram.

A madrasta de Teresa era mulher de mau gênio, muito inculta; não sabia estar em sociedade e dizia asneiras na conversa. O comendador a recebeu sempre com uma indiferença repulsiva; às vezes dava festas e nunca se lembrava de convidá-la. Quando havia visitas então, era uma desgraça! Conhecia-se na cara do homem toda a sua má vontade para com a sogra.

Nessas condições, Teresa tinha sérios receios de pedir socorros à madrasta. Parecia-lhe já estar a ver a terrível matrona a olhá-la por sobre os óculos, indignada, com as mãos nas cadeiras, a boca muito aberta e um grande espanto na fisionomia.

-Definitivamente não serei bem recebida!... observou Teresa ao entrar no carro, que Portela fora buscar. Assentaram-se ao lado um do outro. Ele a acompanharia até à porta.

À proporção que caminhavam, Teresa parecia cada vez mais sobressaltada. Que não diria a velha?! Que não suporia?! E daí, se a madrasta entendesse de não a receber?! Sim! porque aquela víbora era capaz de tudo! Não gostava de incomodar-se por ninguém e, quando a coisa então lhe cheirava, a responsabilidade, não havia meio de obter dela o menor serviço!

-Há de arranjar-se tudo! disse Portela impaciente. O suor caía-lhe em bagas pela testa.

Mas Teresa, ao passar em certa travessa do Catete, teve uma idéia: recolher-se de preferência à casa da preta que a criara, tia Agueda. Era uma boa mulher, fora escrava de seu pai e sempre a conservara na mesma estima respeitosa. Essa também ficaria espantada com a sua visita, mas ao menos havia de prestar-se a socorrê-la com muito boa vontade.

O diabo era que a pobre mulher morava em uma espécie de cortiço, onde vendia angu. Teresa talvez não encontrasse lá um lugar decente para esconder-se.

-Tudo se arranjará! repetiu Portela.

E, com efeito, ficou tudo arranjado. Teresa recolheu-se ao domicilio da boa preta, e Portela voltou a casa para tratar das malas.

Tia Agueda, ao lobrigar a sua querida filha de criação, que ela há tanto tempo não via, duvidou dos próprios olhos e ficou perplexa, a fitá-la com grande enlevo; afinal abriu os braços e exclamou sinceramente comovida:

-Gentes! Olha Neném!...

Teresa quis pedir-lhe que não fizesse espalhafato; quis falar, mas não pôde; ao ouvir o doce tratamento familiar que lhe davam em pequenina, as lágrimas saltaram-lhe logo dos olhos e os soluços tomaram-lhe a garganta.

Ah! nesse bom tempo seu pai ainda era vivo e seu coração ainda era feliz! Que de transformações se não tinham produzido entre esse passado de inocência e aquele presente de dissabores?... Que de mudanças não sofrera sua alma! que de novas informações não padecera seu corpo! Quantas decepções em tão pouco tempo!... Quantos desgostos em tão pequena existência!... Dantes não conhecia Teresa as frias responsabilidades da vida, não suportava as duras necessidades do sangue, não compreendia outro amor que não fosse o da família e o dos folguedos da infância. Mas tudo se transformara em torno e dentro dela; as suas mais gratas afeições, as suas mais simpáticas ilusões se foram pouco a pouco dissolvendo como as nuvens transparecendo em dias de estio.

Foi tudo isso o que a presença da pobre negra disse de relance ao coração oprimido de Teresa. As saudades do passado e as apreensões do presente chocaram-se no espírito da infeliz, produzindo-lhe uma grande crise nervosa, que parecia preparada durante o dia e só à espera daquele sinal para rebentar.

Não havia meio de suster-lhe as lágrimas e os soluços; embalde tia Agueda procurava tranqüilizá-la. Teresa não podia dar uma palavra.

-Mas, Neném, que é isto?! que lhe sucedeu?!...

E a negra, vendo que Teresa não respondia, carregou-a para o quarto, fê-la deitar-se na cama e ajoelhou-se aos seus pés, beijando-lhe as mãos e afagando-lhe os cabelos.

-Sossega, Neném! sossega! dizia ela com a mesma ternura dos outros tempos em que a acalentava no berço.

Só meia hora depois Teresa sossegou um pouco. Suas primeiras palavras foram para pedir o que comer.

Tia Agueda improvisou logo uma ceia.

Descobria-se nela, na sua presteza, nos seus movimentos, a boa vontade com que fazia tudo aquilo. Em breve, de um quarto próximo ao em que estava a mulher do comendador, vinha um cheiro picante de peixe que se frigia e chilrava ao fogo. A segurança do lugar, a boa hospitalidade e a expectativa da ceia principiaram a reanimar totalmente as forças de Teresa. Quando a negra acendeu mais um candeeiro, cobriu a mesa com uma branca toalha de algodão e trouxe o primeiro prato, já não havia sinal de lágrimas.

-Você está se incomodando muito, tia Agueda! balbuciou a senhora.

-Hê, Neném! Não diga tolice! repreendeu a preta, a saracotear pela sala.

E declarou que só o que sentia era não ter uma casa melhor para receber a sua querida filha de leite.

-Está tudo muito bom, emendou Teresa, procurando já tentar um sorriso.

Agueda era uma preta muito asseada. As paredes da sua pobre casa estavam limpas, o chão cuidadosamente varrido e os raros trastes escovados. Havia uma cômoda, já velha, com puxadores de vidro verde, sobre a qual se estendia uma clássica toalha de rendas e se perfilavam várias imagens de santos. Pelas paredes viam-se litografias de assuntos religiosos emolduradas em madeira. A um canto destacava-se um pequeno oratório, forrado de papel de cor e guarnecido de galões amarelos; duas velas o iluminavam e faziam sobressair de dentro a figura mal talhada de um Santo Antônio, vivamente colorido e cercado de alecrim seco e de flores viçosas.

Uma mesa forrada de lençóis e um tabuleiro cheio de camisas engomadas, denunciavam o trabalho desse dia; e, ao lado, um grande cesto, pejado de roupa lavada, prometia o serviço do dia seguinte. Tia Agueda vestia saia e camisa. Viam-se-lhe as grandes espáduas gordas, o pescoço forte, enfeitado de corais e contas redondas de ouro. Os braços saíam nus das rendas do cabeção em toda a sua negra exuberância; os quadris jogavam rijamente quando ela apressava o passo nos arranjos da ceia.

Teresa parecia já consolada e gozava intimamente da novidade daquela situação. O estômago reclamava alimento e o corpo pedia repouso. Foi com prazer que ela se deixou conduzir para a mesa pela carinhosa mulher. Os pratos escaldados, as facas de ferro reluzente, os copos nitidamente areados, faziam apetite. Uma travessa de peixe frito enchia o ar com o seu aroma apimentado e quente.

Tia Agueda foi ao armário buscar mais o que havia, e convidou Teresa a principiar.

-Sente-se então aqui, ao pé de mim, reclamou a amante do Portela.

-Já vai Neném; deixa primeiro ver uma garrafa de vinho aqui dentro...

Ela há muito tempo que possuía e guardava com cuidado essa garrafa. Dera-lhe o seu ex-senhor por ocasião de uma festa.

-Ainda é lá de casa, declarou a preta, mostrando a Teresa a preciosa garrafa. Presente de sinhô velho!...

-E mal sabia você, tia Agueda, que o seu presente ainda havia de servir para mim...

-Então?! É para uma ocasião destas que se guardam as coisas!

Aberta a garrafa de vinho, Agueda encheu o copo da querida hóspede, e foi assentar-se ao lado dela.

-Ah, tia Agueda! disse Teresa, comendo com muita vontade; se você soubesse o que me tem sucedido ultimamente!...

-Está bom, come primeiro, que depois se conversa...

Mas a rapariga, quando acabou de saciar a sua fome, declarou que se sentia incomodada; tinha o corpo mole e aborrecido, a comida caíra-lhe na fraqueza.

-Descansa, Neném, aconselhou a negra.

Teresa deitou-se; pediu à amiga que a despisse e descalçasse, e recomendou-lhe depois que fosse à casa do comendador e se entendesse com a criada Rosa para lhe trazer roupa limpa.

-Seu Ferreira não precisa saber que você foi lá buscar roupa... ouviu?... disse ela bocejando, com os olhos fechados.

-Não durma sem tomar café! objetou tia Agueda, apresentando-lhe a xícara. Teresa tomou o café, quase dormindo.

-Bem, vá, recomendou ela; não se demore, ouviu?

E, voltando-se na cama, adormeceu.

No dia seguinte, quando acordou, o sol entrava já pela janela e projetava no chão grandes manchas luminosas. Teresa dormira um sono completo e acordara bem disposta. Agueda preparou-lhe o banho, e, como desjejum, café com leite e pão com manteiga.

-Veio a roupa? perguntou aquela.

-Está tudo aí, Neném; mas há o diabo em casa de seu Ferreira...

-Conta! conta o que há!

-Ele caiu doente esta noite...

-Doente? de quê?

-Ataque. Jacó é quem sabe da história; diz que estava despindo seu Ferreira, quando o homem cambaleou, cambaleou, e caiu como morto.

-Uma congestão! exclamou Teresa em sobressalto. E depois, como ficou ele?!

-O Dr. Roberto está lá...

-Dá-me a capa, tia Agueda; vou já para casa!

E Teresa, agradecia interiormente ao marido aquela moléstia, que vinha de qualquer forma desviar as atenções assestadas sobre ela.

Mas também, ter de apresentar-se assim em casa, sem mais nem menos, era o diabo: considerava a leviana, enquanto ajustava o chapéu e endireitava a roupa. Olímpia sem dúvida estaria lá! Que não ficariam julgando de tudo aquilo?!...

-Ora! concluiu ela, completamente resolvida; é preciso tomar uma deliberação! Luiz afiançou-me que Ferreira está pronto a receber-me; vou! Não tenho outro recurso; além disso, já estou arrependida!... Agora é ter coragem!

E depois de abraçar a ama e lhe agradecer os obséquios recebidos, meteu-se no carro, que se fora buscar, e mandou tocar para casa.

À proporção porém que se aproximava, contraía-se-lhe o coração e a sua coragem ia minguando. Teresa tinha já defronte dos olhos a fisionomia repreensiva de Olímpia, o riso sarcástico de Jacó e a recriminadora figura do comendador; mas contava com o auxílio da Rosa, a criada que lhe remetera a roupa, que lhe protegera sempre os amores com Portela e que, naquela ocasião, já estaria seguramente à sua espera no portão traseiro da chácara.

Rosa era muito discreta e muito fina; falcatruas arranjadas por ela produziam sempre bom resultado. Teresa dava-lhe roupas, vestidos pouco usados, sapatos ainda novos, leques à moda; mandara ornar-lhe a cama com um cortinado e cedera-lhe até um dos tapetes de seu quarto. Sabia que a criada usava dos seus perfumes, dos seus sabonetes e dos seus cosméticos, mas fechava os olhos a tudo isso e ainda intercedia por ela sempre que o comendador a acusava.

O carro afinal parou defronte do portão, e Teresa apeou-se, ligeiramente trêmula.

Seriam oito horas da manhã e o dia estava magnífico.

Ficou por um instante à porta, sem querer entrar.

A chácara apresentava-lhe uma fisionomia repreensiva e severa; a casa, as árvores, o repuxo do tanque, tudo tinha então para ela um duro aspecto de censura e de queixa.

A luz penetrante do sol, derramando-se por toda parte, parecia ralhar, argüir, fazer reprovações. Toda a natureza a intimidava com a sua mudez austera e com a sua inalterável tranqüilidade.

Teresa sentia-se envergonhada, corrida; não tinha ânimo de levantar a cabeça. Os empregados públicos desciam para os seus empregos, devagar, no passo metódico dos homens que regulam a vida pelo ordenado, a caminharem na imperturbabilidade de funcionários pagos por mês. Passavam os bondes, cheios, pesados; singravam os caixeiros de cobrança, os pretos de carga, os vendedores de jornal, as carroças de pão, os estudantes, os meninos de colégio e as costureiras. E todo esse mundo da atividade e do trabalho esfervilhava ao sol, como um exemplo humilhante.

Teresa fechou os olhos para não ver esse doloroso espetáculo. A vida real entrava-lhe na imaginação como um jato de água fria. Ainda na véspera, ela se persuadira que ia por uma vez desprezar tudo aquilo; que nunca mais veria tal vizinho passar a horas certas para a sua repartição; que não ouviria tal piano de casa próxima tocar certa e determinada música; que não suportaria mais a voz da preta que de manhã passava impreterivelmente na rua a apregoar frutas; julgara que nunca mais daria com os olhos no vizinho da frente, um taverneiro barrigudo, de perninhas curtas e barbas debaixo do queixo; persuadira-se enfim que se havia por uma vez libertado de todas aquelas misérias positivas, que a constrangiam, que a matavam de vergonha e de tédio.

As próprias casas da vizinhança, a má pintura das tabuletas, o desenho de um boi impassível na parede de um açougue que ficava defronte, as desgraçadas alegorias da taverna da esquina, o farmacêutico pequenino, magro, amarelo, que vinha todas as tardes assentar-se debaixo de um flamboyant fronteiro à farmácia; tudo isso a enjoava, tudo isso lhe produzia efeitos insuportáveis.

A malograda fuga com o Portela havia sorrido ao espírito de Teresa mais pelo lado do imprevisto, do desconhecido, do aventuroso, do que mesmo pelo amor que ela lhe pudesse ter. Desejara aquela fuga como um doente deseja mudar de um lugar para obter novos ares; outro qualquer moço, igualmente vigoroso e bem disposto, é natural que produzisse nela iguais efeitos. A sua imaginação precisava de atividade dramática, como seu corpo precisava de atividade sexual.

Mas, as decepções da véspera faziam-na por um instante esquecer tudo isso, para só pensar na possibilidade de restituir-se de novo ao lar doméstico.

-Ah! se Deus me tivesse deixado uma de minhas filhas... dizia ela consigo, a subir muito apressada a pequena escada de pedra que conduzia da chácara para o jardim; não estaria eu agora com certeza a sofrer deste modo: haveria de sentir-me escudada por ela e pelo meu amor de mãe...

Rosa veio ao seu encontro e, sem lhe dar uma palavra, sem fazer um gesto de espanto, abriu com pressa a porta da cozinha que dava para o jardim, e fê-la passar, empurrando-a familiarmente pelas costas.

-Entre aí para o meu quarto, ordenou a criada. Eu já lhe venho dizer quando deve subir. Espere um pouco!

E Rosa, apanhando as saias, ganhou a primeira escada e desapareceu.

Teresa ficou só, à espera, com o chapéu na cabeça, a capa nas costas, imóvel, como se estivesse muito empenhada em observar os objetos que tinha defronte dos olhos. E, sem querer, começou a calcular o efeito da sua aparição ao lado do marido; via-se toda confusa a fazer-lhe festinhas, a consolá-lo do que havia sucedido, a adulá-lo. E, ainda sem querer, começou a considerar como devia entrar, se depressa ou vagarosamente; se devia deixar embaixo o chapéu e apresentar-se inalterável, como se não houvesse a menor novidade; ou se deveria entrar com espalhafato, fingindo indignação por qualquer coisa; se devia não dar palavra ao marido e esperar que tudo voltasse por si mesmo aos seus eixos, ou se devia lançar-se-lhe aos pés e pedir-lhe perdão com palavras ardentes, com soluços e gestos teatrais.

Mas antes de chegar a qualquer conclusão, já a criada voltava a dizer-lhe apressadamente da porta:

-Agora! Agora! Passe agora. Ande! Não há ninguém na varanda! Suba e vá para o seu quarto!

Teresa cumpriu aquela ordem, como se a recebesse de um superior.

-Ligeiro! gritou-lhe Rosa, assim que ela atravessou a cozinha e ganhou a escada. E logo que a viu desaparecer, espocou uma risada surda e soltou entre dentes uma exclamação injuriosa.

Depois, muito satisfeita com aquele episódio que humilhava a senhora, entrou no seu quarto, donde acabava de sair Teresa, e principiou por desfastio a arrumar os objetos sobre os móveis e a cantar em voz alta, com desembaraço, uma chula sua favorita.

Quando saiu do quarto, disse «Ai, ai!» e subiu a escada lentamente, com maneiras de dona de casa.

Teresa não apareceu à mesa, almoçou nos seus aposentos, esperando que Olímpia deixasse a cabeceira do pai, para então apresentar-se ela.

Mal, porém, havia feito a refeição, soaram duas pancadinhas à porta. A leviana retraiu-se.

-Sou eu, abra, disse de fora uma voz amiga.

Era Olímpia.

Teresa corou; a outra, porém, passando-lhe um braço na cintura, beijou-a na face.

A madrasta estranhou muito aquela inesperada amabilidade. A enteada fora sempre muito seca para com ela; e a sua surpresa cresceu, quando a filha do marido começou a declarar que estava muito aflita, receando que mãezinha não voltasse, e que desejava ser a primeira a dar ao pai a boa notícia da sua chegada.

-Não! disse Teresa; ele deve estar muito zangado comigo... o melhor é esperarmos que...

-Qual! eu obtenho de papai o que bem quero... Hei de falar-lhe por tal modo a seu respeito, mãezinha, que ele nem só a receberá de braços abertos, como ainda me ficará reconhecido.

-Não; é melhor esperar. Talvez que a minha presença agora lhe faça mal...

-Nesse caso vou consultar primeiro o Dr. Roberto! lembrou a outra com um repente de menina esperta.

-Está doida! Meter nisto um estranho?!...

Mas Olímpia afiançava que havia de arranjar tudo. E, com crescente surpresa da outra mostrava-se cada vez mais interessada pela madrasta. Não parecia a mesma; aquela falta ridícula e censurável de Teresa, longe de lhe produzir indignações, como era de esperar, despertava nela estranhas simpatias e inexplicáveis condolências.

Entretanto, Olímpia fazia tudo isso sem compreender bem por quê. Teresa ganhava a seus olhos certa auréola de poesia e sofrimento; a sua penosa situação dava-lhe, aos olhos da romântica menina, uns tons sedutores de heroína de romance; sem prever a pobre criança que, toda essa desordem moral e toda essa desorganização doméstica, haviam fatalmente de influir na sua própria educação e determinar, mais tarde, os lamentáveis sucessos de que já o leitor tem notícia desde as primeiras cenas da Avenida Estrela.

Nenhuma lição é tão poderosa como a do exemplo. Filtra-se ela pelo nosso espírito sem que o sintamos; e ela nos invade, nos conquista, nos possui totalmente, sem que possamos determinar ao certo qual foi o fato, o acontecimento que em nós estabeleceu este ou aquele sintoma, esta ou aquela inclinação, sem que possamos dizer o que foi que nos trouxe tal vício, tal idiossincrasia, tal propensão boa ou má. Tudo mais, que aprendemos de ouvido ou que aprendemos nos livros, se evapora com o tempo e desaparece; só essas lições, que nos entraram pelos olhos e nos espalharam na alma as suas raízes, só essas conservaremos por toda a vida e levaremos conosco para a sepultura.

Teresa, sem que ela fosse responsável por isso, não por maldade, mas unicamente em conseqüência das circunstâncias especiais do seu temperamento, da sua má educação e da desproporção de sua idade com a do marido, havia fatalmente de ser um elemento de corrupção ao lado de Olímpia.

A filha do comendador beijou ainda uma vez a madrasta, e saiu, com destino ao quarto do pai. Ia sondar em que disposição de espírito se achava ele para receber a mulher.

O pobre homem permanecia estendido na cama. Tinha os olhos cerrados, mas não dormia, porque os abriu logo que a filha pisou na alcova com o seu andar sutil de ave impúbere.

O marido de Olímpia

O comendador levantou-se da moléstia pelos braços da filha e da esposa. Olímpia havia triunfado: o pobre doente consentira em receber de novo a leviana. Mas, ah! nunca mais lhe dispensou a mesma ternura dos outros tempos; tratava-a agora com cerimoniosa indiferença, quase com desprezo; apenas a suportava por condescendência à filha que, desde logo, se convertera na sua única preocupação e no seu único afeto. Não gostava até que lhe falassem da mulher, poucas vezes a via e, quando se encontravam juntos à mesa, não trocavam entre si sequer um olhar.

Ela, entretanto, muito se transformara depois da partida do cúmplice. Já não ostentava os mesmos gostos e as mesmas inclinações; parecia indiferente às festas e aos passeios; não caprichava na escolha das roupas e saía poucas vezes de casa. Vivia triste, concentrada; estava muito mais magra, porém aparentemente resignada. Ninguém lhe ouvia uma queixa contra o marido; agora ao contrário, parecia procurar descobrir-lhe as intenções, as mais pequeninas vontades, para correr a satisfazê-las; adivinhava-lhe os desejos, armava-lhe boas surpresas e mostrava-se para com ele de uma solicitude e de uma amabilidade de que nunca dera exemplo em outras épocas.

Mas o comendador afetava não atentar para isso; recebia os obséquios que vinham da mulher com a mesma indiferença com que ouvira falar de qualquer assunto que absolutamente lhe não dissesse respeito. Não a contrariava, não desdizia, não a aconselhava, se ela quisesse sair, que saísse; se quisesse ficar em casa, que ficasse; se quisesse morrer, que morresse! Para ele era tudo a mesma coisa; contanto que lhe deixassem a sua querida, a sua adorada Olímpia.

Para esta, sim, tinha o comendador bons sorrisos, palavras afetuosas e rasgos de amizade. Sempre que entrava em casa perguntava logo por ela e nunca saía sem receber um beijo dos seus lábios finos e perfumados.

Assim se passaram seis meses.

Um dia Olímpia comunicou-lhe que a madrasta estava doente.

-Sim? resmungou o pai. E continuou a falar do assunto de que tratava.

-Oh! disse a menina. Há dois dias!... Pois papai não vê que ela não tem vindo à mesa?...

-Não reparei, afirmou o velho secamente.

-E por que não lhe vai fazer uma visita?... perguntou Olímpia, ameigando-o. Ela havia de estimar tanto, coitada!...

-Sim, sim, eu hei de lá ir, prometeu ele para contentar a filha.

Mas três dias se passaram depois da promessa, sem que o comendador aparecesse no quarto da mulher.

-Antes me castigasse de outro modo! disse esta à enteada em continuação a uma conversa. Nunca pensei que teu pai fosse tão pacificamente mau! Estou arrependida de ter aqui voltado, crê!

Olímpia não se animou a objetar uma palavra em defesa do comendador.

-Sei que mereço censura, acrescentou a enferma, com a voz fraca e infeliz; sei que cometi uma grande falta, mas a minha conduta de então para cá devia obter o seu perdão. Ele vê perfeitamente que estou bem arrependida, por que então nesse caso não me trata de outro modo?... Oh! eu me sinto triste com a idéia da sua vingança, e, todavia, precisava agora, mais que nunca, de desvelos e de amparo... Estou doente, sinto que estou muito mal, por que pois ele me não vem ver?... por que não me vem dar duas palavras de piedade?... Isso não seria também tão grande sacrifício... seria uma simples obra de misericórdia...

E, depois de fitar por algum tempo um mesmo ponto, com as mãos entre as de Olímpia, disse-lhe sem transição:

-Nunca te cases senão com um homem de idade proporcionada à tua... Não cometas nunca semelhante leviandade! Por melhor que seja o teu caráter, por mais perfeito que seja o teu coração, por mais senhora que fores do teu temperamento, dos teus desejos e das tuas aspirações, nunca darás uma esposa perfeita, se ao teu casamento não presidirem, o amor em primeiro lugar, depois a harmonia completa de idades, de espírito, de bens e de educação. Não calculas o inferno em que vive uma mulher moça casada com um velho! Não é simplesmente o fato de lhe não dar o marido o amor de que ela precisa para viver, mas também a desgraçada circunstância de que esse casamento a inutiliza de todo para o amor de qualquer outro homem!

Olímpia ouvia as palavras da madrasta com os olhos muito abertos e a fisionomia transbordante de curiosidade. Era a primeira vez que Teresa se queixava do comendador e deixava transparecer francamente o azedume dos seus desgostos.

-O amante, prosseguiu a madrasta, também não satisfaz, porque não nos pode dar o que constitui a nossa melhor felicidade em questões de amor. O marido velho está em uma extremidade, o amante está na outra; não podem atingir ao meio termo, o centro calmo de um amor legítimo, digno e completo, que é onde encontramos a verdadeira ventura, o gozo plácido e duradouro da existência. Só um marido moço, amigo, com o seu destino ligado ao nosso, a sua dignidade entrelaçada com a nossa dignidade, pode colocar-se nesse meio termo ideal. É preciso que os dois caminhem de mãos dadas para a velhice, unidos, seguros; o seu amor deve ir custodiado, como um perfume sutil e precioso que se pode derramar pelo caminho. E isso só se consegue com o casamento proporcionado. Ao contrário, no melhor da viagem, um deixará o outro no meio da estrada. O amante não pode sequer compreender o valor dessa afeição solidária, útil e sem transportes; ele nada arrisca, nada compromete no seu amor, para desejar conservá-lo puro e digno. A idéia de que o marido consiga agradar à mulher com as suas ternuras, é o bastante para levá-lo a imaginar meios e modos de suplantar o rival e, como o jogador que arrisca sobre a mesa os capitais alheios, comete o que o marido nunca teria ânimo de fazer. O que vier é lucro! Por outro lado, as circunstâncias que o trazem afastado da amante, lhe facultam acumular por um mês, dois, e às vezes por mais tempo, a porção de ternura que o marido vai diariamente dispensando à mulher em doses pequenas; de sorte que, na ocasião de se apresentar, gasta brilhantemente, em uma só entrevista, tudo o que o outro consome durante um prazo longo. As mulheres, em geral, deixam-se iludir com isso e supõem o amante muito mais amoroso que o marido; não se lembram, as desmioladas, que só o fogo lento é suscetível de duração. O amante tem chama periódica como os vulcões; o marido conserva constantemente aceso o modesto braseiro do lar, o lume da sua casa.

Teresa acrescentou depois:

-Não te cases com um velho, minha querida Olímpia; mas, se porventura vier a suceder-te tamanha desgraça, nunca procures remediar esse mal com o mal muito maior de adotares um amante. O homem que é capaz de aceitar semelhante papel, não é digno da nossa menor estima, porque o fato de ser amante de uma mulher casada já é prova irrecusável de deslealdade e de falta de caráter...

Nisto foi interrompida pelo Dr. Roberto que vinha visitá-la.

O médico achou-a mais abatida e gravemente pior, segundo o que disse depois Olímpia.

O comendador recebeu essa notícia sem lhe dar a menor importância. E quando, à noite, Olímpia insistiu com ele para que fosse fazer uma visita à Teresa, o velho respondeu asperamente que não, esquecendo-se por um instante do modo carinhoso por que costumava tratar a filha.

Dois dias depois o Dr. Roberto declarou que Teresa precisava mudar de ares; e a enferma mudou-se para um hotel que se acabava de abrir no morro da santa de seu nome. Foi só; o marido não a quis acompanhar.

Olímpia iria ter com ela de vez em quando.

O comendador mostrava-se cada vez mais diferente; todavia não pôde esconder o abalo que lhe causou a figura transformada da mulher, quando a viu aparecer, pelo braço de Olímpia e de uma escrava, para tomar o carro.

Ele não a teria reconhecido em outro lugar. Estava completamente desfeita; os olhos mortos, a pele de uma palidez cadavérica, o ar cansado e aflito, os cabelos embaraçados e ressequidos pela febre. Não podia quase andar, arrastava os pés inchados, e gemia, a tomar respiração com muita dificuldade.

Ao passar perto do marido, ela o cumprimentou, procurando dificilmente transformar a expressão agoniada do rosto em um sorriso de amabilidade, mas teve logo de cortar o sorriso com um gemido doloroso.

O comendador avançou automaticamente dois passos e procurou ajudá-la.

-Não se incomode! murmurou ela. Eu vou bem!...

E continuou a manquejar, gemendo ofegante.

Nessa ocasião chegava um caixeiro da casa do Figueiredo, que o comendador mandara pedir para acompanhar Teresa ao hotel.

Era o João Rosa; teria nesse tempo uns catorze ou quinze anos. Já denunciava porém o que havia de ser para o futuro; cintilava-lhe nos olhos de criança a cobiça adquirida em contacto com os companheiros de trabalho. Era amarelo, seco, com a cabeça grande demais para o corpo, a boca apertada, o nariz grosso, o cabelo cortado à escovinha, unhas e dentes sujos. Passava por muito esperto e aproveitável: os patrões gostavam dele.

-Acompanhe essa senhora ao lugar aí indicado, disse-lhe o comendador, passando-lhe um cartão com o número e o nome do hotel.

E acrescentou-lhe em voz baixa, de modo que a mulher o não ouvisse:

-Demore-se um pouco às ordens dela; pergunte-lhe se precisa de alguma coisa e, dado este caso, comunique-me o que for. Não despeça o carro; se houver qualquer novidade, meta-se nele e venha logo falar comigo. Tome lá para alguma despesa imprevista.

Entregou-lhe uma nota de cinqüenta mil réis.

João Rosa guardou o dinheiro e despediu-se do comendador com uma mesura humilde.

-Viva! respondeu este; e recolheu-se ao quarto, inalteravelmente, como sempre, teso, limpo, bem penteado.

Mas, depois de fechar a porta por dentro, assentou-se à secretária, fincou os cotovelos na mesa, segurou a cabeça com ambas as mãos, e começou a chorar.

Jacó passeava de um para o outro lado na sala de espera. Estava preocupado. Ouvia-se sobre o tapete o som discreto dos seus grandes sapatos de bezerro, muito engraxados e quase sem salto.

Um gemido mais forte, fizera-o correr para junto dele.

Jacó era o único que havia compreendido bem a perturbação do comendador. Para ele o amo não podia dissimular a mais passageira impressão, o velho criado adivinhava-lhe os pensamentos, lia-lhe no rosto tudo o que se passava naquele coração amargurado e cheio de rugas.

Teresa chegou muito fatigada ao hotel, uma enfermeira de contrato trouxe-lhe um caldo e fê-la recolher-se à cama.

-Que horas são?... perguntou a doente, com ar de fastio.

-Deram duas agora mesmo.

-Bem. Dê-me aquele livro de capa encarnada. Esse que tem uma cruz em cima. Justamente!

-A senhora precisa ainda de mim para alguma coisa?... perguntou o João Rosa, de quem Teresa já se havia esquecido.

-Ah! disse ela. Se voltar lá em casa, diga a Olímpia que apareça o mais depressa possível.

-Sim, senhora.

-Adeus. Obrigado.

O comendador não aparecera à mesa de jantar, e à noite pouco conversou com a filha.

O pobre velho sofria.

Criaram-se então duas existências bem diversas, mas igualmente duras e desconfortadas; a do comendador ao lado da filha, e a de Teresa à mercê dos cuidados mercenários de um hoteleiro.

A esposa faz muita falta ao homem em qualquer situação da vida, mas essa falta só toma um caráter verdadeiramente perigoso e lamentável, quando o homem tem uma filha. E principalmente se a filha for da idade de Olímpia e, como esta, tiver um caráter impressionável e romanesco.

Os pequeninos serviços domésticos, os cuidados do lar, os desvelos para com o dono da casa, os quais exercidos por uma esposa, feitos de mulher a marido, são destinados a prendê-los de parte a parte, a identificá-los cada vez mais e a torná-los indispensáveis um para o outro; tudo isso que, entre um casal, significa virtude e garantia de felicidade, uma vez arrancado das mãos da esposa, para ser confiado às de uma filha, se converte em elemento de efeitos diametralmente opostos.

O que servia para chamar a consciência da mulher aos seus deveres, só serve, no outro caso, para desencaminhar a delicada ingenuidade da filha, chegando até a lhe desvirtuar o pudor.

O comendador Ferreira, à semelhança de muitos pais, viúvos ou separados da mulher, entregou à filha a direção da sua casa.

Foi então que ela viu pela primeira vez o homem a quem veio a esposar: o caixa da casa Paulo Cordeiro, o tal Gonçalves, vítima de Pedro Ruivo no roubo dos vinte contos; homem forte, trabalhador, econômico, senhor de boas economias e apenas com trinta e tantos anos de idade.

Olímpia o encontrou em casa de um velho amigo do pai, um conselheiro dessa época. O Gonçalves ficou logo muito impressionado por ela; Olímpia tocou e cantou. No dia seguinte ele fez uma visita ao comendador. No primeiro domingo voltou e aceitou o convite para jantar. Daí a quinze dias pediu a moça em casamento.

A filha do comendador consentia, sem repugnância, mas também sem o menor entusiasmo. O comendador estava no mesmo caso, permitia por não ter outro remédio; o Dr. Roberto havia declarado que Olímpia, se não tratasse logo de casar, podia vir a padecer muito dos nervos, e então seria mais difícil combater a moléstia.

Todavia esse casamento estava destinado a transformar a casa do comendador e o caráter de Olímpia.

Gonçalves iria morar com o sogro, fazendo assim a vontade ao comendador, que não queria separar-se da filha por coisa alguma deste mundo.

Maior que fosse a família, havia lugar de sobra no preventivo casarão de Botafogo.

O velho, sobre estar muito agarrado ao seu canto, vivia ultimamente aborrecido e enfermiço. A própria filha, de algum tempo àquela parte, não parecia tomar pelo pai o mesmo afetuoso interesse com que dantes lhe arrimava os dissabores e as desilusões. Andava distraída; não tinha as alegrias da sua idade, fugia das amigas, poucas vezes saía de casa, e mesmo assim quase sempre para visitar Teresa. Só os romances franceses e, às vezes, o piano, conseguiam prendê-la por mais algum tempo. Não lhe falassem em festas, passeios e ajuntamentos.

O comendador chamou sobre ela a atenção do Dr. Roberto. Esse declarou que tudo aquilo desapareceria com o casamento.

Foi essa, como já vimos, a única razão que moveu aquele a consentir na união de Olímpia com o Gonçalves. Não é que desdenhasse das qualidades do pretendente, mas o Gonçalves estava longe de ser o ideal que o comendador sonhava para genro. Preferia um homem mais distinto, mais cultivado no trato e nas coisas do espírito; mais brilhante, em suma. E Gonçalves era ao contrário um sujeito modesto e chão; homem de bom senso, mas de ambições estreitas. O que o puxava mais insistentemente para Olímpia, não foi a beleza da rapariga, que ela nessa ocasião até estava quase feia; nem também o dote, porque Gonçalves não seria capaz de casar por especulação, mas foi justamente aquela indiferença pela vida exterior, aquele desquerer das coisas ruidosas que ele, à primeira vista, descobriu logo na filha do comendador.

Pobre homem! como se havia enganado! O que supunha congênito e natural em Olímpia, não passava de uma crise, de um estado mórbido, que desapareceria prontamente com o matrimônio.

Para qualquer outro seria isso um motivo de felicidade, para ele era um transtorno.

Com efeito, pouco depois do casamento, a menina insociável e bisonha foi desaparecendo, e Olímpia, a verdadeira Olímpia, a mulher formosa, de ombros torneados e peito colombino, surgia entre os braços do marido.

Nela tudo se transformou, como por encanto: a pele fez branca e macia; encheu-se o colo e encorparam-se-lhe os braços; as linhas dos quadris serpentearam com mais arrojo; os olhos esparsaram-se, rociados de ternura, e a boca desabrochou em belos sorrisos ao toque dos primeiros beijos sensuais.

E, se por um lado o corpo se aformoseava, por outro o espírito se desapertava e distendia. Quatro meses depois de casada, Olímpia principiou a sentir-se atrair para as salas, seus encantos pediam a admiração e o aplauso dos homens de bom gosto; precisava de aparecer, precisava de luzir.

Reclamou jornais de moda, freqüentou as modistas do tom, exigiu um cabeleireiro, comprou jóias, tomou carruagem, escolheu cavalos, e dentro em pouco foi ela a ordem do dia na rua do Ouvidor e nos salões de Botafogo.

Os folhetins do Otaviano Rosa, no Correio Mercantil falavam de Olímpia; descreviam-lhe a toilette, endeusavam-lhe as graças. Suas frases foram repetidas, seus gostos imitados.

O comendador não se podia furtar à influência de todas as transformações e com o que essas refletiam. Era com orgulho que agora acompanhava ele a filha ao Cassino, ao Lírico e à Campesina.

Já ninguém o via triste e apoquentado. Os alegres hábitos do outro tempo foram ressurgindo simultaneamente. À casa retornou o ar feliz que havia perdido. Bastou que Olímpia se casasse, se fizesse verdadeira dona de casa, para encontrar facilidade em governar os criados, em dirigir tudo o que estava sujeito à sua vontade. Os fornecedores deixaram de roubar, os fâmulos já não esbanjavam como dantes, a chácara voltou ao que era primitivamente. Tudo endireitou, tudo entrou nos eixos. Reapareceram as visitas, iluminaram-se as salas, distribuíram-se chávenas de chá, desarrolharam-se garrafas de vinho caro.

O único descontente era Gonçalves; aquela mulher, que a todos deslumbrava com os seus encantos pessoais, aquela adorável Olímpia de quem se falava com tanto entusiasmo por toda a parte, não lhe convinha a ele para esposa.

Não era essa a mulher que havia sonhado.

Imaginara ter descoberto na singela filha do comendador uma companheira sossegada e amiga do lar; quando de repente lhe surgiu aquela doidejana, a reclamar sedas, carruagens, bailes, e o diabo a quatro!

-Fui lesado! dizia ele consigo, plenamente arrependido do casamento. Se adivinhasse semelhante coisa, nunca a teria tomado para mulher!... Mas também quem poderia desconfiar que em tal songamonga estivesse escondida a Olímpia de hoje?...

E o pior é que o pobre Gonçalves não tinha ânimo de contrariar a esposa. Esta o arrastava para Petrópolis, para Nova Friburgo; obrigava-o a perder noites, a bocejar, assentado em uma cadeira na sala de jogo, enquanto ela dançava pelo braço dos melhores valsistas do tempo.

-Isso não pode continuar assim!... resmungava o pobre homem, entre bocejos. Pois eu tenho lá jeito para essas cousas...

Além disso era um gastar sem conta. Ora, ele que se casara justamente para metodizar a vida e ver se conseguia assegurar o futuro com algum pecúlio, não podia suportar de cara alegre semelhantes imposições de Olímpia. Para deixá-la sozinha, também era o diabo; havia tantos olhos assestados sobre ela; havia tanta cobiça a lhe farejar aqueles ombros nus, que o marido não se animava a arredar pé.

-Antes me ficasse ela feiazita e magra como era dantes... suspirava o infeliz; ao menos não gostaria tanto de aparecer!...

E, apesar de ninguém até aí ter ousado arriscar a menor palavra contra o procedimento de Olímpia, o triste marido sentia zelos cruéis apertarem-lhe silenciosamente o coração.

Um dia, não mais se pôde ter, e procurou o comendador para desabafar.

-Não é possível, seu Ferreira! dizia ele muito desgostoso; não é possível continuarem as coisas como vão!... Eu não me casei para perder as noites em pagodes e andar por aí em correrias altas!... Não sou nenhum nababo! não posso com semelhante vida!

E passeava agitado pelo gabinete do sogro.

-Mas que quer você, homem de Deus?!...

-Quero endireitar a minha vida! está aí o que eu quero! Pois meu sogro acha que não tenho razão para estar aborrecido?!...

-Mas que é que lhe falta?!

-Falta-me a paciência para andar todas as noites de casaca, a fazer mesuras pelas salas e a aturar massadas consecutivas. Sua filha, ao que parece, não desejava um marido; desejava ter um pajem, um criado às ordens dos seus caprichos!... Ora, eu estou lá disposto a semelhante coisa!

-Você fala de boca cheia, meu genro, respondeu o comendador, a sacudir a cabeça. Sabe lá você a mulher que tem!... Renda graças a Deus, meu amigo, porque principio a acreditar que você nunca a mereceu.

-Antes mesmo nunca a tivesse merecido! Dou-lhe a minha palavra de honra que preferia isso!

O outro mordeu os beiços e conteve a impaciência.

-É melhor pararmos aqui, disse ele; nada lucramos em estar a trocar palavras. O senhor, meu genro, me falará quando estiver mais tranqüilo!...

-Já não tenho momentos de tranqüilidade! exclamou desabridamente o Gonçalves. Apre! preciso desabafar! Há cinco meses que estou cheio até aqui! (E mostrava a garganta com a mão aberta). Ou entramos em um acordo ou vai cada um para seu lado! Safa! Não posso mais!

-Pois então vá plantar batatas! gritou o comendador, perdendo de todo a paciência. Quer fazer reclamações, faça-as à sua mulher. Que diabo!

-Ela faz mesmo muito caso do que lhe digo!...

-Pois então queixe-se de si próprio, meu caro senhor! Quando o marido não se sente com forças para governar a mulher, não pode exigir que o sogro a governe! O que lhe afianço é haver por aí muito homem casado que não se queixa como o senhor, tendo muito mais razão para isso! Você ao menos não pode dizer que sua mulher o ilude!...

-Sei cá! respondeu o marido de Olímpia, sacudindo os ombros.

-Hein?! exclamou o comendador, furioso. Não sabe?! Pois o senhor se atreve a duvidar da conduta de minha filha?... Insolente! bradou o velho, trêmulo de cólera. Não sei onde estou que...

Olímpia estava nessa ocasião a passeio. Quando voltou, soube logo da contenda entre o pai e o marido.

-O senhor foi então queixar-se de mim a meu pai?!... perguntou ela a Gonçalves quando o viu.

-Não! é que a senhora...

-Não seja idiota! bradou-lhe a mulher, franzindo o nariz. Quando quiser pode-se ir embora!

-E sou muito capaz de o fazer!... Não sei o que parece andar agora uma criatura a correr seca e meca, para ver danças e ouvir tocar piano!...

-Eu é que não estou para aturá-lo! Tenha a bondade de me não aborrecer! disse Olímpia friamente e recolheu-se ao quarto, sem querer ouvir a réplica do marido.

Jacó assistia a toda esta cena, encostado ao aparador com uma toalha no braço.

-Não te parece que eu tenho razão, Jacó?... perguntou-lhe Gonçalves, aproximando-se dele.

-Não me envolva nessas histórias... respondeu o velho doméstico, fugindo por sua vez para outro lado.

Gonçalves cruzou os braços e sacudiu a cabeça sozinho, no meio da sala.

-Então?! que me dizem a isto?! exclamou ele.

Caça aos documentos

E, desde então, não se passava um dia em que não houvesse alguma nova rezinga entre o casal; mas o marido, por muito que protestasse contra os costumes da mulher, nada conseguira. O comendador tomou abertamente o partido da filha e principiou a tratar o genro com frieza.

-Logo vi que este homem não poderia convir a Olímpia, dizia e repetia ele consigo. Grande parvo! em vez de agradecer a Deus o presente que lhe fez, ainda tem o desplante de lamentar-se! Idiota.

E, quando se achava a sós com a filha e vinha a pêlo falarem de Gonçalves, repisava o comendador com o seu ar aprumado:

-Não faças caso, minha flor! diverte-te, brinca, dança à vontade, que és moça! Brilha, minha Olímpia; brilha, que és bonita, espirituosa e rica! Deixa falar o tolo de teu marido; ele o que tem é ciúmes! Não faças caso! Preza o teu nome, defende a tua reputação, cumpre com os teus deveres de senhora honesta, mas continua a ofuscar! Mata de inveja essas presumidas que estão todos os dias a descobrir defeitos em ti!

E o velho sentia-se cada vez mais satisfeito com ela. Para ele não havia em todo o mundo outro ente tão completo, tão belo, tão agradável como a filha. Olímpia, depois que mudara de gênio e que se alindara de corpo, era o seu enlevo e a sua vaidade. Quando a via, decotada no rico vestido de seda, a chamar a atenção de todos, a jogar com muita graça o leque, a responder sorrindo às palavras que choviam da direita e da esquerda, o feliz pai ficava embevecido, a acompanhar-lhe com a fisionomia os menores gestos e os mais ligeiros movimentos.

-E queria o senhor meu genro que este mimo de graças não aparecesse nas salas e ficasse em casa, talvez a jogar a bisca! Tinha que ver...

Por essa época sofreu o comendador um novo desgosto: a morte de seu filho, que estava já nos estudos em S. Paulo.

Este fato alterou de alguma forma, e por algum tempo, a vida da família, servindo de paliativo aos desgostos de Gonçalves. Mas, acabado o luto, Olímpia cingiu de novo o seu diadema e reapareceu nas salas.

O pobre homem já não podia suportar semelhante existência. Era preciso que a esposa se decidisse por uma vez a mudar de vida, ou ele pediria a sua demissão de marido.

Olímpia declarou que não estava disposta a alterar de forma alguma os seus hábitos. Se ela, com as suas fantasias, obrigasse o marido a sacrifícios e privações, muito bem! seria a primeira a fugir da sociedade exigente e a submeter-se a uma vida proporcionada à estreiteza dos seus recursos; mas não! o marido nem precisava tocar nos bens que trouxera: Olímpia era rica, tinha muito com que sustentar o seu luxo e os seus caprichos; Gonçalves, por conseguinte, que deixasse de ser egoísta e não a estivesse contrariando daquele modo, porque isso podia ter lamentáveis conseqüências...

Gonçalves opunha carradas de razão: dizia que se casara para viver com a mulher e não para proporcionar mais um bom par aos dançadores de valsa; que era homem sossegado, amigo dos seus cômodos, gostando de passar os domingos na sua chácara, e que não se achava disposto, por conseguinte, a andar por aí, num torniquete, de casaca, a cochilar, que nem o Imperador; que estava já muito farto de bailes, de jantares e de teatros líricos; que as tais ceias fora de horas, os sorvetes, os ponches, que o obrigavam a ingerir todas as noites, lhe punham o estômago em petições de miséria e lhe haviam de dar com os ossos no Caju, se ele não mudasse quanto antes de regime; e, afinal, quando por mais nada fosse, era porque ele não podia admitir que uma senhora casada tivesse adoradores, e ouvisse galanteios, e se deixasse, nas tais danças, abraçar por uns pelintras que ele nem sequer conhecia; como também não podia tolerar que o nome de sua mulher andasse por aí, de boca em boca, de jornal em jornal, tratado por tu, como se ela fosse alguma dançarina ou alguma cômica! Não! Gonçalves não estava por nenhuma dessas coisas e, se a mulher não pretendesse mudar de sistema de vida, que lhe falasse então com toda a franqueza, porque nesse caso quem disparava era ele!

Olímpia não respondeu uma só palavra e deixou que o marido ainda acrescentasse muitas outras queixas. À noite encarregou o pai de tratar da separação, se é que Gonçalves estava com efeito a isso disposto; mas, caso estivesse, ficasse ele desde logo prevenido de uma coisa, e era que, em nenhuma hipótese, voltaria ela a fazer pazes com o marido. Gonçalves, portanto, que meditasse antes de dar o grande passo. Quanto a ela não alteraria, de forma alguma, o seu modo de viver!

Daí a três dias estavam separados.

Sabe já o leitor o que se seguiu ao rompimento: Olímpia principiou a emagrecer, foi ficando triste e perdendo, pouco a pouco, o gosto pelas festas ruidosas e pelos prazeres opulentos. Ficou nervosa, doente, aborrecida, e dentro de seis meses desertou totalmente da sociedade.

O comendador embalde procurou persuadi-la de voltar aos seus hábitos primitivos; embalde lhe falou do triunfo que outras obtinham já na ausência dela; embalde a cercou de objetos da moda, jornais de figurinos, programas de concertos, camarotes de teatros e provocações de todo o gênero.

Olímpia não se moveu, e em menos de dois anos ninguém mais lhe citava o nome.

Todavia, os seus incômodos recrudesciam; o nervoso tomava proporções muito sérias; o monstro histérico escancarava as fauces.

O Dr. Roberto, como também já sabe o leitor, aconselhou viagens, falou em banhos de mar, lembrou passeios ao campo, mas disse positivamente que o verdadeiro remédio para Olímpia seria fazer, quanto antes, as pazes com o marido.

Não fez. E mais dois anos decorreram, até o dia em que a vimos subir, pelo braço do pai, a escadaria do Papá Falconnet.

Pela confrontação das cenas da Avenida Estrela, com as cenas igualmente mal esboçadas deste capítulo, pode o leitor sem dificuldade calcular os progressos que fez nesses dois anos a moléstia de Olímpia.

Mas saltemos por sobre isso e vamos revê-la no momento em que a deixamos ao lado de Gregório.

Antes, porém, cumpre explicar o que foi feito de Teresa. O Dr. Roberto fazia-lhe de vez em quando uma visita. Achou-a sempre pior; propensa a sofrer das faculdades mentais. Teresa dera-se ultimamente à devoção e estava muito amiga de rezas e de igrejas. Olímpia já não encontrava nela a mesma amiga e a mesma conselheira; a pobre doente parecia agora estúpida e mostrava-se desconfiada, de mau humor, às vezes impertinente e grosseira.

Rosa, aquela criada que na época dos amores de Portela, lhe protegia as escapulas, fora substituída ao lado dela por tia Agueda.

A infeliz pouco se demorou no hotel; queria um lugar mais obscuro e mais modesto; transferiu-se para Cascadura. O marido mandava-lhe lá, todos os meses, uma pensão de cem mil réis. Estava feia, sumamente feia; a febre crestara-lhe a pele, empobrecera-lhe o cabelo e desfeiara-lhe as feições. Não dava já idéia do que fora; magra, encanecida, meio calva, com os olhos sem expressão, a boca desadornada de sorrisos, o pescoço bambo, as costas arqueadas, parecia mais uma freira velha, comida pelos rigores da vida monástica, do que uma simples devota de trinta e oito anos.

Não saía de casa, senão para ir à igreja. Ninguém a via à janela; apenas, em algumas noites de luar, a custo lobrigavam o seu vulto magro, vestido de chita preta, a passear como um espectro por entre as pobres árvores do seu quintal. Duas vezes fora acometida por crises nervosas, que a deixaram prostrada durante muito tempo com todos os sintomas da loucura.

E o comendador recomendava sempre ao Dr. Roberto que a não deixasse de ver de quando em quando, e pedia-lhe constantemente notícias dela.

-Vai naquilo mesmo... dizia o médico. Dali para pior... coitada!

-Mas pode viver?... perguntava o velho, com os olhos iluminados por um sinistro brilho de vingança.

-Ah! lá viver pode, e até muito; mas o que não conseguirá é restabelecer-se totalmente. Está perdida!

-Bem! dizia o velho consigo; minha vingança será completa... Aquele miserável há de casar-se com ela logo que eu feche os olhos!

Uma tarde, passeava a mísera, como sempre triste, por entre as solitárias plantas do seu quintal quando um vulto de homem parou às grades do portão.

-Saberá dizer-me onde mora por aqui uma senhora chamada Teresa?... perguntou o sujeito, apoiando-se aos varais da grade.

Pelo seu todo fatigado via-se logo que de vinha de longe, a fazer até ali a mesma pergunta pelas outras casas daquela rua.

Teresa aproximou-se lentamente sem responder; mas, ao chegar perto da grade, soltou um grito e exclamou:

-Luiz!

-Meu nome?!... disse o outro muito surpreso.

E sem ter tempo de procurar reconhecer a lastimosa figura que tinha defronte dos olhos, transpôs o portão, para amparar Teresa, prestes a cair desfalecida.

-Já me não conheces?... perguntou ela com um tom de profunda tristeza, logo que pôde falar. É natural! Eu já não sou a mesma.

-Esta voz!... Será possível?! balbuciou Portela, sem querer acreditar no que via. E ficou a olhar, muito aflito, para a pobre mulher.

-Está aqui o que resta daquela tua Teresa dos outros tempos, tão fresca e tão bonita! explicou ela. E acrescentou com os olhos cheios d'água e a voz muito alterada pela comoção: -Contigo, meu Luiz, tudo fugiu! já nada resta do que fui... Estes olhos já não falam de amor; estes lábios esqueceram o riso; este colo não provoca em mais ninguém desejos desenfreados... Depois que tu partiste, nunca mais tive um momento de ventura; tudo se converteu em remorso. Cheguei a amaldiçoar o nosso amor; cheguei a duvidar se a memória dele me causava saudade ou me causava tédio... Principiei a tomar aborrecimento por tudo; meu marido apunhalava-me todos os dias com a sua indiferença e com o seu desprezo... E o meu sofrimento foi crescendo, crescendo, até me reduzir a isto que aqui vês!

Portela escutava, sem desviar os olhos. Tudo aquilo produzia nele uma grande tristeza e um grande constrangimento. Como era possível conceber semelhante transformação?... Como, em doze anos, se podiam extinguir tanta formosura e tanta graça?... Oh! é terrível, pensava ele, vermos assim de perto os destroços de uma felicidade que, um dia, passou por nós e nos encheu a vida com todos os brilhos da paixão e do amor. Amor? não! instinto. Um pouco de carne palpitante, cabelos, sangue, dentes, olhos, tudo isso disposto de certo modo, ordenado com certo encanto, eis quanto basta para nos enlouquecer, para nos arrastar a todas as loucuras e a todas as degradações! Entretanto, ali estava aquela mesma mulher que o fizera delirar um dia!... Como a nossa matéria é fraca ou como a natureza é hábil! Como esta sabia impor as suas leis de reprodução e da vida! E queriam os homens do rigor e da austeridade que se pudesse fugir despoticamente a todas essas armadilhas tão finamente preparadas, tão sabiamente urdidas debaixo de nossos pés!...

E, depois destas considerações, uma tristeza profunda, um aborrecimento doloroso, negro, úmido, entrou-lhe no coração e começou a inchar lá dentro como um sapo entalado num cano de esgoto.

O coração daquele homem era com efeito um cano de esgoto, por onde lhe desfilavam todas as imundícies da alma. Não se teria demorado de um instante ao lado de Teresa, se não precisasse dela para alguma coisa que diretamente o interessava. O triste espetáculo daquela ruína revoltava o seu egoísmo; Portela sentia-se impaciente por conseguir o que desejava da mulher do comendador e pôr-se a caminho para longe, para bem longe, onde não chegasse o inquietante cheiro daquela desgraça e daquela miséria. Sentia-se tão apressado que não esperou pelo fim das divagações de Teresa; interrompeu-a, declarando francamente que ia ali levado pela necessidade de alcançar das mãos do comendador um papel assinado por ele.

-Que papel? perguntou a mísera.

-Pois não te lembras que deixei um documento em poder de teu marido, declarando os obséquios que recebi dele, as relações que tive contigo, aquele projeto de envenená-lo e ainda outras coisas de que já não me recordo?!...

Essas tais coisas de que ele já se não recordava, não lhe fazia conta declarar quais fossem, porque implicava diretamente com o futuro de Teresa.

-Mas afinal, perguntou ela, que desejas de mim?...

-Desejo em primeiro lugar saber se esse papel não está em teu poder, respondeu ele.

-Pois se eu até ignorava da existência de semelhante coisa...

-Bem, pois então o que eu desejo é que o obtenhas de teu marido, que o subtraias a todo o transe do lugar em que está. Preciso apoderar-me desse documento! Não poderei dar um passo aqui no Rio de Janeiro, enquanto ele existir nas mãos do comendador...

-Mas eu não vou à casa do Ferreira. Além disso...

-Bom. Nesse caso, adeus.

-Já te queres ir?... perguntou Teresa.

-Desculpa; tenho alguma pressa. Eu te aparecerei mais vezes.

-Espera ao menos que venha tia Agueda para fazer café...

-Não! não! Tenho de estar cedo na cidade. Adeus!

-Visto isso, adeus. Olha, espera! vou dar-te uma flor; leva-a para te lembrares de mim...

E foi buscar ao oratório uma rosa, que murchava aos pés de um santo.

-Está benta! disse ela.

Portela sentia-se cada vez mais impaciente. Na ocasião de sair, já no corredor, voltou-se e deu com Teresa a fazer-lhe momices por detrás dele. Só então desconfiou que a desgraçada sofria de qualquer desarranjo cerebral.

Pôs-se a caminho com vontade. Iria dali à casa de um conhecido; talvez lhe desse este informações a respeito do comendador e lhe fizesse encontrar alguém capaz de subtrair os documentos de que ele tanto precisava.

Portela, nas suas viagens, arranjara algumas economias e vinha estabelecer-se na Corte com um sócio bastante endinheirado. Tinha em vista um casamento; o futuro sorria-lhe como nunca auspicioso: fora com Leão Vermelho mais feliz do que contava. O compadre facilitou-lhe os meios pecuniários para especular em compras de vinho no Porto, e recolheu-se, sequioso de descanso, à sua província natal, onde tencionava acabar a existência.

Com este, pouco mais temos que ver. Quanto ao Portela, podemos afiançar que andou com lisura nas suas especulações e que se despediu limpamente do protetor, retirando-se com um forte carregamento de vinhos para o Brasil, em cuja capital pretendia agora estabelecer uma casa especial daquele gênero.

O bom desempenho de suas transações granjeara-lhe crédito na península, de sorte que, com muita facilidade e pouco capital, poderia sortir o seu estabelecimento, sem encontrar competidor no Rio de Janeiro.

Por esse tempo contava ele uns trinta e tantos anos, e sentia-se vigorosamente disposto a fazer carreira. Estava moço e fortalecido de esperanças. Com os elementos materiais de que dispunha, podia ir muito longe; sonhava já com a comenda. O diabo era aquele documento em poder do marido de Teresa!... Se o demônio do velho saísse dos seus cuidados e mandasse publicá-lo no Jornal do Comércio, Portela estaria perdido. O comendador, apesar de retirado da vida ativa, gozava de muito crédito na praça e era sumamente considerado pelos negociantes de mais peso; qualquer acusação que viesse dele teria, fatalmente, um curso vertiginoso entre os seus colegas.

Convinha, por conseguinte, que Portela, antes de assentar os alicerces das suas especulações no Rio de Janeiro, tratasse prontamente de desarmar o inimigo, sob pena de mais tarde ser precipitado no chão no melhor do vôo. Mas de que modo havia ele de alcançar semelhante coisa?... A questão era tão delicada que, sem dúvida, daria volta ao espírito mais audacioso e mais fino.

Principiou a sondar, de longe, o comendador.

-O homem, pensou de, talvez já se não lembrasse do passado, nem dos seus planos de vingança. Mas qual! Portela conhecia perfeitamente o gênio rancoroso do seu antigo patrão, para se não iludir por esse lado. O único expediente a tomar era apoderar-se do tal documento, fosse como fosse, custasse o que custasse!

Em todo caso, nada disso o incomodaria tanto, se Portela não tivesse em vista mudar de estado, casando-se com uma rapariga de bons recursos, que encontrou em casa de D. Januária, quando aí foi visitar a afilhada, pela primeira vez, depois da sua volta.

Para esse projeto de casamento é que o comendador se tornava verdadeiramente perigoso, porque Portela, na obrigação que assinou, se comprometia, sob palavra de honra, a tomar conta de Teresa e a casar-se com ela, logo que o marido falecesse.

Ora, incontestavelmente, havia em tudo isto uma grande dose de tolice. Não se poderia obrigar um homem a casar, assim sem mais nem mais, só porque, em certa época, declarou por escrito que o faria. Mas o fato é que a sua assinatura lá estava, naturalmente reconhecida já pelo tabelião, e, se o maldito papel aparecesse pela morte do comendador, ligado ao importante testamento deste, podia, pelo menos, cobri-lo de ridículo, e dificultar-lhe a carreira, chamando sobre ele as suspeitas e a desconfiança de pessoas, para as quais lhe convinha passar por homem de vida imaculada.

-Maldito fosse o momento em que se lembrou de requestar a mulher do comendador! Antes tivesse quebrado uma perna na ocasião em que se aproximou dela pela primeira vez!

Em tais circunstâncias, visitava uma ocasião D. Januária, quando um rapaz magrinho, feio, de vinte e tantos anos, se aproximou dele tratando-o pelo nome.

Portela recordava-se de ter visto já aquela cara, mas não conseguia determinar onde e quando.

-Não se lembra do João Rosa?... perguntou-lhe o rapaz. Aquele que quando o senhor estava em casa do comendador, só chamava o «João Cabeça»?!...

E riu.

-Ah! exclamou Portela. É isso mesmo! Ora senhores! como você mudou! está um homem. Barbado!...

E depois de medir por algum tempo a pequena estatura de João Rosa, perguntou-lhe com amigável interesse:

-Então, que se faz agora?...

-Continuo lá! disse o outro, armando uma careta.

-Ainda está lá?... insistiu Portela, admirado, mas possuído já da idéia de aplicar o João Rosa aos seus projetos.

-Ainda, resmungou o outro.

-Interessado na casa?...

-Qual. Já perdi as esperanças disso. O Figueiredo não me tem querido proteger. Um moço, que entrou muito depois de eu lá estar, faz parte há um ano da sociedade e eu ainda continuo como empregado...

-Você casou-se?...

-Não. Estou ainda solteiro.

-Ah! quem sabe se você tem as suas pretensões cá por casa de D. Januária!...

-Não. Dou-me com ela há muito tempo, mas não passa disso.

-Pois, seu João Rosa, eu vou estabelecer-me aqui no Rio com uma casa de vinhos. Tome o cartão. Se você quiser, apareça por lá, talvez tenhamos o que conversar. Olhe, amanhã à noite, você está ocupado?

-Não.

-Nesse caso vá amanhã...

-Pois bem.

No dia seguinte os dois encontraram-se de novo. Falaram muito sobre o passado. João Rosa fez referências aos escândalos de Teresa.

O Portela, sacudiu os ombros com desdém.

-Não! replicou o outro, o senhor andava nesse tempo muito mordido por ela...

-Tolices!

-Coitada! Está feia, magra ao último ponto, descabelada, meio idiota...

-Sim?... disse, Portela, fingindo ignorar essas coisas.

-Se o senhor a visse não reconheceria!...

-Coitada. Era muito doida aquela rapariga!...

-Era da pele do diabo, acrescentou o João Rosa, com o ar de quem tem opinião segura sobre o fato.

Desde então principiaram a encontrar-se com mais freqüência. João Rosa passeava alguns domingos com o Portela e patenteava-lhe, nessas ocasiões, como uma submissão de dependência e amizade. Tinha muito em conta o que lhe dizia o amigo e seguia à risca os conselhos que dele recebia.

João Rosa deu a Portela notícias completas a respeito da casa do comendador; falou do casamento de Olímpia com o Gonçalves; disse a vida desordenada que os dois levaram durante quatro anos; contou os pormenores da separação dos cônjuges; circunstanciou as mudanças de gênio que fizera Olímpia depois do rompimento, os desgostos do velho, a proposta de reconciliação apresentada por Gonçalves, a recusa da mulher, e enfim as tristezas e o recolhimento em que esta por último vivia.

-E o Jacó?... que fim levou? quis saber o Portela.

-Lá está! no mesmo! Não faz a menor mudança!

-O Jacó!... reconsiderou aquele, com um ar cheio de recordações. E disse depois: Deve estar bem velho!

-Mas forte... Parece muito mais moço que o comendador!

-E este? Sempre o mesmo, hein?

-Sempre. Eu vou lá duas vezes por semana fazer-lhe a escrita. Pouca coisa!

-Ah! você é quem faz agora a escrita do comendador?!...

-Sim, por quê?

-Por nada...

E Portela ficou a pensar.

Na primeira ocasião em que esteve de novo com o João Rosa, abriu-se francamente com este a respeito do famoso documento que estava em poder do comendador.

-Você sabe o que são estas coisas!... disse em confidência muito amigável. Eu estou no comércio... Aquele velho é muito capaz de cortar-me a carreira... Ele é rancoroso!...

-Oh!... fez o outro, estalando os dedos.

-Por conseguinte, se você me conseguisse arranjar esses papéis... eu saberia recompensar o seu trabalho...

-Não sei, homem! Eles devem estar muito bem guardados! em todo o caso...

-Ora, na sua posição ser-lhe-á muito fácil de os descobrir; e o comendador, quando der pela falta deles, não acreditará que você os tenha subtraído, porque aquilo não representa nenhum valor. Para que diabo podia você precisar de papéis velhos?... Não são documentos de dívida; não representam dinheiro, nem objeto de preço!... O mais que o velhote poderia supor, é que alguém os tivesse inutilizado sem saber do que se tratava.

-Isso é verdade...

-E eu lhe daria um conto de réis, se você me arranjasse o que lhe digo. É preciso notar: com o documento assinado por mim, deve estar uma carta, também minha, dirigida a Teresa, e um frasquinho de vidro com um líquido transparente. Arranja-me isso e dou-lhe um conto de réis. Depois, como para ambos convém guardar o segredo, a coisa ficará só entre nos. Hein? Serve-lhe?...

-Eu vou ver se encontro...

-Você, querendo, acha...

-Pode ser.

E, quando os dois se separaram, já estavam perfeitamente combinados.

O beijo

Coincidiram com a chegada do Portela ao Rio de Janeiro os primeiros sintomas nervosos que se apoderaram de Olímpia, pouco depois do rompimento dos laços conjugais. O comendador, preocupado com os incômodos da filha, não pensava em outra coisa. Passeios, distrações, romances, tudo lembrava ele para distrair a enferma. Ora em Petrópolis, ora em Teresópolis, ora em Barbacena, andaram os dois, perto de dois anos, em inútil e constante peregrinar.

Isso explica a razão por que Portela não foi logo, desde a sua chegada, perseguido pelo comendador. Não havia tempo para cuidar da vingança; o velho andava arredado de casa, esquecido de si e só cuidoso da sua adorada Olímpia.

Entretanto, Portela, que compreendera perfeitamente a situação, tratou de não perder tempo e firmar na Corte os seus alicerces, de modo a poder mais tarde resistir aos golpes do marido de Teresa, quando este porventura o quisesse derrocar. Uma vez firmado em terreno sólido, não tinha que recear do inimigo, e quase que podia de antemão contar com a vitória.

Nesta convicção se estabeleceu e abriu a trabalhar com a fúria de quem foge de um grande perigo. Todo o seu empenho era granjear simpatias, ganhar posição e juntar dinheiro. Tudo isso conseguiu ele em muito pouco tempo. Portela não esperdiçava um segundo, acumulava quase todo o trabalho do seu armazém, fazia a correspondência, a escrita e a venda ao balcão. Dentro de um ano estava a sua casa já perfeitamente acreditada; o comércio dos vinhos desenvolvia-se com um impulso prodigioso. Portela aumentou então o pessoal, alargou o armazém, e de novo foi a Portugal. Quatro meses depois era de volta, com um novo carregamento e novas especulações. Antes de chegar o terceiro ano de seu comércio no Rio de Janeiro, já lhe havia pingado da pátria sobre a gola do casaco a vermelha tetéia por que de tanto suspirava.

Portela definitivamente era um homem feliz. O documento em poder do outro, longe de o prejudicar, servira, como vemos, para lhe incutir no ânimo resolução e coragem. Dois anos depois o Sr. comendador Portela gozava das melhores simpatias, estava já arranjadinho de fortuna, e olhava de frente para um futuro de causar inveja.

Não tardaria a abrir-se em torno dele as boas relações, os bons sorrisos, as boas rodas fluminenses. No Rio de Janeiro, com uma casa de negócio, uma casaca e uma comenda, vai-se a toda parte e percorre-se familiarmente toda a escala social, desde os bailes da Princesa, até às bacanais das irmandades carnavalescas.

E o certo é que o demônio do Portela tinha um tipo que se apresentava maravilhosamente às suas aspirações. Ninguém daria melhor um comendador. Desde que lhe chegou o título, principiou a transformar-se. Caminhava agora mais teso, empinava a cabeça, esticava as pernas e dilatava os lábios nesse risinho discreto e malicioso dos ricaços condecorados. Uma vez raspado o bigode, talhada a suíça e desfalcados pela calva os cabelos da cabeça, terá logo o leitor defronte dos olhos aquele legítimo comendador, com quem tão boas relações travou no primeiro capítulo deste romance.

Mas, como já temos o comendador Ferreira, seja-nos permitido continuar a tratar o segundo simplesmente pelo nome. Continuará a ser «O Portela».

Quando o Portela chegou ao Rio, justamente ao tempo em que se via o comendador atrapalhado com a moléstia da filha, João Rosa, ficou exclusivamente encarregado dos negócios do pai de Olímpia. Não podia pois desejar melhor ocasião para cumprir o que prometera ao amigo: a casa estava toda em suas mãos; ninguém o surpreenderia enquanto desse a busca.

João Rosa por conseguinte começou a procurar os tais documentos com toda a calma e toda segurança; e, com tanto jeito e minuciosidade mexeu e remexeu nas gavetas e nos segredos do patrão, que, em vez de achar o objeto procurado, achou coisa muito melhor; achou um pequeno cofre de ferro, que jazia cuidadosamente oculto num esconderijo, feito de propósito para isso na parede, por detrás da burra.

O cofre pesava e tinha um segredo na fechadura. João Rosa não descansou enquanto o não abriu.

Estava cheio de libras esterlinas. Ninguém sabia a procedência desse dinheiro, nem o destino que o comendador lhe tencionava dar. Não constava dele em nenhum dos livros de sua escrituração e em nenhuma das notas esparsas.

João Rosa teve uma tentação diabólica. O comendador só mais tarde poderia dar por falta do cofre, e aquele dinheiro representava perfeitamente a independência do caixeiro. Lembrou-se de tomar passagem no primeiro vapor e fugir do Brasil com o seu tesouro, mas reconsiderou: Para que fugir?... Aquele dinheiro estava por tal forma bem escondido, que o comendador não poderia imaginar que alguém desse por ele... e daí, quem sabia lá se o próprio comendador tinha ciência de semelhante coisa?... se aquele belo segredo não existia ali antes dele tomar conta da casa?... De qualquer forma, concluiu o velhaco: não era preciso fugir; tudo se poderia arranjar limpamente, sem espalhafatos de viagens.

E adotadas estas reflexões, João Rosa procurou o Figueiredo, pediu a sua conta e deu-se por despedido. Só lhe faltava pôr em dia o exíguo trabalho que estava a seu cargo e esperar pelo comendador, para se despedir deste também por sua vez.

Portela, sempre que o via, lhe perguntava logo pelo resultado daquilo que os dois haviam combinado entre si. O outro se desculpava; não descobria os tais documentos, mas que Portela podia ficar descansado, que, se estivessem eles em casa do comendador, lhe haviam de chegar às mãos.

Dias depois o encontrou por acaso. Esteve quase a fazer que o não via, tão pouca importância ligava ele agora a semelhante bagatela. Mas uma súbita idéia de especulação, fê-lo apoderar-se dos documentos e guardá-los cuidadosamente consigo.

O comendador chegou nesse dia, sem ser esperado. Vinha aflito; a filha estava pior, o Dr. Roberto acompanhava-os, prevendo qualquer capricho da moléstia. Receava a paralisia, o idiotismo e até a morte.

João Rosa declarou que não podia continuar ao serviço do comendador, disse que já não estava em casa do Figueiredo e precisava tratar-se dos pulmões em Barbacena. O velho aborreceu-se muito com isso. Pois o caixeiro queria abandoná-lo naquela situação? O Dr. Roberto entendia que o João Rosa não tinha necessidade de partir com tanta pressa. Mas o rapaz insistiu, queixou-se de que estava muito mal, tossiu, disse que já expectorava sangue, e dois dias depois recebeu o saldo que lhe tocava e entregou em dia o trabalho ao seu substituto.

Constou-lhe no dia seguinte que o comendador ia chamá-lo ainda para pedir algumas explicações sobre o trabalho; João Rosa, a quem não convinha entrar em mais esclarecimentos, apressou a viagem e partiu na primeira madrugada, sem ter entregue os papéis a Portela, a quem escreveu um bilhete com as seguintes palavras: «Pode ficar tranqüilo; acha-se tudo em meu poder. Em breve estarão com o senhor.» Portela não se satisfez com isso e foi ao encontro de João Rosa. Já não o alcançou e retrocedeu para a Corte porque tinha de fazer a viagem de que falamos.

Decorreu um ano, Olímpia não tinha melhoras, o comendador continuava sobressaltado.

João Rosa voltou cautelosamente à capital, hospedou-se no Hotel do Caboclo e tratou logo de procurar Portela.

Encontraram-se na rua e seguiram juntos para o Passeio Público, porque aí conversariam mais à vontade.

O que se segue já o leitor sabe. Pedro Ruivo, que fingia dormir em um banco do Passeio, ouviu a conversa dos dois e empregou meios e modos de furtar os documentos do Portela; depois foi dar consigo na Avenida Estrela, donde afinal saiu, ameaçado e perseguido, para se esconder na gruta com o fruto do seu roubo.

Pois bem; acompanhemos o gatuno e vejamos o que fez de dos papéis. Pedro Ruivo, logo que retomou o cofre na gruta, ganhou o mato e desapareceu por entre as folhas, como a ligeira cotia, quando sente perto de si algum rumor estranho.

É preciso observar que a gruta do Rio Comprido se estende por todo o sopé do monte e abre várias gargantas, oferecendo diversos caminhos, uns mais curtos e às vezes mais difíceis, outros longos e naturalmente mais pitorescos e agradáveis.

Olímpia, Gregório e Augusto, naquele passeio que descrevemos, foram pelo caminho mais comprido e pitoresco, e penetraram na gruta justamente pelo lugar onde esta principia. Pedro Ruivo ao contrário, chegou lá pelo caminho mais curto e entrou por uma das gargantas laterais, que abrem obscuramente para as bordas da floresta.

O gatuno, uma vez senhor do seu cofre, atravessou obliquamente a gruta e embrenhou-se no mato pelo lado oposto àquele por onde havia entrado. Fazia um belo luar, mas a vegetação enredava-se por tal forma, que os raios da lua muito a espaço se coavam por entre a mole balsâmica da folhagem. Entreteciam-se os cipós e as parasitas, formando cortinas de verdura e como fechando aos forasteiros a passagem da mata.

Se a viagem era difícil, também era perigosa, porque as cobras descem à noite dos seus covis, arrastando-se pelo morro à procura do que comer e beber.

Mas Pedro Ruivo, aguilhoado pelo medo, varava o mato que nem uma anta assustada.

Atravessou o morro e, depois de caminhar três horas seguidas, achou-se em um pântano sombreado de árvores. Palhoças esparsas branquejavam aqui e ali por entre o silêncio melancólico da noite. Percebia-se a vizinhança de algum arrabalde pelo longínquo barulho de cães, que ladravam à lua.

Pedro Ruivo continuou a andar. Estava em Catumbi. Em breve o paredão comprido do cemitério começou a estender-se diante de seus olhos como, uma mortalha que se desdobra. O bairro modorrava deserto. Ouvia-se ao longe a cansada música de uma festa, e um burro inválido passeava silenciosamente pela estrada, a manquejar da perna.

O gatuno continuou a andar na direção do Campo de Santana. Não se arreceava da polícia, porque já a conhecia de perto. Em certa altura da Cidade Nova parou defronte de uma casa, em cuja porta brilhava um miserável farol de folha com a seguinte inscrição «Hospedaria do Gato».

Pedro Ruivo tirou do bolso um pouco de dinheiro, que escamoteara do quarto de Gregório, e pôs-se a contá-lo.

-Chega, disse ele consigo. E bateu à porta da hospedaria.

Veio abrir um homem magro e macilento, com a camisa por fora das ceroulas e uma lanterna na mão.

-Ó Estica! Como vai essa força?

-Vai se rolando, e você?

-Mais morto que vivo! Ainda há lugar por aí?

-Sim, mas você já deve duas dormidas e sabe que...

-Ó, seu vinagre! Eu não lhe disse que queria fiado!

-Também não é preciso zangar-se... Suba!

Pedro Ruivo caminhou na frente, enquanto o Estica fechava a porta, e estendia depois a lanterna para iluminar a escada.

-Isto por cá está preto como o padre! gritou Pedro Ruivo, já em cima, dando um encontrão.

-Espere lá, criatura! Não faça barulho que pode acordar os hóspedes!

Daí a pouco se introduziam os dois por um estreito corredor formado de tapumes de madeira. E depois de uns trinta passos, chegaram ao quarto que o estalajadeiro destinava ao Ruivo.

-Pronto! disse o homem, pousando a lanterna no chão e procurando matar uma pulga que sentiu na perna.

Pedro Ruivo tirou do bolso uma nota de dez tostões e passou-a ao outro, dizendo-lhe que pagasse as três dormidas e lhe trouxesse parati. Em seguida assentou-se na espécie de cama que havia no quarto e colocou ao lado de si o cofre.

O Estica, que se tinha afastado, voltou com um pequeno copo de aguardente e entregou-o ao Ruivo.

-O troco? reclamou este.

-Que troco?...

Seis tostões do que eu devia, trezentos réis de hoje, três vinténs de parati; ainda tenho quarenta réis. Venha!

-Você sabe que depois da meia-noite o parati é um tostão!...

-Ladrões como ratos! resmungou Pedro Ruivo, tirando do bolso um pedaço de vela, que acendeu na lanterna do hospedeiro.

-Boa noite! disse este, afastando-se.

Pedro Ruivo fechou a porta, acendeu o cachimbo e grudou a vela no chão com alguns pingos da mesma.

O quarto teria doze palmos sobre seis de largura. A cama, único objeto que lá se achava, além de um moringue esborcinado, era de ferro e sem lençóis.

Ruivo assentou-se no chão, abriu o cofre e, depois de beber um gole de aguardente, começou a examinar-lhe minuciosamente o conteúdo. Encontrou a declaração assinada pelo Portela, a carta em que este remetia o veneno à amante, e mais uma fotografia de cada um dos criminosos, completamente emolduradas.

-Ora! disse o gatuno quando se convenceu de que mais nada havia. Para tão pouca coisa não era preciso uma caixa deste tamanho! (E passou a ler com dificuldade os papéis, tendo examinado minuciosamente os retratos).

-Este deve ser daquele sujeito gordo do Passeio Público, considerou ele, procurando mentalmente comparar a fotografia do Portela com o original. E acrescentou, passando a examinar a de Teresa: -Esta outra não conheço, mas deve ser gente graúda, a julgar pele luxo com que está vestida! Enfim, haveríamos de ver quanto tudo isto poderá dar!...

Em seguida, tirou um cordão do bolso e com ele fez um só pacote dos papéis e dos retratos.

-Amanhã temos tempo para tratar disso!...

E meteu o pacote na algibeira do paletó, do qual fez uma rodilha e improvisou um travesseiro; em seguida deitou-se e adormeceu logo, porque estava muito cansado.

Só daí a três dias conseguiu encontrar-se com o Portela. Este, que já vivia desesperado com o sumiço dos documentos, e supunha que João Rosa pretendia especular com eles, ficou muito satisfeito com as primeiras palavras do Ruivo.

-Está tudo aqui! disse o gatuno, mostrando o pacote. Se quiser fazer negócio, é questão decidida!...

-Eu dou-lhe uma boa gorjeta...

-De quanto? perguntou o gatuno.

-Deixe estar que por isso não havemos de brigar...

E apresentou uma nota de cem mil réis.

-O que é lá isso!... Um conto dava o senhor ao outro!

-Pois você imaginou que eu seria capaz de lhe dar um conto de réis?

-Foi o senhor mesmo quem marcou o preço, lá no Passeio Público.

-Sim, mas isso era para descontar o que me deve aquele sujeito. Com você o caso muda de figura. Tenho de pagar em dinheiro!

-Pois eu só entrego os papéis por um conto de réis.

-Não! dessa forma não quero.

-Bom, nesse caso farei deles o que bem entender. Já sei quem nos há de comprar...

-Não seja tolo, porque esses papéis não têm valor para mais ninguém.

-Paciência! Ficarão comigo. Eu também gosto de fotografias...

-Quer duzentos mil réis?

-Nem quatrocentos.

-Pois então faça o que entender!

-Adeus, disse Ruivo, afastando-se.

-Olhe! volveu o outro. Dou-lhe quinhentos...

-Não vai nada! respondeu o Ruivo. Quer dar o conto ou não quer?

-Ora, vá pentear monos! exclamou Portela certo de que o gatuno havia de voltar, quando se convencesse de que não alcançaria maior pagamento.

Mas Pedro Ruivo não voltou, e Portela, que por essa época havia tomado a seu serviço o Talha-certo, encarregou a este tratante de alcançar os papéis das mãos do súcio.

-Nem é preciso dar-lhe nada! afirmou o capanga com ar de quem confia muito em si. Pode ficar descansado, patrão, que os papéis hão de aqui chegar, quer aquele bisborria queira, quer não queira!

A coisa, porém, não era assim tão fácil. Talha-certo não conseguiu, como supunha, alcançar imediatamente os papéis do poder de Pedro Ruivo. E Portela, poucos dias depois, ao passar pela rua dos Ourives, teve que esconder-se no primeiro corredor, porque o gatuno, logo que o viu principiou a gritar-lhe com as mãos nas cadeiras:

-Então, comendador, seu capanga está encarregado de arrancar-me os seus documentos, hein?! Quer ver se pilha a coisa sem puxar pela bolsa! Está enganado, meu amigo, ou o senhor cai com o cobre, ou tudo aquilo vai publicadinho no jornal. É escolher!

E, desde então, o Pedro Ruivo se converteu para o negociante de vinhos em uma sombra perseguidora. Portela já estava resolvido a dar-lhe o conto de réis, ou mais, contanto que se visse livre dele por uma vez; porém, temia agora entrar em qualquer ajuste, porque o maldito se punha aí a gritar e a fazer escândalos.

Talha-certo ofereceu-se ainda para o despachar com uma boa navalhada.

-Isso é pior! respondeu o Portela; você não lhe dava cabo da pele e o homem afinal ficava mais assanhado! Além do que não me convém assassinar pessoa alguma... O melhor é dar-lhe o dinheiro e ficarmos livres por uma vez dessa massada.

E assim resolveram. Talha-certo começou a procurar Pedro Ruivo; mas este não aparecia. Ninguém sabia dar notícias dele.

Pedro Ruivo não era encontrado na capital pelo simples fato de haver partido poucos dias antes para S. Paulo, à sombra de um fazendeiro de boa-fé, que se deixou comover pelas lábias do velhaco. O aventureiro ainda possuía o talento de impressionar, quando estava de maré para jogar com a fisionomia. O Portela é que não podia ficar tranqüilo, enquanto não estivesse senhor dos documentos, e recomendava sem cessar ao seu capanga que se não descuidasse nas pesquisas.

Mas deixemos tudo isso de parte. Tenha a bondade o leitor de unir os pés, encolher os braços, dobrar ligeiramente as pernas e dar ao corpo o impulso necessário para um novo salto. Vamos pular por cima dos episódios, que medeiam desde as cenas da Avenida Estrela até àquela crítica situação em que deixamos Gregório ao lado de Olímpia no pequenino chalé da Tijuca.

Não precisa empregar o leitor toda a sua força de músculos, porque o salto, se comporta muitas cenas, não abrange todavia muito tempo.

Pronto! Estamos novamente em casa do comendador Ferreira. O Dr. Roberto segue viagem para o norte. Olímpia parecia já consolada da morte de Scott, e o velho Jacó acompanha fielmente aos amos.

São sete horas da tarde. O sol mergulhou no horizonte, ensangüentando o céu. A natureza envolve-se no crepúsculo da noite para adormecer. O canto da cigarra vai amortecendo, à proporção que recrudesce no fundo dos vales o coaxar das rãs.

Na rua acendem-se os lampiões, os bondes passam de um quarto em um quarto de hora, e um piano da vizinhança soluça o Spirito gentil da Favorita.

Penetramos no gabinete, onde deixamos Gregório, assentado aos pés de Olímpia. Ela acaba de erguer-se e de afastar-se, abandonando o pobre rapaz estarrecido de pasmo sob a impressão daquela terrível frase: «Você é um idiota!» O álbum, que es dois folheavam, jaz estatelado no chão. Gregório permanecia estático no seu tamborete, e olha com espanto para a cortina da porta, que ainda treme com o repelão que lhe deu Olímpia ao sair.

O comendador, que acabava de fazer a sua sesta, aparecia então na sala de jantar. A filha correra para ele, alvoroçada, passara-lhe os braços em volta do pescoço, e dera-lhe um beijo na face.

O velho, meio perturbado pela efusão daquela carícia brusca, ia pedir explicação dela, quando a rapariga lhe cortou a palavra, perguntando em que dia saía o primeiro paquete para a Europa.

-Hein?! o primeiro paquete?! Queres viajar?!

-Quero; quando sai o primeiro vapor?

-Não sei ao certo; talvez só no princípio do mês que vem...

-Não me serve! Quero antes. Que viagem há por estes dias?

-Mas que resolução é essa?...

-Ó meu Deus! Sempre os mesmos espantos! Pois o médico, e o senhor mesmo, não têm aconselhado constantemente que faça viagens?!...

-Sim, mas tu mostravas uma tal repugnância!...

-Mas já não mostro, ora essa!

-Bem. Vamos tratar disso...

-Então seguimos no primeiro vapor que sair!

-Para onde?! perguntou o pai, assustado.

-Seja lá para onde for... O destino do primeiro que sair!

-Isso é loucura!

-Pois então seja! Não viajo! Acabou-se!

E Olímpia afastou-se para o seu quarto, de mau humor.

O velho foi encontrar-se com Gregório na sala de visitas. Jacó acabava de acender o gás.

Depois dos cumprimentos, o comendador, que vinha ainda impressionado pelas palavras da filha, principiou logo a falar sobre o projeto da viagem.

-Ah! D. Olímpia quer viajar?... perguntou Gregório.

-Quer, e é sangria desatada; quer meter-se no primeiro vapor que sair!...

-E a causa dessa resolução?

-Ora! a causa! nervos! Tudo aquilo são os nervos que estão trabalhando. Eu só peço a Deus que me dê paciência, ao menos até vê-la completamente restabelecida.

E o paciente velho, depois de dar uma volta pela sala, acrescentou com um gesto de contrariedade:

-E logo agora é que não está aí o Dr. Roberto. Ao menos se o Dermeval aparecesse!...

-O comendador o que resolveu?

-Eu, já se sabe, faço-lhe a vontade. O doutor disse que a não contrariasse!...

-Então sempre seguem no primeiro vapor?...

-Não sei se no primeiro, mas se Olímpia não mudar de resolução, iremos quanto antes. É o diabo, porque eu até precisava estar aqui por este tempo à testa de umas tantas coisas; além de que muito me custa deixar a casa assim ao desamparo, como aliás ela se acha desde que Olímpia caiu doente.

E, depois de urna pausa em que ambos ficaram a pensar, o comendador acrescentou:

-Homem, o senhor é que podia vir conosco!...

-Eu, exclamou o rapaz. É impossível! Posso lá viajar!...

-Não! isso até lhe seria muito útil... O senhor está em excelente idade de conhecer a Europa. Olhe, para não ir com as mãos abanando, eu o encarregaria da minha correspondência, pagando-lhe o trabalho. Então? Que tal lhe parece a idéia?...

-Não, não é possível, respondeu Gregório, perturbado. Tenho muito desejo de visitar a Europa, mas não nessas condições...

-É que o senhor nunca encontrará ocasião melhor.

-Sim, mas...

-O senhor não tem aqui família que o prenda; seu emprego não depende do governo; que, pois, o poderia impedir de fazer-nos companhia?...

-Não há dúvida, balbuciava Gregório, sem ânimo de resistir; mas é que não sei se farei bem em aceitar o seu convite...

-Ora, deixe-se de histórias, Gregório! eu conto com o senhor! Não me diga que não!

-Mas...

-Não admito razões! Sei que será para seu bem!

-Ora esta!... disse consigo Gregório, logo que se afastou o comendador. Isto não é o demônio? Pois eu a fugir do perigo, e o próprio pai a empurrar-me cada vez mais ao lado da filha!...

E, tendo refletido por alguns instantes, resolveu aceitar a situação.

-Vou! concluiu ele; aconteça o que acontecer! Aquela mulher não me tornará a chamar idiota!

Mas daí a pouco, quando se servia o chá, o comendador disse à filha:

-Sabe, sinhazinha? O Gregório vai conosco.

-Hein? perguntou ela, apertando os olhos. Conosco para onde?

-Ora essa! Já te não lembras? replicou o velho, rindo. Pois não estamos com uma viagem projetada?

-Ah! já nem pensava em semelhante coisa. E, se fôssemos, eu não consentiria que esse senhor se incomodasse em acompanhar-nos...

-Oh! minha senhora, disse Gregório levantando-se; eu teria o maior prazer em...

-Sim, mas eu, repito, é que não consentiria!

E, quando ela ficou só com o pai, lhe perguntou logo que idéia extravagante era aquela de convidar um estranho para a viagem.

-Estranho é o que estás dizendo, menina? É a primeira vez que te vejo falar assim desse pobre moço. Tu te mostravas tão amiga dele; ficavas tão satisfeita quando ele te aparecia; sempre achavas bem escolhidos os livros, os jornais e as gravuras que ele te ofertava, e agora chamas extravagância convidá-lo para nos fazer companhia! Pensei até que, convidando-o te fosse eu muito agradável; além de que, eu e o Jacó nem sempre poderíamos em viagem estar ao teu lado, conversar contigo, e o Gregório coitado, parecia-me excelente para isso; mas, uma vez que já não pensas em viajar, nem precisamos estar aqui a falar ainda em semelhante coisa!...

-Não. Eu estou disposta a fazer a viagem; ainda há pouco disse aquilo para não ter de declarar francamente que não aceitava a companhia de Gregório.

-Isso agora é que é o diabo! resmungou o comendador; já convidei o rapaz, ele não queria ir; insisti, afinal aceitou. Ora, com que cara vou eu dizer-lhe que fica o dito por não dito?! que diabo de desculpa lhe posso eu dar?!

-Pois então não dê desculpa nenhuma! não se fará a viagem!

-Mas tu tens alguma razão de queixa do Gregório?...

-Eu não tenho razão de queixa de ninguém!

-Mas então por que não queres que ele vá, minha filha? Se a tua viagem é um pretexto de distração, que mal faz mais um companheiro?

-Temos outra! disse ela. Pode o senhor provar quantas vezes quiser que será melhor levarmos o Gregório em nossa companhia, eu entendo que não e declaro que não estou disposta a ser contrariada!

-Está bom, não te zangues, minha filha, Gregório não irá conosco! Eu retirarei o convite que fiz.

No dia seguinte, com efeito, o comendador remeteu ao moço uma carta muito atenciosa, dizendo que havia pensado bem no sacrifício que exigira dele e estava agora resolvido a não o aceitar.

Gregório compreendeu tudo, mas dissimulou. À noite apareceu em casa do comendador e Olímpia o recebeu friamente. Durante o serão não lhe dirigiu a caprichosa uma só vez a palavra.

O rapaz voltou dessa visita muito contrariado e triste.

Não pôde dormir; a imagem de Olímpia não lhe saía da cabeça.

-Sou mesmo um idiota! repetia ele, a voltar-se de um para outro lado da cama. Sou um idiota! ela tem toda a razão! Pois se a desejo, se a adoro e se me não posso fazer seu marido, por que a repeli tão asnaticamente?

No dia imediato apresentou-se de novo em casa do comendador, às mesmas horas do célebre episódio do álbum. O velho, como então, fazia a sua sesta; Olímpia passava os olhos por um livro, assentada no jardim, debaixo de um caramanchão.

Gregório entrou sem ser sentido, encaminhou-se para ela, pé ante pé, e, quando a teve ao seu alcance, deu um salto para a frente e surpreendeu-a com um beijo na boca.

Pela noite desse mesmo dia, quando Gregório se retirou da casa do comendador, Olímpia disse ao pai que já estava resolvida a consentir na viagem em companhia do rapaz.

-Então para que me obrigaste a destruir o meu convite?... Ora aí está uma dessas coisas com que deveras me aborreço!

-Mudei de resolução! respondeu Olímpia, sem erguer os olhos.

-Tanto pior para ti, replicou o pai, porque agora o passo está dado! Eu não hei de voltar atrás ainda uma vez! Havia de parecer caçoada; além do que, ele com certeza não aceitaria!...

-Encarrego-me eu do convite, disse Olímpia, sem se perturbar.

-Estou pressentindo é que acabarás por me fazeres ridículo aos olhos daquele moço.

No dia seguinte estavam de mudança para Botafogo. A viagem ficara resolvida para a primeira quarta-feira. Iriam para Lisboa em um paquete francês que havia de sair nesse dia.

Não fizeram itinerário. Demorar-se-iam em cada lugar o tempo que lhes apetecesse. Se Olímpia aproveitasse com a viagem, eles seguiriam adiante, iriam a Paris, talvez chegassem à Inglaterra. Não sabiam ainda se teriam de demorar meses ou anos.

A casa de Botafogo ficara em uma grande desordem. Durante os poucos dias que precediam à viagem, o comendador não podia descansar um instante. Era preciso ordenar seus negócios, escrever cartas para a direita e para a esquerda, passar procurações, fechar o testamento e deixá-lo em poder do Figueiredo.

Quatro dias era muito pouco tempo para tanta coisa. Mas o velho não descansava.

Olímpia parecia reanimada com os sobressaltos daquela viagem. Vivia alegre, esperta, falava com vivacidade, preparava-se com muito interesse, consultava os guias de viajantes, estudava mapas da Europa, discutia sobre as roupas que mais convinha levar. À mesa não se tratava doutra coisa; imaginavam-se peripécias, calculavam-se os episódios que haveriam de surgir quando se afastassem do Brasil.

Dois dias antes da saída do vapor, o comendador passara a manhã todo ocupado no seu gabinete. Interrompeu o trabalho para almoçar, porém mal sorveu o último gole de chá, recolheu-se de novo, fechando a porta sobre si, depois de recomendar que o não interrompessem.

Gregório ficou à mesa com Olímpia. Não disseram palavras por alguns segundos, mas quedaram-se a olhar um para o outro, embevecidos, enamorados.

-Tu gostas muito de mim?... murmurou ele afinal, segurando-lhe uma das mãos.

-Se gosto!... respondeu ela, ameigando os olhos.

Mas tiveram logo de mudar de atitude, porque o copeiro apareceu para levantar a mesa.

Olímpia propôs que se passassem para a sala de trabalho. Gregório acompanhou-a.

-Sabes de uma coisa? segredou-lhe a filha do comendador, assim que se viu a sós com ele. Tu ainda és muito tolo!...

-Por quê? perguntou Gregório, tomando-a pela cintura.

-Por muitas coisas... respondeu ela, com a voz alterada... Às vezes tenho receio do futuro! Tu és muito criança!...

-Que tem isso, se te adoro, minha Olímpia?

-Tenho medo das conseqüências! Quando me lembro do modo austero pelo qual eu própria acusava as mulheres levianas... fico envergonhada, acredita!

-Não penses nisso!...

-Não posso deixar de pensar. É tão bonito uma mulher conservar-se honesta!...

-Não penses nisso, repetiu Gregório, procurando chamá-la ao amor.

Olímpia ia abandonar-se, quando um barulho surdo, de corpo que cai no soalho, a sobressaltou.

-Que é isto?! exclamou ela, correndo para a porta, trêmula.

Jacó e os outros servos haviam já acudido ao estranho ruído. O choque partira do quarto do comendador. Jacó começou a bater na porta do gabinete. Ninguém respondia.

-Que sucedeu a meu pai?! gritou Olímpia, já muito pálida, sem poder dar mais um passo, porque o corpo lhe tremia todo.

Ouviram-se então uns roncos guturais dentro do gabinete.

-Ai! gritou Olímpia, perdendo os sentidos e estrebuchando.

Gregório apoderou-se dela, enquanto os criados arrombavam a porta do quarto do comendador.

Encontraram-no estendido no chão, roxo, com os olhos no branco, a boca aberta, a língua inchada, e os membros contraídos. A burra estava afastada do seu lugar, via-se o segredo da parede aberto e vazio. Sobre a mesa papéis revoltos. O quarto em desordem, denunciava que pouco antes houvera ali a busca desesperada de qualquer objeto.

Perpétuas, violetas e camélias

A casa ficou logo numa grande atrapalhação. Olímpia foi conduzida em gritos para o seu quarto. Dois criados correram a chamar o primeiro médico que encontrassem, e Jacó ajoelhou-se soluçando ao lado do amo.

Ninguém mais se entendia. Figueiredo, que fora prevenido da catástrofe, apresentou-se esbaforido, a perguntar o que sucedera naquela casa. Ninguém sabia explicar o que era.

Chegou afinal o médico. O comendador passou carregado para a alcova, e o seu ex-sócio, com o bom senso prático de que dispunha, tratou logo, inalteravelmente, de vedar a quem quer que fosse a entrada no gabinete.

Mais tarde apareceram outros facultativos e começaram logo a chegar visitas de amizade.

Olímpia ficou prostrada de febre; as crises repetiam-se-lhe quase sem intermitência. O Dr. Dermeval não lhe abandonava a cabeceira.

O comendador expirara à meia-noite, depois de esgotados todos os recursos da medicina; e, como não pudessem contar com a filha, que continuava sem dar acordo de si, o subdelegado da freguesia, acompanhado de competente escrivão, mandou proceder à aposição dos selos nas portas do gabinete em que se achava o incompleto testamento do morto.

Só dois dias depois, quando alcançaram cinco testemunhas, a mesma autoridade tornou a abrir as portas, para se formar o testamento nuncupativo.

Olímpia por esse tempo havia sido conduzida já para a casa do Figueiredo. Não lhe disseram que o pai deixara de existir.

O enterro saiu às cinco horas da tarde do dia imediato ao falecimento do comendador. Foi muito concorrido. O comércio abalou-se; os carros formaram uma serpente negra, que se estendia por toda a praia de Botafogo. Um poeta da época, amigo de algum dos caixeiros do Figueiredo, recitou uma poesia, de que se falou depois, entre negociantes, com muito agrado, e o Jornal do Comércio publicou, na sua parte ineditorial, um artigo sério a respeito do falecido, pondo-lhe em relevo as qualidades práticas, as suas virtudes de pai de família e os serviços que ele em vida prestara ao Brasil, como sócio benemérito de várias instituições filantrópicas.

O testamento do comendador Ferreira causou muita impressão; era um testamento original. O pobre homem fora surpreendido pela morte, justamente na ocasião em que reunia os seus papéis e formulava as suas disposições. Encontraram um aglomerado de notas e declarações.

Havia várias referências. O falecido deserdava a mulher, porque se casara com escritura de separação perpétua de bens. Referia-se o testador a uma declaração de Luiz Portela, a qual não apareceu no lugar indicado; havia também uma referência acerca de certo cofre de ferro, contendo cinco mil libras esterlinas, que o falecido legava à sua filha Olímpia. O cofre não apareceu igualmente.

Deram-se logo as providências para se proceder a inquérito no empregado que se encarregara da escrita do comendador e no pessoal da casa. João Rosa estava ausente.

Constava ainda, nas disposições do morto, de um legado de vinte contos destinados ao advogado que se quisesse encarregar de proceder contra Portela. E, no caso que esse dinheiro não pudesse ter semelhante aplicação, deveria reverter, no fim de dez anos, em benefício do Gabinete Português de Leitura. Isso mesmo dizia o falecido em uma carta dirigida à redação do Jornal do Comércio.

O mais eram disposições sobre bens móveis e imóveis.

Portela achou muito prudente ir à Europa buscar um novo sortimento de vinhos. Mas um amigo seu, entendido em tricas do foro, afiançou-lhe que as declarações do comendador não faziam fé perante a lei.

-Portela que estivesse descansado: não lhe poderia suceder por aí violência alguma.

O homem, porém, não se tranqüilizou com isso, e deu de velas para Portugal. O que ele temia não era precisamente ter de cumprir com as determinações do defunto; mas era cair no ridículo e desmoralizar-se aos olhos da mulher a quem pretendia para esposa: aquela agregada da casa de D. Januária, de quem vamos agora tornar a falar.

Chamava-se Matilde.

Não conhecera os pais. O tutor havia três anos, quando ela tinha quinze, retirou-a do colégio para a confiar aos cuidados da velha Januária.

Esse tutor era um velho farmacêutico, que enriquecera a curar feridas de mau caráter a cinco mil réis por cabeça. Homem de inalterável economia e de uma saúde inquebrantável. Poucas pessoas, raríssimas, o conheceram mais moço. Há vinte anos era aquilo mesmo que se via agora.

Cabelos curtos, grisalhos, cara toda raspada, boca seca, dentes magníficos, ombros largos, pouca barriga e pouca estatura. Enviuvara aos quarenta anos para nunca mais casar. Agora tinha setenta. A esposa não lhe deixara filhos, mas ele arranjara dois naturais, um dos quais trabalhava em sua companhia na farmácia; o outro nunca tomara caminho, caíra na vagabundagem e era de vez em quando recolhido à estação de polícia, bêbedo.

O velho chegara-lhe ao pêlo por várias vezes uma bengala de cana da Índia, que trazia sempre consigo. Mas da última o peralta ganhara a rua, gritando ao pai que, em vez de lhe abrir feridas nas costelas, melhor seria que as fosse fechar aos fregueses! E nunca mais apareceu.

O farmacêutico também não queria ouvir falar em semelhante biltre: «Que o leve o diabo!» resmungava ele, quando alguém lhe levava notícias do filho. «O governo é que há muito tempo lhe devia ter pregado o côvado e meio de cano às costas. Para não ser ruim! Peste de um vadio!»

O farmacêutico era muito excêntrico, era um tipão: não tirava da cabeça o seu grande chapéu de pêlo de seda, cuidadosamente alisado. Às seis horas da manhã já estava de pé ao balcão da botica, a curar feridas, a despachar receitas, a misturar ungüentos e embolar pílulas; às nove horas subia para almoçar, e mal terminado o almoço, voltava ao trabalho, sem nunca descobrir a cabeça. O jantar era justamente a mesma coisa que o almoço, com a diferença das horas. De resto não ia a teatros, não visitava ninguém que estivesse de saúde, e o tiro das nove da noite já o encontrava dormindo, não de chapéu, mas de barrete de algodão; o outro, o seu companheiro de todo o dia, o chapéu, esse descansava então ao lado da cama, dentro de uma caixa de couro.

Era muito popular, muito conhecido, se bem que pouco estimado. Contavam dele algumas anedotas engraçadas e pequeninos fatos de grande miséria.

As circunstâncias que fizeram dele tutor de Matilde, não podem interessar a ninguém. A rapariga era filha de um sujeito, outrora seu caixeiro, e que lhe pedira na hora da sua morte tomasse conta da pequenita. Como o agonizante deixava para aí fortuna superior a quatrocentos contos, o farmacêutico encarregou-se da tutoria, chegando-se mais tarde a dizer até, pela boca pequena, que ele especulava com os bens da órfã.

Contos largos! O certo é que Moreira, tal se chamava o farmacêutico, por mais de uma vez dera aos demônios semelhante massada, e jurara, sem tirar o chapéu da cabeça, que nunca mais cairia na esparrela de se fazer tutor de ninguém! «Nem de meu próprio pai, que se apresentasse!» bradava ele cheio de indignação.

Entretanto Matilde bem pouco lhe poderia dar que fazer, porque era de seu natural não exigente e sumamente dócil.

Nada tinha ela de bonita, nem de espirituosa, mas dispunha de um todo simpático e bondoso. Não atraía pelos encantos, mas encantava pela simplicidade dos seus gostos, pela doçura da sua voz e pela docilidade do seu gênio.

O áureo cheiro do dote dava-lhe a muitos olhos certo prestígio, e puxava sobre ela as vistas cubiçosas de uma matilha de galfarros. Mas de todos os pretendentes era Portela o que até aí parecia preferido, tanto pela abastada rapariga, como por D. Januária, cuja opinião não devia ser para desprezar em semelhante assunto.

D. Januária gozava para o Moreira, e para muita gente, imaculada reputação de honesta. Em sua longa e pobre viuvez ninguém achara jamais com que lhe enodoar a pureza dos costumes e a austeridade da conduta.

Ser honesta ao lado de um marido moço, e forte, e de cujas mãos caíam nas da mulher os recursos necessários para manter confortável e decentemente a vida, muito pouco será; mas ser honesta, quando é preciso tirar da agulha e do ferro de engomar os meios de subsistência; ser honesta aos vinte anos, quando temos a bolsa pobre e o sangue rico; quando o armário está vazio, mas a imaginação cheia; quando a cozinha está gelada, mas o coração encandecido; ser honesta com os cabelos pretos, a tez limpa e fresca, os olhos brilhantes e formosos; ser honesta quando se tem todos os dentes e não se tem o que comer; quando se tem um colo branco e macio e não se tem com que o resguardar -isso é muito, isso é extraordinário!

Januária foi assim. Enviuvou pouco depois de casar e, aos vinte anos, em plena mocidade, na primavera dos seus encantos, quando lhe verdejavam e floresciam as esperanças no coração, ela resistiu a todas as vozes sedutoras, que lhe suspiravam e gemiam em torno dos ouvidos, como se a alma apaixonada de Tenório andasse errante pelo espaço, a cantar eternamente os seus amores egoístas.

Ofereceram-lhe sedas, jóias; falaram-lhe em carruagens; mostraram-lhe, da miserável janela da sua mansarda, o mundo feliz que lá embaixo se embriagava de prazer. E o marulhar daquele oceano de gozos, e o crepitar dos risos e dos beijos, e o ruído quente dos almoços no campo, pelas manhãs de verão, à sombra das mangueiras ou ao sussurrar das cascatas da Tijuca; nada venceu conquistá-la.

Embalde o champanha transbordou das taças o seu aljôfar inebriante; embalde Offenbach atirou aos ares as notas endemoninhadas das suas partituras; embalde os carnavais, os vaudevilles, os hotéis, os circos e as corridas estridularam por toda a parte, chamando à loucura, ao prazer, ao riso! A pobre viúva fechou-se a tudo isso e continuou a aviar encomendas de costura, ao lado de uma velha patativa, que possuía do tempo do marido.

Foi nesse tempo que conheceu o farmacêutico. Januária, quando escassearam as encomendas de costura, desfiava linho usado, para vender o fio nos hospitais e nas casas de caridade. Moreira era um dos seus bons fregueses. Já por essa época explorava ele, com muito sucesso, as feridas do próximo.

Era moço então -teria trinta e cinco anos; não sabemos se já gozava da singular mania do chapéu, mas podemos afirmar que foi ele um dos primeiros demônios dos que tentaram desviar a formosa e ríspida viúva da perfumada e santa obscuridade em que vivia.

A princípio, o farmacêutico, cujos negócios da botica iam já perfeitamente encaminhados, supôs a coisa muito fácil de resolver e declarou francamente a Januária as intenções que mantinha a seu respeito.

-A senhora deve ter uma casita melhor e mais guarnecida do que está, disse ele, com o aspecto desinteressado e superior de quem gosta de fazer o bem pelo bem; deve igualmente passar melhor de boca e poder contar com certas comodidades e certos arranjos domésticos. Roupa, por exemplo: a senhora quase que não tem o que vestir! O querosene estraga-lhe a vista; e este trabalho, tão puxado, pode vir a dar-lhe com os ossos no cemitério! Deve a gente trabalhar para viver e não para matar-se! A senhora puxa demais pelas forças, abusa do trabalho; é impossível que isso não lhe venha a fazer mal!...

-Que remédio!... respondeu ela, com um gesto de resignação; as costuras dão agora tão pouca coisa!...

-Mas para que só conta com as costuras?... A senhora precisava de alguém que a ajudasse; algum rapaz decente e de bons costumes que a protegesse...

-De que modo? perguntou ela, talvez compreendendo já a intenção do farmacêutico.

-Ora, de que modo! Há tantos modo de proteger uma pessoa!...

-É por isso mesmo que eu pergunto qual deles é...

-Que modo há de ser?... ligando-se à senhora... Diga-me uma coisa: se lhe aparecesse um rapaz nessas condições e que estivesse disposto a fazer o que eu disse, a senhora não o aceitaria?

-Ah! se ele fosse boa criatura e caso se agradasse de mim... não digo que não... mas qual! interrompeu ela com um sorriso triste e ao mesmo tempo gracioso; quem hoje escolhe uma viúva pobre como eu?...

-Quem?! exclamou o Moreira esquentando-se. Um rapaz que eu cá sei!...

-O senhor está gracejando!... observou ela.

-Por Deus que falo a sério!

-E esse rapaz quem é?

-A senhora o conhece...

-Pode ser, mas eu conheço tanta gente!...

-Ele não está longe daqui...

-Não entendo...

-Um pobre farmacêutico, chamado Moreira; não é rico, nem tem dotes físicos, mas passa por boa pessoa...

-O senhor?! perguntou ela, franzindo as sobrancelhas.

-Sim, minha querida Januária, respondeu ele procurando segurar-lhe uma das mãos. Há muito tempo que estou doido por dizer-te isto, mas...

-Mas como, se o senhor é casado?!

-E que tem isso?... Acaso, por ser casado, não posso tomar conta de uma mulher a quem ame?...

A viúva afastou-se tranqüilamente, sem um gesto de indignação, e, quando chegou à entrada do seu quarto, voltou-se e disse ao Moreira com toda a calma:

-O senhor pode retirar-se e tenha a bondade de não voltar aqui, porque não o receberei. Diga a sua mulher que o vestido de fustão está pronto, e que me desculpe não lhe aparecer mais em casa para ir buscar as outras encomendas.

E fechou-se no quarto.

O farmacêutico ficou a olhar um instante para a porta fechada.

-Ora esta! disse ele afinal e ganhou a rua, aborrecido com aquela decepção, mas instintivamente penetrado de respeito pelo caráter da viúva; o que aliás não impediu que, daí por diante, nem só não lhe desse mais trabalho e não lhe comprasse o fio, como também ainda se empenhasse com alguns seus conhecidos para que fizessem outro tanto.

O resultado foi que a viúva, ao fim de pouco tempo, se achava a braços com um milhão de dificuldades e via, aflita, chegar o momento terrível em que fosse preciso um pedaço de pão para matar a fome, e não houvesse.

Então resolveu alugar-se como criada em casa de alguma respeitável família. Apareceu-lhe arranjo. Era uma gente que morava para além do Campo de Santana, nesse tempo ainda muito pouco concorrido.

A princípio custou-lhe bastante afazer-se ao seu novo estado, mas o desejo de viver honestamente, a necessidade ingênita de conservar-se virtuosa, triunfaram de todos os obstáculos, e Januária conseguiu passar alguns anos a servir sem nunca relaxar os seus princípios de peregrina austeridade.

Quando lhe principiaram a secar as faces, e os lábios começaram a empobrecer de frescura e rubor, foi solicitada por D. Henriqueta dos Santos (aquela com quem se casou Leão Vermelho) para ajudá-la no serviço da sua casa de pensão.

Só a morte da mãe de Clorinda conseguiu separá-las. As duas, como já sabe o leitor, se tinham feito muito amigas. Januária possuía o segredo de viver bem com uma pessoa do seu sexo, o que aliás é muito raro entre mulheres. Era muito condescente asseada, ativa, amiga de servir e agradar. Ninguém lhe ouvia uma frase de cólera, ninguém lhe surpreendia um momento de mau humor. O sorriso parecia fazer parte intrínseca de seus lábios; seus olhos eram doces e transparentes como os olhos de uma criança. Naquela fisionomia calma e cheia de bondade, não havia ressaibo de ressentimento ou de ódio; nela tudo respirava resignação e paciência. As necessidades mortificadoras da sua triste vida não lograram azedar-lhe o sangue e derramar-lhe bílis no coração.

Como não seria bom o homem que nascesse dessa mulher. Como não seria feliz a criatura que fosse em pequenina aquecida nas asas daquele anjo! E ela, que possuía todas as sutilezas da ternura, todos os mistérios do amor legítimo e fecundo; ela, que parecia ter vindo à terra só para cumprir um destino de sacrifícios e de abnegação; ela, como não saberia ser mãe! como não saberia dar-se toda ao entezinho querido que lhe saísse das entranhas!

Entretanto Januária nunca desfrutou essa ventura; e quando nasceu Clorinda, ela deu à filha da amiga, à sua afilhadinha, todo o farto tesouro de ternura maternal que lhe enchia o coração.

Não precisa o leitor de que lhe lembremos os sucessos determinados pelo casamento de Leão Vermelho, e sabe decerto, tão bem como nós, que, depois da morte de Henriqueta, a pequenina Clorinda ficou entregue aos cuidados da madrinha, enquanto o desventurado pai fugia para a pátria, desesperado e perseguido.

Foi pouco depois disso que o farmacêutico, já então viúvo e adiantado em anos, vendo-se na contingência de retirar Matilde do colégio e confiá-la a alguma senhora verdadeiramente honesta, se lembrou de procurar a velha Januária e lhe pedir que tomasse conta da abastada órfã.

D. Januária aceitou; o que mais tarde abriu lugar ao namoro de Portela com Matilde.

Mas, deixemos por hora tudo isso de mão, para darmos conta final dos outros personagens que foram ficando abandonados pelo caminho, e irmos encontrar-nos de novo com Olímpia e espreitar a posição que, ao lado dela, toma o nosso Gregório.

À filha do comendador muito custou consolar-se da perda do pai. O Dr. Dermeval viu-se em sérias dificuldades para a erguer do estado de abatimento em que ficara.

Olímpia transformou-se durante os quinze dias que sucederam à morte do comendador; fez-se muito abatida, muito mais magra e mais nervosa. Eram precisos mil cuidados para evitar-lhe as crises. Em algumas rodas dizia-se até que a mulher do Gonçalves não estava muito boa da cabeça. Isso, porém, não tinha fundamento algum; o que ela estava era sumamente hipocondríaca, profundamente aborrecida e desconsolada.

Gregório ficou desapontado com semelhantes transformações; supunha ele que, depois da morte do comendador, Olímpia lhe pertenceria mais exclusivamente; que desapareceriam os sobressaltos, os riscos, as torturas de todo o instante. E não se lembrava o inexperto de que é precisamente desses pequeninos casos, excitantes e provocativos, dessas galantes contrariedades, desses passageiros obstáculos, que se alimentam os amores, cujas raízes grassam mais pela fantasia do que pelo coração.

Olímpia, logo que se sentiu independente, logo que pôde estar à vontade com o amante todas as vezes que lhe apetecia, começou a enfraquecer de interesse por ele, a possuir-se de fastio por aquele amor que ia amornecendo e caindo a pouco e pouco na vulgaridade das coisas fáceis e obscuras.

E, quanto mais Olímpia se retraía, mais se empenhava Gregório em chamá-la ao seu afeto; já procurando lembrar-lhe os sonhos venturosos do passado, já provocando, com artifício, novas situações armadas ao sabor do espírito romanesco do amante. Tudo, porém, era debalde. Olímpia não se mostrava menos enfastiada e parecia suportar o rapaz apenas por condescendência.

Um belo dia Gregório apareceu pouco antes do que era de costume.

-Ah! é você?... disse ela com o ar fatigado.

-Sei que não devia vir, respondeu ele, da porta, sem largar o chapéu; já não sou desejado...

E depois de observar o efeito que produziu a sua frase em Olímpia, acrescentou, pondo uma expressão de queixa nas palavras:

-Agora chego sempre cedo demais!... Reconheço que só posso ser agradável pela ausência!...

A caprichosa não respondeu, e ficou a olhar demoradamente para as unhas da mão direita. Houve um silêncio de alguns segundos.

Gregório afinal aproximou-se dela e passou-lhe um braço na cintura.

-Para que me tratas deste modo? perguntou ele. Que fiz eu para merecer tamanha indiferença... Por que me fazes padecer tanto, Olímpia?... Sabes perfeitamente que és a única consolação que me resta na vida! a minha única ventura, minha única...

Ela o interrompeu para lhe perguntar onde se encontraria um jardineiro que se quisesse encarregar da chácara, porque o preto velho que lhe fazia esse serviço, dera ultimamente para beber e estava insuportável; ainda na véspera se apresentara tão embriagado que, na ocasião de entrar no jardim, fora de encontro a um belo jarro de louça vidrada e lançara-o por terra.

Olímpia não se podia conformar com semelhante perda! O seu querido jarro fazia imensa falta na chácara! Ela o estimava muito! Fora um presente do Porto, de um amigo de seu pai. Aqueles jarros ali estavam havia anos; era preciso que viesse a lesma do jardineiro para reduzir um deles a cacos!

-Bruto! resumiu ela, empenhada na sua indignação! Quebrar um objeto que eu prezava tanto!...

As palavras da filha do comendador caíram sobre Gregório como um jato de água fria dentro de uma caldeira a ferver. Ele empalideceu de raiva ou talvez de vergonha, e fez um movimento brusco para sair.

-Já vai? perguntou a rapariga, com um ar entre delicado e indiferente.

-Decerto! respondeu Gregório; que fico eu fazendo aqui?...

-Então não se esqueça do que lhe disse; e, se puder descobrir um jarro parecido com o que ficou na chácara, tenha a bondade de comprá-lo. Olhe, o melhor é ir lá abaixo vê-lo antes de sair. Venha comigo; faço muito empenho nisto! Venha!

E largou da sala, a encaminhar-se para a chácara.

Gregório prometeu ir em outra ocasião; naquele momento estava com pressa.

Olímpia dispunha-se a insistir no seu pedido quando a criada apareceu, muito esbaforida, dizendo que o Guterres acabava de expirar.

-Coitado! Já!? perguntou a senhora, com o ar de quem esperava por aquela notícia. E voltando-se para Gregório:

-É um vizinho aí defronte. Estava muito mal. Há quinze dias que penava!...

-Ah! balbuciou Gregório.

-Bom homem. Muito sossegado, muito agarrado à mulher. Ele esteve aqui, dizem, por ocasião da morte de papai e ofereceu-se para ajudar no que fosse necessário.

E depois de uma pausa, acrescentou:

-A Júlia, coitada! deve estar muito aflita... É a mulher, explicou ela, em resposta a um gesto de Gregório. Bela moça, muito dada, muito amiga de obsequiar. Já esteve aqui duas vezes. Eu vou fazer-lhe companhia esta noite...

-Talvez isso não lhe faça bem!... observou Gregório.

-Ora! desdenhou Olímpia. Já não estou doente; além de que, tenho obrigação de ir. Ela se mostrou sempre tão minha amiga!... Está a mandar-me constantemente lembrançazinhas de amizade. Vou mostrar-lhe um açafate de papel, com o retrato dela. Deu-mo na semana passada. Quer ver?...

Gregório disse que sim por comprazer.

Olímpia foi buscar o açafate. O retrato, em fotografia, estava no fundo, entre uma cercadura de papel bordado.

-Eu conheço esta mulher! disse Gregório logo que olhou para o retrato. Esta é a Júlia Guterres!

-Ah! já a conhecia?

-Já. Uma atriz...

-É exato, ela foi do teatro; mas o marido não quis que continuasse. Você algum dia a viu representar?

-Não.

Gregório saiu afinal, resolvido a não tornar ao lado de Olímpia.

Uma semana depois, recebeu dela uma carta. Pedia-lhe que aparecesse. «Ele estava um ingrato; também isso não admirava, porque, segundo o que Olímpia ouvira dizer, Gregório não perdia uma noite do Alcazar, e andava apaixonado por uma francesa. Ela sabia de bonitas coisas a seu respeito!» Falou em certa orgia no Hotel Paris. A carta terminava pedindo ao rapaz que fosse domingo jantar com Olímpia. A viúva Guterres estaria presente e desejava conhecê-lo.

Gregório leu cinco ou seis vezes aquelas palavras.

-Devia ou não devia ir?...

Não foi. Mandou um bilhete, pedindo desculpas, e não apareceu.

Um mês depois, nova carta. Era mais extensa e mais recriminatória; Olímpia queixava-se amargamente do proceder de Gregório e pedia-lhe ternamente que a fosse ver. Ele ainda desta vez não foi.

Entretanto Gregório principiava a ganhar reputação de estroina. Um dos seus companheiros da pândega era o padre Beleza; padre ainda moço e levado da breca. À noite metia-se em roupas seculares, escondia a coroa e atirava-se para o Alcazar, onde floresciam nesse belo tempo as pernas da Aimé. O Beleza era quase sempre cabeça de motim e jogava capoeira como os mais entendidos da matéria. Contavam dele façanhas terríveis. O bispo não conseguia corrigi-lo.

Olímpia escreveu ainda duas cartas a Gregório, sem ter melhor êxito que das primeiras. Na última jurara que, se ele não lhe aparecesse nesses dias, nunca mais lhe daria uma palavra.

Foi então, isto é, seis meses depois do rompimento de Gregório com Olímpia, que o padre Beleza o convidou para uma festa.

Era o batizado da filhinha de uma das suas comadres.

O rapaz aceitou e foi, sem prever que esse passo tinha de representar um importante papel na sua vida.

Só depois de lá estar, soube que a madrinha da criança se chamava Júlia Guterres.

O batizado

A casa da festança era em Catumbi, pouco adiante do lugar até onde mais tarde havia de chegar a linha de bondes.

Um casarão antigo e abafadiço, com janelas de peito e dois degraus de cantaria à porta da rua.

Para se chegar lá, subia-se uma pequena ladeira à esquerda, enquanto se deixava à direita um correr de casas, que lá se iam estendendo, até confinarem com o pardacento e melancólico muro do cemitério de S. Francisco de Paulo.

Seriam quatro horas da tarde quando os dois se apearam do carro que os conduzia. O padre Beleza deu o braço a Gregório e seguiram.

-É ali! disse ele, apontando para o casarão. O outro olhou indiferentemente na direção indicada pelo companheiro.

O tempo estava duvidoso; parecia vir chuva. O céu cor de pérola, apenas em alguns pontos mais vizinhos do horizonte abria rasgões de uma claridade desbotada e brancacenta.

Os montes de Santa Teresa, atufados na verdura felpuda e trêmula, enchiam-se de sombra. Palmeiras, destacadas e solitárias, abriam para o céu, aqui e ali, as suas estrelas irrequietas e murmurosas. Toda a natureza se ressentia de um triste aspecto de recolhimento; só os carrapateiros quebravam a uniformidade melancólica da verdura com o seu verde Paris, cru e alegre. Em vários lugares, por entre o relvejar do capim, aparecia a custo uma nesga de terra avermelhada, cor de carne em conserva. Mais para o sopé dos montes, casinhas, pintadas de claro, apareciam no sombrio das matas com os ângulos das suas fachadas de madeira.

Não havia raios de sol, nem sombras projetadas no chão. As montanhas desenhavam minuciosamente no fundo plúmbeo do céu o seu contorno acidentado e guarnecido de árvores.

Gregório e o companheiro acabavam de entrar na casa de batizado.

Veio recebê-los à porta um sujeito gordo e muito alto, cheio de vermelhidão, olhos claros, azulíssimos, cara raspada, pouco cabelo na cabeça e o pouco que havia quase todo branco. Esse sujeito tocava trompa nas orquestras de teatros e, pelo entrudo, trabalhava de enderecista para as sociedades carnavalescas. Era homem popular, prezava-se da estima de algumas pessoas de gravata lavada, mas não desdenhava a amizade dos colegas.

-Olá! olá! Viva o nosso reverendo padre Beleza! exclamou ele. E puxou familiarmente o padre para o corredor, enquanto esse lhe apresentava Gregório. Vão subindo! vão subindo! Aqui não se faz cerimônias! Estejam em sua casa! A troça está toda na dança lá em cima... Vão entrando!

Ouvia-se com efeito barulho de música.

Gregório, ao chegar à sala, sentiu-se constrangido. Não conhecia aquele meio. Nunca havia penetrado em casa de uma família de artistas brasileiros; ignorava da existência desse gênero de pessoas, incontestavelmente dignas, mas entre as quais a pilhéria decotada tem bom curso, a dança toma um caráter assombroso de cancã, e as mulheres discutiam simultaneamente sobre tudo, desde os assuntos mais familiares e mais castos até às últimas extravagâncias da meretriz que estiver na moda.

Ninguém todavia fala tanto em conveniências, e ninguém se esforça tanto para cumprir com os rigores da hospitalidade. As pequenas obrigações da cortesia, nessas casas, tomam às vezes as proporções de verdadeiros suplícios -obrigam-nos a comer e a beber sobre posse. Não nos consentem rejeitar nada do que nos oferecem. Há uma febre terrível de obsequiar.

Gregório todavia passara quase despercebido, porque um acontecimento prendia a atenção dos que não dançavam. Era a chegada do pequenino, que acabavam de batizar, e mais a dos padrinhos e dos convidados que o acompanharam à igreja. Havia reboliço por toda a casa.

Em torno do bebê forma-se um grupo enorme de homens e mulheres, sôfregos por fazerem festinhas ao pequenino herói da festa. Este toscanejava babando-se, a resmungar, fatigado pela cerimônia do batizado.

Daí a pouco chamaram em gritos para a mesa.

Houve então um rumor ainda mais alegre, e as pilhérias da ocasião choveram de todos os lados.

Entretanto, Gregório era nesse momento apresentado à dona da casa pelo padre, com exagerados rasgos de cortesia.

Sobre a mesa enorme, que se havia arranjado especialmente para aquela ocasião e que parecia entalada na estreiteza da sala, destacavam-se as grandes peças de forno. Via-se o leitão inteiro com os dentes à mostra e os olhos substituídos por azeitonas, ao lado o peru empertigava o peito recheado; tortas, do tamanho da aba do chapéu do padre Beleza, recamavam a branca toalha de fustão. As garrafas cintilavam alegremente; liam-se vistosos rótulos de Bordeaux, Porto e descobriam-se garrafas de vinho branco, cheias de Colares e vinho virgem. As compoteiras de doce de caju, abacaxi, e laranja, jaziam meio escondidas nos tinhorões dos grandes jarros de porcelana. Os quartos de carneiro, as galinhas assadas e os pastelões esperavam resignadamente a hora do ataque. Um cheiro farto e gorduroso de comida enchia o ambiente.

A dona da casa disse em voz alta a Gregório que se fosse assentando à mesa. Ali não havia cerimônia! Ela, como quase todos os atores antigos, tinha o costume de falar sempre em voz alta.

Gregório assentou-se.

As mulheres olharam logo para ele com interesse. O seu pequeno rosto branco embelezado de frescura e de mocidade, sobressaía ali, como uma coisa rara e bem trabalhada. O rapaz fazia esforços supremos envergonhado da natural distinção das suas maneiras.

Os convidados não cabiam todos à mesa; Gregório ergueu-se duas vezes para oferecer o seu lugar, mas de ambas o obrigaram a ficar assentado, empurrando-o pelos ombros. Sentia-se ele cada vez mais constrangido no meio daquela gente mesclada e ruidosa; fusão de família e boêmia, argamassa de sorrisos discretos, olhares pundonorosos, gestos cheios de escrúpulo e amplos movimentos de caixa de teatro misturados com frases de botequim e pilhérias de sociedade carnavalesca.

Luzia Pereira, a dona da casa, apesar de idosa, ainda mostrava ter sido bonitona na sua época.

Fora atriz por muitos anos, enviuvara de um ator do tempo de João Caetano e vivera sempre entre gente de teatro. Era em geral estimada como mulher honesta e querida por muitas famílias do Rio de Janeiro.

A gordura desformara-lhe um pouco os membros e a fazia parecer mais baixa e menos elegante; mas os olhos brilhavam ainda com o fulgor dos outros tempos, e os lábios conservavam o fino sorriso espiritual, com que ela arrebatara as platéias de 1840.

Luzia Pereira era tia legítima da nossa bem conhecida Júlia Guterres, que representava uma das principais figuras do batizado.

A atmosfera tornava-se mais e mais abafada. O calor, anunciativo da tempestade que se formava lá fora, quase que não consentia no agrupamento dos comensais naquela sala estreita e coagida pelo teto. Das janelas, abertas sobre o quintal, não entrava o menor sopro de ar novo; as luzes do petróleo agravavam a situação.

Gregório desfazia-se em finezas com Júlia Guterres, que lhe ficara ao lado direito, mas impacientava-se por sair daquele forno.

Principiaram a comer. Não havia método no jantar; algumas pessoas iam logo se servindo dos assados antes de tudo; outras tomavam à sopa os vinhos da sobremesa. Mas todos os copos se esvaziavam alegremente. Foi preciso fechar as janelas porque começavam a cair as primeiras gotas do aguaceiro, que lá fora trovejava já sobre as montanhas.

Redobrou então o calor. Um sujeito gordo erguera-se, pedindo que o acompanhassem em um brinde a uma pessoa, que se achava presente, muito distinta e digna de todas as considerações.

Fez-se logo um respeitoso silêncio, e o orador declarou que se referia a D. Luzia Pereira. Seguiu-se uma enfiada de elogios, e os hurras rebentaram de todos os lados.

Desde então os brindes apareciam sem intervalo. Os comensais erguiam-se a dar vivas, e estendiam o braços, oferecendo os copos aos vizinhos, para tocar.

Ainda não estava terminado o jantar, quando Gregório pediu licença e se retirou ofegante para a sala de visitas.

A chuva percutia com força nas vidraças e no telhado. O rapaz assentou-se no canapé e ficou a olhar para as fotografias suspensas da parede.

Lá estava o João Caetano, o Martinho, o Costa, e outros contemporâneos. Por um álbum, que Gregório se pôs a folhear, via-se que era enorme a família da Luzia Pereira. Algumas filhas e netos estavam presentes à festa.

Terminada a primeira mesa, assentaram-se os que ainda não haviam jantado, e a sala, onde estava Gregório, encheu-se logo de pessoas a palitarem os dentes.

Em uma alcova contígua, dez rapazes preparavam estantes de músicas e acendiam velas. Pouco depois, cada um desses dez tocavam o seu instrumento de sopro, e um grande barulho metálico, ensurdecedor, encheu totalmente a sala, impedindo qualquer conversa.

Era uma polca, composta por um dos músicos e oferecida ao pequeno que se batizara naquele dia.

Gregório foi obrigado a dançar, escolheu Júlia Guterres. Ela deixara-se conduzir com certo desprendimento gracioso. Era louca pela dança.

Quando acabou a música, houve uma carga de vivas ao autor, vivas ao batizado, vivas à dona casa. Abriram-se garrafas de cerveja nacional, e os copos espalharam-se por todos os convidados.

Gregório sentia-se ir agitando pouco a pouco: tudo aquilo começava a perturbá-lo; a música, o ar quente, os perfumes de Júlia, produziam-lhe vertigens e chamavam-lhe o sangue à cabeça. O padre Beleza não tinha um momento de descanso, ria, saltava, gritava fazendo troças, pregando caçoadas às velhas, abraçando as mulheres, pisando de propósito os homens e rebolando na dança. Todos lhe achavam graça.

Entretanto Júlia, depois que dançou a segunda vez com Gregório, lhe pediu que não reparasse naquela desordem: as festas em casa da tia eram sempre assim... Não havia meio de obter certa seriedade! Ela ia ali, porque a tia era o único parente a que estimava deveras no mundo, mas fazia com isso um verdadeiro sacrifício; aquilo era uma gente levada do diabo! Em seguida começaram a falar a respeito de Olímpia, a princípio por meias palavras, depois abertamente. A viúva sabia muita coisa que lhe contara a vizinha.

-Gregório não havia procedido bem...

-A culpa foi só ela, justificou-se o rapaz; Olímpia se quisesse teria feito de mim um escravo! Eu não pensava em mais nada que não fosse nela...

-E ainda hoje, observou a outra, pelo entusiasmo com que diz isso, percebe-se que...

-Qual! respondeu ele, sacudindo os ombros. Está tudo acabado!

-Ela, porém, ainda o estima muito!...

-Não sei! É verdade que a mulher só ama quando o homem amado a despreza...

-Isso são histórias! contradisse Júlia. O senhor, se não gosta mais dela, é porque gosta de outra!...

-Juro-lhe que não! afirmou vivamente Gregório, lançando sobre a viúva um olhar que era já um programa.

Ela havia compreendido perfeitamente o efeito que produzia no rapaz, e não procurou destruí-lo. As mulheres têm sempre um gostinho muito particular em possuir um homem amado pelas outras.

Quando, às seis horas da manhã, dissolvia-se a festa, e cada um procurava às tontas o seu chapéu e a sua bengala, Júlia e Gregório invadiram um pequeno quarto que ficava ao lado da varanda e, na febre de achar os chapéus, seguraram duas vezes por engano as mãos um do outro e, por estar o quarto ainda escuro, cremos que os seus lábios também se esbarraram.

Gregório saiu palpitante de esperanças.

O diabo era a vizinhança de Olímpia e o fato de freqüentar esta a casa da viúva. Oh! mas tudo se haveria de arranjar. Gregório estava muito satisfeito com a sua nova conquista: notava em Júlia certa graça desdenhosa e satânica, um modo petulante de dizer liberdades, uma sem-cerimônia peculiar às atrizes, uma espécie de encantadora malignidade, que a filha do comendador nunca possuíra.

E já no dia seguinte principiou ele a formar o seu plano de batalha. Fez-lhe uma visita, mas a viúva, muito ao contrário do que esperava o assaltante, recebeu-o friamente e não insistiu para que se demorasse.

Foi a primeira esporada. Gregório saltou. Depois da faísca, a explosão seria fatal.

Principiou a persegui-la por toda a parte, a escrever-lhe cartas apaixonadas, a pedir-lhe ternura por amor de Deus.

Nesse tempo morava ele em Santa Teresa.

Uma noite, mal havia chegado à casa, quando sentiu parar à porta uma carruagem e logo em seguida alguém que subia apressadamente a escada.

Era Olímpia. Gregório a reconheceu imediatamente e fê-la entrar.

Vinha ofegante, pálida de raiva, com a fisionomia endurecida por qualquer grande contrariedade.

Era a primeira vez que se animava a tanto; nunca havia penetrado em casa de um rapaz. De sorte que, logo depois dos primeiros passos, toda a energia que ela trazia engatilhada para fulminar o pérfido amante, rebentou em soluços.

Gregório correu a socorrê-la; foi repelido com um murro.

-Deixa-me! exclamou ela. E tirou da algibeira uma das ultimas cartas dirigidas por ele à viúva.

-Você é um infame!

Gregório estava perplexo e achava tudo aquilo muito estranho. Havia já seis meses que ele se não entendia com Olímpia. Ela, da última vez em que estiveram juntos, tratara-o mal... Que diabo queria então tudo aquilo dizer??... Porventura era ele casado para ter de dar contas dos seus atos!? Se escrevia cartas era porque assim o entendia! Ora essa!

Olímpia não teve uma palavra para lhe opor. Gregório nunca a tratara daquele modo. Até aí sempre lhe dispensara delicadeza e consideração.

-A senhora é que fez muito mal em vir cá! disse ele, passeando agitado pelo quarto. Não sei o que a autoriza a supor que ainda existe alguma coisa entre nós dois!

-Tem razão! respondeu Olímpia, afastando-se, na esperança de que ele a chamasse.

Mas Gregório contentou-se em fazer um gesto de despedida.

Ela, assim que se convenceu de que o amante não a ia buscar, voltou sorrindo humildemente.

Já não chorava, nem parecia contrariada.

Quando chegou junto de Gregório, atirou-se-lhe nos braços e principiou a soluçar com a cabeça pousada no colo do rapaz.

Ele, comovido, beijou-a na face.

As pazes estavam feitas.

- XXX -

Último capítulo

Eis aí como decorreu a inútil mocidade de Gregório até aos vinte e dois anos. Mais um passo e chegaremos ao ponto em que principia este pobre romance e onde justamente há de ele acabar; quer dizer, refluiremos à cena do malogrado casamento de Clorinda.

Durante esse rápido ano, que liga o primeiro capítulo ao último, sucederam-se poucos mas palpitantes acontecimentos, que justificam muitas outras cenas.

Nesse pequeno espaço de tempo, Olímpia sofreu, por amor de Gregório, todos os martírios que nos podem influir nos ciúmes. Quanto mais ele se esquivava, tanto mais atraída ela se sentia.

Olímpia estava na idade em que o amor toma o caráter de moléstia; na idade em que a mulher é capaz de todas as loucuras pelo objeto amado; em que ela é capaz de todos os sacrifícios, de todas as abnegações, menos a de consentir que o herói dos seus sonhos a despreze por outra. E foi isso justamente o que fez Gregório, desde aquela cena absurda de cócegas no pitoresco chalezinho de Júlia Guterres.

Como já sabe o leitor, a viúva, logo que perdeu o marido, tratou de recolher os bens que lhe ficaram, e retirou-se para a Tijuca, onde nós e a polícia, a encontramos, quando se tratava de descobrir esclarecimentos a respeito de Gregório; da mesma forma, não ignora o leitor qual foi a direção que tomaram os novos amores do inconstante rapaz, e como chegou ele a armar casamento com Clorinda.

Pois bem; tratemos de esclarecer o que falta e apressemos o passo, para chegarmos, quanto antes, aos resultados das cenas dos primeiros capítulos.

Olímpia não pôde disfarçar por muito tempo o seu martírio, e a dor dos ciúmes transformou-se para ela em cruel enfermidade, acelerando o embranquecer do cabelo, o enrugar da tez e o desbotamento das faces. Quando o Dr. Roberto voltou do norte, o que proporcionou a Gregório o seu primeiro encontro com a bela Clorinda, quase que não a reconheceu e declarou que muito pouco lhe daria de vida.

Gregório correu então para junto dela, mas a sua presença não conseguiu espantar a morte, que estendia já sobre a infeliz a sombra negra de suas asas.

Ele, por sua parte, não levava o coração ainda cativo dos amores da viúva, mas já suavemente impregnado pela nova afeição que lhe inspirara a filha de Leão Vermelho.

Estava outro: não era o mesmo folgazão das correrias com o padre Beleza; ao contrário, convertido e civilizado, forcejava agora por vencer as últimas ondas da mocidade, e abrigar-se enfim no casamento, cujas praias via branquejarem além, iluminadas por um doce luar de tranqüila ventura.

Olímpia faleceu numa noite de inverno, depois de grande agonia. O Dr. Roberto não lhe abandonara durante muitos dias a cabeceira, e o Figueiredo mandara dois de seus empregados para ajudarem nos trabalhos do enterro.

Gregório chorava ao lado do cadáver. Nunca se persuadiu que sentisse tanto aquela morte. Olímpia entrara na sua vida como um incidente fantástico e romanesco no meio de um livro de apontamentos banais; arrependia-se agora de não ter sido com ela melhor, mais generoso, mais grato; sentia remorso de não a ter amado um pouco mais!

E, para fugir a essas idéias aborrecidas, chamava egoisticamente em seu socorro a imagem adorada de Clorinda. Ah! esta era o futuro, a esperança de felicidade, era a aurora do dia seguinte.

E só a lembrança destas novas claridades lhe secava os últimos orvalhos daquela noite que fugia, perdendo-se nas sombras inalteráveis do passado.

De todos, enfim, quem parecia mais sentido com tudo aquilo era o velho Jacó. O pobre homem viu, em torno de si, caírem, a pouco e pouco, as árvores queridas, a cuja sombra abrigava a fraqueza da sua velhice.

Gregório ofereceu-lhe a casa e insistiu com ele para que fosse fazer-lhe companhia. Jacó aceitou, e por isso o vimos figurar no interrogatório policial logo no começo do romance

Em breve, Gregório não tinha outra idéia que não fosse a da sua querida noiva, e Júlia Guterres principiava a curtir os mesmos tormentos por que passara Olímpia.

Se as mulheres, e principalmente aquelas que já se despiram das primeiras ilusões, soubessem quanto é perigoso amar deveras um rapaz que ainda não pagou todos os tributos da mocidade, não se deixariam tão facilmente prender aos efêmeros transportes de um namorado de vinte anos.

O coração nessa idade está ainda muito verde para arder. É preciso que o tempo e as lentas decepções da vida o ressequem, sem o que não pegará fogo.

E dizem os irrefletidos que o coração dos velhos é que é frio. Que injustiça! ninguém ama com tanto ardor, ninguém se apaixona com tanto entusiasmo! Parece até que o homem, à proporção que envelhece, vai refugiando no coração todo o calor que lhe foge do resto do corpo. À proporção que lhe caem os dentes, que lhe deserta o cabelo, que se lhe entorpecem as pernas e se lhe tornam mais e mais trêmulas as mãos, tanto mais o coração se enrija e fortifica, para conservar inalterável e firme o seu derradeiro amor. Desaparece o olfato, apagam-se os olhos, somem-se o tato e o paladar, e o coração cada vez mais sente, mais deseja e mais vê!

Por que estranho ódio teria a natureza formado assim o coração do homem? Se lhe rouba do corpo as forças, os sentidos, as faculdades, se lhe toma os dentes, o sangue dos lábios e a frescura dos cabelos; se o torna feio, velho, insuportável, para que lhe deixa então o coração a pulsar cada vez com mais veemência e a pedir um amor que ninguém lhe dá?!

Júlia Guterres não se lembrara de fazer considerações destas, ao abrir os braços a Gregório, e depois teve com sacrifício de impor ao seu coração que se calasse, quando soube pela primeira vez que o desleal amante estava de casamento justo com Clorinda.

Corriam as coisas neste ponto, quando se realizou aquela conversa entre Portela e o seu capanga Talha-certo, ao saberem da reaparição de Pedro Ruivo.

O gatuno havia-se arranjado lá por S. Paulo com o tal fazendeiro de boa-fé, a quem se agrarrara com tamanho afinco, que a pobre vítima, para se ver livre dele, tratou de empregá-lo na casa Paulo Cordeiro, na qualidade de pregador de rótulos.

Mas Portela é que não ficou muito tranqüilo desde que o viu, e recomendou ao seu Talha-certo que lhe não perdesse a pista.

Talha-certo tratou imediatamente de procurar Tubarão e pedir o seu auxílio, porque Pedro Ruivo da primeira vez conseguira escapar-lhe das unhas. E o leitor já sabe o ajuste que houve entre aqueles dois no café da Menina do Bandolim, onde ficaram de encontrar-se no dia seguinte para realizarem a terrível incumbência de Portela.

Tubarão acompanhara o flâmulo deste, pelo simples fato de tratar-se do Ruivo; ele não era homem que se prestasse a fazer mal a quem quer que fosse, se o coração não se envolvesse nisso. Talha-certo sabia perfeitamente da velha rixa que havia entre os dois e, desde o seu malogrado bote contra o Ruivo, tratara de preparar o ânimo do outro para a primeira vez que viesse a precisar do seu auxílio.

Chegara afinal o momento, e Tubarão cedera.

Vejamos agora como se saíram eles dessa empresa.

Pedro Ruivo parecia regenerado depois que se arranjara na fábrica. Trabalhava pontualmente e recolhia-se para dormir a hora certa. Morava com um companheiro num cortiço perto do Campo de Santana. E nos primeiros tempos, tão enfronhado viveu no serviço, que Portela ignorava completamente a sua presença no Rio de Janeiro.

O velhaco, entretanto, meditava novos planos de ladroeira; queria angariar a simpatia e a confiança dos superiores, para fazer com mais certeza a sua pontaria, quando porventura se apresentasse uma boa ocasião.

Essa ocasião apareceu. O caixa da casa, aquele Gonçalves, viúvo de Olímpia, teve uma vez de demorar consigo uma quantia superior, vinte contos de réis. Pedro Ruivo não o perdeu mais de vista, e preparou-se.

Se fosse necessário, o caixa seria assassinado. Mas assim não sucedeu, porque o gatuno encontrou ensejo de achar-se a sós com o dinheiro. Entrou pelos fundos da casa e penetrou engenhosamente no gabinete do caixa, tendo para isso preparado de antemão os fechos de uma das janelas que davam para esse lado.

Uma vez senhor do dinheiro, tratou de ganhar a rua e de encaminhar-se para o seu cortiço.

Mal porém teria feito alguns cinqüenta passos, quando um homem lhe saiu ao encontro e lhe arremessou uma formidável cabeçada contra o ventre. Era Talha-certo.

Pedro Ruivo perdeu o equilíbrio e caiu de costas.

O outro, trepando nele, lhe perguntou pelos documentos de Portela. O agredido, em vez de responder, soltou um grito e segurou com ambas as mãos o peito, como se quisesse defender alguma coisa que aí trouxesse escondida.

Talha-certo, conduzido por esse movimento espontâneo, imaginou que ali estivessem os papéis que procurava, e intimidou o Ruivo a que se deixasse revistar. O Ruivo resistiu.

Talha-certo chamou então o marinheiro em seu auxílio e, depois de vendarem a boca do Ruivo, dispuseram-se a revistar-lhe o peito.

O Ruivo debatia-se furiosamente.

-Tratante! gritou-lhe Tubarão; dá-me por bem esses papéis, se não quiseres ficar aqui mesmo reduzido a postas!

Ruivo, em vez de responder, arrancou-se das mãos de Talha-certo e sacou do bolso uma navalha.

Talha-certo, porém, havia de um salto avançado para ele, e cortara-lhe a garganta com uma navalhada. O Ruivo rosnou por baixo da venda que tinha na boca e, depois de tentar em vão segurar-se nas pernas, caiu de borco sobre a calçada.

O assassino revistou-lhe o peito; mas, em vez dos documentos do comendador Portela, encontrou os contos de réis, que a sua vítima havia pouco antes roubado.

-Como vinha o ladrão carregado! disse o Talha-certo, sacudindo de alegria pela descoberta que acabava de fazer.

-E os documentos?... perguntou Tubarão.

-Não estão naturalmente com ele, mas temos aqui coisa melhor: Um dinheirão! O maroto havia feito hoje uma linda colheita!

-Então tudo isso é dinheiro? perguntou o Tubarão, admirado por sua vez.

-Em magníficas notas do tesouro! respondeu o Talha-certo.

-Então foi algum roubo... não te parece?...

-Sei cá; o que te afianço é que isto não nos fará peso nas algibeiras...

-Não sou dessa opinião! resmungou o seu cúmplice. Dinheiro roubado pesa sempre, quando menos na consciência!

-Ora! replicou o Talha-certo, depois de acabar a revista das algibeiras do Ruivo, e tratando de afastar-se com o dinheiro para longe. Quem rouba a ladrão tem cem anos de perdão!

-Estás enganado! gritou-lhe o outro. Quem rouba a ladrão, fica ladrão como ele! Esse dinheiro será entregue ao dono, quer queiras, quer não queiras!

-Essa agora tinha graça!... considerou o outro. Era melhor que fôssemos nós daqui direitinhos entregar-nos à polícia.

-Podemos fazê-lo chegar às mãos do dono, sem que se saiba donde ele procede...

-Nesse caso, restituirás tu a tua parte. Vamos dividi-lo; cada um dará o destino que quiser aquilo que lhe tocar.

-Não! contradisse o Tubarão. Havemos de entregá-lo todo ao dono!

-Isso agora já passa à birra, replicou Talha-certo, impacientando-se. Que você faça fúrias com o que é seu, vá lá, mas com o que é dos outros!..

-Aqui não há meu, nem teu! nós não temos direito a ficar com aquilo que não ganhamos, nem tampouco nos deram!

-Mas que achamos! replicou ainda Talha-certo. Em todo o caso, vamos a casa dividir o cobre, e você da sua parte fará o que quiser... A minha pertence-me!

-Não! Tu me vais passar todo o dinheiro. Eu me encarregarei de restitui-lo ao dono.

-Ora veja se tenho algum T na testa!

-Eu é que te afianço que o dinheiro se há de restituir! Vamos! em teu poder não ficará ele!

Talha-certo, vendo que não conseguiria nada pela arrogância, resolveu comover o companheiro.

-Então, que é isso, Tubarão?... Que mania de escrúpulo é essa de tua parte com um velhaco daquela ordem? Olha! quem o mau poupa nas mãos lhe morre...

-Não se trata agora disso! replicou Tubarão: não se trata de dar cabo de nenhum mau; trata-se é de entregar um valor que nos não pertence. Enquanto querias uma ajuda para despachar aquele maroto, pronto! e não me arrependo disso; mas lá para roubar é que não me presto! Ou tu me entregas o dinheiro, ou eu te denuncio à polícia. Escolhe!

-Ora, deixa-te disso, pediu ainda o outro, procurando torcer o caráter do marinheiro.

-Já te disse o que tinha a dizer! volveu este. Ou entregas o cobre, ou vai tudo ao ouvido do Dr. Ludgero. Eu cá não sirvo de capa a ladroeiras! Não sou santo, mas nunca estas mãos se sujaram com o alheio!

E Tubarão, com ar firme de homem resoluto, ia forçar o companheiro a que lhe entregasse o roubo, quando este, recuando na ação destra da capoeiragem, acometeu contra de, procurando abrir-lhe o pescoço com a navalha.

Mas Tubarão desviou-se prontamente, e a lâmina, mudando de direção, entranhou-se-lhe pelo pequeno peitoral do lado direito.

Talha-certo recuou com um novo salto e de novo investiu contra o companheiro, ferindo-o então no braço, porque o rijo marujo, apesar do sangue que lhe saltava da ferida, ainda se agüentava bem nas pernas e ainda se defendia, tentando apoderar-se do facínora.

Este deitou a correr, Tubarão tentou persegui-lo, mas a vista principiou a escurecer-lhe, as pernas a lhe fraquejarem, e com muito custo conseguiu de chegar onde morava pobremente com um seu velho companheiro do mar.

O companheiro não estava em casa. Tubarão recolheu-se à cama e perdeu de todo os sentidos. Só os recuperou muito depois, quando a febre principiou a ceder. O médico, que o companheiro de casa fora buscar, recomendara que o não obrigassem a falar e não lhe dessem a beber senão os medicamentos receitados.

Entretanto, sabe já o leitor o caminho que, durante esse tempo, tomaram as coisas concernentes ao assassínio do Pedro Ruivo e ao roubo perpetrado na casa Paulo Cordeiro. A polícia continuava a trabalhar, mas trabalhava muito reservadamente e quase sem resultado algum.

De Gregório ninguém dava notícias.

Nestas circunstâncias, chegaram as coisas ao ponto em que as deixamos, quando a desventurosa Clorinda se recolheu à casa de Júlia Guterres, onde a pobre velha Januária conseguia escapar ao peso dos seus sofrimentos.

Como vimos, a penetrante viúva foi a única que suspeitou das intenções de João Rosa e principiou a estudar a atitude que o antipático rapaz tomava ao lado da sua hóspede.

Por então, um paquete europeu ancorava na Guanabara e uma família saltava no cais Pharoux.

Nada menos que o conde de S. Francisco, a esposa, a filha e um moço de uns vinte e cinco anos, no qual o leitor, se o visse, reconheceria logo o nosso Gregório.

Ao lado deste caminhava o Dr. Ludgero, com o ar satisfeito de quem alcança vitória.

Seguiu-se então o mais estranho e enovelado processo de que se pode gabar a justiça brasileira. Nesse tempo não se falava noutra coisa: o escândalo agitou por muitos dias a curiosidade do público e fechou todos os personagens deste romance no mesmo círculo de interesse.

O conde de S. Francisco trazia consigo, felizmente, os documentos justificativos da herança que Gregório acabava de receber do Minho. Entretanto, era necessário descobrir os verdadeiros autores do roubo e do assassínio. O processo continuava.

Apresentaram a Gregório a fotografia de Pedro Ruivo. Gregório disse francamente o que sabia da vida daquele homem, contou as aventuras da Avenida Estrela; o delegado fez vir à sua presença o Papá Falconet, o padre Almeida, o Augusto e o Afonso, mas nenhum deles adiantou o menor esclarecimento.

Estava reservado a Tubarão destruir as trevas acumuladas em torno do crime. Foi ele quem chamou a atenção da justiça sobre o comendador Portela, quem falou nos documentos deste, quem contou a intervenção de João Rosa, o motivo do ataque que sofreu Pedro Ruivo e, finalmente, o roubo cometido pelo Talha-certo, que Tubarão afirmou se achar naquele momento escondido em casa do Portela.

Talha-certo, com efeito, foi encontrado ali e conduzido imediatamente para a casa de correção. O Gonçalves reembolsou parte do dinheiro roubado; o ladrão e assassino foi condenado a galés perpétuas, e o Portela gramou quatro meses de prisão e multa correspondente, além de perder de todo a esperança de casar com Matilde, a rica pupila do boticário Moreira, a qual havia coisa de um ano deixara a casa de D. Januária, para acompanhar uma família conhecida da sua, que seguia para S. Paulo.

Bem previa Portela que os tais documentos ainda lhe haviam de dar água pela barba!

O que causou grande impressão nos tribunais, foi a vida do marinheiro, contada por ele próprio, com toda a eloqüente singeleza da sua linguagem expressiva e grosseira.

Tubarão disse tudo o que sabia a respeito do seu saudoso comandante e falou em Clorinda, em Henriqueta e D. Januária. Esta circunstanciou o que havia a respeito de sua filha adotiva e relatou as particularidades da mesada, cuja suspensão coincidia com a morte de Leão Vermelho.

O conde pediu perdão a Clorinda por lhe haver tão violentamente arrancado o noivo dos braços, e disse que, daquele dia em diante, ela devia olhar para Gregório como para um irmão, pois que eram filhos do mesmo pai. Mas o marinheiro, com uma simples carta de Cecília, dirigida no Porto a Pedro Ruivo, provou que os dois moços nenhum parentesco tinham entre si e, na sua rude franqueza, patenteou a verdadeira procedência de Gregório.

Este compreendeu tudo, compreendeu que era filho do ladrão assassinado, e afastou-se do júri sumamente triste.

No dia seguinte, quando o velho Jacó, que acompanhava Gregório no palácio do conde de S. Francisco na Tijuca, entrou de manhã no aposento do amo, encontrou-o morto e coberto de sangue. Ao lado, sobre o velador, havia uma carta dirigida ao dono da casa.

A carta explicava minuciosamente que Clorinda era a única pessoa que tinha direito a herdar os bens de Leão Vermelho.

Esta inesperada e nobre morte abalou o Rio de Janeiro. O processo havia já atraído sobre Gregório a atenção do público e ligado aos fatos românticos de sua vida a curiosidade dos homens e o voluptuoso interesse das mulheres.

Não se falou noutra coisa durante muitos dias.

Alguns meses depois do enterro, que foi deslumbrante, encontramos Teresa. Estava muito acabada, muito desfeita. Com a morte de Olímpia, que era o seu único socorro, ficou completamente ao desamparo. Andava tirando esmolas e rezava na porta das igrejas ajoelhada sobre as pedras da rua.

Às vezes viam-na dormindo nos degraus do convento da Ajuda.

Ninguém mais soube dar notícias do João Rosa, e consta que o Dr. Roberto continua a viver muito bem com a sua inalterável e moleirona esposa, que ultimamente o presenteou de uma só vez com dois pequenitos.

Júlia Guterres vendeu a Clorinda o seu chalezinho da Tijuca, e retirou-se para Niterói. Jacó acompanha a família do conde de S. Francisco, e, ao que parece ainda hoje vive.