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Recolhendo-me no dia seguinte, encontrei Sá que subia as escadas do hotel.

-Que fim levaste anteontem, que ninguém te viu mais?

-Voltei para casa.

-Com Lúcia, já se sabe! Ainda estás muito atrasado, Paulo. Tens o amor no meio de uma claridade esplêndida, em volta de uma mesa bem servida, sobre macios tapetes; e preferes o amor bucólico ao relento e sobre a relva!...

-Sou extremamente egoísta nesta matéria, meu amigo; só partilho o amor com a mulher que o sente.

-São gostos; mas ficaste sabendo o que é Lúcia, e entretanto ela estava de mau humor. Num dos seus bons dias, não tem que invejar às cortesãs gregas ou às messalinas romanas.

-Ela já contou-me tudo isso, Sá, respondi com impaciência.

-Pudera não! São os seus brasões de glória; e por isso previno-te. É uma mulher que só pode ser apreciada de copo na mão e charuto na boca, depois de ter no estômago dois litros de champanha pelo menos. Nessas ocasiões torna-se sublime! Fora disso é excêntrica, estonteada e insuportável. Ninguém a compreende.

-Eu compreendo-a perfeitamente. É uma moça gasta para os prazeres; ainda jovem no corpo, mas velha n'alma. Quando se atira a esses excessos de depravação, é estimulada pela esperança vã de um gozo que lhe foge; atordoa-se, embriaga-se e esquece um momento; depois vem a reação, o nojo das torpezas em que rojou, a irritabilidade de desejos que a devoram e que não pode satisfazer; nestas ocasiões tem suas veleidades de arrependimento; a consciência solta ainda um grito fraco; a cortesã revolta-se contra si mesma. Isso passa no dia seguinte. Eis o que é Lúcia; daqui a algum tempo o hábito fará dela o mesmo que tem feito das outras: envelhecerá o corpo, como já envelheceu a alma.

Sá me ouviu rindo à socapa e com malícia:

-Pois já que a compreendeste tão bem, explica-me isto.

E apresentou-me uma carta aberta, que ao tirar do sobrescrito deixou cair algumas notas do banco. Era de Lúcia, e dizia:

«O senhor enganou-se. Sou eu que lhe devo, e tanto, que não lho poderei pagar nunca.»

Senti lendo esta carta um bem-estar inexprimível.

-Que dizes? perguntou Sá.

-Digo que ela fez o que devia.

-Talvez por conselho teu?

-Afirmo-te que não sabia disto; e que soubesse, bem se importa Lúcia com os meus conselhos. Seguiu o seu próprio impulso; arrependeu-se do que fez; e te agradece a lição. Nada mais natural.

Sá olhou-me um instante:

-Somos ambos moços, Paulo; porém sou mais velho três anos de idade, e oito anos de Rio de Janeiro. A corte é um país onde se envelhece depressa; por isso não te admires se falo como um homem de cinqüenta anos. Queres te divertir: é justo, é mesmo necessário; porém não tomes Lúcia ao sério.

-Não te entendo!

-Sabes que terrível coisa é uma cortesã, quando lhe vem o capricho de apaixonar-se por um homem! Agarra-se a ele como os vermes, que roem o corpo dos pássaros, e não os deixam nem mesmo depois de mortos. Como não tem amor, e não pode ter, como a sua inclinação é apenas uma paixão de cabeça e uma excitação dos sentidos, orgulho de anjo decaído mesclado de sensualidade brutal, não se importa de humilhar seu amante. Ao contrário sente um prazer novo, obrigando-o a sacrificar-lhe a honra, a dignidade, o sossego, bens que ela não possui. São seus triunfos. Fá-lo instrumento da vingança ridícula, que todas essas mulheres prosseguem surdamente contra a boa sociedade, porque não as aplaude. O seu ciúme é fome apenas; se o amante tem alguma afeição honesta, ela torna-se confidente de seus amores, encoraja-o, serve-o mesmo, para ter o gosto de mais tarde disputar a presa. Então não há excesso que não cometa. Se for necessário aviltar o homem, ela o fará, à semelhança desses torpes glutões que cospem no prato para que os outros não se animem a tocá-lo.

-Mas a que vem este sermão, Sá? As minhas relações com Lúcia não têm nada que se pareça com o teu romance; tu me conheces bem para saber que não há mulher no mundo capaz de me atar à cauda de seu vestido, ainda quando fosse para elevar-me, quanto mais para arrastar-me na lama.

-Quando essa mulher é Lúcia, o próprio José devia temer, Paulo.

-É perigosa assim? perguntei zombando.

-A mulher de Putifar foi uma pobre moça, devorada pela concupiscência, que se atirava cega e alucinada nos braços do homem desejado. Era natural que a virtude chocada bruscamente repelisse o vício, como um corpo elástico repele outro. Essa mulher não conhecia a arte da tentação. Se ardendo em febre sensual, quando estendia a perna nua ou descobria o seio a José, tivesse a força de olhá-lo como ao cão importuno que gira em torno do festim a quem o conviva repele com o pé, não se passaria muito tempo sem que o animal exasperado se lançasse sobre o osso, que o tentava, para devorá-lo, embora soubesse que lhe atravessaria a garganta.

-Mas eu não sou José, respondi sorrindo; e prefiro a carne que me dão, ao osso, que me recusam.

-Por isso mesmo! Bebeste o primeiro trago do vinho; provaste uma vez do fruto proibido. Já conheces o amor dessa mulher: é um gozo tão agudo e incisivo que não sabes se é dor ou delícia; não sabes se te revolves entre gelo ou no meio das chamas. Parece que dos seus lábios borbulham lavas em bebidas em mel; que o ligeiro buço que lhe cobre a pele acetinada se eriça, como espinhos de rosa através das pétalas macias; que o seu dente de pérola te dilacera as carnes deixando bálsamo nas feridas. Parece enfim que essa mulher te sufoca nos seus braços, te devora e absorve para cuspir-te imediatamente e com asco nos beijos que atira-te à face!

-É verdade! disse eu lembrando-me, mas já a senti uma vez sem esse sabor agro e corrosivo.

-Porque teu paladar se vai habituando. Só conheci uma criatura assim e não era uma cortesã... Mas não se trata disto, atalhou Sá como repelindo uma recordação importuna. Quando supuseres que o tédio te invade, procurarás debalde o prazer; a mulher a mais provocante, esteja ela possessa de vinho e de amor, te parecerá morta. Eis o perigo: terás a força de resistir?

-Tu não resististe?

-Com esforço; e entretanto quando a conheci, há um ano, já tinha feito todas as minhas provas; não creio que possas dizer o mesmo.

-Mas, se Lúcia é essa mulher esquisita, insuportável e caprichosa, ela mesma se incumbirá de curar-me.

-E se eu te disser que é essa versatilidade e inconstância de humor que a torna mais excitante! Acrescenta que Lúcia tem vontade de apaixonar-se por ti.

-Oh! essa é galante! Como fizeste semelhante descoberta?

-Esta carta! O que é que Lúcia me pode dever daquela ceia, senão o teu conhecimento?

-Eu já a conhecia.

-De vista.

-Na frase da escritura, Sá.

-Ah!

-Estive em sua casa, quinta-feira.

-Bem: cumpri o meu dever de amigo; cumpre o teu de homem sensato. Adeus.

Voltei de tarde à casa de Lúcia; encontrei na sala uma das nossas companheiras de ceia. Lúcia vendo-me entrar, ergueu-se bruscamente.

-Desculpa, Laura, amanhã passarei por tua casa, e então conversaremos; agora não posso.

-Eu te deixo, mas acredita que não esquecerei nunca o favor que me fizeste.

-Não vale a pena. Adeus.

-Hei de lembrar-me sempre que sem ti, não teria amanhã onde dormir. É pequeno serviço?

-Não vês que me estás aborrecendo, Laura! disse Lúcia batendo o pé com impaciência.

-Está bem, não quero que te arrependas do benefício.

-Certamente me farás arrepender. Sabes que eu não gosto que me contrariem. Adeus.

Laura fitou nela um olhar surpreso, no qual passou rapidamente a sombra de um ressentimento; mas acabou rindo-se, e saiu depois de dizer estas palavras:

-Tu me expulsas de tua casa? Não tenho o direito de me ofender; acabas de pagar o aluguel da minha.

A porta fechada por Lúcia bateu com tanta força que as vidraças das janelas estremeceram.

Tinha assistido de parte a esse pequeno e vivo diálogo, e compreendera tudo. A alusão que Lúcia fizera na noite da ceia realizava-se; Laura recorrera a ela numa dificuldade, e acabava de receber o benefício da mão que insultara. Inda mais, sem delicadeza para compreender o motivo da contrariedade de Lúcia que desejava ocultar de mim a sua generosidade, saía maculando com uma ironia grosseira a gratidão que exprimia.

O coração de uma me apareceu vil e torpe, quanto a alma da outra se mostrava nobre, elevada e rica de sensibilidade.

Lúcia deu algumas voltas pela sala, enquanto dominava a sua agitação, e caminhou para mim risonha, meiga, e ainda resplandecente das cores vivas que uma cólera passageira abrira em suas faces, como as tempestades rápidas, que atravessam a atmosfera, deixando a natureza mais brilhante e viçosa.

-Agora é meu até?... e a última palavra desfez-se num sorriso celeste. Até amanhã! E meu só.

Inclinou a fronte, que eu beijei.

-Por que estavas há pouco tão zangada?

-Já não me lembro! respondeu com faceirice, pousando a unha rosada no lugar que os meus lábios tinham tocado. Apagou tudo! Estas horas que acabam de passar, não contam na minha vida. Dormi e sonhei. Foi o senhor que me acordou; e eu acordei rindo-me. Não viu?

-Quiseste ocultar-me; mas entendi tudo. Acabavas de fazer um benefício à mulher que te ofendeu.

-Ela não teve culpa! Foi um despeito porque não lhe deram a preferência: eu faria o mesmo. Demais, não era justo o que ela disse!

-Em todo o caso é preciso muita baixeza para pedir-se um favor à pessoa a quem se dirigiu um insulto.

-Tinha pedido antes; e nem foi o que o senhor pensa.

-Ah! Veio exigir o cumprimento da promessa feita.

-Não foi assim, não senhor. Não exigiu coisa alguma.

-E que fazia ela aqui quando eu cheguei?

-Estava me aborrecendo.

-Estava te agradecendo.

-É o mesmo.

-E por que te agradecia? Porque lhe tinhas dado o que veio pedir; o dinheiro para pagar o aluguel da casa.

-Que teimoso! Se estou lhe dizendo que ela não me veio pedir nada.

-Percebo; tu lhe ofereceste espontaneamente, e ela aceitou, porque vindo aqui não tinha outro fim.

-Meu Deus! disse com um gracioso enfado, quando eu estou junto dele, não me lembro de outra coisa; e ele esquece-se de mim para ocupar-se com Laura! Quer saber tudo? pois eu lhe digo. Fui eu quem lhe mandou ontem esse dinheiro, uma ninharia; e ela veio aqui aborrecer-me e contar as suas desgraças. Está contente?

-Não; fizeste uma esmola, é generoso; quiseste ocultá-la, é modesto; mas esqueceste que eu devia ter a minha parte nessa boa ação; e não te perdôo.

-Assim nunca remiria os meus pecados! E o que eu fiz, não é tal uma boa ação; quando chegar a minha vez de precisar, ela me dará.

-Ainda!... Deixarás de pedir-me a mim para pedir a ela?

-Disse-o sem sentir! Não precisarei de nada; de nada senão que me venha ver! Isso, fique certo que lhe pedirei todos os dias.

Tomou-me a cabeça, e reclinando-a sobre o ombro, cobriu-me de carícias.

-Hão de lhe ter dito já que sou muito avarenta. Não lhe enganaram, não! Sou; gosto de esconder assim o meu tesouro; de fazer tinir docemente as minhas moedas; de contá-las uma a uma até perder a soma; de embriagar-me como agora na contemplação de meu ouro, e estremecer só com a idéia de perdê-lo!

Cada uma dessas palavras caía através dos beijos amiudados que me sufocavam.

-Dizem que a avareza é um vício; mas desse não peço perdão a Deus, que me deu o meu tesouro, mesmo para que o escondesse do mundo, e não expusesse a maus olhados. Portanto fique sabendo, não há de vir à minha casa todos os dias como pensa!

Quis levantar-me despeitado. Ela obrigou-me a sentar; e saltando ligeira sobre os meus joelhos, desfolhou no meu rosto uma risada fresca e argentina.

-Não, senhor; não há de vir todos os dias! Ah! supunha?...

-Tinha-me enganado; não será a última vez.

-Já está me querendo mal; pois tenha paciência. Só há de entrar aqui duas vezes por semana: na segunda e na quinta-feira.

Ia interrompê-la recusando; ela tapou-me a boca.

-E há de sair nos mesmos dias; porém em vez de entrar de manhã e sair de tarde, entrará de tarde e sairá de manhã. Não lhe agrada?

-Então à exceção desses dois dias toda a semana é minha? disse não me cabendo de contente.

-Sua, não senhor, minha. Deixo-lhe dois dias para ver seus amigos... E não acha que é muito? Bastava um!

Ficou séria de repente:

-Assim ninguém desconfiará; não saberão onde está. Se lhe perguntarem, não o diga, nem mesmo ao Sá. Ele seria o primeiro que me julgaria capaz de querer fazer com o senhor o que tantas fazem com o homem que preferem. Gostam de mostrá-lo no teatro, na rua, em toda parte!

Lúcia, como vê, parecia adivinhar o que me tinham dito o Cunha e Sá para desmenti-los completamente. Entretanto, quando eu devia admirar a nobreza dessa alma, quando a mulher que acusavam de cúpida e avara, afastava delicadamente uma questão mesquinha, entregando a sua vida a um homem que mal conhecia, cujo caráter e posição ignorava, o meu orgulho me inspirava uma sórdida e estúpida lembrança. Quis responder a tanta dedicação mostrando-me também franco e liberal; mas não refleti que eu era generoso de dinheiro apenas, enquanto que ela o era de sua pessoa e liberdade, talvez de sua afeição.

-Bem, Lúcia, tu queres que eu viva quase em tua casa. Mas é preciso saber o que serei eu dela!

Olhou-me com expressão que mostrava ter lido no meu pensamento:

-O mesmo que de mim: dono e senhor.

-Então sabes quais são os meus direitos? E para começar, a carta que escrevestes ao Sá, assim como o favor que fizeste à Laura, me competem. O que te pertence, é unicamente o pensamento.

-Ele mostrou-lhe?

-Mostrou-me; e a propósito, o que é que lhe deves, que nunca lhe poderás pagar?

-O quê?... Esta sua generosidade! Acha que é pouco?

Conheci que a tinha ofendido; e pedi-lhe um perdão, que já me estava concedido.

- XI -

Encontram-se nas florestas do Brasil árvores preciosas, que, feridas, vertem em lágrimas o bálsamo que encerram.

Assim era, quando uma palavra involuntária da minha parte ofendia-lhe a suscetibilidade e banhava-lhe o rosto do pranto, que Lúcia me revelava toda a riqueza da sua alma.

As nossas relações duravam havia um mês; apenas algumas ligeiras nuvens, das que achamalotam o azul da atmosfera nas tardes calmosas, toldaram por vezes o nosso céu risonho. Mas, como brisa suave, o hálito de Lúcia as delgaçava logo, e elas se desvaneciam com um sorriso doce e carinhoso. Era eu que desastradamente acumulava sobre o nosso horizonte esses vapores do meu mau humor; e era ela que os expelia, não perdoando, mas pedindo perdão da ofensa que recebera.

A questão econômica, questão delicada em que se chocavam o seu nobre desinteresse e a minha dignidade, havia sido felizmente resolvida.

Tinha visto Lúcia esconder num vaso do toucador a chave da gaveta onde guardava o seu dinheiro. Cometi então a indiscrição de abrir uma vez por semana essa gaveta, e deitar a soma que comportava com a minha fortuna e com o luxo em que ela vivia.

A primeira vez que isso sucedeu, foi na manhã seguinte à visita de Sá; todo o dia se passou sem a menor alteração, o que me tranqüilizou, porque estava firmemente resolvido a não ceder. Já por diversas vezes Lúcia tinha aberto a gaveta; era natural que houvesse percebido; e contudo não me dissera uma palavra.

À tarde porém pareceu-me ouvir ao longe rugir a tempestade.

-Mandei comprar um camarote!

-Se querias ir ao teatro, por que recusaste o que te ofereci?

-Estou tão rica hoje! Não sei o que hei de fazer do dinheiro, respondeu sorrindo.

Veio nesse sorriso um espinho que entrou-me n'alma; olhei-a fixamente, porém já o seu rosto estava calmo e sereno. A consciência que eu tinha, de não ser bastante rico para essa mulher, pungia-me tanto e a cada momento, que à menor palavra dúbia, ao menor gesto equívoco, os meus brios se revoltavam. Farejava uma ironia até no seu próprio desinteresse, que podia ser inspirado pelo conhecimento de minha pobreza.

Mas essa foi a última ocasião em que Lúcia deu azo à minha desconfiança; desde então quando eu ia à gaveta do toucador, por mais que o disfarçasse, ela adivinhava imediatamente, não sei por que secreta revelação; e mal eu me sentava ao seu lado dizia-me com uma mansuetude e uma gratidão sublime, apertando a minha mão ao seio:

-Obrigada!

Como explicar essa rápida e extraordinária mudança? A mulher que dois dias antes se indignava com um oferecimento delicadamente feito, agora não só recebia o serviço oferecido, mas o agradecia com tanta efusão e reconhecimento! Teria nesse momento grande e urgente necessidade de dinheiro, ou a sua primeira recusa não fora sincera?

Compreenda, se pode; quanto a mim, expliquei as repugnâncias de Lúcia por um resto de pudor; e regozijei-me com as suas novas disposições, que vinham poupar-nos futuros dissabores.

Desde que os meus escrúpulos desapareciam com a posição que tomara, não havia motivo para deixar de beber a longo trago na taça do prazer, que Lúcia me apresentava sorrindo. Passava todo o meu tempo em sua casa e ao seu lado; conversávamos, ríamos, colhíamos as flores que a mocidade espargia em nosso caminho; e assim corriam as horas tecidas a fio de ouro e púrpura.

Às vezes lia para ela ouvir algum romance, ou a Bíblia, que era o seu livro favorito. Lúcia conservava de tempos passados o hábito da leitura e do estudo; raro era o dia em que não se distraía uma hora pelo menos com o primeiro livro que lhe caía nas mãos. Dessas leituras rápidas e sem método provinha a profusão de noções variadas e imperfeitos que ela adquirira e se revelavam na sua conversação. Às segundas e quintas-feiras eu saía; mas apenas tinha comprado algumas galantarias que lhe destinava, já os pés me pruriam para tomar o caminho de sua casa. Depois de três ou quatro horas inutilmente desperdiçadas, voltava ao meu berço de rosas; e por mais cedo que chegasse, sempre chegava tarde para ela, e para mim.

Lúcia tinha a poesia da voluptuosidade.

«Fazer nascer um desejo, nutri-lo, desenvolvê-lo, engrandecê-lo, irritá-lo, afinal satisfazê-lo, diz Balzac, é um poema completo.» Ela compunha esses poemas divinos com um beijo, um olhar, um sorriso, um gesto. Que de harmonias sublimes não arrancava da lira do amor com aquelas notas de sua clave voluptuosa! E a sua beleza admirável, como a sua graça infinita, davam sempre àqueles hinos do prazer uns retoques originais.

Entretanto devo dizer-lhe: nunca mais admirei essa mimosa criatura no esplendor da sua beleza. A cortesã que se despira friamente aos olhos de um desconhecido, em plena luz do dia ou na brilhante claridade de um salão, não se entregava mais senão coberta de seus ligeiros véus: não havia súplicas, nem rogos que os fizesse cair. Às vezes e quantas, ela chegava-se para mim corando, e começava a olhar-me com os seus grandes olhos negros, tão afogados em languidez, que eu percebia imediatamente o turbilhão de desejos que se agitava naquele seio ofegante. E quando a tomava nos meus braços, debatia-se esgarçando com prazer as rendas e a escumilha, até que, rendida na luta que provocava, caía trêmula e palpitante no meu peito.

Apesar de minhas instâncias, Lúcia recusava ir ao teatro, sair a passeio, ou gozar de algum dos poucos divertimentos que lhe oferecia esta insípida cidade.

-Não sei quanto tempo durará a minha felicidade; e não quero esperdiçá-la.

-Eu te acompanharei!

-Nem eu devo aceitar esse sacrifício que o comprometeria; nem que o aceitasse, me podia divertir. Não estaríamos sós!

Eis a situação em que nos achávamos quando uma manhã, passando pelo hotel, achei uma carta de convite para uma partida. O Sr. R..., a quem fui recomendado por amigos de minha província, pedia-me encarecidamente que ao menos no dia dos anos de sua senhora lhe desse o prazer de ver-me em sua casa. Realmente estava em falta para com a família, que apenas visitara com um cartão, e à qual devia muitas finezas! Era ocasião de reparar a minha descortesia.

Mostrei a carta a Lúcia:

-Deve ir, respondeu adivinhando o meu pensamento!

-Entretanto tu renuncias aos teus divertimentos por minha causa. Por que não farei o mesmo?

-Essa partida não é só um divertimento para o senhor, é também um dever.

-Assim queres que vá me divertir sem ti?

-Não o posso acompanhar! disse ela com uma expressão que significava -um abismo nos separa.

Fui à partida, que esteve brilhante. Lá a encontrei, à senhora, e à sua filha, anjo que ainda não tinha batido as asas brancas, deixando viúvas a velhice e a infância de quem tanto amara neste mundo. Havia moças lindas e elegantes, que tornavam a dança verdadeiro prazer, e não sacrifício penoso, como sucede na maior parte desses saraus, em que o convidado é apenas um instrumento de quadrilha, compasso coreográfico, que se transforma na hora da ceia em máquina gastronômica.

A Sr.ª R..., com uma amabilidade que eu decerto não merecia, esmerou-se em tornar agradáveis as horas que passei em sua casa: apresentou-me a quanto havia ali de distinto pela beleza, pela inteligência e pela virtude; e com o tato fino da mulher de salão poupava-me as banalidades cerimoniosas das apresentações, fazendo-me entrar logo na conversação que animava com a sua graça e os seus repentes felizes. A filha, gentil moça de 17 anos, fez-me a honra de uma contradança e de algumas voltas de valsa.

Confesso que fiquei fazendo melhor idéia das reuniões dançantes da sociedade fluminense.

Pouco tempo antes de retirar-me, vi Sá que me acenava de uma janela da sala de jogo, onde se abrigara para fumar. Logo ao entrar tinha-lhe falado; mas evitara a sua conversa, com receio de que me fizesse perguntas sobre Lúcia; sentia remorder-me a consciência; e pouco disposto a aceitar os seus conselhos, previa que eles me haviam de irritar tanto mais, quanto seriam prudentes e razoáveis.

-Desculpa-me: vou dançar.

-A quadrilha ainda se demora, bem sabes; mas queres me escapar!

-Que idéia!

-Queres escapar-te, sim. Cuidas que sou desses homens que perseguem os seus amigos de conselhos que nada lhes custam, porque nem sequer dão o exemplo; e com isso julgam-se quites de todos os deveres da amizade! Estás enganado, Paulo. Disse-te uma vez a minha opinião sobre as tuas relações com Lúcia; fiz o que me cumpria: o resto te pertence.

-Estava tão longe de pensar nisso agora! Como tens achado a partida? Há muito tempo não me divirto tanto!... Rostos encantadores, toilettes de gosto, excelente serviço; nada falta!

-Deixa estes elogios aos folhetinistas em cata de novidades. Compreendes que não te chamei para ouvir o teu juízo sobre a reunião do Sr. R...

-E para que me chamaste então?

-Para pedir-te um conselho.

-A mim?

-De que te admiras? Porque não os dou, segue-se que não posso pedi-los? Ao contrário!

-Vejamos que negócio importante é esse que exige o meu voto!

-Julgas que um amigo deva referir ao outro tudo o que se diz a seu respeito? Vamos, a tua opinião franca!

-Julgo que é o maior serviço que possa prestar a amizade.

-Bem. Ouve então o que dizem de ti.

-Para quê? Não dou peso à maledicência, Sá.

-Pode ser que tenhas razão; mas ouve primeiro; depois riremos juntos dessas parvoíces. Há aqui no Rio de Janeiro certa classe de gente que se ocupa mais com a vida dos outros, do que com a sua própria; e em parte dou-lhes razão; de que viveriam eles sem isso, quando têm a alma oca e vazia? Essa gente já sabe quem tu és, que fortuna tens, quanto ganhas, onde moras e como vives.

-É fácil saber; não tenho que ocultar, mercê de Deus.

-Estou convencido que poderias habitar a casa de vidro de Catão; mas infelizmente não a habitas; e portanto o mundo não vê justamente o que a tua modéstia esconde por detrás das paredes, isto é, o lado nobre e honroso da tua vida. O resto está patente.

-Mas ainda uma vez, Sá, o que pretendes com isso? Que me importa o que pensam a meu respeito? Não tenho reputação a perder.

-Mas tens reputação a ganhar. És amante de Lúcia, há um mês; e eu te conheço, sei que estás te sacrificando. Entretanto, como Lúcia não aparece mais no teatro, não roda no carro mais rico, e já não esmaga as outras com o seu luxo; como a Rua do Ouvidor não lhe envia diariamente o vestido de melhor gosto, a jóia mais custosa, e as últimas novidades da moda; sabes o que se pensa e o que se diz? Que estás sacrificando Lúcia... que estás vivendo à sua custa!

O primeiro ímpeto de minha indignação caiu sobre Sá, em quem se encarnava o insulto vago e anônimo; cometia um excesso, se o seu olhar franco e leal não me fizesse entrar em mim.

-Então! Não te ris dessa estúpida calúnia?... Tomas isto ao sério?

-Dize-me o nome de um só dos infames que se ocupam com a minha vida. O teu dever, já que assim o chamaste, o exige, e eu te peço!

-O nome?... É o mundo, a gente, a sociedade! Vai tomar-lhe satisfações.

-Mas tu ouviste de um homem?

-Que ouviu de outro e outro. Procura numa árvore a folha que gerou e nutriu a vespa que te morde?

Sá tinha razão. Senti a impotência do homem contra a calúnia impalpável que esvoaça e zune e ferroa como a vespa, e escapa nas asas à raiva e desespero da vítima. É a fábula do leão e do mosquito. Mas o que então se passou em mim lhe parecerá incrível: a minha cólera precisava desabafar-se contra alguém, e na impossibilidade de dar um corpo àquela injúria atroz, levei a ingratidão até encarná-la em Lúcia, causa inocente do que sucedia.

Ela tinha razão quando temia que as nossas relações fossem conhecidas, e quando fazia tudo por escondê-las, como se escondem à sombra as flores delicadas que o vento fresco ou o sol ardente crestam e matam.

Saí bem decidido a pôr um termo à situação vergonhosa e humilhante em que me achava colocado. As palavras de Sá me queimavam os ouvidos. Eu vivendo à custa de Lúcia, eu que esbanjava a minha pequena fortuna por ela! Mas as calúnias tinham razão em um ponto; não exibia a minha amante como um traste de luxo, ou um manequim da moda; roubava o bem que lhes pertencia, visto que não era milionário para ter o direito de possuí-lo exclusivamente.

Não me dei ao trabalho de procurar o meu tílburi e parti a pé; precisava agitar-me.

Um vulto de mulher passou rapidamente. Ao voltar a esquina, encontrei-o parado. Chegou-se a mim e ergueu o véu. Reconheci Lúcia.

-Divertiu-se muito? perguntou-me com interesse.

-Oh, muito; nem fazes idéia!

-Eu vi! disse timidamente.

Não compreendi.

-O que viste?

-Vi-o dançar, passear na sala com as moças; acompanhei-o de longe toda a noite. Estava defronte, escondida por detrás das cortinas.

Havia em face da casa do Sr. R... um miserável botequim, onde ela alugara um quarto a fim de passar a noite vendo-me. Era sublime de delicadeza, e contudo esta prova de afeição, que em outra circunstância me comoveria, pareceu-me uma perseguição insuportável, e esteve quase fazendo transbordar a minha cólera concentrada.

-Não gosto nada destas extravagâncias, que dão em resultado comprometer-me.

-Ninguém me conhece ali; e não podem adivinhar o que me trouxe. Agora mesmo, se a rua não estivesse deserta, me animaria a falar-lhe? Fique certo de uma coisa: não há nada neste mundo que eu deseje tanto como vê-lo; e me privaria desse prazer se ele pudesse trazer-lhe um dissabor.

-Com que fim vieste a essa casa? Não posso sair uma noite sem que me veja espiado! Hás de confessar que não é muito agradável; se pensas que é este o meio de me prender, estás completamente enganada. Aprecio muito a minha liberdade; deves te lembrar que entre nós não existem compromissos.

-Nem um decerto!

-Portanto não temos que espiar-nos um ao outro.

-Perdoe-me: fiz mal, não o farei nunca mais.

Calei-me.

-Diga-me ao menos que não está agastado!

-Boa-noite!

Lúcia precipitou-se para impedir-me o passo; vi um instante brilhar na sombra o seu olhar cintilante, mas logo deixou pender os braços, curvando a cabeça:

-O coração me adivinhava! O Sá!...

Continuei o meu caminho.

Era a primeira noite, depois de um mês, que passava no hotel, e longe de Lúcia; como me achei só no deserto da nova existência que ia começar!

- XII -

Meio-dia a dar no sino das torres, e eu entrando em casa de Lúcia.

Tinha refletido: essa amizade não podia continuar; se havia de desatar mais tarde, depois de me ter feito curtir mil dissabores, bom era que cessasse desde logo. Não julgue porém que estava resolvido a separar-me por uma vez de Lúcia; minha coragem não chegava a tanto. O que eu desejava era demitir de mim um título que me esmagava na minha pobreza, o título de amante exclusivo da mais elegante e mais bonita cortesã do Rio de Janeiro.

Ela recebeu-me com brandura. Tinha os olhos rubros e pisados de lágrimas; apertando minha mão, beijou-a. Que pretendia ela exprimir com esse movimento! Seria a imagem viva da humilde fidelidade do cão, afagando a mão que o acaba de castigar?

Estivemos muito tempo sem trocar palavra.

Enfim Lúcia fez um esforço, sorriu como se nada houvesse passado, e veio sentar-se nos meus joelhos, acariciando-me com a ternura e a graciosa volubilidade que ela tinha quando o júbilo lhe transbordava d'alma. Aproveitei o momento para alijar o peso que desde a véspera me acabrunhava.

-Sabes que eu não sou rico, Lúcia!

Seu olhar luminoso penetrou-me até os seios d'alma para arrancar o pensamento que inspirava essas palavras; respondeu com um pálido sorriso:

-Pensava ao contrário que era muito rico!

Ela mentia!

-Pois pensaste mal. Sou pobre, e não posso sustentar o luxo de uma mulher como tu.

-Acha pouco o que me tem dado!

-O que dei não vale a pena de ser lembrado. Falemos do que te devia dar, e não pude, porque não tinha. Neste mês que se passou, a tua vida não foi tão brilhante como era antes.

-Porque eu não quis, e não porque me faltasse coisa alguma. Nunca me achei tão rica como agora.

-Não tens sido vista nos teatros e passeios; já não tens um carro; não és enfim a mulher do tom que eu ainda conheci!

-Aborreci-me de tudo isto!

-Não te podes aborrecer sem que o mundo repare!

-Como! Não sou senhora de viver a meu modo, desde que com isso não faço mal a ninguém? Se apareço, é um escândalo; se fico no meu canto, ainda se ocupam comigo.

-Que queres! Há certas vidas que não se pertencem, mas à sociedade onde existem. Tu és uma celebridade pela beleza, como outras o são pelo talento e pela posição. O público, em troca do favor e admiração de que cerca os seus ídolos, pede-lhes conta de todas as suas ações. Quer saber por que agora andas tão retirada; e não acha senão um motivo.

-Qual? perguntou Lúcia com ansiedade.

-Supõe que eu te sacrifico aos meus ciúmes; e não me perdoa, porque não sou bastante rico para ter semelhantes caprichos.

-É isso que o incomoda! Meu Deus! Fique descansado: terei carro, aparecerei como dantes! Hoje mesmo!... Verá! Não sabe quanto me custa esse sacrifício; mas um só beijo me paga com usura!

Estalou o lábio entre os meus.

-Precisava dele para me dar coragem; agora sinto me forte.

-Aonde vais? perguntei retendo-a.

-Vou mandar a cocheira ver o meu carro; escrever à Gudin que me faça uma dúzia de vestidos os mais ricos; dizer ao caixeiro do Wallerstein que me traga para escolher o que ele tem de melhor em modas chegadas ultimamente! É verdade, esquecia-me de mandar tomar uma assinatura no teatro lírico, e encomendar uma nova parelha de cavalos. A minha caleça já está usada; preciso trocá-la por uma vitória, e renovar o fardamento dos criados. Até à noite tenho tempo para tudo. O Jacinto se incumbirá de uma parte das comissões.

Olhei para Lúcia; ou está louca, ou zomba de mim, foi a minha primeira idéia, ouvindo a sem-cerimônia e o desplante com que ela decretava um orçamento de despesa que faria estremecer o mais pródigo financeiro.

-Espera, Lúcia!

-Ainda não é bastante? Que hei de fazer mais? disse com um gesto de cômico desespero. Ah! Mandarei arranjar de novo a minha casa, e darei um baile! Que diz!

-Farás o que for do teu gosto!

-Do meu!...

-Goza da tua mocidade, é justo: tu podes e deves fazer; mas como só eu venho à tua casa e todo o mundo sabe que não sou milionário, compreendes que, se isto continuasse, suspeitariam, diriam mesmo, se já não disseram, que vivo à tua custa!

Lúcia ficou lívida; tinha compreendido.

-Então não posso dar-me a quem for de minha vontade?

-Quem diz isso? Eu é que não te posso aceitar por semelhante preço. À custa da honra... é muito caro, Lúcia!

-Ah! esquecia que uma mulher como eu não se pertence; é uma coisa pública, um carro da praça, que não pode recusar quem chega. Estes objetos, este luxo, que comprei muito caro também, porque me custaram vergonha e humilhação, nada disto é meu. Se quisesse dá-los, roubaria aos meus amantes presentes e futuros; aquele que os aceitasse seria meu cúmplice. Esqueci, que, para ter o direito de vender o meu corpo, perdi a liberdade de dá-lo a quem me aprouver! O mundo é lógico! Aplaudia-me se eu reduzisse à miséria a família de algum libertino; era justo que pateasse se eu tivesse a loucura de arruinar-me, e por um homem pobre! Enquanto abrir a mão para receber o salário, contando os meus beijos pelo número das notas do banco, ou medindo o fogo das minhas carícias pelo peso do ouro; enquanto ostentar a impudência da cortesã e fizer timbre da minha infâmia, um homem honesto pode rolar-se nos meus braços sem que a mais leve nódoa manche a sua honra; mas se pedir-lhe que me aceite, se lhe suplicar a esmola de um pouco de afeição, oh! então o meu contato será como a lepra para a sua dignidade e a sua reputação. Todo o homem honesto deve repelir-me!

Impetuosas como a torrente que borbota em cachões, ardentes como as bolhas d'água em plena ebulição, essas palavras se precipitavam dos lábios de Lúcia, em tropel e quase sem nexo. Às vezes de tão rápidas que vinham lhe tomavam a respiração, e parecia que a estrangulavam. Até que por fim um soluço cortou-lhe a voz; o seio ofegou como se o coração lhe quisesse saltar com o último grito de indignação de sua alma ofendida.

Que responder àquela lógica inflexível da paixão fazendo justiça aos prejuízos sociais? Nada. Calei-me, irritado contra os estímulos nobres que recebemos na infância e não nos permitem praticar cientemente um ato de que devamos corar.

-Tu me fazes arrepender da minha franqueza, Lúcia! disse passado um momento. Preferias que deixasse de ver-te?

-Não! Antes assim! O senhor quer!... Será feita a sua vontade! Terei amantes!

Saiu arrebatadamente e fechou-se no toucador.

Voltei, refletindo se o que tinha feito era realmente uma ação digna, ou uma refinada covardia; servilismo à inveja e malevolência social, que se decora tantas vezes com o pomposo nome de opinião pública.

Às três horas da tarde passando pela Rua do Ouvidor vi Lúcia na casa do Desmarais, cercada por uma grande roda, na qual eu distingui logo o Sr. Couto e o Cunha.

Lúcia estava rutilante de beleza; a sua formosura tinha nesse momento uma ardentia fosforescente que eu atribuí à irritação nervosa da manhã. O orgulho e o desprezo vertiam-Ihe de todos os poros, nos olhos, nos lábios, nas faces e no porte desenvolto. Ela flutuava numa atmosfera maléfica para o coração, que, entrando naquela zona abrasada, sentia-se asfixiar. A roda elegante festejava o astro que surgia, depois do seu eclipse passageiro, mais que nunca brilhante.

Atirando a réplica viva e incisiva a todos os adoradores que a cortejavam; escarnecendo da fineza, e fazendo ressaltar a zombaria contra o que a lançara, Lúcia, com a mesma liberdade que teria em sua casa, continuava a escolher na grande exposição de objetos de fantasia que cobria os balcões.

Que sentimento me obrigava a parar na loja para seguir com os olhos essa mulher, à posse exclusiva da qual eu acabava de renunciar? Que motivo estranho, vendo-a agora cercada de apaixonados, me fazia sofrer, a mim que não havia duas horas tinha assistido friamente à explosão violenta da sua cólera?

Lúcia me viu, porém não me deu atenção. Dirigiu-se ao Couto; trocando com ele algumas palavras em segredo, voltou para o caixeiro e declarou que comprava os objetos apartados, cujo preço lhe seria enviado no dia seguinte.

Vendo gesto significativo do Couto ao dono da loja, como eu, todas as pessoas presentes ficaram persuadidas que da bolsa do velho saía o dinheiro que ela acabava de atirar a mancheias de uma a outra ponta da Rua do Ouvidor.

Felizmente para mim, que já não me podia conter, o suplício terminou. Ela retirava-se. Passando junto de mim cortejou-me, e disse em vez baixa:

-Está satisfeito?

O sorriso em que ela envolveu estas palavras, caiu, se me posso assim exprimir, como a dobra de uma mortalha; tal foi a súbita lividez que lhe cobriu o rosto, e o desanimo que abateu o seu corpo.

O Couto apressou-se a oferecer-lhe a mão para ajudá-la a entrar no carro.

-Até logo! disse-lhe ela bem alto.

Podia-me restar a menor dúvida? Lúcia era amante do Couto.

Enquanto acompanhava com os olhos a cortesã desprezível que se balançava lubricitante no seu novo carro, insultando com o luxo desmedido as senhoras honestas que passavam a pé, sabe de que me lembrei? Não foi da ceia em casa de Sá, nem do mês que acabava de passar; foi unicamente da suave aparição da Rua das Mangueiras no dia da minha chegada. São extravagâncias da memória. Quem conhece o fio misterioso que leva o pensamento através do labirinto do passado a uma lembrança remota?

-Rei morto, rei posto! disse-me o Cunha, que chegara à porta para ver Lúcia entrar no carro.

-Não sei a que se refere!

-Referia-me, Sr. Silva, continuou apontando para o carro que ainda aparecia, àquele trono de sedas e veludos que vagou esta manhã, e que uma hora depois já estava preenchido.

-Enganou-se, Sr. Cunha, respondi no mesmo tom de gracejo, fui apenas regente durante uma curta vacância.

-Pois não é isso o que se dizia.

-O que se dizia então? repliquei tornando-me sério, porque as palavras de Sá me acudiram ao pensamento.

-Dizia-se que o senhor mudara o sistema de governo daquele estado, e sucedera na qualidade de autocrata aos reis constitucionais, como eu tive a honra de sê-lo em certo tempo.

-O que entende por autocrata, Sr. Cunha?

-Perdão: vejo que toma ao sério um gracejo. Mudemos de assunto; não desejo ofendê-lo.

O Couto, que nos ouvia de princípio, interveio na conversa.

-A significação da palavra é bem clara, Sr. Silva, disse com o seu fátuo sorriso.

-Se o Sr. Couto quisesse fazer-me o favor de explicá-la Tenho a inteligência embotada.

O velho calou-se com visível embaraço. Continuei pesando as minhas palavras:

-O senhor quer talvez lembrar-me que os autocratas têm o costume de tiranizar os povos e vexá-los de imposições; razão por que os povos, quando os expulsam, se tornam excessivamente exigentes para com os truões que lhes sucedem. Não é isto? Diga-me por obséquio: não faz idéia da ansiedade com que procuro desde ontem um homem que tenha a coragem de repetir-mo em face!

-Ora, o senhor está brincando!

E o Sr. Couto fez-me uma profunda cortesia, e saiu empertigando-se mais que de costume.

Voltei-me para o Cunha.

-Bem dada lição! disse estendendo-me a mão.

-Decididamente não havia meio de brigar; o homem que eu procurava fugia-me como uma sombra.

- XIII -

À noite, quando dei por mim, subia as escadas de Lúcia. Se alguém me perguntasse o que ia fazer, ficaria bem embaraçado para responder e bem admirado da pergunta.

Tinha passado o resto do dia a atordoar-me, a fazer esforços inúteis para expelir da idéia uma lembrança que me afligia; à noite não pude resistir: senti uma necessidade invencível de ver aquela mulher, que eu já aborrecia.

Tinha-a eu amado para ter o direito de odiá-la.

Lúcia estava no toucador, acabando de vestir-se. A minha entrada lhe causou alguma surpresa. O acolhimento que me fez foi triste, mas doce e afável.

-Cometi uma indiscrição talvez, usando da liberdade que me deu outrora.

-Quem fez do presente um passado já tão remoto? Não fui eu! Mas fique certo que esta casa, hoje, como ontem, como amanhã, não tem para o senhor nem portas, nem paredes.

-Renuncio de bom grado a tanta honra; prefiro esperar no topo da escada, a correr o risco de uma surpresa ridícula para ambos.

Lúcia fitou-me por muito tempo, e chegou-se ao espelho para dar os últimos toques ao seu traje, que se compunha de um vestido escarlate com largos folhos de renda preta, bastante decotado para deixar ver as suas belas espáduas, de um filó alvo e transparente que flutuava-lhe pelo seio cingindo o colo, e de uma profusão de brilhantes magníficos capaz de tentar Eva, se ela tivesse resistido ao fruto proibido. Uma grinalda de espigas de trigo cingia-lhe a fronte e caía sobre os ombros com a basta madeixa de cabelos, misturando os louros cachos aos negros anéis que brincavam.

Estava excessivamente pálida, e a cor escarlate do vestido ainda lhe aumentava o desmaio; os olhos luziam com ardor febril que incomodava, e os lábios se contraíam num movimento que não era riso nem ânsia, mas uma e outra coisa. Entretanto nunca essa mulher me pareceu tão bela; a idéia de que ela se enfeitava para outro homem irritava-me a ponto que estive para precipitar-me e espedaçar, arrancando-lhe do corpo, as galas que a cobriam.

-Ainda não a felicitei pelo seu novo amante!

-Quem não tem o direito de escolher, aceita o primeiro que lhe chega; e o mais ridículo é sempre o melhor.

-É naturalmente para ele que está se pondo tão bonita!

-Acha que estou bonita? perguntou com o sorriso que deve ter o condenado para o Sol nascente que vem alumiar o seu suplício.

-Nunca a vi tão fascinadora, nem vestida com tanto primor. Ele merece.

-Dizem que outrora ornavam-se as vítimas para o sacrifício.

-Isso foi outrora; mas hoje que os sacrifícios são incruentos, a vítima orna-se para o sacrificador; também em vez do sangue daquela, é o ouro deste que corre nas aras consagradas ao prazer.

Lúcia quis responder-me, mas reprimiu-se a tempo de sorver a palavra que já lhe espontava no lábio. Foi uma coisa que notei desde que começaram as nossas relações: esse espírito mordaz e cintilante, esse verbo rápido que não deixava sem resposta nem um motejo, se ofuscava sempre e emudecia diante de mim.

-Pode-se saber onde vai, se não é segredo? Dirige-se talvez ao templo do sacrifício.

-Vou ao Paraíso.

Tão alheio andava eu deste mundo fluminense! Nem sabia que naquela noite havia um baile público.

-Ah! vais ao baile! Então não se demore; são horas.

-Estou à espera de alguém.

-Diga do Sr. Couto; já não é segredo. E agora me lembro, a minha presença aqui pode comprometê-la; eu me retiro.

-O senhor está na minha casa; não a chamo sua para não ofendê-lo.

-Ou para que não me venham tentações de ficar.

-Quem lhe impede?

-Deveras!... Seria agradável para a senhora deixar um paciente em casa contando as horas, enquanto vai ao baile exibir a sua nova conquista, e arrular pombinhos nalgum hotel de Botafogo. Na volta esse paciente pode servir para apagar o fogo que as brumas do inverno apenas sopraram. Infelizmente, por mais inocente que seja esse pequeno manejo, não estou disposto a prestar-me a ele.

-Que gosto tem em me estar assim torturando! O senhor sabe que por mais cruel que seja a sua zombaria, não sei retorquir-lhe! Não quer que eu saia de casa? Basta-lhe dizer uma palavra!

-E a senhora ficaria?

-Duvida!

Com um movimento rápido, Lúcia correu a mão pelos cabelos, e o penteado desfez-se como por milagre, deixando cair a grinalda aos pés e rolar as tranças pelas espáduas.

Ouviu-se rumor de passos na sala.

-Não faça isto!... Aí está o Couto; ele vai ficar furioso e com razão! Pode dar algum escândalo! disse escarnecendo.

A um sinal de sua senhora, a escrava de Lúcia abriu a porta ao Couto, que entrou sem me ver.

-Ainda neste estado!... Se eu adivinhasse, tinha trazido o cabeleireiro para penteá-la.

-Não se precisa aqui desta gente! murmurou Joaquina.

-Pois faz a tua obrigação, penteia tua senhora; e se andares depressa, terás uma boa molhadura.

-Não vou ao Paraíso! disse Lúcia friamente.

-Como, minha amiga! Que capricho é este! O baile deve estar brilhante. O que há de mais chibante na corte lá se achará esta noite. Faze idéia! Venderam-se todos os bilhetes! Tão cedo não teremos outro baile como este! Bem sabes que são raros no Rio de Janeiro.

-Prefiro ficar em minha casa. O Sr. Silva toma chá comigo; estaremos sós e conversaremos mais à vontade!

Foi então que o Sr. Couto me viu sentado no sofá; desta vez não me cumprimentou. Era demais.

-Então é esse o motivo por que não vai ao baile! E foi para isso que me mandou chamar e me fez acompanhá-la esta manhã pela Rua do Ouvidor? O meio é engenhoso! Finge-se um arrufo, e põe-se o amor em leilão a quem mais der.

-Uma infâmia de mais ou de menos para quem já perdeu a conta, vale a pena que se ocupem com ela? Não vou ao teatro, repito; e peço-lhe que me deixe tranqüila.

O Couto fez um gesto soberbo, e uma saída teatral.

Tinha assistido mudo e com aparente indiferença a esse incidente; mas que rápida sucessão de sentimentos houve no meu coração! À vaidade de ver Lúcia ceder pronta e espontaneamente a um desejo meu apenas suspeitado, sucedeu o prazer da humilhação do Couto em minha presença. Depois, quando o velho libertino revelou o procedimento vil da cortesã, e esta com toda a desvergonhez apanhou a lama em que patinhava para lançá-la ao seu parceiro, senti, com o asco e o vexame de achar-me ligado a tanta miséria, um consolo imenso das torturas que sofrera naquele dia. Esses dois entes são dignos em do outro, murmurou minha alma ao coração ainda magoado.

Mas restava uma última emoção. Reatar as relações quebradas dessas duas criaturas; entregá-las uma à outra como presas destinadas a saciar a cupidez e a lascívia uma da outra; jungir o vício ardente e moço ao vício enregelado e decrépito; fazê-los arrastar na mesma canga a crápula ignóbil, ferroando-os com o aguilhão do meu sarcasmo: seria a minha vingança.

Vingança de quê? Tinha-me essa moça ofendido para assanhar em mim o ódio e os instintos perversos do coração humano? Não era eu a causa única de tudo o que se passava?

A razão dormia naquele momento. Ordenei à escrava que chamasse o Couto em nome da senhora; e o fiz com tanto império que ela obedeceu-me apesar do gesto de Lúcia.

Então voltei-me para esta:

-Agradeço-lhe muito a fineza; mas é um sacrifício que não tem o direito de fazer, e que eu não terei decerto o desfaçamento de aceitar. Esta noite a senhora não se pertence: é um objeto, um bem do homem que a vestiu, que a enfeitou e cobriu de jóias, para mostrar ao público a sua riqueza e generosidade.

-A mim?... exclamou Lúcia indignada, e continuou com sorriso amargo: Pois sim, roubei-o! E ele deve agradecer-me; porque assim leva a honra intata!

-A senhora vai ao baile!

-Morta podem levar-me; viva não.

-Então expulsa-me da sua casa. Sabe o que esse velho palhaço, que é hoje seu amante, pensava esta manhã, sem ter a coragem de o dizer? Que eu a havia desfrutado corpo e bens durante as nossas relações, e por isso era tempo da senhora indenizar-se do prejuízo! Não basta! É preciso que ele pense ainda que este pretendido arrufo foi um expediente engenhoso da minha parte para encher o cofre que esgotei!

Lúcia não me respondeu uma palavra; com a mesma vivacidade que pusera em desfazer o seu penteado, arranjou-o de novo sem alinho; e voltou-se para mim de olhos baixos e submissa, como uma escrava que esperasse a última ordem do senhor.

Que miserável animalidade havia em mim naquela noite! Quando essa pobre mulher atingia o sublime do heroísmo e da abnegação, eu descia até à estupidez e à brutalidade!

-Pois realmente capacitou-se de que eu podia ter ciúmes de um Couto! Que extravagância! Nem dele, nem de qualquer outro! Era preciso que tivesse um ciúme bem elástico para poder abarcar todos os que a senhora distinguiu e há de distinguir com os seus favores! Fique sossegada: virei alguma vez colher a minha flor; mas em ocasião que não perturbe os seus bucólicos amores. Então me contará os ridículos de seu velho amante, e afianço-lhe que passaremos uma hora divertida, rindo-nos à custa do próximo: salvo bem entendido, a cada um de nós o direito de rir-se interiormente do outro.

-Duas vezes no mesmo dia! É muito, meu Deus! exclamou Lúcia tragando um soluço.

O Couto entrava morno e carrancudo.

-A senhora arrependeu-se; e está pronta a acompanhá-lo ao baile.

-E ao senhor é que devo agradecer esta resolução repentina?

-O senhor... O senhor só tem que me agradecer uma coisa: é a minha paciência. Quanto ao baile, a senhora é livre, e eu não tive parte nem na sua recusa de há pouco, nem na sua aceitação de agora.

-Se assim não fosse, rejeitaria o favor.

-Pois saiba que vou a esse baile, disse Lúcia, unicamente porque o Sr. Silva me ordenou; e devo obedecer-lhe.

O Sr. Couto procurou o lenço e não acertou com o bolso da casaca.

-Não se esqueça de deitar um pouco de carmim! disse eu a Lúcia despedindo-me. Está horrivelmente pálida.

Ela sorriu.

-Não faz mal! Julgarão que passei a noite de ontem nalguma orgia! Faz seu efeito!

Nesse momento a mucama lhe apresentava as luvas e o leque, o mesmo do nosso primeiro encontro, e que ela costumava trazer sempre. Lúcia recuou como se uma áspide a quisesse morder.

-Esse não!

Cuida que a minha raiva brutal ficou satisfeita?

Entrei no baile aspirando no ar um faro de sangue. É verdade, tinha frenesi de matar essa mulher; porém matá-la devorando-lhe as carnes, sufocando-a nos meus braços, gozando-a uma última vez, deixando-a já cadáver e mutilada para que depois de mim ninguém mais a possuísse.

Ela lá estava sempre bela, sempre radiante. Júbilo satânico dava a essa estranha criatura ares fantásticos e sobrenaturais entre as roupas de negro e escarlate.

Junto dela descobri a Nina, que, apesar da sua graça, desaparecia completamente naquela zona que Lúcia deslumbrava com a sua reverberação. Mas eu que via com os olhos do despeito, percebi-a imediatamente.

Nina sabia das nossas relações, e ignorava ainda o desenlace muito recente. As minhas pretensões deviam pois ter para ela o encanto que acha toda a mulher em afligir outra que lhe é superior pela graça e formosura: assim explicam-se os avanços de amabilidade que me fez à custa de algum crédulo e paciente admirador; deu-me uma entrevista em sua casa depois do baile.

Mas esse favor, discretamente concedido, não me servia; era preciso que mais alguém o soubesse.

-Então, uma hora depois do baile? disse eu alçando a voz.

-Sim; mas segredo! respondeu Nina levando o dedo à boca.

-Estará só? perguntei para mais fazer ainda ouvir a minha fala.

Nina fez um momo gracioso; os ombros de Lúcia agitaram-se com um tremor nervoso.

Não conheço mais estúpido animal do que seja o bípede implume e social, que chamam homem civilizado.

Na véspera era feliz. Estava numa brilhante reunião, onde se achavam talvez as mais bonitas senhoras do Rio de Janeiro. Observando-as com o culto do belo e a religião da mulher, que é inata em mim, conhecia que em graça e atrativos não tinha que invejar ao mortal ditoso a quem elas abandonassem um dia os primores de sua mocidade. Mais linda que todas, uma mulher me esperava, que em troca da pureza que não tinha, me guardava seus imensos tesouros de voluptuosidade; ela me esperava cheia de mim; e para não deixar-me um instante, me acompanhara de longe com os olhos através do mundo que fechara-lhe as suas portas.

Bastou uma palavra, um sentimento de convenção, para que o meu orgulho destruísse a felicidade que as suas mãos delicadas tinham tecido com tanta paciência e esmero. E como remate da minha demência, depois de haver torturado aquela pobre mulher, depois de a ter insultado covardemente, acabava de entregá-la a um velho histrião, para agarrar-me à fralda da primeira saia que passava pelo meu caminho. E eu considerava isto a minha vingança!

Como tinha razão o poeta que chamou o homem um menino corpulento -puer robustus!

- XIV -

Foi uma noite horrível.

O baile terminara às duas horas. Lúcia assistira até o fim, o que ainda mais me irritou, porque eu desejava triunfar com a sua saída precipitada, depois do desprezo que lhe mostrara. «Se ela se retirasse, pensava eu, correria à sua casa para pedir-lhe perdão». Mas não acredite que o fizesse: procederia com o mesmo orgulho estúpido que me dominou no momento em que ela despediu o Couto e renunciou ao baile para ficar comigo.

Na retirada o velho esperava-a na porta, e partiram ambos de carro.

-Está acabado! disse comigo. Não pensemos mais nisto.

Porém não era coisa fácil apagar no meu espírito a profunda impressão que aí deixara gravada a imagem de Lúcia. Tomei o braço do Rochinha, que encontrei ao sair, e fomos cear no primeiro hotel que encontramos aberto. Em qualquer outra ocasião esse moço me enjoaria com a sua afetada decrepitude moral; nesse momento era um homem que podia falar-me de Lúcia e dizer mal dela.

Com efeito o Rochinha contou-me diversas anedotas escandalosas da vida de Lúcia; e concluiu dizendo:

-Não acredito ainda que esse Diógenes do Couto seja seu amante.

-Ouvi-a confessar esta noite mesmo. Saíram juntos do baile.

-Pois admira-me; porque há muito tempo que ele a persegue debalde. Lúcia tinha-lhe tal birra, que no dia em que o via, ficava de um humor insuportável.

-São coisas que passam. O velho abriu os cordões da bolsa; e o motivo da antipatia desapareceu.

-Pode ser que ela esteja agora em crise financeira; mas asseguro-lhe que a questão não era de dinheiro, não. O Couto, como todos os velhos gamenhos que compram o amor, à hora certa, é mais que generoso, é pródigo; vi-o oferecer a Lúcia somas fabulosas que ela rejeitava sempre e com desprezo.

Essas palavras me consolaram. Uma débil esperança espontou-me no coração; corri à casa de Lúcia.

A porta ainda estava aberta; Lúcia não tinha voltado! eram perto de três horas e meia, naturalmente estava em casa do Couto.

Pus-me a passear na calçada; ao surdo rodar de um carro que passava longe, aplicava o ouvido para conhecer se ele se aproximava; o rumor se desvanecia e com ele minha esperança, para ressurgir de novo, e de novo extinguir-se. Nestas alternativas sem repouso vi os primeiros clarões do dia.

Dirigi-me tristemente para o hotel e dormi, porque a fadiga me vencia.

Eis qual tinha sido a minha noite; o acordar não foi menos cruel. Sucede com as feridas d'alma o mesmo que às feridas do corpo: é quando elas esfriam, que a dor se torna aguda e lancinante. Lembrei-me do que sucedera; repassei uma a uma as circunstâncias do dia anterior; reconheci a minha grosseira imbecilidade; e a consciência de que eu tinha sido o mais culpado, devia dizer o único, exacerbava o meu sofrimento.

E essa pobre moça, a Nina, inocente da minha loucura, que talvez por meu respeito perdera o seu amante? Era a primeira vez, desde que a deixara, que me recordava dela. Devia-lhe uma desculpa; e como não tinha outra coisa que fazer, aproveitei esse pretexto para sair.

Pensava, chegando à casa de Nina, encontrar um rosto fechado, um momo despeitado, e um bom-dia atirado da ponta de um beiço desdenhoso. Qual não foi portanto a minha surpresa vendo-a precipitar-se para mim, abraçar-me com ímpeto, e atirar-me de repente pela testa e pelo rosto uma chuva de carícias que me azoou.

Afinal consegui desprender-me dos braços que me enlaçavam; ia pedir uma explicação, quando Nina atalhou-me:

-Estou muito zangada com o senhor! disse com um ar que exprimia inteiramente o contrário. Fazer-me esperar até não sei que horas!

-Confesso que cometi uma falta; mas há de me desculpar.

-Ah! Cuida que a pulseira que me mandou paga o prazer de sua companhia! Enganou-se!...

-A pulseira! balbuciei sem compreender.

-É linda que faz gosto. Não há segunda: a Lúcia não tem melhor. Também o senhor nem sabe como lhe agradeço.

E um novo granizo de beijos ia cair sobre mim; mas desta vez desviei-me a tempo.

-Está gracejando! Que quer dizer isto?

-Ora, faça-se desentendido! Já não se lembra de que me mandou pelo seu criado esta manhã?

Julguei que a moça tinha perdido a cabeça, ou que eu sofria uma mistificação.

-Ah! percebo! exclamou Nina que de seu lado também me considerava com surpresa. Queria achar-me com. ela! Tem razão.

Saiu e logo voltou trazendo um cartão meu e uma caixa de jóia que eu abri precipitadamente. Tinha reconhecido a pulseira de brilhantes que dera a Lúcia no dia seguinte à ceia do Sá.

Entrei no primeiro tílburi que passou, e atravessei as ruas a galope.

Lúcia estava atirada a um sofá de bruços nas almofadas que escondiam-lhe o rosto. Tinha o mesmo vestido de seda escarlate que levara ao teatro, porém amarrotado, com as rendas despedaçadas e os colchetes arrancados da ourela, onde se viam os traços evidentes das unhas. Os cabelos em desordem flutuavam sobre as espáduas nuas; a grinalda despedaçada, o leque e as luvas jaziam por terra; numa cadeira ao lado estavam amontoadas todas as suas jóias.

Vendo-me, ergueu-se de um salto e quis precipitar-se para mim; porém decerto o meu olhar cru a conteve, porque deixou-se cair sentada sobre o sofá em que estava. Sentei-me também, e incomodado; viera com uma cólera violenta; mas começava a sentir-me mau e pequeno diante dessa mulher sublime nas suas paixões. O seu rosto pisado, os olhos injetados de sangue e febricitantes ainda aumentaram o meu vexame.

Peguei maquinalmente nas jóias que estavam sobre a cadeira.

-Estas jóias são de muito valor!... Mas falta aqui uma, a mais insignificante! Não era digna por certo de brilhar no seu braço; atirou-a de esmola a alguma mendiga, e deu uma lição ao bobo que teve a ousadia de oferecer-lhe semelhante miséria. Aquilo quando muito, é o preço de uma noite de qualquer mulher à-toa, da Nina por exemplo.

Ela tinha-se erguido trêmula; e foi-se a pouco e pouco retraindo até cair de joelhos.

-Foi uma loucura, e eu mereço toda a sua cólera. Mas para que me fazer penar assim, meu Deus! Que prazer lhe podia dar essa mulher?... Não me tinha a mim? Uma escrava humilde, pronta para lhe obedecer, e que em paga de tanta submissão só lhe pedia que a não expulsasse!

-E a senhora não chamou um velho desprezível para sua casa?

-É tão diferente! Eu! Não fui atirada contra minha vontade à lama de que desejava erguer-me? Recuando ainda, não fui à noite repelida cruelmente e lançada nos braços desse homem, que no meu desespero eu procurei, por ser mesmo o ente mais vil e ignóbil que eu conheço; pois era preciso que o suplício fosse bastante violento para matar-me logo, e sem lenta agonia! No baile, apesar de tudo, não esperei uma palavra, um sinal para correr a seus pés, e suplicar-lhe como agora o meu perdão!

Lúcia pousou a cabeça sobre os meus joelhos, sufocada pelo pranto; e eu não a ergui logo e não a apertei ao meu seio, porque achei-me tão infame a par dessa mulher, que sentia um vexame insuperável. Por fim levantei-a nos meus braços, e confesso que foi corando de vergonha.

-Quem deve pedir perdão desta como de todas as vezes, Lúcia, sou eu: mas não o mereço, não.

-Basta! Já me falou como outrora! Disse o meu nome! Que mais quero eu saber? Esqueci tudo.

-Deixa-me falar; não me interrompas. Sou um miserável, indigno de ti. Eu só com o meu orgulho estúpido fui causa do que temos sofrido; mas é justo que a punição recaia sobre mim unicamente. Se a idéia de que tive um instante aquela mulher, te aflige, expele a lembrança desse mau sonho; pisei em sua casa pela primeira vez hoje, há meia hora. Vi a pulseira, compreendi tudo, e corri até aqui!

Que êxtase de bem-aventurança foi o de Lúcia quando ouviu a confissão que eu lhe fazia! A mulher quebrada de fadiga, prostrada por uma noite de vigília e de violentas emoções, transfigurou-se de repente: o anjo de suave beleza surgiu na sua auréola luminosa, ao bafejo de uma felicidade celeste.

-Passei esta noite, continuei, cheio de teu pensamento e de tua imagem. Às duas horas estive aqui, não te disseram? Esperei-te passeando na calçada até quase ao amanhecer; e as torturas que eu sofri é impossível dizer. Mas eu a procurei; não me posso queixar de ti, não tenho que pedir-te contas! Fui eu que te arrastei à força, louco que eu estava.

-Não fale mais nisso! Acabou; foi um pesadelo que tivemos. Esqueça tudo! Eis o que vai apagar para sempre essa lembrança importuna.

Dizendo isto Lúcia estendeu-me o lábio risonho; eu recuei como se visse por entre o carmim brilhar o dente de uma víbora. Ela empalideceu.

-Nunca mais, eu juro, Lúcia, tu me ouvirás as palavras que ontem te disse; nunca mais também me verás rejeitar por causa das calúnias de alguns miseráveis as provas de tua afeição. Mas esse beijo, agora!… Não! não o posso aceitar, e não me perguntes a razão!

Lúcia cobriu-me com um olhar límpido, raio de luz de sua alma; o seu sorriso era sublime de candura.

-Aquele homem não tocou no meu corpo, porque até a mão que roçou na sua, estava calçada com esta luva, que eu já despedacei, disse estendendo a ponta do pé. Mas tem razão, bastava o seu hálito para manchar. Olhe para mim. Quando eu despir esta roupa, despirei trapos que para nada servem!

Foi então que reparei na desordem de seu traje.

-Não me enganas, Lúcia?

-Que juramento quer que lhe dê? O mais sagrado!... Se não fosse assim, teria ânimo de falar-lhe, de vê-lo ainda! Também eu, não sabe? Estive na rua até quase ao amanhecer, olhando a casa onde supunha que o senhor apertava nos braços outra mulher! Não se morre de dor, porque eu não morri esta noite!

-Não me devias dizer semelhante coisa para me punir!

Fui eu que procurei então o lábio que ela há pouco me oferecera.

-Espere!...

Lúcia demorou-se algum tempo. Quando apareceu, saía do banho fresca e viçosa. Trazia os cabelos ainda úmidos; e a pele rorejada de gotas d'água. Rica e inexaurível era a organização dessa moça, que depois de tão violento abalo parecia criar nova seiva e florescer com o primeiro raio de felicidade!

Fora o acaso ou uma doce inspiração, que arranjara o traje puro e simples que ela trazia? Tudo era branco e resplandecente como a sua fronte serena: por vestes cassas e rendas; por jóias somente pérolas. Nem uma fita, nem um aro dourado, manchava essa nítida e cândida imagem. Creio antes na inspiração. Lúcia tinha no coração o germe da poesia ingênua e delicada das naturezas primitivas, que se revela por um emblema e por uma alegoria. Ela me dizia no seu traje, o que nunca se animaria a dizer-me em palavras, que estava tão pura como eu a tinha deixado, do contato de outro homem.

Lúcia expandia-se com tal efusão de contentamento, que, se há felicidade neste mundo, devia ser a que ela sentia. Entretanto, passada essa primeira e fugace irradiação, achei-a fria, quase gelada; apenas respondia às minhas carícias ardentes e impetuosas. Naquele momento atribuí à prostração natural depois de tão fortes emoções; porém me enganava.

A frieza continuou aumentando de dia em dia, até que uma vez não me pude conter:

-Parece-me que já te aborreceste de mim, Lúcia!

-Creio que estou doente! sofro tanto!

-De quê? Dessa moléstia do coração de que já me falaste?

Fugiu-lhe pelos lábios um sorriso sinistro.

-Sim; dessa moléstia do coração que me há de matar!

E então, como para desvanecer a impressão que me deixara a sua frieza, atirava-se aos meus braços com uma espécie de frenesi; mas a sua ternura tinha um desabrimento e rispidez que me lembravam as palavras de Sá, e as impressões acres da primeira vez que possuíra esta mulher.

A minha Lúcia dos bons dias, que aveludava-se no estreito enlace com que me cerrava ao seio, que diluía-se de gozo engolfando-me num mar de voluptuosidades, que aspirava-me a vida num beijo para vazá-la de novo e gota a gota: essa, eu só revia nas minhas doces recordações; porque a realidade fugia-me, quando a buscava com desespero.

Esqueci-me de lhe contar um incidente que se passou na mesma manhã da nossa reconciliação. Quis sair um momento para ir pagar as dívidas que Lúcia fizera na véspera.

-Já estão pagas! me respondeu sorrindo e mostrando os recibos.

-Por quem? perguntei com severidade.

-Por mim! Quem, senão eu, tinha o direito de pagá-las?

-Mas ontem o Couto te acompanhava...

-O senhor queria que eu tivesse amantes! disse Lúcia entristecendo. Mandei chamar esse velho. Não sabe por quê?... Antes quereria dar-me a um escravo, do que vender-me a ele por todo o ouro deste mundo!

-E a tua pulseira? Ficarás sem ela?

-Psiu! fez Lúcia levando o dedo à boca e baixando a voz. Não fale mais nisso! Deixa-a ir; queimava! Ficou-me a sua lembrança!

Tirou então o adereço de azeviche que eu lhe tinha dado.

-Apareceu enfim!

-Ainda não se passou um só dia sem que o trouxesse uma hora pelo menos.

-Nunca te vi com ele.

-Não se lembra do motivo?... Agora já não preciso escondê-lo! Vale os brilhantes que perdi.

Desde então realmente a sua predileção por aquelas jóias tornou-se uma espécie de fetichismo para esse coração, que por muito tempo ermo e vazio, sentia ardente sede de afeição.

- XV -

Decorreram vinte dias.

Chegando uma tarde vi Lúcia assustar-se e esconder sob as amplas dobras do vestido um objeto que me pareceu um livro.

-Estavas lendo?

Ela perturbou-se.

-Não, estava esperando-o.

-Quero ver que livro era.

Meio à força e meio rindo consegui tomar o livro depois de uma fraca resistência. Ela ficou enfadada.

Era um livro muito conhecido -A Dama das Camélias. Ergui os olhos para Lúcia interrogando a expressão de seu rosto. Muitas vezes lê-se não por hábito e distração, mas pela influência de uma simpatia moral que nos faz procurar um confidente de nossos sentimentos, até nas páginas mudas de um escritor. Lúcia teria, como Margarida, a aspiração vaga para o amor? Sonharia com as afeições puras do coração?

Ela tornou-se de lacre sentindo o peso de meu olhar.

-Esse livro é uma mentira!

-Uma poética exageração, mas uma mentira, não! Julgas impossível que uma mulher como Margarida ame?

-Talvez; porém nunca desta maneira! disse indicando o livro.

-De que maneira?

-Dando-lhe o mesmo corpo que tantos outros tiveram. Que diferença haveria então entre o amor e o vício? Essa moça não sentia, quando se lançava nos braços de seu amante, que eram os sobejos da corrupção que lhe oferecia? Não temia que seus lábios naquele momento latejassem ainda com os beijos vendidos?

-O amor purifica e dá sempre um novo encanto ao prazer. Há mulheres que amam toda a vida; e o seu coração, em vez de gastar-se e envelhecer, remoça como a natureza quando volta a primavera.

-Se elas uma só vez tivessem a desgraça de se desprezar a si próprias no momento em que um homem as possuía; se tivessem sentido estancarem-se as fontes da vida com o prazer que lhes arrancavam à força da carne convulsa, nunca mais amariam assim! O amor é inexaurível e remoça, como a primavera; mas não ressuscita o que já morreu.

-Pelo que vejo, Lúcia, nunca amarás em tua vida!

-Eu?... Que idéia! Para que amar? O que há de real e de melhor na vida é o prazer, e esse dispensa o coração. O prazer que se dá e recebe é calmo e doce, sem inquietação e sem receios. Não conhece o ciúme que desenterra o passado, como dizem que os abutres desenterram os corpos para roerem as entranhas. Quando eu lhe ofereço um beijo meu, que importa ao senhor que mil outros tenham tocado o lábio que o provoca? A água lavou a boca, como o copo que serviu ao festim; e o vinho não é menos bom, nem menos generoso, no cálice usado, do que no cálice novo. O amor!... O amor para uma mulher como eu seria a mais terrível punição que Deus poderia infligir-lhe! Mas o verdadeiro amor d'alma; e não a paixão sensual de Margarida, que nem sequer teve o mérito da fidelidade. Se alguma vez essa mulher se prostituiu mais do que nunca, e se mostrou cortesã depravada, sem brio e sem pudor, foi quando se animou profanar o amor com as torpes carícias que tantos haviam comprado.

Lúcia falou com uma volubilidade nervosa. Às vezes o rosto se tornava sombrio e torvo para esclarecer-se de repente com um raio de indignação, que cintilava na pupila; outras, a sua palavra sentida e apaixonada estacava no meio da vibração, afogando num sorriso de desprezo.

-E houve um homem que aceitasse semelhante amor?

-Ele também a amava; e certamente não pensava como tu.

-Mas é impossível amar uma mulher que se compra, e se tem apenas a desejam! A menos que não se ame por especulação e cálculo para obter-se de graça o que não se pode pagar.

-Seria uma infâmia! Não dês a isto o santo nome do amor.

-E podemos nós ser amadas de outro modo? Como? Arrependendo-nos, e rompendo com o passado? Talvez o primeiro que zombasse da mísera fosse aquele por quem ela desejasse se regenerar. Pensaria que o enganava, para obter por esse meio os benefícios de uma generosidade maior. Quem sabe?... suspeitaria até que ela sonhava com uma união aviltante para a sua honra e para a reputação de sua família. Antes mil vezes esta vida, nua de afeições, em que se paga o desprezo com a indiferença! Antes ter seco e morto o coração do que senti-lo viver para semelhante tortura.

-Está bem: deixemos em paz A Dama das Camélias. Nem tu és Margarida, nem eu sou Armando.

-Oh! juro-lhe que não!

Esse juramento teve uma solenidade que me pareceu caricata. Ou porque o percebesse, ou por uma das inexplicáveis transições que lhe eram freqüentes, Lúcia soltou uma gargalhada.

-Realmente este livro não presta. Nem quero acabá-lo. Cometeu-se aí um sacrilégio literário.

As folhas deste primor da escola realista voaram despedaçadas pelas mãos crispadas de Lúcia, que parecia antes estrangular uma víbora, do que rasgar o livro inocente que tivera a infelicidade de irritar-lhe o humor.

Tinha ido levar a Lúcia um bilhete de teatro, que ela aceitou. As nossas relações tinham-se modificado insensivelmente, depois do choque violento que sofreram.

Há de ter visto em nossas matas algumas árvores estreitamente abraçadas pelas delgadas enrediças que lhes cingem o tronco, confundindo na mesma copa as suas folhas e flores. Um dia vem a borrasca que abala com rudeza o arvoredo: não conseguem os ímpetos da ventania quebrar os elos que prendem as duas plantas amigas; porém a enrediça deslizando inclinou para a terra. Volta a bonança: a seiva expande-se com as águas que passaram; o pâmpano tocando o chão começa se lastrar; a haste da árvore desassombrada se lança. No ano seguinte, quando de novo por aí passar, verá o tronco nu e isolado, e o verde dossel bordado de flores que o cobria se estenderá ao longe humilde e rasteiro.

É a imagem fiel do que nos acontecera. O mundo soprando o seu hálito frio na intimidade de nossa existência não tinha podido separar Lúcia de mim; porém o estame delicado de sua vida desprendeu-se do meu seio, onde ela o escondera e abrigara. A flor mimosa de sua alma talvez sentisse que a sombra das ramas ia faltar-lhe contra os sóis abrasadores, como a proteção do tronco contra os vendavais. E inclinou-se, langue e desfalecida. Eu, que a devia erguer, não o fiz, porque também sentia o mundo que me impelia; as aspirações do futuro me chamavam à vida de estudo e trabalho.

Involuntariamente pois, sem queixas nem recriminações, apenas com uma doce saudade dos tempos que fugiam rápidos, ambos cedíamos a uma lei natural, e víamos afrouxarem os laços que nos uniam. Lúcia, sempre meiga e terna para mim, não podia já esconder a frieza com que recebia o gozo que outrora era a primeira a provocar. Quando as minhas instâncias redobravam, ela, que a princípio se expandia entre o rubor, sorria constrangida como uma escrava submissa ao aceno do senhor.

Eu assistia em silêncio a essa transformação. Algumas vezes tentava ainda soprar naquelas cinzas para ver se ateava uma chama do intenso fogo que lavrara ali; mas esmorecia, porque já o frio me ia invadindo; e só colhia as pálidas rosas que ainda espontavam breves e rápidas como flores de chuva. Contudo, ou por um doce hábito, ou por uma misteriosa influência do passado, preferia a frieza dessa mulher aos transportes de qualquer beleza; guardava-lhe sem sacrifício, como sem intenção, uma fidelidade exemplar.

Não se admire pois se eu lhe disser que já não ia todos os dias à casa de Lúcia, apesar de suas instâncias; contudo sentia que a minha presença ainda lhe era agradável, e que ela a desejava, senão ardentemente, com uma doce emoção. Parecia que o prazer fugindo deixava a amizade calma e serena.

Qual era a existência de Lúcia durante o tempo que não passava em sua casa? Ignorava completamente; tinha até receio de conhecê-la; quando nalgum círculo a conversa caía sobre ela, de ordinário me retirava. Adivinha a razão. Lúcia não tinha compromissos para comigo; devia usar de sua liberdade; se eu lhe havia guardado uma fidelidade espontânea, não tinha por isso direito de exigir retribuição, sobretudo depois que minhas visitas se tornavam mais curtas e menos freqüentes.

Contei-lhe tudo isto a propósito do teatro, onde nos devíamos encontrar.

Lá estava a família do Sr. R... a quem fui cumprimentar apenas caiu o pano. A mãe, absorvida por uma velha titular, que lhe contava maravilhas do teatro S. João, depois de acolher-me com a sua costumada amabilidade, deixou-me à filha, que estava desesperada por achar um cúmplice para a inocente crítica feminina. Não tendo nada que me ocupasse, entretive-me mais tempo do que era natural com essa conversa, que não deixava de ser agradável para quem aprecia como eu a botânica da flor viva, gênero zoófito, que se chama mulher. A menina às vezes debruçava-se para comunicar-me alguma observação mais cáustica; e eu tinha ocasião de sentir um hálito fragrante, e entrever na sombra a marmórea saliência de um seio virgem.

Saindo vi sentada na porta do seu camarote uma das poucas lorettes de Paris, que por um belo dia de inverno, como verdadeiras aves de arribação, batem as asas, atravessam o Atlântico, e vêm espanejar-se ao sol do Brasil nas margens risonhas da mais bela baía do mundo. Ela tinha e tem, com a cor da Espanhola e os cabelos da Italiana, a suprema elegância do passo e da atitude que o solo parisiense inocula pelas plantas de suas filhas prediletas. Admirava e conhecia essa mulher de a ter encontrado algumas vezes, mas as nossas relações não passavam de uma polidez mútua.

Vendo-a, tive como um pressentimento de que essa mulher era a única que poderia apagar a lembrança de Lúcia. Levado por semelhante idéia, e também por esse desejo que temos todos de tocar com o ciúme o ouro de uma afeição, a fim de lhe conhecer o quilate, aproximei-me: conversamos alguns instantes.

Não sei se a senhora achará prazer na leitura destas cenas sem colorido, estirado diálogo entre dois atores, raro interrompido pelo mundo, que lhes atira um eco de seus rumores. Já tenho tido vezes de arrependimento depois que comecei estas páginas, que eu podia tornar mais interessantes, se as quisesse dramatizar com sacrifício da verdade: porém mentiria às minhas recordações e à promessa que lhe fiz de exumar do meu coração a imagem de uma mulher.

Fui ver Lúcia. Ela estava pensativa e distraía-se continuamente para fitar o óculo na direção do camarote do R... Nem uma palavra a respeito da francesa, o que me contrariava, como deve supor.

-Ainda há pouco te vi de um camarote!

-Onde está uma família?

-Não, de outro mais chegado à cena, disse sorrindo.

-Sei, também o vi na porta.

-É uma bonita mulher, não achas? repliquei fingindo indiferença, mas realmente humilhado pela calma e sossego de Lúcia.

-Não conheço nem uma no Rio de Janeiro, nem mais bonita, nem mais graciosa. Merece todas as atenções de que a cercam.

-Estive conversando com ela; achei-a muito agradável. Se não tivesse receio de desgostar-te, iria vê-la.

Lúcia calou-se e levou o binóculo aos olhos. Era demais; nem sequer um despeito simulado. A consciência de sua infidelidade a pungiria tanto que se reconhecia indigna até de fingir ciúmes? Ou desejava ela ver romper-se o último véu que ainda nos ocultava a ambos a realidade de uma afeição partida?

-Sabes o provérbio, Lúcia. Quem cala, consente.

-Como! Não ouvi! disse-me retirando o óculo e voltando-se para mim com a expressão lesa de quem procura apreender uma idéia no vácuo da memória.

-É indiferente para ti que eu veja aquela francesa! O teu silêncio é claro!

-Tenho acaso o direito de me queixar? disse com melancolia. O prazer que ela lhe promete, sinto que já não posso dá-lo.

-Porque não queres; porque já não és a mesma!

-Não decerto, não sou a mesma! Mudei tanto!

-Para mim unicamente!

Ela fitou-me com um olhar ingênuo. Hoje que me lembro da expressão desse olhar leio nele perfeitamente: Vive no mundo alguém mais? Era a frase muda de seus olhos.

Lúcia ergueu de novo o binóculo.

-Aquela família com quem esteve não é a mesma que o convidou para a partida? A filha é muito bonita! O senhor dançou com ela!

- XVI -

Dias depois estava em casa de Lúcia; conversávamos tranqüilamente como dois bons amigos num momento de expansão.

Ela me contara vagamente, sem indicação de datas nem de localidades, as impressões de sua infância passada no campo entre as árvores e à borda do mar; seu espírito adejava com prazer sobre essas reminiscências embalsamadas com os agrestes perfumes da mata, e por vezes a poesia da natureza fluía no seu ingênuo entusiasmo.

Pela primeira vez também, desde o momento em que a conhecera, Lúcia se mostrara curiosa a respeito do meu passado, de minha família, e de minhas ambições de futuro. Até então só conhecia de mim o meu nome e a minha pessoa; nem mostrava desejar mais. Os meus sentimentos, a minha vida íntima era um mundo em que se julgava profana, e no qual não ousava ou não queria mesmo penetrar.

Já tinha por vezes refletido nessa abstenção, a qual aparentemente denotava que Lúcia só estimava em mim o homem exterior; o moço que encontrara num dia de desenfado, e que lhe agradara pela figura, pelos modos, ou antes por capricho seu. Pouco lhe importando saber donde vinha e para onde ia esse companheiro de viagem, unira-se a ele para amenizar, durante o tempo que seguissem o mesmo rumo, os incidentes do caminho e a solidão do pouso.

Naquele dia, pois, satisfazendo o seu desejo, falei-lhe pela primeira vez do meu verdadeiro eu; das minhas esperanças, das minhas afeições, dos meus sonhos. Ela ouvia tudo com evidente interesse: o nome de uma pessoa querida por mim, ou de parente ou de amigo; uma data de família; uma localidade que fora teatro de algum dos pequenos acontecimentos da vida; tudo se gravara tão rápida e profundamente no seu espírito, que as suas observações não pareciam de quem acabava de ouvir, mas de quem acompanhara dia por dia os fatos que eu lhe contava. Identificando-se com a minha alma, graças à admirável flexibilidade do senso íntimo da mulher, ela sentia e comovia-se, recordando as minhas afeições; e nutria-se das minhas ambições, sonhando com elas, e dourando-as aos reflexos de sua rica imaginação.

Lúcia trazia nessa manhã um traje quase severo: vestido escuro, afogado e de mangas compridas, com pouca roda, simples colarinho e punhos de linho rebatidos; cabelos negligentemente enrolados em basta madeixa, sem ornato algum. Em vez dos pantufos aveludados que costumava usar em casa, no desalinho, calçava uma botina de merinó preto, que ia-lhe admiravelmente, porque ela tinha o mais lindo pé do mundo. Quando o vento que entrava pela janela erguia indiscretamente a fímbria da saia, apesar do movimento rápido que a conchegava, descobria-se a volta bordada de uma calça estreita, cerrando o colo esbelto da perna divina.

O homem é um sistema de contrariedade.

As confidências mútuas, as expansões d'alma despegada do seu invólucro material, o recato austero do traje que ocultava belezas criadas para viver em plena luz e ao ar livre, como as flores do trópico, deviam alhear-me os sentidos. Mas bem longe disso, no fim da nossa conversação remordiam-me as recordações. Meu olhar insinuava-se perfidamente pela abertura do colarinho modesto que cingia uma garganta pura, espreguiçava-se pela seda avara que entufava a marmórea rijeza de um seio comprimido; enleava-se nas pregas fofas que quebravam a harmonia das formas.

Tomei as mãos de Lúcia sorrindo, e meus olhos foram à porta vendada de sua alcova. Ela ergueu-se rapidamente, e disse-me com um modo ríspido:

-Vou sair!

Era a primeira recusa que eu sofria.

O constrangimento de Lúcia tinha ido sempre em aumento; mas nunca, até ali, o meu desejo encontrara uma resistência; nunca uma desculpa, um pretexto, o contrariara. Ainda pronta para sair, no momento de entrar no carro, já no teatro ou no passeio, bastava uma palavra minha para fazê-la voltar, muda e fria, é verdade, mas obediente e resignada. Em qualquer ocasião, a qualquer hora do dia ou da noite, se meu lábio procurava o seu, achava-o, seco e áspero, mas dócil à carícia.

-A que horas voltas?

-Não sei; é natural que me demore.

-Até à noite, então.

À noite, quando voltei, queixava-se de uma indisposição. Repeliu-me ainda; só abracei um corpo convulso e gelado que me assustou; sobretudo quando, levando as mãos à cabeça, soltou um gemido plangente e doloroso.

Estava realmente doente; respeitei-a. Às nove horas, apesar de minhas instâncias para ficar velando-a na sua enfermidade, obrigou-me a sair, e disse-me adeus sem acrescentar, como tinha de costume:

-Até amanhã.

Era também a primeira vez que a minha presença parecia contrariá-la. De manhã soube que o seu incômodo se agravara durante a noite. Achei instalada em sua casa, como enfermeira, uma tal Sr.ª Jesuína, mulher de cinqüenta anos, seca e já encarquilhada, com quem embirrei solenemente desde o momento em que a vi. Essa insuportável criatura não deixava um momento a borda do leito; e quando alguma vez eu tomava as mãos de Lúcia, ou reclinava-me para ela, quando meus lábios iam roçar a flor de seu rosto, a Sr.ª Jesuína tinha sempre um remédio a dar, um travesseiro a endireitar, uma recomendação a fazer.

Um dia retirando-me, a velha acompanhou-me até a sala; aí no meio de biocos e gatimanhos, deu-me a entender que o médico proibira terminantemente a Lúcia o menor excesso, que lhe podia ser fatal.

-Mas qual é a moléstia de Lúcia?

-Não me recordo; esses nomes de medicina são tão esquisitos! A moléstia agora não vale nada; amanhã está de pé; e num mês pode ficar inteiramente boa. Somente nada de excesso!

A velha carregou na palavra, piscando os olhos pequeninos.

-Pode custar-lhe a vida! acrescentou.

-Qual é o médico que trata dela?

-Um tal... Não me lembro agora. Mas é bom doutor.

-A que horas costuma vir?

-Não tem hora certa. Quando o senhor chegou, tinha saído.

-Onde mora?

-Nem sei! Ele disse; porém já me esqueci!

Desejava falar ao médico para saber com certeza o estado de Lúcia; não o consegui porém. No dia seguinte já encontrei Lúcia na sala, ainda abatida, mas sem sofrimento algum.

Decorreu uma semana. Lúcia tinha-se restabelecido completamente; continuávamos as nossas longas conversas de outrora, mas não a sós. A Sr.ª Jesuina ficara a título de caseira ou dama de companhia; encontrava-a invariavelmente repimpada numa cadeira de balanço, a dois passos de Lúcia, lendo uma coleção de novelas em que brilhavam Zaíra, e os Azares da Fortuna. Se alguma vez Lúcia se levantava, a Sr.ª Jesuína atirava com um movimento da cabeça os óculos de tartaruga sobre a ponta do nariz, e seguia-a para lhe perguntar se queria um refresco, um banho, o jantar, a roupa para sair, ou qualquer outra coisa.

Afinal não me pude ter.

-Já estás boa, Lúcia; não precisas mais de enfermeira. Que faz aqui esta velha?

-Faz-me companhia. Vivo tão só!

-Outrora a minha companhia te bastava.

Não me respondeu.

-Manda-a embora!

-Não é possível; preciso dela, mesmo para o arranjo da casa.

-Bem; como eu não a posso suportar, não voltarei enquanto ela aqui estiver.

A Sr.ª Jesuína tinha ouvido, o que me era completamente indiferente. Lúcia abaixara a cabeça e ficara pensativa; ao retirar-me, quando me apertava a mão, disse:

-Não a encontrará mais!

De fato no outro dia não encontrei a Jesuína. Lúcia estava só; todos os obstáculos e contrariedades que sofria depois de duas semanas, me tinham irritado; creio que fui até violento e grosseiro; mas debalde. A resistência era tenaz e friamente calculada. Um momento, enquanto se debatia nos meus braços, o egoísmo cruel que às vezes faz do homem uma fera, e lhe dá instintos carniceiros, levou-me a dizer-lhe com escárnio:

-É a recomendação do médico? Tens medo de adoecer!

-Se fosse isso! Ainda quando soubesse que morreria nos seus braços... Que morte mais doce podia eu desejar. Não; não é esse o motivo. Não houve tal recomendação, nem aqui veio médico. Repugna-me enganá-lo: tudo foi uma mentira daquela mulher.

-Não estiveste doente? perguntei admirado.

-Tive uma ligeira indisposição. Naquele dia em que saí, andei muito e apanhei bastante sol; quando voltei, tinha dores de cabeça horríveis. O senhor chegou... E naquele momento cuidei que ia ter uma vertigem. Mas passou!

-E a que veio a história daquela velha?

Lúcia perturbou-se e a custo balbuciou esta explicação:

-Chamei esta mulher para junto de mim porque tinha medo de estar só com o senhor.

-Ah!

-Ela inventou a mentira, de que eu não gostei; mas não tive ânimo de desenganá-lo!

-E por que receias estar só comigo, Lúcia?

Ela hesitou; por fim prorrompeu-lhe a voz do seio arquejante:

-Porque não posso fazer-lhe a vontade... Não! Sofro horrivelmente!

-Isto quer dizer que eu te incomodo vindo aqui.

-Ao contrário, meu Deus! É a única alegria que tenho neste mundo. Dê-me esse consolo! Venha conversar comigo! Todos os dias!...

-Tenho agora muito que fazer: estou tratando de estabelecer-me. A tua conversa é bastante agradável, mas falta-me o tempo!

-E nos domingos?...

-Ora Lúcia, sejamos francos. Melhor é confessares que eu te importuno. Já sabia disso; não me dirias nada de novo.

Quer saber o que respondeu?

-Se lhe incomoda vir aqui, eu irei vê-lo.

-Para conversar?...

Deixou pender a cabeça abatida.

-Para isso, continuei, não se incomode. É até favor não ir; porque vendo-a não me saberei dominar, e posso causar-lhe algum horrível sofrimento.

-É justo! Servi apenas para matar um desejo! E hoje nem para isso!...

Ainda voltei uma vez à casa de Lúcia.

Era natural; à medida que eu sentia essa criatura desapegar-se de mim, agarrava-me a ela com a ânsia do náufrago. Suspeitava que Lúcia tinha um amante. Queria desenganar-me; o acaso favoreceu-me.

Vi entrando na sala um objeto que pela sua novidade atraiu logo a minha atenção. Era um elegante vaso de cristal cor de leite, representando uma tuberosa; a flor que lhe servia de bocal ostentava uma camélia soberba; o ciúme, que é instinto e faro da paixão, descobriu logo entre o pé do vaso e o mármore do consolo a ponta de uma carta em papel rosa.

Lúcia teve um sobressalto quando entrei. Podia ser um assomo de alegria, por me ver depois de três dias de ausência; podia ser também um movimento de contrariedade. Atribui ao segundo motivo.

-Estavas esperando alguma pessoa?

-Já ninguém me visita.

-Por que razão?

-Os meus antigos amantes se enfastiaram de mim! disse com voz amarga.

-Virão novos! Já eles se anunciam! respondi indicando a camélia. É naturalmente pela pessoa que te mandou esta flor, que esperas.

Lúcia ergueu os olhos surpresos e pareceu ver pela primeira vez o vaso e a camélia.

-É um lindo presente com efeito! disse ela chegando-se ao consolo. E uma flor tão bonita não tem perfume!...

Levantando o vaso, descobriu a carta que eu entrevira, e que ela passou-me sem ter rompido o fecho.

-Leia.

Corri os olhos pela carta; era do Cunha; insistia com Lúcia para aceitar o seu amor, oferecendo-lhe as condições mais brilhantes que poderia desejar uma mulher na sua posição. Enquanto lia, ela se aproximara da janela.

-Ah! que pena! exclamou rindo.

O vaso e a flor acabavam de despedaçar-se nas pedras da calçada. Lúcia tomou-me a carta das mãos e sem ler rasgou-a friamente.

-Não desconfie; desse menos que de qualquer outro. Já foi meu amante; uma noite vi sua mulher, que ele abandonava por minha causa, triste e pensativa. Desde esse momento deixou de existir para mim.

Lembra-se do que me dissera o Cunha no teatro? Era assim que caluniavam essa moça; porque também ela punha sobre o coração a máscara do capricho.

Tínhamos esquecido o Cunha e falávamos de outras coisas.

-Decididamente, Lúcia, não queres mais saber de mim?

-Eu!... Se é preciso, suplico-lhe de joelhos que me venha ver!

Abanei a cabeça.

-Se tens um amante e desejas guardar-lhe fidelidade, é diferente; podemos ficar amigos e ver-nos ainda de vez em quando. Mas para satisfazer um capricho pueril! Não estou disposto.

-Então se eu tivesse um amante, faria o que eu lhe peço? Viria ver-me?

-Nesse caso haveria um motivo justo, que eu respeitaria.

-Pois bem; eu tenho!

-Um amante?

-Sim!

-Quem é ele?

-Não sei. Ainda não tenho; mas terei amanhã; hoje, se quiser.

-Agora mesmo! Serei eu!

-Oh! não!

-Bem vês que não passa de um capricho. Já me tinham falado dessa tua excentricidade. Gostas de fechar a porta aos teus amantes, quando eles menos esperam; talvez para puni-los do prazer que lhes deste! É uma vingança!

-Aqueles que lhe falaram assim tinham razão; mas nenhum, fique certo, se queixará de o ter eu enganado.