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- XVII -

Havia mais de quinze dias que já não ia a casa de Lúcia; tinha-a encontrado três ou quatro vezes na rua, e não lhe falara: fingia não vê-la.

A princípio custou-me não ceder àquele doce hábito; mas convencido como estava de que essa mulher zombava de mim, e queria ver-me representar o ridículo papel de amante titular, ou honorário, satélite de um astro que brilha para outros, paciente caudatário que as cortesãs gostam de trazer por orgulho e vaidade, revesti-me de coragem, e quebrei de uma vez com essas relações. O tempo é remédio soberano; os dias correram; a pouco e pouco fui-me resignando à separação.

Tinha aproveitado a minha liberdade para me preparar à vida séria. Mudara-me do hotel, e tomara um primeiro andar na Rua da Assembléia. As passadas necessárias para fazê-lo mobiliar e arranjar, as compras de arranjos domésticos tinham feito uma poderosa diversão que muito concorreu para fortalecer-me na resolução que havia tomado.

Contudo a lembrança de Lúcia não se apagava; eu vivia ainda das recordações da felicidade que ela me dera; e quando saía afagava sempre a esperança de encontrá-la. Se isto sucedia, apesar de minha aparente indiferença, sentia uma emoção que achava ridícula e não podia dominar. A conversa do Rochinha, ou do Cunha, me era agradável, porque dava ocasião de saber notícias dela. Uma vez me disseram que Lúcia saía freqüentemente, e passava todos os dias pela Rua do Ouvidor; a idéia de que ela o fazia para ter ocasiões de me ver consolou-me.

Uma manhã lia os jornais sobre a mesa do almoço, esperando que me servissem, quando o moleque prorrompeu na sala com o ar espantado, com que correria a anunciar-me que tínhamos fogo em casa.

-Está aí uma moça!

-Uma moça! repeti com um batimento de coração.

-O rosto dela está coberto com véu; mas eu vi!... muito bonita, sim senhor!

Quem podia ser senão Lúcia? Não me enganei. Avistando-me roçagou o véu, e disse com um triste sorriso:

-Resisti enquanto pude: não tenho mais forças. Estou pronta para tudo.

-Para tudo? perguntei sorrindo.

-Já que é preciso para vê-lo!

-Com que ar dizes isto! Se e um sacrifício, renuncio.

-E continuará a fugir-me? Passará por mim sem olhar-me? Não; não é um sacrifício. Preferia que nos víssemos de outra maneira; mas não é possível! O senhor quer; e o meu maior prazer não é fazer-lhe todas as vontades?

-Vamos almoçar; passarás hoje o dia comigo.

-Só com uma condição.

-Qual será essa condição que eu não aceite para ter o prazer de possuir-te um dia inteiro?

-É... que não há de ser hoje! disse ela enrubescendo.

-Começas de novo com os teus caprichos.

-Então não fico! replicou atando as fitas do chapéu, e com tom decidido.

-Deixa-te disto, Lúcia.

-Adeus; até amanhã.

-Está bem; aceito a condição.

-Dá-me sua palavra?

-Faço-te um juramento se quiseres.

-Não é preciso: estou satisfeita, e em paga do sacrifício, quero ser generosa.

Deu-me um beijo, um só, e na fronte.

-Então o beijo é permitido? disse eu sorrindo.

-Da minha parte unicamente; da sua, não senhor.

-Por que essa diferença? Deve haver completa igualdade.

-E não há! Se eu fico com o direito de dar, o senhor não tem o de recusar?

-Tu bem sabes que me faltaria a coragem!

-Não é culpa minha!

-E de quem é? De quem te fez tão bonita?

-Já fui! disse ela sorrindo com melancolia.

Realmente Lúcia estava mudada: tinha perdido o esmalte fresco e suave da tez; parecia mesmo desfeita e abatida; porém isso, longe de desmerecer a sua beleza, dava-lhe certa morbidez lânguida que a tornava ainda mais sedutora. Há dois momentos em que a rosa, a flor da beleza, tem para mim um irresistível encanto: é quando desata as mil folhas ostentando o brilho das cores e a régia altivez de sua coroa, e quando desfalece ao beijo ardente do sol, evaporando das pétalas flácidas o pálido matiz e o aroma sutil.

Saí um instante depois do almoço para ir ao escritório da Companhia de Paquetes pagar o frete de umas encomendas que enviava à minha família, e para encarregá-las à solicitude de um empregado do vapor.

Quando voltei, a minha casa de homem solteiro tinha sofrido uma alteração completa. Os vidros que em quinze dias já tinham adquirido uma crosta espessa dessa poeira clássica do Rio de Janeiro, como é clássica a lama de Paris, os vidros brilhavam na sua límpida transparência entre as bambinelas de cassa que um armador acabava de pregar. Os móveis espanejados tinham mudado de lugar, tomando a posição melhor e formando esse quadro harmônico, que o olhar de uma mulher esboça com a rapidez do pensamento; porque ela tem em si o instinto da forma, como a luz encerra a diversidade de cores que reflete sobre os objetos. Do recosto do sofá e das cadeiras pendiam lindas cobertas a crochê; nos vasos dos consolos se expandiam ramos de flores que embalsamavam a sala.

No meu gabinete de estudo, a desordem desaparecera ao toque mágico do condão de uma fada hospitaleira: os livros arrumados na estante, e em seu devido lugar; os manuscritos reunidos sob pesos de cristal; as cartas emaçadas em ganchos de metal pregados junto à mesa e ao alcance da mão; ao lado da cadeira de braços uma cesta de palha para receber as tiras de papel, e na frente um pequeno tapete felpudo para aquecer os pés nas noites frias.

Igual revolução no meu quarto de vestir. Sobre o toucador uma profusão de perfumarias e pequenos objetos de fantasia. Na cômoda a roupa estava arranjada como no tempo em que minha mãe se incumbia desse trabalho. Um dedal de ouro, um papel de botões, e preparos de costura, que se viam sobre a cadeira numa caixinha de tartaruga, indicavam que antes da arrumação, mãozinha ágil e habilidosa da costureira reparara os estragos do uso.

Mas eu tinha corrido toda a casa, notando essa transformação repentina, sem descobrir a autora; já estava inquieto quando pela janela da sala de jantar, a vi na cozinha, e num estado que só tanta beleza e graça podia salvar do ridículo. Figure uma moça vestida de ricas sedas, com as mangas enroladas e a saia arregaçada e atada em nó sobre o meio da crinolina; com uma toalha passada pelo pescoço à guisa de avental; vermelha pelo calor e reflexo do fogo, batendo gemas de ovos para fazer não sei que doce. Repito: era preciso ter a faceirice e gentileza daquela mulher, para nessa posição e no meio da moldura de paredes enfumaçadas, obrigar que a admirassem ainda.

Fui tirá-la da sua azáfama doceira, e a trouxe confusa e envergonhada. Depois que ela reparou a desordem de seu traje, tanto quanto era possível, tomei-lhe contas severas.

-Quando pedi à senhora que passasse o dia comigo, não foi para me servir nem de cozinheira, nem de costureira, nem de criada.

-De que posso eu servir-lhe?

-O mais grave porém não é isso: a senhora encheu a minha casa de objetos que não me pertencem, porque não os comprei.

Ela tirou um papel do seio:

-Oh! eu o conheço!... Tudo foi comprado com o dinheiro que tirei da sua gaveta. Aqui tem a conta. Se fiz mal em gastar sem sua ordem, ralhe comigo; suponha que eu pedi essa quantia, que o senhor decerto não me recusaria.

Lúcia deu-me a conta que eu rasguei sem ler fazendo-a sentar nos meus joelhos, e cobrindo-a de beijos.

-Olhe lá! Já faltou ao prometido! Mas desta vez passe; porque me perdoou. Se não se apressasse, eu mesma lhos daria.

-Ainda está em tempo!

-Não, senhor. Quero fazer valer a minha riqueza. Darei se me afiançar outra vez que aprova tudo que fiz!

O ajuste foi aceito e concluído. Eram uma perfídia de Lúcia, como verá.

Estive para esquecer o nosso compromisso. Lúcia escapou-se; fitando-me com um olhar de exprobração disse-me:

-E sua promessa!

-Não tenho forças para cumpri-la!

-E eu tenho para ceder-lhe! Pois bem; restituo sua palavra, para não obrigá-lo a faltar a ela. Quer-me assim mesmo morta?

Lúcia deu um passo para mim. Era realmente um corpo morto e uma feição estúpida que ela me oferecia. Repeli com vago terror. Então, serenou, e conseguiu sorrir:

-Amanhã!

Depois com a voz triste e grave acrescentou:

-Será sempre cedo!

Chegou o moleque que tinha ido à sua casa buscar um vestido; poucos instantes depois ela apareceu com um traje fresco e risonho de que tinha, mais que nenhuma mulher, o encantador segredo. Eu embalava-me na rede. Lúcia, depois que cansou de traquinar, fazendo-me cócegas, cobrindo-me o rosto com as franjas e oferecendo-me entre as malhas um beijo que eu não podia colher e se evaporava no ar, foi à estante escolher um livro, e sentou-se na esteira para ouvir-me ler.

O livro que ela trouxe era esse gracioso conto de Bernardin de Saint-Pierre, que todos lemos uma vez aos quinze anos, quando ainda não o sabemos compreender; e outra aos trinta, quando já não o podemos sentir. O que seduzira Lúcia foi o nome de Paulo que ela ao entregar-me o volume mostrara sorrindo. Quando eu lia a descrição das duas cabanas e a infância dos amantes, Lúcia deixou pender a cabeça sobre o seio, cruzou as mãos nos joelhos dobrando o talhe, como a estatueta da Safo de Pradier que por aí anda tão copiada em marfim e porcelana.

De repente a voz desatou num suspiro:

-Ah! meu tempo de menina!

Voltei-me para ela; as lágrimas caíam-lhe em bagas; quis atraí-la, fugiu, arrebatando-me o livro das mãos.

Escolhi outro livro para distraí-la; li a Átala de Chateaubriand, que ela ouviu com uma atenção religiosa. Chegando a essa passagem encantadora em que a filha de Lopes declara ao jovem selvagem que nunca será sua amante, embora o ame como à sombra da floresta nos ardores do sol, Lúcia pousou a mão sobre os meus olhos dizendo-me:

-Não podíamos viver assim?

-Átala tinha um motivo para resistir, Lúcia!

-E eu não tenho?

-Ela obedecia a um voto; e a virgindade lhe servia de defesa.

Lúcia respondeu-me arrebatadamente:

-Alguns espinhos que cercam a rosa, valem o veneno de certas flores? Um voto é coisa santa; mas a dor da mãe que mata seu filho é horrível.

-Não te entendo!

Ela demorou um instante o seu olhar ardente sobre mim, e murmurou abaixando as longas pálpebras:

-Queria dizer que se eu fosse Átala, poderia perder a minha alma para dar-lhe a virgindade que não tenho; mas o que eu não posso, é separar-me deste corpo!

Jantamos; nunca lauto banquete foi festejado por epicuristas, como a minha modesta colação pelos dois convivas que partilhavam o mesmo prato e bebiam no mesmo copo, rindo e brigando de qual daria ao outro uma preferência mutuamente recusada.

Às oito horas da noite acompanhei Lúcia à casa.

Poucos momentos depois de entrar ela foi ao toucador e voltou em traje de dormir; os cabelos soltos e uma longa camisola de linho, sem uma renda, nem um bordado.

-Já vais dormir?

-Vou deitar-me; estou fatigada; trabalhei hoje muito! respondeu sorrindo e tomando-me pela mão. Mas podemos conversar até dez horas. Durmo cedo agora.

O seu quarto de dormir já não era o mesmo; notei logo a mudança completa dos móveis. Uma saleta cor-de-rosa esteirada, uma cama de ferro, uma banquinha de cabeceira, algumas cadeiras e um crucifixo de marfim, compunham esse aposento de extrema simplicidade e nudez.

A idéia que primeiro me ocorreu foi que Lúcia tivera necessidade de dinheiro, e vendera os seus ricos trastes; isso me causou um aperto de coração.

-Por que esta mudança?

-Durmo aqui melhor. O outro quarto lá está como o senhor deixou.

-Nada lhe falta?

-Nada absolutamente. Admira-se de que me prive da minha rica mobília, para usar de outra mais simples?

-Decerto; foi uma despesa inútil.

-Mas o senhor não sabe que posso comprar o que me parecer sem que reparem; e não posso vender coisa alguma sem que me suponham arruinada?

-A minha questão é da preferência que dás a esses trastes ordinários sobre os teus lindos móveis de pau-cetim.

-Grande questão... Questão de mulher no fim de contas: capricho. Nesta cama que o senhor acha tão feia, e neste quarto que lhe parece tão triste, o sono é doce para mim e os sonhos alegres. Quando entro aqui, sacudo no limiar da porta, como os viajantes, a poeira do caminho; e Deus me recebe.

Dizendo estas palavras, Lúcia ajoelhou em face do crucifixo e recolheu-se numa breve oração mental; depois regaçou a roupa da cama e espreguiçou-se entre as alvas lençarias, com o voluptuoso bem-estar que sente o corpo repousando depois da fadiga.

-Como é bom adormecer assim! disse-me ela pousando a cabeça no travesseiro e fechando-me as mãos entre as suas. Fale; conte alguma história! Sou uma criança! É verdade!

-O quê?

-Não se agaste. Qual foi a primeira moça de quem o senhor gostou?

-Foi uma menina, não foi uma moça, respondi sorrindo.

-Ah! Que idade tinha?

-Doze anos; e eu acabava de completar dezesseis.

-Oh! Conte-me como foi!

Contei; um desses idílios das primeiras flores da vida; amores infantis que balbucia o coração ignaro, como antes balbuciara o lábio a palavra indecisa; arpejos vagos que o sopro da brisa arranca das cordas de uma lira ainda não dedilhada. Essas primeiras impressões são tão ricas de sentimento, que nunca o espírito penetra nelas sem achar uma melodia arrebatadora, mais viva e mais brilhante, à medida que o homem declina para a velhice. É natural que eu falasse com animação e entusiasmo. Lúcia cerrara as pálpebras para ouvir-me, e embalada pelas minhas palavras pareceu ir adormecendo insensivelmente. Calei-me, admirando com respeitosa ternura o rosto puro e cândido que entre a alvura do linho e no repouso das paixões tomara uma diáfana limpidez.

Meus lábios roçaram apenas a tez mimosa, tanto eu receava manchar com o hálito a flor dessa alma, que se abria na sombra e no silêncio, como o cacto selvagem de nossos campos. Nesse momento Lúcia ergueu as pálpebras, e seu olhar vago, já nublado pelo sono, afagou-me docemente.

-Foi o dia mais feliz da minha vida! murmurou ela com a voz quase imperceptível.

Ainda hoje não posso compreender que força misteriosa me obrigou a respeitar um dia inteiro essa mulher, que eu possuíra, e ainda apertava nos meus braços, recebendo a carícia de seu lábio amante.

Chegando à casa, e na ocasião de dar o dinheiro para as compras, conheci que Lúcia tinha-me enganado: a soma que eu possuía estava intata.

E contudo a minha suscetibilidade extrema emudeceu nesse momento. Não sei que voz interior me disse que Lúcia tinha o direito de fazer aquilo, e eu a obrigação de respeitar a sua vontade e agradecer-lhe.

O que outrora me parecia vileza, era já delicada atenção.

- XVIII -

Vi no dia seguinte correr de novo aquela mesma cortina de seda azul que abrira para mim, como nuvem serena, um céu de delícias. Penetrei o templo do prazer, que eu entrara pela primeira vez esmagado por um olhar de tão soberano desprezo. Mas não encontrei nem a antiga fragrância, nem a atmosfera tépida e embalsamada que outrora o enchia. Estava frio e triste, como um aposento por muito tempo privado de ar e luz.

Lúcia não proferira uma palavra desde a minha chegada. Muda e submissa obedecera ao meu olhar; quando a toquei, teve uma comoção violenta, verdadeiro choque elétrico. Fugiu espavorida; mas voltou logo; e caminhando para mim, entregou-se com um cínico desgarro.

Há de ter ouvido falar na sensualidade nefanda dos coveiros de cemitério, que saciavam no cadáver das belas mulheres um desejo brutal. Não creio que esses abutres da lascívia apertassem corpo mais gelado e insensível do que a múmia que se inteiriçava nos meus braços. Senti o frio horror de Virgílio correr-me pela medula dos ossos.

Lúcia atravessou o aposento com o passo hirto, e saiu. Entrou alguns minutos depois. O calor voltara à epiderme, que abrasava agora; o corpo tinha, não a doce flexibilidade que lhe era natural, porém uma elasticidade nervosa e convulsa, que o enrolava como a cauda de uma serpente na agonia. Em vez do seu hálito sempre perfumado, a boca exalava o bafo ardente de uma chama interior e o fumo alcoólico de espírito fortíssimo.

-O que bebeste tu, Lúcia? perguntei-lhe inquieto.

-Sofro do estômago, bebi um gole de kirsch, respondeu com a voz trôpega.

-Que extravagância!

Ela cortou-me a palavra com um beijo de fogo; escaldou-me da lava que corria-lhe do corpo; mas de repente repeliu-me bruscamente escondendo o rosto nas mãos:

-Não posso! É mais forte do que eu!

Soluçava como uma criança; riu depois como uma louca.

Conheci então a verdade; Lúcia estava embriagada.

A sua saída repentina fora um ato de desespero para vencer o gélido espasmo que a marmorizava. Tinha quase esvaziado uma garrafa de kirsch. Acreditei enfim na sinceridade da repugnância de Lúcia; renunciei de uma vez ao meu desejo. Sentia profunda compaixão por essa mulher. O seu pranto me enterneceu; chorei com ela.

O abalo moral foi-lhe dissipando a embriaguez, até que adormeceu profundamente sobre o meu peito.

Quando acordou, Lúcia percorreu algum tempo com os olhos o aposento, como se coligisse os vestígios esparsos de recordações esvanecidas pelo sono, até que a idéia do que se havia passado desenhou-se lúcida no seu espírito. Então volveu para mim o olhar humilde juntando as mãos com uma expressão suplicante.

-Logo mais terei forças! balbuciou ela. Era a primeira vez depois de tanto tempo; e não pensei que me faltasse o ânimo.

-Não, Lúcia; nunca mais!

O seu rosto anuviou-se:

-Então vai abandonar-me de novo?

-Supunha que isso não passava de uma excentricidade; o meu orgulho se revoltava. Mas há pouco o suplício horrível por que passaste me comoveu a ponto que chorei contigo.

-Chorou?... E por mim!

-Conheci que havia uma dor profunda e intensa no que me parecia ridículo capricho! Hei de me lembrar sempre que te vi quase morta nos meus braços! Um desejo de hoje em diante seria uma idéia assassina! Não posso, não o devo ter! És sagrada para mim; sagrada pelo martírio que te causei; sagrada pelas lágrimas que derramamos juntos. A tua beleza já não tem influência sobre os meus sentidos. Posso te ver agora impunemente.

Lúcia me escutava com enlevo, bebendo uma a uma as minhas palavras e o meu olhar, como se foram um elixir poderoso que a regenerasse. Apenas me calei, desprendeu-se docemente de meu seio, e caiu de joelhos. Ergueu-se depois grave e recolhida para dizer-me:

-Deus me abençoou!

Houve um grande silêncio, em que Lúcia, imóvel e recolhida, continuava absorta no seu êxtase religioso, e eu contemplava-a mudo sem me animar a interrompê-la.

-Agora deves ter confiança em mim, Lúcia; explica-me a razão dessa singularidade.

-Eu mesma não sei! respondeu com ingênua simplicidade.

-Ainda receias?...

-Não! Alguma coisa me diz que eu vibro no seu coração uma corda, embora seja a da compaixão e da piedade. Posso abrir-lhe minha alma e deixar que penetre nela. Veja se compreende: eu não posso.

-Mas devias sentir alguma coisa?

-Sentia a morte que me invadia o corpo, enquanto eu vivia dentro dele sofrendo torturas horríveis. Se eu tivesse ainda minha mãe expirante diante de meus olhos, amaldiçoando-me no seu último soluço; se por algum crime infame me açoitassem nua pelas ruas, cuspindo-me às faces no meio das vaias do povo, creio que não sentiria o que sinto nesses momentos. Por que razão?

-Entretanto houve um tempo em que, se não me engano, tu eras feliz como eu do prazer que me davas.

-É verdade! Esse tempo foi uma eternidade de delícias para mim; desejava até, louca que eu era!... desejava que fosse possível morrermos assim um no outro... uma só vida extinguindo-se num só corpo! Mas passou!... Devia passar.

-Por quê?

-Não sei!... Quando me lembro...

Tornou-se lívida; a voz encobriu-se:

-Quando me lembro, que um filho pode gerar das minhas entranhas, tenho horror de mim mesma!

-Não digas isso, Lúcia! Que mulher não deseja gozar desse sublime sentimento da maternidade!

-Oh! Um filho, se Deus mo desse, seria o perdão da minha culpa! Mas sinto que ele não poderia viver no meu seio! Eu o mataria, eu, depois de o ter concebido!

Não compreendia esse fenômeno; ainda hoje não o posso explicar senão por alguma das misteriosas afinidades do corpo com o espírito que o habita.

-Mas que importa? continuou Lúcia. Aquelas delícias passadas não valem a felicidade que eu sinto agora quando o vejo, quando lhe falo. Se eu pudesse viver toda a minha vida assim, sentada nos seus joelhos, olhando-o, não pediria a Deus nada mais!

Entramos então em uma nova fase de nossa mútua existência, fase original e curiosa que me faria rir quinze dias antes. Com efeito, quem poderia julgar possível uma amizade fraternal e pura entre duas criaturas que meses antes trocavam as mais ardentes expansões da sensualidade? Quem poderia conceber uma abstinência absoluta num caráter ardente, provocado todos os dias e a todas as horas pela beleza sempre radiante de uma mulher divina, que retraçava com um olhar e um sorriso os poemas da voluptuosidade fruída?

Nessa época se revelavam francamente em Lúcia as aspirações ingênuas para uma juventude perdida, os sonhos vivos do passado, que desde muito tempo espontavam por vezes através do luxo e agitação de uma vida elegante. Com a timidez de seu olhar velado pelos longos cílios, com o modesto recato de sua graça e o seu vestido de cassa branca, Lúcia parecia-me agora uma menina de quinze anos, pura e cândida.

Por que segredo ignoto da natureza a rosa que há pouco se ostentava no viço da florescência, abrochara as folhas, e agora botão recente, mal ia desatando o seio? Por que mágica força de vegetação a palmeira altiva que hasteava no vale as verdes frondes, se transformara de repente na mimosa sensitiva!

Muitas vezes achava Lúcia cosendo e cantando à meia voz alguma monótona modinha brasileira, que só a graça de uma bonita boca, e a melodia de uma voz fresca, pode tornar agradável. Outras vezes passava horas inteiras esboçando um desenho, tirando uma música ao piano, escrevendo uma lição de francês, língua que aliás traduzia sofrivelmente; ou enfim bordando ao bastidor algum presente que me destinava.

Não saía mais durante o dia; à noite pedia-me que a levasse a algum arrabalde distante da cidade, à Lagoa, ou ao Cosme-Velho. Partíamos de carro; parávamos nalgum lugar mais despovoado; ela recostava-se no meu braço, e passeávamos durante uma ou duas horas. Outras noites preferia o mar; embarcávamos num bote e vogávamos pela baía.

O seu traje habitual nestes passeios era vestido de merinó escuro, mantelete de seda preta, e um chapéu de palha com laços azuis. Mas essa mulher tinha a beleza luxuosa que se orna a si mesma, e que os enfeites, longe de realçar, amesquinham; nunca ela me parecia mais linda do que sob essa simplicidade severa.

Um dia Lúcia chegou-se a mim com certo ar de mistério:

-Quer fazer amanhã um passeio comigo?

-Aonde?

-A São Domingos.

-Se isto te causa prazer!...

Partimos às 4 horas da madrugada numa falua, que atravessou rapidamente a baía e levou-nos à praia de Icaraí. Não sei se ainda aí perto existe um velho casebre, escondido no mato e habitado por uma velha e dois filhos, que nos hospedaram, ou por outra, nos deram sombra e água fresca.

Quando Lúcia pôs o pezinho calçado com a botina de duraque preto na areia úmida da praia, pareceu que a mobilidade e agitação das ondinhas que esfrolavam murmurando, comunicou-se-lhe pelo contato. Em um instante chegou à casa, abraçou a velha, correu todos os recantos, o terreiro, o quintal e o mato que se estendia em roda. Ora suspendia-se aos ramos das árvores e colhia os frutos verdes que saboreava com delícia; ora pulava sobre a relva soltando gritos de prazer como as aves quando atitam ao raiar da manhã.

E no meio de tudo isso voltava para mim, e me obrigava a tomar a minha parte do prazer que ela sentia. O meio de não comer frutas verdes quando elas nos são apresentadas entre duas linhas de pérolas e à sombra de lábios vermelhos, que fugiam furtando o beijo que prometiam? O meio de não fazer toda a sorte de loucuras, quando um talhe esbelto suspende-se ao vosso flanco, e uma voz aveludada murmura uma prece ao ouvido?

Almoçamos. Lúcia contentou-se com uma côdea de pão e um copo de leite, que bebeu sentada sobre uma pedra.

Depois do almoço ela tomou-me pelo braço:

-Foi nesta casa que eu nasci, disse-me ela. Não era então velha como hoje está. Tudo muda; tudo passa!

Mostrou-me o lugar onde seu pai costumava trabalhar, onde sua mãe cosia; lembrava-se de todos os cantos, do lugar de cada móvel, da idade de cada fruteira, dos menores incidentes passados nesta área de terra.

-Faz sete anos que deixei este lugar; parece-me que foi ontem. Quando venho aqui alguma vez, acho ainda viva e fiel a minha infância tão feliz! Recorda-se da Glória? De lá olhei para esta praia. O senhor estava perto de mim. Mal pensava que três meses depois aqui viríamos juntos!

-E o que é feito de tua família? Como a perdeste? Nunca me quiseste dizer nada a este respeito.

-Toda a minha vida lhe pertence; o passado como o futuro. Mas aqui não teria ânimo: aqui vive a minha infância, que eu respeito. Não quero que estes lugares, que me viram tão alegre, me vejam sofrer, tendo-o junto de mim. Não falemos nisso agora; suponho que dormi estes sete anos e acordei hoje de repente.

Sentamo-nos sobre a relva coberta de flores e à borda de um pequeno tanque natural, cujas águas límpidas espelhavam a doce serenidade do céu azul. Lúcia tirou do bolso o seu crochê e o novelo de torçal, e continuou uma gravata que estava fazendo para mim. Enquanto ela trabalhava, eu arrancava as flores silvestres para enfeitar-lhe os cabelos; ou arrastava-me pela relva para beijar-lhe a ponta da botina que aparecia sob a orla do vestido.

Deixei cair algumas pedras no tanque. Não sei que impressão triste faz sobre o espírito a plácida imobilidade da onda, que desafia o homem a quebrar a quietude da natureza. Os olhos acompanham então com uma indefinível satisfação os círculos concêntricos que surgem à tona e vão-se dilatando até correr nas margens do lago.

Ia atirar uma nova pedra, quando Lúcia que eu supunha ocupada com o seu trabalho, reclinou-se para mim, de mãos juntas, e disse-me com uma voz angustiada:

-Não! Coitadinha! Tenha pena dela!

Encarei com Lúcia: seu rosto traía uma aflição profunda. De surpreso, deixei cair a pedra.

-Oh! Como deve sofrer! balbuciou ela mostrando-me com a mão trêmula a água que se toldava e enegrecia.

-Que é isto? Em que estás pensando, Lúcia? disse apertando-lhe as mãos com força.

Volveu para mim os olhos vagos; contemplou-me um instante e riu:

-Uma loucura!... Não sei como me veio semelhante idéia! Vendo esta água tão clara toldar-se de repente, pareceu-me que via minha alma; e acreditei que ela sofria, como eu quando os sentidos perturbam a doce serenidade de minha vida.

Depois de uma pausa continuou:

-Naquele dia... não soube explicar-lhe... É isto! Veja! A lama deste tanque é meu corpo: enquanto a deixam no fundo e em repouso, a água está pura e límpida!

Acredite ou não, Lúcia acabava de me revelar naquela imagem simples um fenômeno psicológico que eu nunca teria suspeitado.

- XIX -

Talvez não se lembre de um Jacinto, cujo nome, então desconhecido para mim, ouvira uma vez da boca de Lúcia.

Era um homem de 45 anos; feição comum e espírito medíocre. Encontrava-o agora todos os dias em casa de Lúcia; e desde a primeira vez antipatizara com a sua enjoativa figura.

-Quem é este senhor? perguntei a Lúcia.

Ela perturbou-se.

-É um sujeito que costuma tratar dos meus negócios.

-Que importantes negócios são os teus que eu não me possa incumbir deles?

-Compras... Não tenho outros. Para que incomodá-lo com isso?

-Também sou ciumento: não desejo que ocupes outra pessoa além de mim.

-Esse homem é quase um criado.

A palavra produziu o seu efeito; desde que o Jacinto desceu ao mister de homem assalariado, não fiz mais reparo na sua assiduidade. Quase sempre o encontrava na escada interior, descendo quando eu subia; dava-lhe tanta atenção como ao carroceiro que enchia as talhas d'água, ou ao cozinheiro que saía a compras.

Tínhamos partido de São Domingos na véspera às oito horas da noite; às onze deixara Lúcia em sua casa, desculpando-me de não ir vê-la no dia seguinte de manhã, por causa de algumas visitas de rigor.

Sucedeu porém que, voltando de uma dessas visitas, o cocheiro do tílburi passasse pela porta de Lúcia. Não pude resistir ao desejo de vê-la, apertar-lhe a mão e saber como havia passado a noite. Cheguei à sala de jantar sem encontrar viva alma; supondo achar Lúcia na sala, dirigi-me para ali, pelo corredor particular. Abafei os passos, para surpreendê-la.

O surpreendido fui eu, ouvindo vozes na alcova, onde tanto havia, já ninguém entrava. Enfiei o olhar pela fresta que deixava a sanefa de tafetá na porta envidraçada; e o que vi me fez empalidecer. A pessoa que estava com Lúcia era o Jacinto; ela abanava a cabeça; ele sorria com um ar de estúpida satisfação, e abria lentamente uma nojenta carteira de couro da Rússia.

Corri o aposento com uma vista rápida e ansiada: o leito estava desfeito e os móveis em desordem. O Sr. Jacinto tirara da carteira um maço de bilhetes do banco, que Lúcia escondera no seio com um expressivo gesto de contentamento. Não havia dúvida possível; as provas da infâmia eram evidentes; e para cúmulo do cinismo, o preço depois de regateado fora pago à vista. Uma parede que desabasse não me atordoaria como aquela cena a que eu acabava de assistir. Não sei quanto tempo fiquei ali, atirado contra a porta, sem sentidos nem espírito, somente com a consciência de uma imensa dor. Quando voltei a mim, a alcova estava deserta; o Jacinto tinha partido, e Lúcia cosia no toucador, cantando a meia voz. Hesitei se devia fugir para nunca mais ver semelhante monstro de mulher, ou se ficaria para lançar-lhe em rosto a sua ignomínia.

Conhecendo o meu passo, ela jogou de si a costura, e precipitou-se para mim; trazia o sorriso orvalhado de carícias, o olhar cheio de candura.

-Infame!

A indignação e o desespero que fermentavam no meu seio borbotaram nessa única palavra, grito e soluço de uma angústia cruel. Lúcia tornou-se lívida; vacilou. Com um supremo esforço dominando a vertigem que a tomava, cobriu-me com um olhar frio, cheio de tanta dignidade e altivez, que me colou imóvel sobre o chão. Assim pasmo e quedo, vi-a atravessar com lentidão a sala e desaparecer detrás de uma porta, que se fechou surdamente. Pareceu-me ouvir selar a lousa do túmulo, onde eu acabasse de sepultar uma porção de minha alma.

Lancei-me pelas ruas desatinado. Às quatro horas da tarde ainda eu vagava sem destino.

O Sá passava no seu tílburi; viu-me e parou:

-Que milagre é este: ressuscitaste!

-Não me fales nisso!

-Ah! estás apenas em convalescença; mas desta vez incumbo-me de curar-te, para que não tenhas nova recaída.

-Asseguro-te que não há mais perigo.

-Se não me engano, ainda não jantaste.

-Nem quero.

-Vem jantar comigo; entrarás imediatamente no regime higiênico que pretendo receitar-te.

Tomou as rédeas do cocheiro, que seguiu a pé, e ofereceu-me um lugar no tílburi.

Mais tarde Sá interrogou-me sobre o que se tinha passado; porém recusei constantemente satisfazer a sua curiosidade. Para que ele compreendesse o meu sofrimento, fora mister contar-lhe as minhas relações íntimas com Lúcia; e era esse mistério que invencível pudor d'alma não me deixava expor a outros olhos, fossem eles de um amigo.

Achei-me num estado de apatia moral; tinha medo da iniciativa, porque vagamente pressentia que ela me arrastaria de novo à casa de Lúcia, quando não fosse senão para ter o agro prazer de insultá-la com o meu desprezo. Nessa situação era natural que Sá não encontrasse a menor resistência no que ele chamava o regime higiênico da minha paixão.

Durante três dias corremos os arrabaldes da cidade.

Passávamos uma tarde a cavalo por Santa Teresa na direção da Caixa d'Água, quando vimos parado defronte de uma pequena casa, reparada de novo, o Jacinto. Esse homem me atraía, pelo ímã irresistível de Lúcia; e entretanto eu o detestava.

-Pertence-lhe esta casa, Sr. Jacinto? disse-lhe Sá respondendo à cortesia.

-Não, senhor. Pertence a uma pessoa do seu conhecimento, à Lúcia.

-Como! Lúcia vem morar numa casa térrea e de duas janelas? Não é possível.

-Também eu não acreditei quando ela me falou nisso! Cuidei que estava brincando; porém é negócio sério.

-Então comprou esta casa?

-E mandou prepará-la. Já está mobiliada e pronta. Devia mudar-se hoje; não sei que transtorno houve. Ficou para a semana!

-Está bem! São luxos de passar o verão no campo! Não lhe dou um mês que não esteja arrependida, e não volte para a sua casa da cidade.

-Para essa, há de ser difícil, disse o Jacinto com um sorriso.

-Por que razão?

-Vendeu-me o arrendamento e toda a mobília.

-Que diz!

-Na quinta-feira fechamos o negócio. Dei-lhe um conto de réis de sinal. Porém o mais interessante é que mandou fazer leilão de tudo quanto possuía, inclusive jóias e roupa.

-Terá ela caído na miséria?

-Qual! Tem perto dos seus cinqüenta contos e quer gozar da vida tranqüilamente. Doidice; podia fazer uma fortuna, e ajudar os outros.

O Jacinto cumprimentou e desceu a ladeira. A conversa que acabava de ouvir me tinha completamente perturbado; enquanto Sá aproximava-se do portão para examinar o jardim, ficara eu imóvel e perplexo. Por fim, impelido por uma força superior, segui precipitadamente o homem que levava consigo o sossego e tranqüilidade do meu espírito.

Alcancei-o junto aos arcos. Procurei o pretexto do aluguel da casa em que Lúcia morara, e obtive a narração minuciosa do que se passara. Aquela desordem do leito não fora outra coisa mais que o exame de um comprador de trastes, que antes de fechar o negócio deseja conhecer o estado da mercadoria.

Corri à casa de Lúcia.

-Sofri muito, ainda sofro; mas sinto a necessidade de perdoar, disse-me ela grave e melancólica.

Nem um transporte de alegria, nem um sobressalto de surpresa por ver-me chegar arrependido e suplicante. Recebeu-me com uma serena placidez e um olhar de meiga exprobração:

-Não é generoso ofender a quem não sabe e não pode repelir a ofensa.

Era estranha para mim a expressão de calma e serena dignidade que se difundia pelo seu rosto e por toda a sua pessoa; alguma vez já vira passar-lhe na fronte um reflexo de nobre altivez, mas de relance, como a eletricidade que lambe a face da nuvem. Naquele momento porém a luz irradiava de um foco íntimo; e na feição, como na atitude de Lúcia, aparecia profundamente impresso o pudor de uma alma ressentida.

Pela primeira vez a mulher submissa, que temia ofender-me, mostrando-se ofendida de minhas injustiças, conservava contra mim uma queixa, e assumia o direito de perdoar. Admirando, aceitava contudo essa nova situação, como tinha aceito todas as gradações por que passara a sua existência depois que nos conhecíamos.

-Duvidou de mim! disse Lúcia fitando-me com os seus grandes olhos límpidos.

Ia balbuciar uma desculpa; ela atalhou-me.

-Não! A mulher de quem duvidou já não existe, morreu! É uma história bem triste! Ouça!

Lúcia ficou um momento absorvida nas suas recordações; afinal chegando um banquinho de tapete, sentou-se aos meus pés:

-Deixamos São Domingos para vir morar na corte; tinham dado a meu pai um emprego nas obras públicas. Vivemos dois anos ainda bem felizes. À noite toda a família se reunia na sala; eu dava a minha lição de francês a meu mano mais velho, ou a lição de piano com minha tia. Depois passávamos o serão ouvindo meu pai ler ou contar alguma história. Às nove horas ele fechava o livro, e minha mãe dizia: «Maria da Glória, teu pai quer cear». Levantava-me então para deitar a toalha.

-Maria da Glória!

-É meu nome. Foi Nossa Senhora, minha madrinha, quem mo deu. Nasci a 15 de agosto. Por isso todos os anos vou levar-lhe um trabalho de minhas mãos, e pedir-lhe que me perdoe. Outrora pedia-lhe que me fizesse feliz; toda a minha família me acompanhava; agora vou só e escondida.

-E que é feito de tua família?

-Lembra-se da febre amarela em 1850?

-Não estava aqui.

-É verdade! Foi um ano terrível. Meu pai, minha mãe, meus manos, todos caíram doentes: só havia em pé minha tia e eu. Uma vizinha que viera acudir-nos, adoecera à noite e não amanheceu. Ninguém mais se animou a fazer-nos companhia. Estávamos na penúria; algum dinheiro que nos tinham emprestado mal chegara para a botica. O médico, que nos fazia a esmola de tratar, dera uma queda de cavalo e estava mal. Para cúmulo de desespero, minha tia uma manhã não se pôde erguer da cama; estava também com a febre. Fiquei só! Uma menina de 14 anos para tratar de seis doentes graves, e achar recursos onde os não havia. Não sei como não enlouqueci.

Lúcia apertou a cabeça com as mãos, como se ainda temera que a razão lhe fugisse.

-Tudo quanto era possível, meu Deus, sinto que o fiz. Já não dormia; sustentava-me com uma xícara de café. Nalgum momento de repouso ia à porta e pedia aos que passavam. Pedia para meu pai enfermo, e para minha mãe moribunda, não tinha vexame. Uma tarde perdi a coragem; meu irmão estava na agonia, minha mãe despedira-se de mim, e Ana, minha irmãzinha, que eu tinha criado e amava como minha filha, já não dava acordo de si. Passou um vizinho. Falei-lhe; ele me consolou e disse-me que o acompanhasse à sua casa. A inocência e a dor me cegavam: acompanhei-o.

Lúcia fez um esforço para continuar:

-Esse homem era o Couto...

-Ah!

-Ele tirou do bolso algumas moedas de ouro, sobre as quais me precipitei, pedindo-lhe de joelhos que mas desse para salvar minha mãe; mas senti os seus lábios que me tocavam, e fugi. Oh! Não posso contar-lhe que luta foi a minha: três vezes corri espavorida até à casa, e diante daquela agonia sentia renascer a coragem, e voltava. Não sabia o que queria esse homem; ignorava então o que é a honra e a virtude da mulher; o que se revoltava em mim era o pudor ofendido. Desde que os meus véus se despedaçaram, cuidei que morria; não senti nada mais, nada, senão o contato frio das moedas de ouro que eu cerrava na minha mão crispado. O meu pensamento estava junto do leito de dor, onde gemia tudo o que eu amava neste mundo.

Lúcia escondeu o rosto nos meus joelhos e emudeceu. Quando levantou a fronte, implorava com as mãos juntas e o olhar súplice. O quê? O perdão de sua primeira falta?

Não sei. Faltaram-me as palavras para consolar dor tão profunda: beijei Lúcia na face.

-Obrigada! exclamou ela; obrigada! Alguma coisa me diz que mereço este consolo. Terei forças para concluir. O dinheiro ganho com a minha vergonha salvou a vida de meu pai e trouxe-nos um raio de esperança. Quase que não me lembrava do que se tinha passado entre mim e aquele homem; a consciência de me ter sacrificado por aqueles que eu adorava, fazia-me forte. Demais, um esquecimento profundo, só explicável pela alheação completa do espírito, ocultava-me a triste verdade. Devia compreendê-la, e de que modo, ó meu Deus!

Como impelida por um choque elétrico, Lúcia ergueu-se galvanizada por súbita e violenta recordação.

-Ainda vejo! As melhoras foram aparentes! Meus dois irmãos acabavam de expirar, minha tia entrava na agonia, minha mãe tivera um novo acesso. Felizmente já meu pai estava em convalescença, e saiu para tratar do enterro. Ele não tinha dinheiro, apresentei-lhe as últimas moedas de ouro que me restavam. «Quem te deu este dinheiro?... Roubaste?...» Contei-lhe tudo; tudo que eu sabia na minha inocência. Ele compreendeu o resto. Expulsou-me!

-A ti que lhe salvaste a vida?

-Meu pai julgava que eu tinha um amante e iria viver com ele! A não ser assim, exporia sua filha a morrer de fome? Saí de casa. O único ente que me sorriu e me abraçou por despedida foi o anjinho que Deus me dera por irmã e conforto. Sentei-me na calçada. Era bastante tarde já, quando uma mulher que se recolhia me perguntou o que fazia ali àquelas horas. «Perdi meu pai e minha mãe, respondi, não tenho onde viver». Jesuína... Era ela... levou-me consigo. Não me esqueci dos meus. A força de rogos e instâncias Jesuína mandava constantemente à casa saber notícias e levar os socorros necessários: nada faltou, nem médico, nem enfermeiros. A paz voltou enfim; e eu tive o supremo alívio de comprar com a minha desgraça a vida de meus pais e de minha irmã. Jesuína, o senhor adivinha o que foi ela, tinha posto um preço aos seus serviços; não sei se a primeira humilhação custou mais do que a segunda; mas o sacrifício devia se consumar, porque não tive mão que me amparasse. A minha felicidade estava destruída; cuidei que não havia maior infâmia do que a minha. Resolvi viver para tranqüilidade e ventura de uma família inocente da minha culpa. Quinze dias depois de expulsa por meu pai era... o que fui.

O sorriso pálido, que contraiu o rosto de Lúcia, parecia despedaçar-lhe a alma nos lábios:

-Sabe agora o segredo da cupidez e avareza de que me acusavam. Encontram-se no Rio de Janeiro homens como o Jacinto, que vivem da prostituição das mulheres pobres e da devassidão dos homens ricos; por intermédio dele vendia quanto me davam de algum valor. Todo esse dinheiro adquirido com a minha infâmia era destinado a socorrer meu pai, e a fazer um dote para Ana. Jesuína continuava a servir-me. Minha família vivia tranqüila, e seria feliz se a lembrança do meu erro não a perseguisse. Nisto uma moça quase de minha idade veio morar comigo; a semelhança de nossos destinos fez-nos amigas; porém Deus quis que eu carregasse só a minha cruz. Lúcia morreu tísica; quando veio o médico passar o atestado, troquei os nossos nomes. Meu pai leu no jornal o óbito de sua filha; e muitas vezes o encontrei junto dessa sepultura onde ele ia rezar por mim, e eu pela única amiga que tive neste mundo.

Morri pois para o mundo e para minha família. Foi então que aceitei agradecida o oferecimento que me fizeram de levar-me à Europa. Um ano de ausência devia quebrar os últimos laços que me prendiam. Meus pais choravam sua filha morta; mas já não se envergonhavam de sua filha prostituída. Eles tinham me perdoado. Quando voltei, só restava de minha família uma irmã, Ana, meu anjo da guarda. Está num colégio educando-se.

Eis a minha vida. O que se passava em mim é difícil de compreender, e mais difícil de confessar. Eu tinha-me vendido a todos os caprichos e extravagâncias; deixara-me arrastar ao mais profundo abismo da depravação; contudo, quando entrava em mim, na solidão de minha vida íntima, sentia que eu não era uma cortesã como aquelas que me cercavam. Os homens que se chamavam meus amantes valiam menos para mim do que um animal; às vezes tinha-lhes asco e nojo. Ficaram gravados no meu coração certos germes de virtude... Essa palavra é uma profanação nos meus lábios, mas não sei outra. Havia no meu coração germes de virtude, que eu não podia arrancar, e que ainda nos excessos do vício não me deixavam cometer uma ação vil. Vendia-me, mas francamente e de boa-fé; aceitava a prodigalidade do rico; nunca a ruína e a miséria de uma família.

Aquele esquecimento profundo, aquela alheação absoluta do espírito, que eu sentira da primeira vez, continuou sempre. Era a tal ponto que depois não me lembrava de coisa alguma; fazia-se como que uma interrupção, um vácuo na minha vida. No momento em que uma palavra me chamava ao meu papel, insensivelmente, pela força do hábito, eu me esquivava, separava-me de mim mesma, e fugia deixando no meu lugar outra mulher, a cortesã sem pudor e sem consciência, que eu desprezava, como uma coisa sórdida e abjeta.

Mas horrível era quando nos braços de um homem este corpo sem alma despertava pelos sentidos. Oh! Ninguém pode imaginar! Queria resistir e não podia! Queria matar-me trucidando a carne rebelde! Tinha instintos de fera! Era uma raiva e desespero, que me davam ímpetos de estrangular o meu algoz. Passado esse suplício restava uma vaga sensação de dor e um rancor profundo pelo ente miserável que me arrancara o prazer das entranhas convulsas!

Comovida e lacrimosa, ela atirou-se ao meu peito, e enlaçou-me com os braços trêmulos:

-Perdão! Houve um momento bem rápido em que o odiei também! Como sofri, meu Deus! Devia resgatar essa dor a felicidade que pela dor havia perdido!

Lúcia concluindo essa narração, que a fatigara em extremo, enxugou as lágrimas e deu algumas voltas pela sala.

-Se eu ainda tivesse junto de mim todos os entes queridos que perdi, disse-me com lentidão, veria morrerem um a um diante de meus olhos, e não os salvaria por tal preço. Tive força para sacrificar-lhes outrora o meu corpo virgem; hoje depois de cinco anos de infâmia, sinto que não teria a coragem de profanar a castidade de minha alma. Não sei o que sou, sei que começo a viver, que ressuscitei agora. Ainda duvidará de mim?

-Tu és um anjo, minha Lúcia!

- XX -

Às cinco horas da manhã estava de pé, vestindo-me para ir buscar Lúcia.

Na véspera ao despedir-se de mim ela me dissera:

-Amanhã mudo-me. Venha-me buscar ao romper do dia. Desejo... careço de entrar apoiada ao seu braço na casa onde vou viver a minha nova existência.

Achei-a pronta e esperando-me; os vestígios da comoção violenta que haviam produzido as amargas recordações, desapareciam sob a plácida serenidade que reslumbrava de sua alma e dava à sua beleza uma suave limpidez.

Partimos a pé, com a fresca da manhã; fizemos um dos mais belos passeios de que se pode gozar no Rio de Janeiro. A casa ainda estava fechada: o preto que a guardava veio abrir-nos o portão; corremos o jardim colhendo flores, enquanto se arejavam as salas para receber-nos. Os cômodos eram suficientes para duas pessoas; Lúcia devia morar com sua irmã, que ia sair do colégio.

Apesar da revelação da véspera, continuava a dar a Lúcia esse doce nome, que estava tão habituado a pronunciar. Uma vez porém ela olhou-me com uma expressão de mágoa:

-Paulo, disse-me com brandura, chama-me Maria!

Desde então quando eu pronunciava esse nome, sua alma tinha enlevos, e ela acompanhava o movimento de meus lábios estremecendo de gozo, como se todo o seu corpo sentisse uma doce carícia.

-Quando me chamas assim, Paulo, murmurava ela, parece-me que tu me embebes e me afagas num só e imenso beijo que me envolve toda.

Também a partir daquele momento ela sentia um prazer indizível em articular o meu nome, que seus lábios às vezes desfolhavam num sorriso, e outras debulhavam lentamente, letra por letra, como um favo de mel, que estilassem gota a gota. Nunca Lúcia (quero chamá-la assim ainda, porque foi esse o primeiro nome que amei, e que ainda amo) nunca Lúcia deixara o tratamento cerimonioso que me dava, mesmo no mais íntimo das nossas relações. Nesse dia porém, de repente, sem vexame e sem o menor esforço, começou a atuar-me.

Almoçamos, como os pastores de Teócrito, frutas, pão e leite cru: ainda não havia preparos de cozinha, nem fogo. Por volta de onze horas do dia chegou a criada, com uma menina de doze anos, linda e mimosa como um anjinho de Rafael. Era o retrato de Lúcia, com a única diferença de ter uns longes de louro cinzento nos cabelos anelados. Ana já conhecia a irmã e a amava ignorando os laços de sangue que existiam entre ambas; mas o instinto de seu coração fizera adivinhar à pobre órfã um amor quase materno na afeição ardente e apaixonada que lhe votava Lúcia.

Às seis horas da tarde deixei as duas irmãs já definitivamente instaladas no seu modesto retiro.

Continuei a visitá-las todos os dias, mas ao cair do dia. Fora Lúcia quem regulara estas visitas.

-Tens agora o teu escritório, e eu preciso trabalhar para viver; além disso quero ensinar a Ana o pouco que sei. Não podemos estar todo o dia juntos. Vem ver-me à tarde, à hora da ave-maria. Passaremos as noites no jardim, ou passeando. No domingo porém jantarás sempre comigo; se não vieres, sei que não terei fome.

Quando a noite estava bonita, íamos os três até a Caixa-d'Água, ou até os Dois Irmãos, gozar da frescura das árvores e da água corrente. Lúcia reclinava-se ao meu braço, e eu dava a outra mão livre a Ana. Assim caminhávamos, quase sempre mudos e silenciosos, contemplando a beleza das cenas que se desenrolavam aos nossos olhos, ou absorvidos em nossos pensamentos íntimos. Quando Ana soltava a minha mão para correr diante de nós com a inquieta travessura de sua idade, Lúcia erguia-se na ponta dos pés, e suspirava-me ao ouvido alguma palavra terna, alguma doce confidência de sua alma.

-Sou feliz! dizia-me uma noite, muito feliz! Deus se compadeceu de mim dando-me essa força de vontade que me faz separar de minha vida o tempo que não vivi. Ele me aparece como um sonho, como uma nuvem sombria que se vai sumindo.

Outras noites nos sentávamos sobre as pedras do caminho, e eu, respondendo às perguntas de Ana, falava-lhe da natureza, das flores, das árvores, das estrelas, com o entusiasmo e a poesia que as belas criações de Deus despertam em nossa alma.

-Fala ainda! balbuciava Lúcia ao meu ouvido, quando me calava. Fala! É tão bom ouvir-te.

Era unicamente aos domingos que eu tinha um momento de estar só com Lúcia. Então ela tomava-me a cabeça que escondia no seio com um anelo de ternura; fechava-me os olhos, e eu sentia os seus lábios roçarem o meu rosto, tão de leve como as tranças de seus cabelos; por fim olhava-me, ora sorrindo, ora séria e absorvida nos seus pensamentos.

-Isto não pode durar muito! É impossível! murmurava como se respondesse a uma reflexão íntima.

-Por que razão, Maria?

-Por quê? Porque não se goza da bem-aventurança na terra.

À exceção desses raros instantes, sua irmã não nos deixava, e em presença dela Lúcia não me permitia uma carícia, por mais inocente que fosse. O dia se passava ouvindo Ana tocar, vendo-a brincar, e brincando com ela. Éramos três crianças; e delas talvez a mais moça fosse a que mais juízo tivesse naqueles alegres folguedos.

Uma tarde, havia poucos instantes que eu tinha chegado, quando Lúcia tomou-me pela mão, e levou-me ao seu toucador.

-Não entendo de negócios, me disse abrindo uma gaveta; e não sei pedir senão a ti. Toma; é a escritura de compra desta casa, que pertence a Ana: há de ser preciso pagar décima. Tira do dinheiro destes vales; do resto comprarás apólices em nome dela.

Examinei os papéis que Lúcia me dera; representavam um valor de mais de cinqüenta contos de réis; dez no prédio, o resto em dinheiro.

-E tu com que ficas? Longe de mim censurar a tua generosidade, minha boa Maria; mas não é justo que te sujeites, a passar privações.

-Eu também tenho a minha fortuna! disse-me sorrindo.

Mostrou-me uma carteira, que eu lhe tinha dado.

-Queres ver? Olha! Foste tu que ma deste, Paulo! Guardei-a para o tempo em que fosse digna dela. Quando eu te agradecia então, nem suspeitavas que te agradecia pelo futuro, por este tempo em que não me peja, ao contrário tenho orgulho, de viver por ti e para ti.

A carteira continha pequenos maços de notas, com o algarismo e uma data escrita no rótulo.

-Não sei o que quer dizer isto!

-Não te lembras, quando ias à gavetinha do meu toucador? Aí está o que me davas, dia por dia. Compreendes agora?

-Mas isto é uma bagatela; não é uma fortuna!

-Chega-me; demais, eu trabalho, e quando alguma vez precisar, não terei vergonha de pedir-te. Verás.

-O que me parece de eqüidade é dividires esta soma com tua irmã, e guardares o resto. Ela pode casar, seguir seu marido... Quem sabe o que sucederá?

-Tudo quanto quiseres, Paulo, menos isso. Não tenho outra vontade que não seja a tua, mas estou certa que me hás de compreender e consentir. O que me custou tantas angústias, e tantas humilhações, não me pode pertencer, não. Só uma coisa justifica essa fortuna, é o motivo santo por que me vendi para adquiri-la. Ana pode gozar dela sem remorso e sem vexame, porque não saberá donde lhe vem; a mim amargaria o pão amassado com tanto fel! Não achas que eu tenho razão?

-Maria, meu anjo, não fales nisso mais nunca! Faze o que quiseres; eu aprovo tudo.

-Deixa-me acabar. Agora só vivo, e só quero viver do que me deste; porque a minha coragem, o meu trabalho, tudo é inspiração tua. O dinheiro pois que ganhar com minhas mãos, ainda me vem de ti! Não possuo hoje um objeto, a coisa mais insignificante, que tenha outra origem. É talvez uma superstição; mas quero conservá-la.

Ao despedir-me nessa noite Lúcia, como para dar-me uma prova da sua sinceridade, disse-me:

-Paulo, traze-me amanhã quando vieres uma caixinha sortida de linhas e agulhas.

Era uma ninharia; mas era a primeira coisa de valor pecuniário que ela me pedia.

Essa vida calma e tranqüila, remanso de uma existência tão agitada, durava cerca de um mês. Nada perturbava a serenidade de Lúcia. Parecia realmente que sua alma cândida, muito tempo adormecida na crisálida, acordara por fim, e continuara a mocidade interrompida por um longo e profundo letargo. Lúcia tinha então 19 anos; mas o seu coração puro e virgem tinha apenas a idade do botão de rosa na manhã do dia em que deve florescer, ou a idade do casulo quando a ninfa vai fendê-lo, desfraldando as tenras asas.

Como as aves de arribação, que tornando ao ninho abandonado, trazem ainda nas asas o aroma das árvores exóticas em que pousaram nas remotas regiões, Lúcia conservava do mundo a elegância e a distinção que se tinham por assim dizer impresso e gravado na sua pessoa. Fora disto, ninguém diria que essa moça vivera algum tempo numa sociedade livre. As suas idéias tinham a ingenuidade dos quinze anos; e às vezes ela me parecia mais infantil, mais inocente do que Ana com toda a sua pureza e ignorância.

Talvez a senhora julgue isso impossível; mas é a verdade. Se não fosse a originalidade dessa fase de uma vida que em quatro meses passara aos meus olhos por tão profunda revolução, não teria nada que lhe contar, e não valeria a pena revolver o rescaldo de minhas reminiscências.

Quis pintar-lhe o que vi: a incubação de uma alma violentamente comprimida por uma terrível catástrofe; a vegetação de um corpo vivendo apenas pela força da matéria e do instinto; a revelação súbita da sensibilidade embotada pelos choques violentos que partiram o estame de uma infância feliz; a floração tardia do coração confrangido pelo escárnio e pelo desprezo; finalmente a energia e o vigor do espírito que surgia, soldando por misteriosa coesão os elos partidos da vida moral e continuando no futuro a adolescência truncada.

Quantas vezes absorto na admiração que me causava esse fenômeno, não acompanhava com um olhar pasmo e surpreso os movimentos de Lúcia brincando com a irmã, e criança como ela na expansão da beleza que eu vira radiar no mundo com todas as graças e encantos da mulher! Quantas vezes desesperado pela naturalidade do seu gesto e pela ingênua simplicidade de suas palavras, que excluíam a mais leve suspeita de afetação, não pensava comigo: «Esta mulher ou é um demônio de malícia, ou um anjo que passou pelo mundo sem roçar as suas asas brancas!»

Se ela surpreendia o meu olhar perscrutador, sorria, e caminhando para mim, movia lentamente a cabeça:

-Não compreendes, Paulo? Também eu não compreendo. Quem me fez menina assim?... Devo-te parecer ridícula. Eu, que desejo ter para Ana a gravidade de mãe, torno-me mais travessa do que ela. Mas que queres? É preciso que eu brinque... como as cigarras hão de cantar daqui a um ano quando acordarem!

O jardim da casa de Lúcia era dividido, por um gradil de madeira, da chácara vizinha. Isso a desgostara desde o primeiro dia; e era sua intenção fazer passar um muro que ocultasse às vistas estranhas o seu modesto retiro; um sentimento de delicadeza retardara só a realização desse projeto. As moças daquela chácara tinham pouco depois de sua mudança procurado entreter relações de vizinhança; e quase todas as tardes vinham conversar com Ana.

Lúcia quis logo impedir essa amizade, mas não teve ânimo de privar sua irmã de tão inocente distração; contentou-se de sua parte em se esquivar aos avanços das vizinhas, retribuindo com polidez as suas saudações. As instâncias porém foram tão repetidas e tão amáveis, que, apesar de sua modesta reserva, Lúcia não pôde deixar algumas vezes de responder às palavras que lhe dirigiam. Demais, elas tinham achado o caminho de seu coração; com uma liberdade censurável começaram a pedir-lhe pequenos favores: hoje era a muda de uma flor, amanhã o molde de um vestido, depois o desenho de um bordado. Lúcia, que não aceitava coisa alguma do mundo, não sabia recusar um serviço.

Uma tarde ela estava conversando comigo, quando Ana veio pedir-lhe em nome da mais moça das vizinhas, sua predileta, que lhe fosse ensinar um ponto de crochê.

-Tu não sabes, Ana?

-Mas não sei como tu, maninha.

Lúcia aproximou-se do gradil; tomou das mãos da moça o fio e a agulha e teceu com agilidade e destreza uma carreira de malhas, acompanhando o movimento rápido de seus dedos afilados com as explicações precisas. Como isto não bastasse tirou do braço uma pulseira de contas tecida por ela e deu-a para servir de modelo.

Nessa ocasião adiantavam-se por entre as árvores as outras moças acompanhadas de um homem, cujo rosto não pude ver logo por entre a folhagem. Lúcia, atenta aos esforços que fazia sua discípula para acertar, não reparou nessa circunstância.

O grupo parou a alguma distância; eu reconheci o Couto no momento em que se adiantava com um movimento de espanto. Corri para fazer Lúcia retirar-se antes de vê-lo; mas estava distante, e quando cheguei, já a mais velha das moças se tinha aproximado, e arrancando a pulseira das mãos de sua irmã, atirou-a por cima da grade:

-Não toques em coisa que pertença a esta mulher! É uma perdida!

Lúcia tinha erguido a cabeça no primeiro instante de surpresa; nada porém perturbava a serenidade e quietude de seu rosto iluminado por uma doce altivez; circulou com um olhar límpido os atores desta cena, como se lhes pedisse a explicação do desagradável incidente; e tomando Ana pela mão e passando o braço pelo meu, afastou-se com uma dignidade meiga e nobre.

Contudo pensei que esse sossego era aparente, e que sua alma devia ter sido traspassada por aquele ultraje. Ela respondeu à interrogação muda do meu olhar murmurando-me ao ouvido para que sua irmã não a ouvisse:

-Elas não sabem, como tu, que eu tenho outra virgindade, a virgindade do coração! Perdoa-lhes, Paulo.

E o sorriso, que banhou estas palavras como de uma luz divina, parecia abrir o céu aos arroubos de sua alma.

- XXI -

Era um domingo.

O novo ano tinha começado. A bonança que sucedera às grandes chuvas trouxera um dos sorrisos de primavera, como costumam desabrochar no Rio de Janeiro entre as fortes trovoadas do estio. As árvores cobriam-se da nova folhagem de um verde tenro; o campo aveludava a macia pelúcia da relva, e as frutas dos cajueiros se douravam aos raios do sol.

Uma brisa ligeira, ainda impregnada das evaporações das águas, refrescava a atmosfera. Os lábios aspiravam com delícias o sabor desses puros bafejos, que lavavam os pulmões fatigados de uma respiração árida e miasmática. Os olhos se recreavam na festa campestre e matutina da natureza fluminense, da qual as belezas de todos os climas são convivas.

Subia a passo curto e repousado a ladeira de Santa Teresa, calculando a hora de minha chegada pelo despertar de Lúcia; o meu pensamento porém abria as asas, e precedendo-me, ia saudar a minha doce e terna amiga.

Havia oito dias que Lúcia não andava boa. A fresca e vivace expansão de saúde desaparecera sob uma langue morbidez que a desfalecia; o seu sorriso, sempre angélico, tinha uns laivos melancólicos, que me penavam. Às vezes a surpreendia fitando em mim um olhar ardente e longo; então ela voltava o rosto de confusa, enrubescendo. Tudo isto me inquietava; atribuindo a sua mudança a algum pesar oculto, a tinha interrogado, suplicando-lhe que me confiasse as mágoas que a afligiam.

-Não digas isso, Paulo! respondia com um tom de queixa. Posso ter pesares junto de ti? É uma ligeira indisposição; há de passar.

De bem longe avistei Lúcia que me esperava e me fez um aceno de impaciência; apressei o passo para alcançar o portão do jardim. Ela estendeu-me as mãos ambas risonha e atraindo-me, reclinou-se sobre o meu peito com um gracioso abandono. Sentamo-nos nos degraus da pequena escada de pedra, e informei-me de sua saúde.

-Já estou boa. Não vês?

Realmente as rosas de suas faces viçavam; era cintilante o brilho que desferia a sua pupila negra. Pelos lábios úmidos lentejava a onda perene de um sorriso, que orvalhava-lhe o semblante de luz e graça.

-Ainda bem! Já me habituaste a só achar bonito aquilo que vejo através do teu mimoso sorriso. Agora é que eu começo a gozar desta linda manhã.

Trocamos ainda algumas palavras.

De repente Lúcia atirou-se a mim. Com uma arrebatada veemência esmagou na minha boca os lábios túrgidos, como se os prurisse fome de beijos que a devorava. Mas desprendeu-se logo dos meus braços, e fugiu veloz, ardendo em rubor, sorvendo num soluço o seu último beijo.

Fugiu, e ao passar fechou a porta que comunicava com o interior.

Contrariado por este obstáculo, consolei a minha impaciência com o sabor da esperança que se insinuara no meu coração. A fúria amorosa dos primeiros tempos, recalcada por uma força misteriosa, despertava. Outra vez a febre voluptuosa nos arrebataria para abrir-nos a mansão do prazer e dos mágicos deleites.

A minha esperança afagava-me tanto mais risonha, quanto desde o momento cruel em que vira Lúcia quase morta nos meus braços, nunca mais a ponta mimosa do seu lábio roçara sequer pelo meu, ávido de carícias. O seu beijo quase de irmã apenas de longe em longe bafejava-me a fronte; e isso mesmo depois de ter-me cerrado as pálpebras com a mão, para que eu não visse arder o lacre de suas faces.

A porta abriu-se enfim.

Lúcia apareceu trazendo a irmã pela mão. Sua fisionomia e atitude reslumbravam já a casta serenidade, que obrigava quantos a cercavam agora, a uma doce e terna veneração. Procurei debalde, sob essa calma aparência, um vestígio das emoções recentes; a tranqüilidade vinha do íntimo, exalava dos seios d'alma, e difundia-se brandamente por toda a sua pessoa. Julgaria que nada tinha passado, se as lágrimas já estanques não houvessem empanado a habitual limpidez de seu olhar.

Ana adiantou-se para mim, e dando-me a mão como costumava, apresentou rubescente a fronte pura e angélica. Admirado não sabia o que fizesse, quando por cima da loura cabeça da menina vi o gesto imperativo de Lúcia. Toquei com os lábios a raiz daqueles cabelos sedosos que ondulavam com o sopro de minha respiração. Ana teve um estremecimento intimo; e banhou-se na onda de púrpura que descendo-lhe da fronte, derramou-se pelas espáduas, roseando a branca escumilha.

-É assim que se deve dizer adeus quando se quer bem! exclamou Lúcia, abraçando a irmã.

Partimos para a missa, como de costume. Lúcia e a irmã com os braços enlaçados, eu a alguma distância, passando por desconhecidos que seguiam o mesmo caminho. Mas de longe mesmo, um olhar rápido trocado a furto, um gesto imperceptível, nos aproximava um do outro no meio da multidão.

Ambas trajavam de preto, com véus espessos; elas sentiam quanto é tocante o uso de só penetrar na casa de Deus ocultando a beleza sob a gala triste e grave, que prepara o espírito para o santo recolho.

De volta da missa, tomaram de novo as suas alvas roupas de casa, e vieram sentar-se junto de mim; porém Lúcia que costumava ficar entre nós, trocou o lugar com a irmã. Toda a nossa vida era tão igual, e sucedia-se com tal regularidade, que essa circunstância não me podia escapar.

Apesar da separação, em que não tinha de todo perdido a minha fagueira esperança, aproveitava o momento em que a menina voltava o rosto, para suplicar Lúcia com um gesto; ela respondeu com um olhar de tão fria severidade que gelou-me.

-Ana, vai mandar deitar o almoço. Paulo hoje acordou muito cedo!

Acompanhou com os olhos a irmã até que ela desapareceu no fundo do corredor; e voltou-se para mim séria e recolhida:

-Foi uma loucura! Esqueçamos esse momento, Paulo.

-Se tivesses verdadeira afeição a teu amigo, Maria, não o tratarias com tanta severidade!

-Paulo! Paulo... Tu bem sabes que com esta palavra me farias cometer crimes, se crimes fossem necessários para te provar que eu só vivo da vida que me dás, e me podes tirar com um sopro. Não sou eu criatura tua? Não renasci pela luz que derramaste em minha alma? Não és meu senhor, meu artista, meu pai e meu criador?

Fez-me um gesto para que não a interrompesse.

-Tu podes me fazer voltar à treva de que me arrancaste; podes estancar as fontes de minha existência que manam de tua alma; e não me hás de ouvir uma só queixa. A dor, como a alegria, serão sempre benditas, porque virão de ti. Mas, Paulo, a súplica do humilde não ofende. Deus a permite e exalça. Não me retires a graça e a bênção que me deste! Salva-me, Paulo! Salva-me de ti. Salva-me de mim mesma!...

Deixou-se cair a meus pés, e sua voz espedaçou-se num grito pungente:

-De mim que não terei forças para resistir, se a tua coragem me não exaltar.

Ergui-a, fazendo-a sentar nos meus joelhos. Ela deixou-se atrair, com meiga confiança. Seu instinto sutil lhe dizia que não devia temer naquele momento; adivinhava o respeito e a unção de que minha alma a envolvia, santificando-a.

-Maria, minha amiga, sossega! Se for preciso, eu terei força por nós ambos. Perdoa-me, porque te ofendi; não soube resistir. Não sucederá mais nunca, eu te prometo! Recobra o teu sorriso celeste, que me purifica!

Lúcia sorriu; nesse sorriso banhou-se minha alma e eu a senti melhor e mais pura.

-Tu és bom, como Deus, que me deu a ti, Paulo, para não esperdiçar as sobras de tua alma. Tu deves ler dentro de mim, e compreender o que eu não sei dizer, o que não sei nem mesmo pensar. A vida como tu ma fizeste é a bem-aventurança, porque vivo já no céu. Entre nós ambos nada existe; tu me absorves em ti, somos um: em torno de nós só Deus que nos protege, que nos une, e envolve-nos com um único de seus olhares. Tu, Paulo, tu podes tocar a terra sem quebrar essa coesão de nossas almas; porque sou uma coisa tua, uma porção de teu ser; porque te pertenço e te sigo fatalmente; porque na terra, como no céu, longe ou perto, vivo de tua vida. Mas tua Maria, o reflexo de tua luz e a flor de tua seiva, se ela caísse no pó, se desprenderia de ti para sempre... Como aqueles a quem o Senhor abandona na hora extrema! Compreendes, Paulo, compreendes!

Respondi apenas com o olhar; a voz me falecia, tanto aquelas palavras tocantes de Lúcia me comoviam.

-Se estivesses junto de mim durante aquela eternidade de vinte dias em que me deixaste só com a minha consciência, verias que martírio foi o meu, quando eu queria erguer-me do abismo para abrigar-me e esconder-me em ti; mas sentia a tua própria mão que me repelia e precipitava de novo! Verias também no meu rosto quanto horror me causava a só idéia de que eu talvez trouxesse já nas entranhas o verme que me devia roer as vísceras. Que importa que esse verme fosse gerado do teu e do meu sangue? Ele me arrancaria uma porção deste espírito que é teu, e criaria uma vida nova nesta carne que já morreu, e não pode ressuscitar para sentimento algum!

Ana veio chamar-nos para almoçar.

Saindo da mesa, dávamos habitualmente algumas voltas pelo jardim: elas colhendo flores para os vasos, eu fumando o meu charuto. Às dez horas pouco mais ou menos entrávamos. Lúcia levava-nos então para o seu toucador bem pobre e bem modesto, mas ainda assim encantador, como tudo que essa mulher tocava com as pontas de seus dedos de fada ou bafejava com o seu hálito celeste.

Então Lúcia ocupava-se em anelar os cabelos louros da irmã e a toucá-la com tanto esmero como se a preparasse para alguma festa esplêndida; essa festa era a nossa intimidade, que Ana alegrava com o seu sorriso e inocência. Depois de ter posto a irmã tão bonita, quanto ela caprichava em tornar-se simples, fazia-me admirar aquela formosura infantil e gozava do prazer que nos fazia sentir. Durante o seu trabalho, eu lia para ambas alguma página de literatura, ou falava sobre um tema agradável.

Nesse dia porém a ordem de nossa comum existência fora perturbada. Lúcia chamou-me para ajudá-la a pentear a irmã: fez-me sentar ao lado; deu-me a segurar um após outro os lindos anéis que se enroscavam entre os seus dedos; e rindo e folgando afagava-me o rosto com a nuvem desses cabelos finos e sutis, e obrigava-me a beijar as pontas. O que ela exigiria de mim que eu não fizesse para vê-la feliz do seu desejo satisfeito?

Às duas horas costumava eu sair e fazer um passeio pelo encanamento. Esse caminho estava tão cheio da imagem de Lúcia, que deixando-a em casa um momento, parecia-me que ela me acompanhava, que eu sentia a pressão do seu braço no meu e a frescura embalsamada do seu hálito na minha face; ao mais leve estremecimento das folhas supunha ouvir o rugir da seda de seu vestido. Trazia do meu passeio alguma flor silvestre, uma borboleta, qualquer coisa, colhida em sua intenção para dizer-lhe que me lembrara dela: eram relíquias para o seu coração.

Quando cheguei, Lúcia estava só no jardim, debaixo de uma espessa e sombria latada de maracujás, tão absorvida em sua meditação que não me percebeu.

-Onde andava este pensamento tão longe de mim? disse-lhe sentando-me ao lado.

Sobressaltou-se, e abanou a cabeça sorrindo:

-Longe de ti?... Estava fazendo projetos para a nossa felicidade.

-Já não é ela uma realidade, Maria?

-E por isso, porque eu sei o que ela vale, receio que não dure sempre. Tu vives num mundo, Paulo, onde há condições que serás obrigado a aceitar, cedo ou tarde; um dia sentirás a necessidade de criar uma família, e gozar das afeições domésticas.

-Não me casarei nunca!

-Agradeço-te essa palavra; mas recuso o sacrifício. Se a tua bondade por mim não te cegasse neste momento, me darias razão. Há sentimentos e gozos que ainda não sentiste, e só uma esposa casta e pura te pode dar. Por mim te havias de privar de tão santas afeições, como são o amor conjugal e o amor paterno?

-Assim, eram estes os projetos que fazias sobre a nossa felicidade? repliquei com um sorriso amargo. Se essa necessidade de que falas é tão forte que ninguém se pode esquivar a ela, o que eu contesto, nunca pensei que fosses tu que a lembrasse.

-Escuta-me primeiro, Paulo, meu amigo; depois pune-me, se eu merecer, mas não retires de mim o teu olhar. Pensas que essa idéia de que um dia me poderás abandonar por uma mulher a quem deverás consagrar toda a tua vida, não me tortura? Se assim fosse, por que me preocuparia com isto? É porque temo essa desgraça, que refletia no meio único de evitá-la.

-E esse meio?... Qual é ele? Dize-me.

-Ana! respondeu Lúcia timidamente.

Não compreendi.

-Poderias escolher uma noiva rica, de alta posição, porém não acharás alma tão pura, nem mais casto amor.

-Queres casar-me com Ana? Com tua irmã, Maria?

-Quero uni-la ao santo consórcio de nossas almas. Formaremos uma só família; os filhos que ela te der, serão meus filhos também; as carícias que lhe fizeres, eu as receberei na pessoa dela. Seremos duas para amar-te; uma só para o teu amor. Ela será tua esposa; eu completarei todas as outras afeições de que careces, serei tua irmã, tua filha, tua mãe!

-E podes dispor assim dos sentimentos de Ana?

-Era preciso que ela não vivesse comigo, para deixar de amar-te! Já te ama. Não sabes então que o meu pensamento e a minha alegria têm sido formar aquela alma pelo molde da minha?

-Tudo isto é um sonho teu, minha amiga! Vivamos com a realidade; e deixemos vir um futuro que pertence a Deus.

-Por que este sonho não se realizaria, querendo tu? Seria a consagração da minha felicidade. Sim; não há sacrifício de minha parte. Ana te daria os castos prazeres que não posso dar-te; e recebendo-os dela, ainda os receberias de mim. Que podia eu mais desejar neste mundo? Que vida mais doce do que viver da ventura de ambos? Ana se parece comigo; amarias nela minha imagem purificada, beijarias nela os meus lábios virgens; e minha alma entre a sua boca e tua gozaria dos beijos de ambos. Que suprema delícia...

Lúcia calou-se de súbito, empalidecendo. Toda a sua pessoa assumiu-se, tomando a expressão vaga e estática de quem é absorvido por um recolho íntimo: figurava uma pessoa escutando-se viver interiormente. Até que ergueu-se espavorida; soltou um gemido pungente levando a mão ao regaço, e caiu fulminada em meus braços.

O abalo interior que sofrera esse corpo delicado fora tão forte, que a cintura do vestido se despedaçara.

Conduzi Lúcia ao seu leito, e só depois de cruéis angústias tive o consolo de vê-la recobrar os sentidos, mas para cair logo numa prostração, em que apesar dos meus rogos e instâncias, só a ouvia murmurar surdamente estas palavras incompreensíveis:

-Eu adivinhava que ele me levaria consigo!

-Ele quem, minha boa Maria?

-O teu, o nosso filho! respondeu-me ela.

-Como! Julgas?...

-Senti há pouco o seu primeiro e o seu último movimento!

-Um filho! Mas é um novo laço e mais forte que nos prende um ao outro. Serás mãe, minha querida Maria? Terás mais esse doce sentimento da maternidade para encher-te o coração; terás mais uma criatura com quem repartir a riqueza inexaurível de tua alma!

-Cala-te, Paulo! Ele morreu! disse-me com a voz surda. E fui eu que o matei!

-Para que te afliges assim! Nosso filho vive, há de viver! Não sentiste há pouco o seu primeiro movimento!

Nisto chegou o médico a quem tinha escrito imediatamente, e que depois de examinar o estado de Lúcia, declarou que não inspirava receio. Ela estava ameaçada de um aborto, resultado do choque violento que sofrera, quando conheceu que se achava grávida. O doutor, um dos mais hábeis parteiros da corte, procurou desvanecer os receios de Lúcia, assegurando-lhe que seu filho vivia, e nada ainda fazia recear pela sua vida.

Apenas o médico saiu, ela olhou-me tristemente:

-Era o primeiro! Mas o tato das entranhas maternas, sejam elas virgens ainda, não engana. Nosso filho, Paulo, o teu, porque ele era mais teu do que meu, já não existe.

À noite declarou-se a febre; uma febre intensa que a fez delirar. Foi então que conheci quanto eu vivia no seu pensamento: ela não disse no delírio uma só palavra que não se referisse a mim e a alguma circunstância de nossa vida mútua, desde o primeiro dia em que nos encontramos.

Pela manhã, depois de um sono curto e agitado, achei-a mais tranqüila:

-Tu me prometes, Paulo, casar com Ana!

-Não tratemos disso agora, minha amiga! Quando ficares boa, tudo o que tu quiseres eu farei para a tua felicidade.

-Mas essa promessa me daria tanto agora!

Escuta, Maria, esse casamento nos tornaria infelizes a ti, a tua irmã, e a mim que não poderia amá-la, mesmo por causa dessa semelhança! Tu viverias sempre entre mim e ela!

-Pois bem, promete-me que se ela não for tua mulher, lhe servirás de pai.

-Juro-te!

Beijou-me as mãos:

-Ela vai ter tanta necessidade de um pai!

Os acessos de febre repetiram-se durante três dias, e sempre mais graves. Uma tarde em que o médico apresentou a Lúcia um remédio:

-Para que é isso? perguntou ela com brandura.

-Para aliviá-la do seu incômodo. Logo que lançar o aborto, ficará inteiramente boa.

-Lançar!... Expelir meu filho de mim?

E o copo que Lúcia sustentava na mão trêmula, impelido com violência, voou pelo aposento e espedaçou-se de encontro à parede.

-Iremos juntos!... murmurou descaindo inerte sobre as almofadas do leito. Sua mãe lhe servirá de túmulo.

De joelhos à cabeceira eu suplicava-lhe que bebesse o remédio que a devia salvar.

-Queres acompanhar teu filho, Maria, e abandonar-me só neste mundo. Vive por mim!

-Se eu pudesse viver, haveria forças que me separassem de ti? Haveria sacrifício que eu não fizesse para comprar mais alguns dias da minha felicidade? Mas Deus não quis. Sinto que a vida me foge!

A instâncias minhas bebeu finalmente o remédio, que nenhum efeito produziu. A febre lavrava com intensidade; eu já não tinha esperanças.

-O remédio de que eu preciso é o da religião. Quero confessar-me, Paulo.

Lúcia tomou os sacramentos com uma resignação angélica; e abraçando a irmã, disse-lhe:

-Perdes uma irmã, Ana; fica-te um pai. Ama-o por ele, por ti e por mim.

O dia se passou na cruel agonia que só compreendem aqueles que ajoelhados à borda de um leito viram finar-se gradualmente uma vida querida.

Quebrado de fadiga e vencido por uma vigília de tantas noites, tinha insensivelmente adormecido, sentado como estava à beira da cama, com os lábios sobre a mão gelada de Lúcia e a testa apoiada no recosto do leito. O sono foi curto, povoado de sonhos horríveis; acordei sobressaltado e achei-me reclinado sobre o peito de Lúcia, que se sentara de encontro às almofadas para suster minha cabeça ao colo, como faria uma terna mãe com seu filho.

Mesmo adormecido ela me sorria, me falava, e cobria-me de beijos:

-Se soubesses que gozo supremo é para mim beijar-te neste momento! Agora que o corpo já está morto e a carne álgida, não sente nem a dor nem o prazer, é a minha alma só que te beija, que se une à tua e se desprende parcela por parcela para se embeber em teu seio.

E seus lábios ávidos devoravam-me o rosto de carícias, bebendo o pranto que corria abundante de meus olhos:

-Se alguma coisa me pudesse salvar ainda, seria esse bálsamo celeste, meu amigo!

Eu soluçava como uma criança.

-Beija-me também, Paulo. Beija-me como beijarás um dia tua noiva! Oh! agora posso te confessar sem receio. Nesta hora não se mente. Eu te amei desde o momento em que te vi! Eu te amei por séculos nestes poucos dias que passamos juntos na terra. Agora que a minha vida se conta por instantes, amo-te em cada momento por uma existência inteira. Amo-te ao mesmo tempo com todas as afeições que se pode ter neste mundo. Vou te amar enfim por toda a eternidade.

A voz desfaleceu completamente, de extenuada que ela ficara por esse enérgico esforço. Eu chorava de bruços sobre o travesseiro, e as suas palavras suspiravam docemente em minha alma, como as dulias dos anjos devem ressoar aos espíritos celestes.

-Nunca te disse que te amava, Paulo!

-Mas eu sabia, e era feliz!

-Tu me purificaste ungindo-me com os teus lábios. Tu me santificaste com o teu primeiro olhar! Nesse momento Deus sorriu e o consórcio de nossas almas se fez no seio do Criador. Fui tua esposa no céu! E contudo essa palavra divina do amor, minha boca não a devia profanar, enquanto viva. Ela será meu último suspiro.

Lúcia pediu-me que abrisse a janela: era noite já; do leito víamos uma zona de azul na qual brilhava límpida e serena a estrela da tarde. Um sorriso pálido desfolhou-se ainda nos lábios sem cores: sublime êxtase iluminou a suave transparência de seu rosto. A beleza imaterial dos anjos deve ter aquela divina limpidez.

-Recebe-me... Paulo!...

Terminei ontem este manuscrito, que lhe envio ainda úmido de minhas lágrimas.

Relendo-o, admirei como tivera a coragem de alguma vez, no correr desta história, deixar a minha pena rir e brincar, quando o meu coração estava ainda cheio da saudade, que sepultou-se nele para sempre.

É porque, repassando na memória essa melhor porção de minha vida, alheio-me tanto do presente que revivo hora por hora aqueles dias de ventura, como de primeiro os vivo, ignorando o futuro, e entregue todo às emoções que sentia outrora. Quando eu gracejava, Lúcia estava ainda ao meu lado; ainda eu era feliz da minha lembrada felicidade.

Há seis anos que ela me deixou; mas eu recebi a sua alma, que me acompanhará eternamente. Tenho-a tão viva e presente no meu coração, como se ainda a visse reclinar-se meiga para mim. Há dias no ano e horas no dia que ela sagrou com a sua memória, e lhe pertencem exclusivamente. Onde quer que eu esteja, a sua alma me reclama e atrai; é forçoso então que ela viva em mim. Há também lugares e objetos onde vagam seus espíritos; não os posso ver sem que o seu amor me envolva como uma luz celeste.

Ana casou-se há dois anos. Vive feliz com seu marido, que a ama como ela merece. É um anjo de bondade; e a juventude realçando-lhe as graças infantis, aumentou a sua semelhança com a irmã; porém falta-lhe aquela irradiação íntima de fogo divino. Almas como as de Lúcia, Deus não as dá duas vezes à mesma família, nem as cria aos pares, mas isoladas como os grandes astros destinados a esclarecer uma esfera.

Cumpri a vontade de minha Lúcia; tenho servido de pai a essa menina; com a sua felicidade paguei um óbolo de minha gratidão à doce amiga que tanto amou-me.

Estas páginas foram escritas unicamente para a senhora. Vazei nelas toda a minha alma para lhe transmitir um perfume da mulher sublime, que passou na minha vida como sonho fugace. Creio que não o consegui; por isso fecho aqui alguns fios da trança de cabelos, que cortei no momento de dizer o último adeus à sua imagem querida.

Há nos cabelos da pessoa que se ama não sei que fluido misterioso, que comunica com o nosso espírito. A senhora há de amar Lúcia, tenho a certeza; talvez pois aquela relíquia, ainda impregnada de seiva e fragrância da criatura angélica, lhe revele o que eu não pude exprimir.