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O mulato

Aluísio de Azevedo

Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes, as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças d'água passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem-cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho.

A Praça da Alegria apresentava um ar fúnebre. De um casebre miserável, de porta e janela, ouviam-se gemer os armadores enferrujados de uma rede e uma voz tísica e aflautada, de mulher, cantar em falsete a «gentil Carolina era bela»; do outro lado da praça, uma preta velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso, cheio de sangue e coberto por uma nuvem de moscas, apregoava em tom muito arrastado e melancólico: «Fígado, rins e coração!» Era uma vendedeira de fatos de boi. As crianças nuas, com as perninhas tortas pelo costume de cavalgar as ilhargas maternas, as cabeças avermelhadas pelo sol, a pele crestada os ventrezinhos amarelentos e crescidos, corriam e guinchavam, empinando papagaios de papel. Um ou outro branco, levado pela necessidade de sair, atravessava a rua, suado, vermelho, afogueado, à sombra de um enorme chapéu-de-sol. Os cães, estendidos pelas calçadas, tinham uivos que pareciam gemidos humanos, movimentos irascíveis, mordiam o ar querendo morder os mosquitos. Ao longe, para as bandas de São Pantaleão, ouvia-se apregoar: «Arroz de Veneza! Mangas! Mocajubas!» Às esquinas, nas quitandas vazias, fermentava um cheiro acre de sabão da terra e aguardente. O quitandeiro, assentado sobre o balcão, cochilava a sua preguiça morrinhenta, acariciando o seu imenso e espalmado pé descalço. Da Praia de Santo Antônio enchiam toda a cidade os sons invariáveis e monótonos de uma buzina, anunciando que os pescadores chegavam do mar; para lá convergiam, apressadas e cheias de interesse, as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas.

A Praia Grande e a Rua da Estrela contrastavam todavia com o resto da cidade, porque era aquela hora justamente a de maior movimento comercial. Em todas as direções cruzavam-se homens esbofados e rubros; cruzavam-se os negros no carreto e os caixeiros que estavam em serviço na rua; avultavam os paletós-sacos, de brim pardo, mosqueados nas espáduas e nos sovacos por grandes manchas de suor. Os corretores de escravos examinavam, à plena luz do sol, os negros e moleques que ali estavam para ser vendidos; revistavam-lhes os dentes, os pés e as virilhas; faziam-lhes perguntas sobre perguntas, batiam-lhes com a biqueira do chapéu nos ombros e nas coxas, experimentando-lhes o vigor da musculatura, como se estivessem a comprar cavalos. Na Casa da Praça, debaixo das amendoeiras, nas portadas dos armazéns, entre pilhas de caixões de cebolas e batatas portuguesas, discutiam-se o câmbio, o preço do algodão, a taxa do açúcar, a tarifa dos gêneros nacionais; volumosos comendadores resolviam negócios, faziam transações, perdiam, ganhavam, tratavam de embarrilar uns aos outros, com muita manha de gente de negócios, falando numa gíria só deles trocando chalaças pesadas, mas em plena confiança de amizade. Os leiloeiros cantavam em voz alta o preço das mercadorias, com um abrimento afetado de vogais; diziam: «Mal-rais» em vez de mil-réis. À porta dos leilões aglomeravam-se os que queriam comprar e os simples curiosos. Corria um quente e grosseiro zunzum de feira.

O leiloeiro tinha piscos de olhos significativos; de martelo em punho, entusiasmado, o ar trágico, mostrava com o braço erguido um cálice de cachaça, ou, comicamente acocorado, esbrocava com o furador os paneiros de farinha e de milho. E, quando chegava a ocasião de ceder a fazenda, repetia o preço muitas vezes, gritando, e afinal batia o martelo com grande barulho, arrastando a voz em um tom cantado e estridente.

Viam-se deslizar pela praça os imponentes e monstruosos abdomens dos capitalistas; viam-se cabeças escarlates e descabeladas, gotejando suor por debaixo do chapéu de pêlo; risinhos de proteção, bocas sem bigode dilatadas pelo calor, perninhas espertas e suadas na calça de brim de Hamburgo. E toda esta atividade, posto que um tanto fingida, era geral e comunicativa; até os ricos ociosos, que iam para ali encher o dia, e os caixeiros, que «faziam cera» e até os próprios vadios desempregados, aparentavam diligência e prontidão.

A varanda do sobrado de Manuel Pescada, uma varanda larga e sem forro no teto, deixando ver as ripas e os caibros que sustentavam as telhas, tinha um aspecto mais ou menos pitoresco com a sua bela vista sobre o rio Bacanga e as suas rótulas pintadas de verde-paris. Toda ela abria para o quintal, estreito e longo, onde, à mingua de sol, se mirravam duas tristes pitangueiras e passeava solenemente um pavão da terra.

As paredes, barradas de azulejos portugueses e, para o alto, cobertas de papel pintado, mostravam, nos seus desenhos repetidos de assuntos de caça, alguns lugares sem tinta, cujas manchas brancacentas traziam à idéia joelheiras de calças surradas. Ao lado, dominando a mesa de jantar, aprumava-se um velho armário de jacarandá polido, muito bem tratado, com as vidraças bem limpas, expondo as pratas e as porcelanas de gosto moderno; a um canto dormia, esquecida na sua caixa de pinho envernizado, uma máquina de costura de Wilson, das primeiras que chegaram ao Maranhão; nos intervalos das portas simetrizavam-se quatro estudos de Julien, representando em litografia as estações do ano; defronte do guarda-louça um relógio de corrente embalava melancolicamente a sua pêndula do tamanho de um prato e apontava para as duas horas. Duas horas da tarde.

Não obstante, ainda permanecia sobre a mesa a louça que servira ao almoço. Uma garrafa branca, com uns restos de vinho de Lisboa cintilava à claridade reverberante que vinha do quintal. De uma gaiola, dependurada entre as janelas desse lado, chilreava um sabiá.

Fazia preguiça estar ali. A viração do Bacanga refrescava o ar da varanda e dava ao ambiente um tom morno e aprazível. Havia a quietação dos dias inúteis, uma vontade lassa de fechar os olhos e esticar as pernas. Lá defronte, nas margens opostas do rio, a silenciosa vegetação do Anjo da Guarda estava a provocar boas sestas sobre o capim, debaixo das mangueiras; as árvores pareciam abrir de longe os braços, chamando a gente para a calma tepidez das suas sombras.

-Então, Ana Rosa, que me respondes?... disse Manuel, esticando-se mais na cadeira em que se achava assentado, à cabeceira da mesa, em frente da filha. Bem sabes que te não contrario... desejo este casamento, desejo... mas, em primeiro lugar, convém saber se ele é do teu gosto... Vamos... fala!

Ana Rosa não respondeu e continuou muito embebida, como estava, a rolar sob a ponta cor-de-rosa dos seus dedos as migalhas de pão que ia encontrando sobre a toalha.

Manuel Pedro da Silva, mais conhecido por Manuel Pescada, era um português de uns cinqüenta anos, forte, vermelho e trabalhador. Diziam-no atilado para o comércio e amigo do Brasil. Gostava da sua leitura nas horas de descanso, assinava respeitosamente os jornais sérios da província e recebia alguns de Lisboa. Em pequeno meteram-lhe na cabeça vários trechos do Camões e não lhe esconderam de todo o nome de outros poetas. Prezava com fanatismo o Marquês de Pombal, de quem sabia muitas anedotas e tinha uma assinatura no Gabinete Português, a qual lhe aproveitava menos a ele do que à filha, que era perdida pelo romance.

Manuel Pedro fora casado com uma senhora de Alcântara, chamada Mariana, muito virtuosa e, como a melhor parte das maranhenses, extremada em pontos de religião; quando morreu, deixou em legado seis escravos a Nossa Senhora do Carmo.

Bem triste foi essa época, tanto para o viúvo como para a filha, orfanada; coitadinha, justamente quando mais precisava do amparo maternal. Nesse tempo moravam no Caminho Grande, numa casinha térrea, para onde a moléstia de Mariana os levara em busca de ares mais benignos; Manuel, porém, que era já então negociante e tinha o seu armazém na Praia Grande, mudou-se logo com a pequena para o sobrado da Rua da Estrela, em cujas lojas prosperava, havia dez anos, no comércio de fazendas por atacado.

Para não ficar só com a filha «que se fazia uma mulher» convidou a sogra, D. Maria Bárbara, a abandonar o sítio em que vivia e ir morar com ele e mais a neta. «A menina precisava de alguém que a guiasse, que a conduzisse! Um homem nunca podia servir para essas coisas! E, se fosse a meter em casa uma preceptora -Meu bom Jesus! -que não diriam por ai?... No Maranhão falava-se de tudo! D. Maria Bárbara que se decidisse a deixar o mato e fosse de muda para a Rua da Estrela! Não teria que se arrepender... havia de estar como em sua própria casa -bom quarto, boa mesa, e plena liberdade!»

A velha aceitou e lá foi, arrastando os seus cinqüenta e tantos anos, alojar-se em casa do genro, com um batalhão de moleques, suas crias, e com os cacaréus ainda do tempo do defunto marido. Em breve, porém, o bom português estava arrependido do passo que dera: D. Maria Bárbara, apesar de muito piedosa; apesar de não sair do quarto sem vir bem penteada, sem lhe faltar nenhum dos cachinhos de seda preta, com que ela emoldurava disparatadamente o rosto enrugado e macilento; apesar do seu grande fervor pela igreja e apesar das missas que papava por dia, D. Maria Bárbara, apesar de tudo isso, saíra-lhe «má dona de casa».

Era uma fúria! Uma víbora! Dava nos escravos por hábito e por gosto; só falava a gritar e, quando se punha a ralhar -Deus nos acuda!-, incomodava toda a vizinhança! Insuportável!

Maria Bárbara tinha o verdadeiro tipo das velhas maranhenses criadas na fazenda. Tratava muito dos avós, quase todos portugueses; muito orgulhosa; muito cheia de escrúpulos de sangue. Quando falava nos pretos, dizia «Os sujos» e, quando se referia a um mulato dizia «O cabra». Sempre fora assim e, como devota, não havia outra: Em Alcântara, tivera uma capela de Santa Bárbara e obrigava a sua escravatura a rezar aí todas as noites, em coro, de braços abertos, às vezes algemados. Lembrava-se com grandes suspiros do marido «do seu João Hipólito» um português fino, de olhos azuis e cabelos louros.

Este João Hipólito foi brasileiro adotivo e chegou a fazer alguma posição oficial na secretaria do governo da província. Morreu com o posto de coronel.

Maria Bárbara tinha grande admiração pelos portugueses, dedicava-lhes um entusiasmo sem limites, preferia-os em tudo aos brasileiros. Quando a filha foi pedida por Manuel Pedroso, então principiante no comércio da capital, ela dissera: «Bem! Ao menos tenho a certeza de que é branco!»

Mas o Pescada não compreendeu a esposa, nem foi amado por ela; a virtude, ou talvez simplesmente a maternidade, apenas conseguiu fazer de Mariana uma companheira fiel; viveu exclusivamente para a filha. É que a desgraçada, desde os quinze anos, ainda no irresponsável arrebatamento do primeiro amor, havia eleito já o homem a quem sua alma teria de pertencer por toda a vida. Esse homem existe hoje na história do Maranhão, era o agitador José Cândido de Moraes e Silva conhecido popularmente pelo «Farol». Fez todo o possível para casar com ele, mas foram baldados os seus esforços, nem só em virtude das perseguições políticas que, tão cedo, atribularam a curta existência daquela fenomenal criatura, como também pela inflexível oposição que tal idéia encontrou na própria família da rapariga.

Entretanto, o destino dela se havia prendido à sorte do desventurado maranhense. Quem diria que aquela pobre moça, nascida e criada nos sertões do Norte, sentiria, como qualquer filha das grandes capitais, a mágica influência que os homens superiores exercem sobre o espírito feminino? Amou-o, sem saber por quê. Sentira-lhe a força dominadora do olhar, os ímpetos revolucionários do seu caráter americano, o heroísmo patriótico da sua individualidade tão superior ao meio em que floresceu; decorara-lhe as frases apaixonadas e vibrantes de indignação, com que ele fulminava os exploradores da sua pátria estremecida e os inimigos da integridade nacional; e tudo isso, sem que ela soubesse explicar, arrebatou-a para o belo e destemido moço com todo o ardor do seu primeiro desejo de mulher.

Quando, na Rua dos Remédios, que nesse tempo era ainda um arrabalde, o desditoso herói, apenas com pouco mais de vinte e cinco anos de idade sucumbiu ao jugo do seu próprio talento e da sua honra política, oculto, foragido, cheio de miséria, odiado por uns como um assassino e adorado por outros como um deus, a pobre senhora deixou-se possuir de uma grande tristeza e foi enfraquecendo, e ficando doente, e ficando feia e cada vez mais triste, até morrer silenciosamente poucos anos depois do seu amado.

Ana Rosa não chegou a conhecer o Farol; a mãe porém, muito em segredo, ensinara-lhe a compreender e respeitar a memória do talentoso revolucionário, cujo nome de guerra despertava ainda, entre os portugueses, a raiva antiga do motim de 7 de agosto de 1831. «Minha filha, disse-lhe a infeliz já nas vésperas da morte, não consintas nunca que te casem, sem que ames deveras o homem a ti destinado para marido. Não te cases no ar! Lembra-te que o casamento deve ser sempre a conseqüência de duas inclinações irresistíveis. A gente deve casar porque ama, e não ter de amar porque casou. Se fizeres o que te digo, serás feliz!» Concluiu pedindo-lhe que prometesse, caso algum dia viessem a constrangê-la a aceitar marido contra seu gosto, arrostar tudo, tudo, para evitar semelhante desgraça, principalmente se então Ana Rosa já gostasse de outro; e por este, sim, fosse quem fosse, cometesse os maiores sacrifícios, arriscasse a própria vida, porque era nisso que consistia a verdadeira honestidade de uma moça.

E mais não foram os conselhos que Mariana deu à filha. Ana Rosa era criança, não os compreendeu logo, nem tão cedo procurou compreendê-los; mas, tão ligados estavam eles à morte da mãe, que a idéia desta não lhe acudia à memória sem as palavras da moribunda.

Manuel Pedro, apesar de bom, era um desses homens mais que alheados às sutilezas do sentimento; para outra mulher daria talvez um excelente esposo, não para aquela, cuja sensibilidade romântica, longe de o comover, havia muita vez de importuná-lo. Quando se achou viúvo, não sentiu, a despeito da sua natural bondade, mais do que certo desgosto pela ausência de uma companheira com que já se tinha habituado; contudo, não pensou em tornar a casar, convencido de que o afeto da filha lhe chegaria de sobra para amenizar as canseiras do trabalho, e que o auxílio imediato da sogra bastaria para garantir a decência da sua casa e a boa regra das suas despesas domésticas.

Ana Rosa cresceu pois, como se vê, entre os desvelos insuficientes do pai e o mau gênio da avó. Ainda assim aprendera de cor a gramática do Sotero dos Reis; lera alguma coisa; sabia rudimentos de francês e tocava modinhas sentimentais ao violão e ao piano. Não era estúpida; tinha a intuição perfeita da virtude, um modo bonito, e por vezes lamentara não ser mais instruída. Conhecia muitos trabalhos de agulha; bordava como poucas, e dispunha de uma gargantazinha de contralto que fazia gosto ouvir.

Tanto assim que, em pequena, servira várias vezes de anjo da verônica nas procissões da quaresma. E os cônegos da Sé gabavam-lhe o metal da voz e davam-lhe grandes cartuchos de amêndoas de mendubim, muito enfeitados nas suas pinturas, toscas e características, feitas a goma-arábica e tintas de botica. Nessas ocasiões ela sentia-se radiante, com as faces carminadas, a cabeça coberta de cachos artificiais, grande roda no vestido curto, a jeito de dançarina. E, muito concha, ufana dos seus galões de prata e ouro e das suas trêmulas asas de papelão e escumillha, caminhava triunfante e feliz no meio do cordão das irmandades religiosas, segurando a extremidade de um lenço, do qual o pai segurava a outra. Isto eram promessas feitas pela mãe ou pela avó em dias de grande enfermidade na família.

E crescera sempre bonita de formas. Tinha os olhos pretos e os cabelos castanhos de Mariana, e puxara ao pai as rijezas de corpo e os dentes fortes. Com a aproximação da puberdade apareceram-lhe caprichos românticos e fantasias poéticas: gostava dos passeios ao luar, das serenatas; arranjou ao lado do seu quarto um gabinete de estudo, uma bibliotecazinha de poetas e romancistas; tinha um Paulo e Virgínia de biscuit sobre a estante e, escondido por detrás de um espelho, o retrato do Farol, que herdara de Mariana.

Lera com entusiasmo a Graziela de Lamartine. Chorou muito com essa leitura e, desde aí, todas as noites, antes de adormecer, procurava instintivamente imitar o sorriso de inocência que a procitana oferecia ao seu amante. Praticava bem com os pobres, adorava os passarinhos e não podia ver matar perto de si uma borboleta. Era um bocadinho supersticiosa: não queria as chinelas emborcadas debaixo da rede e só aparava os cabelos durante o quarto crescente da lua. «Não que acreditasse nessas coisas», justificava-se ela, «mas fazia porque os outros faziam». Sobre a cômoda, havia muito tempo, tinha uma estampa litográfica e colorida de Nossa Senhora dos Remédios e rezava-lhe todas as noites, antes de dormir. Nada conhecia melhor e mais agradável do que um passeio ao Cutim, e, quando soube que se projetava uma linha de bondes até lá, teve uma satisfação violenta e nervosa.

Feitos os quinze anos, ela começou pouco a pouco a descobrir em si estranhas mudanças; percebeu, sentiu que uma transformação importante se operava no seu espírito e no seu corpo: sobressaltavam-na terrores infundados; acometiam-na tristezas sem motivo justificável. Um dia, afinal, acordou mais preocupada; assentou-se na rede, a cismar. E, com surpresa, reparou que seus membros ultimamente se tinham arredondado; notou que em todo seu corpo a linha curva suplantara a reta e que as suas formas eram já completamente de mulher.

Veio-lhe então um sobressalto de contentamento mas logo depois caiu a entristecer: sentia-se muito só; não lhe bastava o amor do pai e da velha Barbara; queria uma afeição mais exclusiva, mais dela.

Lembrou-se dos seus namoros. Riu-se «coisas de criança!...»

Aos doze anos namorara um estudante do Liceu. Haviam conversado três ou quatro vezes na sala do pai e supunham-se deveras apaixonados um pelo outro; o estudante seguiu para a Escola Central da Corte, e ela nunca mais pensou nele. Depois foi um oficial de marinha; «Como lhe ficava bem a farda!... Que moço engraçado! bonito! e como sabia vestir-se!...» Ana Rosa chegou a principiar a bordar um par de chinelas para lho oferecer; antes porém de terminado o primeiro pé, já o bandoleiro havia desaparecido com a corveta «Baiana». Seguiu-se um empregado do comércio. «Muito bom rapaz! muito cuidadoso da roupa e das unhas!...» Parecia-lhe que ainda estava a vê-lo, todo metódico, escolhendo palavras para lhe pedir «a subida honra de dançar com ela uma quadrilha».

-Ah tempos! tempos!...

E não queria pensar ainda em semelhantes tolices. «Coisas de criança! Coisas de criança!...» Agora, só o que lhe convinha era um marido! «O seu», o verdadeiro, o lega!! O homem da sua casa, o dono do seu corpo, a quem ela pudesse amar abertamente como amante e obedecer em segredo como escrava. Precisava de dar-se e dedicar-se a alguém; sentia absoluta necessidade de pôr em ação a competência, que ela em si reconhecia, para tomar conta de uma casa e educar muitos filhos.

Com estes devaneios, acudia-lhe sempre um arrepiozinho de febre; ficava excitada, idealizando um homem forte, corajoso, com um bonito talento, e capaz de matar-se por ela. E, nos seus sonhos agitados, debuxava-se um vulto confuso, mas encantador, que galgava precipícios, para chegar onde ela estava e merecer-lhe a ventura de um sorriso, uma doce esperança de casamento. E sonhava o noivado: um banquete esplêndido! e junto dela, ao alcance de seus lábios, um mancebo apaixonado e formoso, um conjunto de força, graça e ternura, que a seus pés ardia de impaciência e devorava-a com o olhar em fogo.

Depois -via-se dona de casa; pensando muito nos filhos; sonhava-se feliz, muito dependente na prisão do ninho e no domínio carinhoso do marido. E sonhava umas criancinhas louras, ternas, balbuciando tolices engraçadas e comovedoras, chamando-lhe «mamã!»

-Oh! Como devia ser bom!... E pensar que havia por aí mulheres que eram contra o casamento!...

Não! Ela não podia admitir o celibato, principalmente para a mulher!... «Para o homem -ainda passava... viveria triste, só; mas em todo o caso- era um homem... teria outras distrações! Mas uma pobre mulher, que melhor futuro poderia ambicionar que o casamento?... que mais legítimo prazer do que a maternidade; que companhia mais alegre do que a dos filhos, esses diabinhos tão feiticeiros?...» Além de que, sempre gostara muito de crianças: muita vez pedira a quem as tinha que lhas mandasse a fazer-lhe companhia, e, enquanto as pilhava em casa, não consentia que mais ninguém se incomodasse com elas; queria ser a própria a dar-lhes a comida, a lavá-las, a vesti-las, e acalentá-las E estava constantemente a talhar camisinhas e fraldas, a fazer toucas e sapatinhos de lã, e tudo com muita paciência, com muito amor, justamente como, em pequenina, ela fazia com as suas bonecas. Quando alguma de suas amigas se casava, Ana Rosa exigia dela sempre um cravo do ramalhete ou um botão das flores de laranjeira da grinalda; este ou aquele, pregava-os religiosamente no seio com um dos alfinetes dourados da noiva, e quedava-se a fitá-los, cismando, até que dos lábios lhe partia um suspiro longo, muito longo, como o do viajante que em meio do caminho já se sente cansado e ainda não avista o lar.

Mas o noivo por onde andava que não vinha? Esse belo mancebo, tão ardente e tão apaixonado, por que se não apresentava logo? Dos homens que Ana Rosa conhecia na província nenhum decerto podia ser!... E, no entanto, ela amava...

A quem?

Não sabia dizê-lo, mas amava. Sim! Fosse a quem fosse, ela amava; porque sentia vibrar-lhe todo o corpo, fibra por fibra, pensando nesse -Alguém- íntimo e desconhecido para ela; esse -Alguém- que não vinha e não lhe saía do pensamento; esse -Alguém- cuja ausência a fazia infeliz e lhe enchia a existência de lágrimas.

Passaram-se meses -nada! Correram três anos. Ana Rosa principiou a emagrecer visivelmente. Agora dormia menos; estava pálida; à mesa mal tocava nos pratos.

-Ó pequena, tu tens alguma coisa! disse-lhe um dia o pai, já incomodado com aquele ar doentio da filha. Não me pareces a mesma! Que é isso, Anica?

Não era nada!...

E Ana Rosa sobressaltava-se, como se tivera cometido uma falta. «Cansaço! Nervos! Não era coisa que valesse a pena!...»

Mas chorava.

-Olha! Aí temos! Agora o choro! Nada! É preciso chamar o médico!

-Chamar o médico?... Ora papai, não vale a pena!...

E tossia. «Que a deixassem em paz! Que não a estivessem apoquentando com perguntas!...»

E tossia mais, sufocada.

-Vês?! Estás achacada! Levas nesse «Chrum, chrum! chrum chrum!» E é só: «Não vale a pena! Não precisa chamar o médico!...» Não senhora! com moléstias não se brinca!

O médico receitou banhos de mar na Ponta d'Areia.

Foi um tempo delicioso para ela os três meses que aí passou. Os ares da costa, os banhos de choque, os longos passeios a pé, restituíram-lhe o apetite e enriqueceram-lhe o sangue. Ficou mais forte; chegou a engordar.

Na Ponta d'Areia travara uma nova amizade -D. Eufrasinha. Viúva de um oficial do quinto de infantaria, batalhão que morreu todo na Guerra do Paraguai. Muito romântica: falava do marido requebrando-se, e poetizava-lhe a curta história: «Dez dias depois de casados, seguira ele para o campo de batalha e, no denodo da sua coragem, fora atravessado por uma bala de artilharia, morrendo logo a balbuciar com o lábio ensangüentado o nome da esposa estremecida.»

E com um suspiro, feito de desejos mal satisfeitos, a viúva concluía pesarosa que «prazeres nesta vida, conhecera apenas dez dias e dez noites...»

Ana Rosa compadecia-se da amiga e escutava-lhe de boa-fé as frioleiras. Na sua ingênua e comovida sinceridade facilmente se identificava com a história singular daquele casamento tão infeliz e tão simpático. Por mais de uma vez chegou a chorar pela morte do pobre moço oficial de infantaria.

D. Eufrasinha instruiu a sua nova amiga em muitas coisas que esta mal sonhava; ensinou-lhe certos mistérios da vida conjugal; pode dizer-se que lhe deu lições de amor: falou muito nos «homens», disse-lhe como a mulher esperta devia lidar com eles; quais eram as manhas e os fracos dos maridos ou dos namorados; quais eram os tipos preferíveis; o que significava ter «olhos mortos, beiços grossos, nariz comprido».

A outra ria-se. «Não tomava a sério aquelas bobagens da Eufrasinha!»

Mas intimamente ia, sem dar por isso, reconstruindo o seu ideal pelas instruções da viúva. Fê-lo menos espiritual, mais humano, mais verossímil, mais suscetível de ser descoberto; e, desde então, o tipo, apenas debuxado ao fundo dos seus sonhos, veio para a frente, acentuou-se como uma figura que recebesse os últimos toques do pintor; e, depois de vê-lo bem correto, bem emendado e pronto, amou-o ainda mais, muito mais, tanto quanto o amaria se ele fora com efeito uma realidade.

A partir daí, era esse ideal, correto e emendado, a base das suas deliberações a respeito de casamento; era a bitola, por onde ela aferia todo aquele que a requestasse. Se o pretendente não tivesse o nariz, o olhar, o gesto, o conjunto enfim de que constava o padrão, podia, desde logo, perder a esperança de cair nas graças da filha de Manuel Pedro.

Eufrasinha mudou-se para a cidade; Ana Rosa já lá estava. Visitaram-se.

E estas visitas, que se tornaram muito íntimas e repetidas, serviram mutuamente de consolo, ao afincado celibato de uma e a precoce viuvez da outra.

Havia, empregado no armazém do pai de Ana Rosa, um rapaz português, de nome Luís Dias; muito ativo, econômico, discreto, trabalhador, com uma bonita letra, e muito estimado na Praça. Contavam a seu favor invejáveis partidas de tino comercial, e ninguém seria capaz de dizer mal de tão excelente moço.

Ao contrário, quase sempre que falavam dele, diziam «Coitado!» e este -coitado- era inteiramente sem razão de ser, porque ao Dias, graças a Deus, nada faltava: tinha casa, comida, roupa lavada e engomada, e, ainda por cima, os cobres do emprego. Mas a coisa era que o diabo do homem, apesar das suas prósperas circunstâncias, impunha certa lástima, impressionava com o seu eterno ar de piedade, de súplica, de resignação e humildade. Fazia pena, incutia dó em quem o visse, tão submisso, tão passivo, tão pobre rapaz -tão besta de carga. Ninguém, em caso algum, levantaria a mão sobre ele, sem experimentar a repugnância da covardia.

Elogiavam-no entretanto: «Que não fossem atrás daquele ar modesto, porque ali estava um empregadão de truz!»

Vários negociantes ofereceram-lhe boas vantagens para tomá-lo ao seu serviço; mas o Dias, sempre humilde e de cabeça baixa, resistia-lhes a pé firme. E, tal constância opôs as repetidas propostas, que todo o comércio, dando como certo o seu casamento com a filha do patrão, elogiou a escolha de Manuel Pedro e profetizou aos nubentes «um futuro muito bonito e muito rico».

-Foi acertado, foi! diziam com olhar fito.

Manuel Pedro via, com efeito, naquela criatura, trabalhadora e passiva como um boi de carga e econômico como um usurário, o homem mais no caso de fazer a felicidade da filha. Queria-o para genro e para sócio; dizia a todos os colegas que o «seu Dias» apenas retirava por ano, para as suas despesas, a quarta parte do ordenado.

-Tem já o seu pecúlio, tem! considerava ele. A mulher que o quisesse, levava um bom marido! Aquele virá a possuir alguma coisa... é moço de muito futuro!

E, pouco a pouco foi-se habituando a julgá-lo já da família e a estimá-lo e distingüi-lo como tal; só faltava que a pequena se decidisse... Mas qual! ela nem queria vê-lo! Tinha-lhe birra; não podia sofrer aquele cabelo à escovinha, aquele cavanhaque sem bigode, aqueles dentes sujos, aquela economia torpe e aqueles movimentos de homem sem vontade própria.

-Um somítico! classificava Ana Rosa, franzindo o nariz.

Uma ocasião, o pai tocou-lhe no casamento.

-Com o Dias?... perguntou espantada.

-Sim.

-Ora, papai!

E soltou uma risada.

Manuel não se animou a dizer mais palavra; à noite, porém, contou tudo em particular ao compadre, um amigo velho, íntimo da casa -o cônego Diogo.

-Optima soepè despecta! sentenciou este. É preciso dar tempo ao tempo, seu compadre! A coisa há de ser... deixe correr o barco!

No entanto, o Dias não se alterara; esperava calado, pacificamente, sem erguer os olhos, cheio sempre de humildade e resignação.

Assim era, quando Manuel Pedro, na varanda de sua casa, pedia à filha uma resposta definitiva a respeito do casamento. Já lá se iam três meses depois da estada na Ponta d'Areia.

Ana Rosa continuou muda no seu lugar, a fitar a toalha da mesa, como se procurasse aí uma resolução. O sabiá cantava na gaiola.

-Então, minha filha, não dás sequer uma esperança?...

-Pode ser...

E ela ergueu-se...

-Bom. Assim é que te quero ver...

O negociante passou o braço em volta da cintura da rapariga, disposto a conversar ainda, mas foi interrompido por umas passadas no corredor.

-Dá licença? disse o cônego, já na porta da varanda.

-Vá entrando, compadre!

O cônego entrou, devagar, com o seu sorriso discreto e amável.

Era um velho bonito; teria quando menos sessenta anos, porém estava ainda forte e bem conservado; o olhar vivo, o corpo teso, mas ungido de brandura santarrona. Calçava-se com esmero, de polimento; mandava buscar da Europa, para seu uso, meias e colarinhos especiais, e, quando ria, mostrava dentes limpos, todos chumbados a ouro. Tinha os movimentos distintos; mãos brancas e cabelos alvos que fazia gosto.

Diogo era o confidente e o conselheiro do bom e pesado Manuel; este não dava um passo sem consultar o compadre. Formara-se em Coimbra, donde contava maravilhas; um bocadinho rico, e não relaxava o seu passeio a Lisboa, de vez em quando, «para descarregar anos da costa...» explicava ele, a rir.

Logo que entrou, deu a beijar a Ana Rosa o seu grande e trabalhado anel de ametista, obra do Porto, feita de encomenda. E batendo-lhe na face com a mão fina e impregnada de sabonete inglês:

-Então, minha afilhada, como vai essa bizarria?

-Ia bem, agradecida. Sorriu.

-Dindinho está bom?

-Como sempre. Que notícias de D. Babita?

-Estava de passeio.

-Pois não vê a casa sossegada? interrogou Manuel. Foi à missa e naturalmente almoçou por aí com alguma amiga. Deus a conserve por lá! Mas que milagre o trouxe a estas horas cá por casa, seu compadre?

-Um negócio que lhe quero comunicar; particular, um bocado particular.

Ana Rosa fez logo menção de afastar-se.

-Deixa-te ficar, disse-lhe o pai. Nós vamos aqui para o escritório.

E os dois compadres, conversando em voz baixa, encaminharam-se para uma saleta que havia na frente da casa.

A saleta era pequenina, com duas janelas para a Rua da Estrela. Chão esteirado paredes forradas de papel e o teto de travessinhas de paparaúba pintadas de branco. Havia uma carteira de escrita, muito alta, com o seu mocho inclinado, um cofre de ferro, uma pilha de livros de escrituração mercantil, uma prensa, o copiador ao lado e mais um copo sujo de pó, em cujas bordas descansava um pincel chato de cabo largo; uma cadeira de palhinha, um caixão de papéis inúteis, um bico de gás e duas escarradeiras.

Ah! ainda havia na parede, sobre a secretária, um calendário do ano e outro da semana, ambos com as algibeiras pejadas de notas e recibos.

Era isto que Manuel Pedro chamava pamposamente «o seu escritório» e onde fazia a correspondência comercial. Aí, quando ele de corpo e alma se entregava aos interesses da sua vida, às suas especulações, ao seu trabalho enfim, podiam lá fora até morrer, que o bom homem não dava por isso. Amava deveras o trabalho e seria uma santa criatura se não fora certa maniazinha de querer especular com tudo, o que às vezes lhe desvirtuava as melhores intenções.

Quando os dois entraram, ele foi logo fechando a porta, discretamente, enquanto o outro se esparralhava na cadeira, com um suspiro de cansaço, levantando até ao meio da canela a sua batina lustrosa e de bom talho. Manuel havia tomado um cigarro de papel amarelo de cima da carteira e acendia-o sofregamente; o cônego esperava por ele, com uma notícia suspensa dos lábios, como espantado; a boca meio aberta; o tronco inclinado para a frente, as mãos espalmadas nos joelhos, a cabeça erguida e um olhar de sobrancelhas arregaçadas através do cristal dos óculos.

-Sabe quem está a chegar por aí?... perguntou afinal, quando viu Manuel já instalado no mocho da secretária.

-Quem?

-O Raimundo!

E o cônego sorveu uma pitada.

-Que Raimundo?

-O Mundico! o filho do José, homem! teu sobrinho! aquela criança, que teu mano teve da Domingas...

-Sim, sim, já sei, mas então?...

-Está a chegar por dias... Ora espera...

O padre tirou papéis da algibeira e rebuscou entre eles uma carta, que passou ao negociante.

-É do Peixoto, o Peixoto de Lisboa.

-De Lisboa, como?

-Sim, homem! Do Peixoto de Lisboa, que está há três anos no Rio.

-Ah!... isso sim, porque tinha idéia de que o pequeno deveria estar agora na Corte. Ah! chegou o vapor do Sul...

-Pois é. Lê!

Manuel armou os óculos no nariz e leu para si a seguinte carta datada do Rio de Janeiro: «Revmo. amigo e Sr. Cônego Diogo de Melo. Folgamos que esta vá encontrar V. Revma. no gozo da mais perfeita saúde. Temos por fim comunicar a V. Reverendíssima que, no paquete de 15 do corrente, segue para essa capital o Dr. Raimundo José da Silva, de quem nos encarregou V. Revma. e o Sr. Manuel Pedro da Silva quando ainda nos achávamos estabelecidos em Lisboa. Temos também a declarar, se bem que já em tempo competente o houvéssemos feito, que envidamos então os melhores esforços para conseguir do nosso recomendado ficasse empregado em nossa casa comercial e que, visto não o conseguirmos, tomamos logo a resolução de remetê-lo para Coimbra com o fim de formar-se ele em Teologia, o que igualmente não se realizou, porque, feito o curso preparatório, escolheu o nosso recomendado a carreira de Direito, na qual se acha formado com distinções e bonitas notas.

Cumpre-nos ainda declarar com prazer a V. Revma. que o Dr. Raimundo foi sempre apreciado pelos seus lentes e condiscípulos e que tem feito boa figura, tanto em Portugal, como depois na Alemanha e na Suíça, e como ultimamente nesta Corte, onde, segundo diz ele, tencionava fundar uma empresa muito importante. Mas, antes de estabelecer-se aqui, deseja o Dr. Raimundo efetuar nessa província a venda de terras e outras propriedades de que aí dispõe, e com esse fim segue.

Por esta mesma via escrevemos ao Sr. Manuel Pedro da Silva, a quem novamente prestamos contas das despesas que fizemos com o sobrinho.»

Seguiam-se os cumprimentos do estilo.

Manuel, terminada a leitura, chamou o Benedito, um moleque da casa, e ordenou-lhe que fosse ao armazém saber se havia já chegado a correspondência do Sul. O moleque voltou pouco depois, dizendo que «ainda não senhor, mas que seu Dias a fora buscar ao correio».

-Homem! ele é isso!... exclamou Pescada. O rapaz está bem encaminhado, quer liquidar o que tem por cá e estabelecer-se no Rio. Não! Sempre é outro futuro!

-Ora! ora! ora! soprou o cônego em três tempos. Nem falemos nisso! O Rio de Janeiro é o Brasil! Ele faria uma grandíssima asneira se ficasse aqui.

-Se faria...

-Até lhe digo mais... nem precisava cá vir, porque... continuou Diogo, abaixando a voz, ninguém aqui lhe ignora a biografia; todos sabem de quem ele saiu!

-Que não viesse, não digo, porque enfim... «quem quer vai e quem não quer manda», como lá diz o outro; mas é chegar, aviar o que tem a fazer e levantar de novo o ferro!

-Ai, ai!

-E demais, que diabo ficava ele fazendo aqui? Enchendo as ruas de pernas e gastando o pouco que tem... Sim! que ele tem alguma coisinha para roer... tem aquelas moradas de casa em São Pantaleão; tem o seu punhado de ações; tem o jimbo cá na casa, onde por bem dizer é sócio comanditário, e tem as fazendas do Rosário, isto é -a fazenda, porque uma é tapera...

-Essa é que ninguém a quer!... observou o cônego, e ferrou o olhar num ponto, deixando perceber que alguma triste reminiscência o dominava.

-Acreditam nas almas doutro mundo... prosseguiu Manuel. O caso é que nunca mais consegui dar-lhe destino. Pois olhe, seu compadre, aquelas terras são bem boas para a cana.

O cônego permanecia preocupado pela lembrança da tapera.

-Agora... acrescentou o outro, o melhor seria que ele se tivesse feito padre.

O cônego despertou.

-Padre?!

-Era a vontade do José...

-Ora, deixe-se disso! retrucou Diogo, levantando-se com ímpeto. Nós já temos por aí muito padre de cor!

-Mas, compadre, venha cá, não é isso...

-Ora o quê, homem de Deus! É só -ser padre! é só -ser padre! E no fim de contas estão se vendo, as duas por três, superiores mais negros que as nossas cozinheiras! Então isto tem jeito?... O governo -e o cônego inchava as palavras- o governo devia até tomar uma medida séria a este respeito! devia proibir aos cabras certos misteres!

-Mas, compadre...

-Que conheçam seu lugar!

E o cônego transformava-se ao calor daquela indignação.

-E então, parece já de pirraça, bradou, é nascer um moleque nas condições deste...

E mostrava a carta, esmurrando-a -pode contar-se logo com um homem inteligente! Deviam ser burros! burros! que só prestassem mesmo para nos servir! Malditos!

-Mas, compadre, você desta vez não tem razão...

-Ora o quê, homem de Deus. Não diga asneiras! Pois você queria ver sua filha confessada, casada, por um negro? você queria seu Manuel que a Dona Anica beijasse a mão de um filho da Domingas? Se você viesse a ter netos queria que eles apanhassem palmatoadas de um professor mais negro que esta batina? Ora, seu compadre, você às vezes até me parece tolo!

Manuel abaixou a cabeça, derrotado.

-Ora, ora, ora! respingava o sacerdote, como as últimas gotas de um aguaceiro. E passeava vivamente em toda a extensão da saleta, atirando de uma para a outra mão o seu lenço fino de seda da Índia. -Ora! ora, deixe-se disso, seu compadre! Stultorum honor inglorius!...

Nisto bateram à porta. Era o Dias com a correspondência do Sul.

-Dê cá.

A carta de Manuel pouco adiantava da outra.

-Mas, afinal que acha você, compadre?... disse ele, passando a carta ao cônego, depois de a ler.

-Que diabo posso achar?... A coisa está feita por si... Deixe correr o barco! Você não disse uma vez que queria entrar em negócio com a fazenda do Cancela? Não há melhor ocasião -trate-a com o próprio dono... mesmo as casas de São Pantaleão convinham-lhe... olhe se ele as desse em conta, eu talvez ficasse com alguma.

-Mas o que eu digo, compadre, é se devo recebê-lo na qualidade de meu sobrinho.

-Sobrinho bastardo, está claro! Que diabo tem você com as cabeçadas de seu mano José?... Homessa!

-Mas, compadre, você acha que não me fica mal?

-Mal por quê, homem de Deus? Isso nada tem que ver com você...

-Lá isso é verdade. Ah! outra coisa! devo hospedá-lo aqui em casa?

-É!... por um lado, devia ser assim... Todos sabem as obrigações que você deve ao defunto José e poderiam boquejar por aí, no caso que não lhe hospedasse o filho... mas, por outro lado, meu amigo, não sei o que lhe diga!...

E depois de uma pausa em que o outro não falou:

-Homem, seu compadre, isto de meter rapazes em casa... é o diabo!

-De sorte que...

-Omnem aditum malis prejudica!

Manuel não compreendeu, porém acrescentou:

-Mas eu hospedo constantemente os meus fregueses do interior...

-Isso é muito diferente!

-E meus caixeiros? não moram aqui comigo?...

-Sim! disse o cônego, impacientando-se, mas os pobres dos caixeiros são todos uns moscas-mortas, e nós não sabemos a que nos saiu o tal doutor de Coimbra!... Homem, compadre, o melro vem de Paris, deve estar mitrado!...

-Talvez não...

-Sim, mas é mais natural que esteja!

E o cônego intumescia a papada com certo ar experimentado.

-Em todo caso... arriscou Manuel, é por pouco tempo... Talvez coisa de um mês...

E, sopeando a voz, discretamente, com medo: Além disso... não me convinha desagradar o rapaz... Sim! tenho de entrar em negócio com ele, e... isto cá para nós... seria uma fineza, que me ficava a dever... porque enfim... você sabe que...

-Ah! interrompeu o cônego, tomando uma nova atitude. Isso é outro cantar!... Por ai é que você devia ter principiado!

-Sim, tornou Manuel, com mais ânimo. Você bem sabe que não tenho obrigação de estar a moer-me com o nhonhô Mundico... e, se bem que...

-Pchio!... fez o padre, cortando a conversa, e disse: -Hospede o homem!

E saiu da saleta, revestindo logo o seu pachorrento e estudado ar de santarrão.

Ao chegarem à varanda Ana Rosa, já em trajes de passeio, os esperava para sair toda debruçada no parapeito da janela e derramando sobre o Bacanga um olhar mole e cheio de incertezas.

-Então, sempre te resolveste, minha caprichosa?... disse o pai.

E contemplava a filha, com um risinho de orgulho. Ela estava realmente boa com o seu vestido muito alvo de fustão, alegre, todo cheirando aos jasmins da gaveta; com o seu chapéu de palhinha de Itália, emoldurando o rosto oval, fresco e bem feito; com o seu cabelo castanho, farto e sedoso, que aparecia em bandós no alto da cabeça e reaparecia no pescoço enrodilhado despretensiosamente.

-Tinhas dito que não ias...

-Vá se vestir, papai.

E assentou-se.

-Lá vou! Lá vou!

Manuel bateu no ombro do cônego:

-Meto-lhe inveja, hein, compadre?... Olhe como o diacho da pequena está faceira, não é?

-Ne insultes miseris!

-Quê?... interjeicionou o negociante, olhando para o relógio da varanda. Quatro e meia! E eu que ainda tinha de ir hoje tratar do despacho de um açúcar!...

E foi entrando apressado no quarto, a gritar para o Benedito «que lhe levasse água morna para banhar o rosto».

O cônego assentou-se defronte de Ana Rosa.

-Então onde é hoje o passeio minha rica afilhada?

-À casa do Freitas. Não se lembra? Lindoca faz anos hoje.

-Cáspite! Temos então peru de forno!..

-Papai fica para o jantar... vossemecê não vai, dindinho?

-Talvez apareça à noite... Com certeza há dança...

-Hum-hum... mas creio que o Freitas conta com uma surpresa da Filarmônica... disse Ana Rosa, entretida a endireitar os folhos do seu vestido com a biqueira da sombrinha.

Nisto, ouviram-se bater embaixo as portas do armazém, que se fechavam com grande ruído de fechaduras, e logo em seguida o som pesado de passos repetidos na escada. Eram os caixeiros que subiam para jantar.

Entrou primeiro na varanda o Bento Cordeiro. Português dos seus trinta e tantos anos arruivado, feio, de bigode e barba e cavanhaque. Gabava-se de grande prática de balcão chamavam-lhe «Um alho». Para aviar encomendas do interior não havia outro! Cordeiro «metia no bolso o capurreiro mais sabido».

Dos empregados da casa era o mais antigo; nunca, porém lograra ter interesse na sociedade; continuava sempre de fora e tinha por isso um ódio surdo ao patrão; ódio, que o patife disfarçava por um constante sorriso de boa vontade. Mas o seu maior defeito o que deveras depunha contra ele aos olhos das -raposas- do comércio; o que explicava na Praça a sua não entrada na sociedade da casa em que trabalhava havia tanto tempo, era sem dúvida a sua queda para o vinho. Aos domingos metia-se na tiorga e ficava de todo insuportável.

Bento atravessou silencioso a varanda cortejando com afetada humildade o cônego e Ana Rosa, e seguiu logo para o mirante, onde moravam todos os caixeiros da casa.

O segundo a passar foi Gustavo de Vila Rica; simpático e bonito mocetão de dezesseis anos, com as suas soberbas cores portuguesas, que o clima do Maranhão ainda não tinha conseguido destruir. Estava sempre de bom humor; lisonjeava-se de um apetite inquebrantável e de nunca haver ficado de cama no Brasil. Em casa todavia ganhara fama de extravagante; é que mandava fazer fatos de casimira à moda, para passear aos domingos e para ir aos bailes familiares de contribuição, e queimava charutos de dois vinténs. O grande defeito deste era uma assinatura no Gabinete Português, o que levava a boa gente do comércio a dizer «que ele era um grande biltre, um peralta, que estava sempre procurando o que ler!»

O Bento Cordeiro bradava-lhe às vezes, furioso:

-Com os diabos! o patrão já lhe tem dado a entender que não gosta de caixeiros amigos de gazeta?... Se você quer ser letrado, vá pra Coimbra, seu burro!

Gustavo ouvia constantemente destas e doutras amabilidades, mas, que fazer? precisava ganhar a vida!... O outro era caixeiro mais antigo na casa... Conformava-se, sem respingar, e em certas ocasiões até satisfeito, graças ao seu bom humor.

Ao passar pela varanda foi menos brusco no seu cumprimento à filha do patrão; chegou mesmo a parar, sorrir, e dizer, inclinando a cabeça: «Minha senhora!...»

O cônego teve uma risota.

-Que mitra!... julgou com os seus botões.

Em seguida, atravessou a varanda, muito apressado, com as mãos escondidas nas enormes mangas de um jaquetão, cuja gola lhe subia ate à nuca, uma criança de uns dez anos de idade. Tinha o cabelo à escovinha; os sapatos grandemente desproporcionados; calças de zuarte dobradas na bainha; olhos espantados; gestos desconfiados, e um certo movimento rápido de esconder a cabeça nos ombros, que lhe traía o hábito de levar pescoções.

Este era em tudo mais novo que os outros -em idade, na casa, e no Brasil. Chegara havia coisa de seis meses da sua aldeia no Porto; dizia chamar-se Manuelzinho e tinha sempre os olhos vermelhos de chorar à noite com saudades da mãe e da terra.

Por ser o mais novo na casa varria o armazém limpava as balanças e burnia os pesos de latão. Todos lhe batiam sem responsabilidade, não tinha a quem se queixar. Divertiam-se à custa dele; riam-se com repugnância das suas orelhas cheias de cera escura.

Desfeava-lhe a testa uma grande cicatriz; foi um trambolhão que levou na primeira noite em que lhe deram uma rede para dormir. O pobre desterradozinho, que não sabia haver-se com semelhante engenhoca, caiu na asneira de meter primeiro os pés, e zás! lá foi por cima de uma caixa de pinho de um dos companheiros. Desde esse dia ficou conhecido em casa pela alcunha de «Salta-chão». Punham-lhe nomes feios e chamavam-lhe «Ó coisa! -Ó maroto! -Ó bisca!» tudo servia para o chamarem, menos o seu verdadeiro nome.

Ia atravessando a varanda, como um bicho assustado, quase a correr. O cônego gritou por ele:

-Ó pequeno? anda cá!

Manuelzinho voltou, confuso, coçando a nuca, muito contrariado sem levantar os olhos.

Ana Rosa teve um olhar de piedade.

-Então que e isso? disse o cônego. Pareces-me um bicho do mato! Fala direito com a gente, rapaz! Levanta essa cachimônia!

E, com a sua mão branca e fina, suspendeu-lhe pelo queixo a cabeça, que Manuelzinho insistia em ter baixa.

-Este ainda está muito peludo!... acrescentou. E perguntou-lhe depois uma porção de coisas: «Se tinha vontade de enriquecer, se não sonhava já com uma comenda; se tinha visto o pássaro guariba, se encontrara a árvore das patacas.» O pequeno mastigava respostas inarticuladas, com um sorriso aflito.

-Como te chamas?

Ele não respondeu.

-Então não respondes?... Com certeza és Manuel!

O portuguesinho meneou a cabeça afirmativamente, e apertou a boca, para conter o riso que procurava uma válvula.

-Então é com a cabeça que se responde? Tu não sabes falar, mariola?

E, voltando-se para Ana Rosa:

-Isto é um sonso, minha afilhada! olhe em que estado ele traz as orelhas! Se tens a alma como tens o corpo, podes dá-la ao diabo! Tu já te confessaste aqui, maroto?

Manuelzinho, não podendo já suster os beiços, abriu a boca e, com a força de uma caldeira, soprou o riso que a tanto custo refreava.

-Olha que estás a cuspir-me, ó patife! gritou o cônego. Bom, bom! vai-te! vai-te!

Repeliu-o e limpou a batina com o lenço.

Ana Rosa então correu os dedos pela cabeça do menino e puxou-o para si. Arregaçou-lhe as mangas da jaqueta e revistou-lhe as unhas. Estavam crescidas e sujas.

-Ah! censurou ela, você também não é tão pequeno, que se desculpe isto!...

E, tirando do seu indispensável uma tesourinha, começou, com grande surpresa do caixeiro e até do cônego, a limpar as unhas da criança, dizendo ao outro, baixinho:

-Não sei como há mães que se separam de filhos desta idade... Também, coitados! devem amargar muito!...

A sua voz tinha já completa solicitude de amor materno.

O cônego levantou-se e foi encostar-se ao parapeito da varanda, enquanto Ana Rosa, que continuava a cortar as unhas do menino, ia em segredo perguntando a este se não tinha saudades da sua terra e se não chorava ao lembrar-se da mãe.

Manuelzinho estava pasmado. Era a primeira vez que no Brasil lhe falavam com aquela ternura. Levantou a cabeça e encarou Ana Rosa; ele, que tinha sempre o olhar baixo e terrestre, procurou, sem vacilar, os olhos da rapariga e fitou-os, cheio de confiança, sentindo por ela um súbito respeito, uma espécie de adoração inesperada. Afigurava-se extraordinário ao pobrezito desprezado de todos, que aquela senhora brasileira, tão limpa, tão bem vestida, tão perfumada e com as mãos tão macias, estivesse ali a cortar-lhe e assear-lhe as unhas.

A princípio foi isto para ele um sacrifício horrível, um suplício insuportável. Desejava, de si para si, ver terminada aquela cena incômoda; queria fugir daquela posição difícil; resfolegava, sem ousar mexer com a cabeça, olhando para os lados, de esguelha, como a procura de uma saída, de algum lugar onde se escondesse ou de qualquer pretexto que o arrancasse dali.

Sentia-se mal com aquilo, que dúvida! Não se animava a respirar livremente, receoso de fazer notar o seu hálito pela senhora; já lhe doíam as juntas do corpo, tal era a sua imobilidade contrafeita; não mexia sequer com um dedo. Depois do primeiro minuto de sacrifício, o suor começou logo a correr-lhe em bagas da cabeça pela gola do jaquetão, e o pequeno teve verdadeiros calafrios; mas quando Ana Rosa lhe falou da pátria e da mãe, com aquela penetrante meiguice que só as próprias mães sabem fazer, as lágrimas rebentaram-lhe dos olhos e desceram-lhe em silêncio pela cara.

Pois se era a primeira vez que no Brasil lhe falavam dessas coisas!...

O cônego assistia a tudo isto, calado, rufando sobre a sua tabaqueira de ouro as unhas burnidas a cinza de charuto e a sorrir como um bom velho. E, enquanto Ana Rosa, de cabeça baixa, toda desvelos, tratava do desgraçadinho, provocando-lhe as lágrimas e contendo as próprias, sabe Deus como! passava o Dias pelo fundo da varanda, sem ser sentido, o andar de gato, levando no coração uma grande raiva, só pelo fato de ver a filha do patrão acarinhando o outro.

Ralava-o aquela caridade. «Ele nunca tivera quem lhe cortasse as unhas!...» Amofinava-o ver a Sra. D. Ana Rosa às voltas com semelhante bisca. «Punha a perder de todo a peste do pequeno! -Ora para que lhe havia de dar!... embonecar o súcio! Queria-o com certeza para seu chichisbéu! Contava já com ele para levar-lhe as cartas do desaforo e trazer-lhe os presentinhos de flores e os recados dos pelintras!... Ah! mas ele, o Dias, ali estava para lhes cortar as vazas!»

O Dias, que completava o pessoal da casa de Manuel Pescada, era um tipo fechado como um ovo, um ovo choco que mal denuncia na casca a podridão interior. Todavia, nas cores biliosas do rosto, no desprezo do próprio corpo, na taciturnidade paciente daquela exagerada economia, adivinhava-se-lhe uma idéia fixa, um alvo, para o qual caminhava o acrobata, sem olhar dos lados, preocupado, nem que se equilibrasse sobre um corda tesa. Não desdenhava qualquer meio para chegar mais depressa aos fins; aceitava, sem examinar, qualquer caminho, desde que lhe parecesse mais curto; tudo servia, tudo era bom, contanto que o levasse mais rapidamente ao ponto desejado. Lama ou brasa -havia de passar por cima; havia de chegar ao alvo- enriquecer.

Quanto à figura, repugnante: magro e macilento, um tanto baixo, um tanto curvado, pouca barba, testa curta e olhos fundos. O uso constante dos chinelos de trança fizera-lhe os pés monstruosos e chatos; quando ele andava, lançava-os desairosamente para os lados, como o movimento dos palmípedes nadando. Aborrecia-o o charuto, o passeio, o teatro e as reuniões em que fosse necessário despender alguma coisa; quando estava perto da gente sentia-se logo um cheiro azedo de roupas sujas.

Ana Rosa não podia conceber como uma mulher de certa ordem pudesse suportar semelhante porco. «Enfim, resumia ela, quando, conversando com amigas, queria dar-lhes uma idéia justa do que era o Dias -sempre há um homem que não tem coragem de comprar uma escova de dentes!» As amigas respondiam «Iche!» mas em geral tinham-no na conta de moço benfazejo e de conduta exemplar.

À noite só deixava a porta do patrão nos sábados, para ir ao peixe frito em casa de uma mulata gorda, que morava com duas filhas lá para os confins da Rua das Crioulas. Ia sempre sozinho. «Nada de troças!»

-Não tenho amigos... dizia ele constantemente, tenho apenas alguns conhecidos...

Nesses passeios levava às vezes uma garrafa de vinho do Porto ou uma lata de marmelada, e chamava a isso «fazer as suas extravagâncias». A mulata votava-lhe grande admiração e punha nele muita confiança: dava-lhe a guardar «os seus ouros» e as suas economias. Além desta, ninguém lhe conhecia outra relação particular; uma bela manhã, porém, o «exemplar moço» aparecera incomodado e pedira ao patrão que lhe deixasse ficar aquele dia no quarto. Manuel, todo solícito pelo seu bom empregado, mandou-lhe lá o médico.

-Então, que tinha o rapaz?

-Aquilo é mais porcaria que outra coisa, respondeu o facultativo, franzindo o nariz; mas receitou, recomendando banhos mornos. «Banhos! de banhos principalmente é que ele precisava!»

E, quando viu o doente pela segunda vez, não se pôde ter, que lhe não dissesse:

-Olhe lá, meu amigo, que o asseio também faz parte do tratamento!

E acabou provando que a limpeza não era menos necessária ao corpo do que a alimentação, principalmente em um clima daqueles em que um homem está sempre a transpirar.

Manuel foi à noite ao quarto do caixeiro. Falou-lhe com brandura paternal; lamentou-o com palavras amigáveis, e desatou um protesto, em forma de sermão, contra o clima e os costumes do Brasil.

-Uma terrinha com que é preciso cuidado! Perigosa! Perigosa! dizia ele. Aqui a gente tem a vida por um fio de cabelo!

Tratou depois, com entusiasmo, de Portugal; lembrou as boas comezainas portuguesas: «As caldeiradas d'eirozes, a orelheira de porco com feijão branco, a açorda, o caldo gordo, o famoso bacalhau do Algarve!»

-Ai! o pescado! suspirou o Dias, saudoso pela terra. Que rico pitéu!

-E os nossos figos de comadre, e as nossas castanhas assadas, e o vinho verde?

Dias escutava com água na boca.

-Ai! a terra!...

O patrão falou-lhe também das comodidades, dos ares, das frutas e por fim dos divertimentos de Lisboa, terminando por contar fatos de moléstia; casos idênticos ao do Dias; transportou-se rindo ao seu tempo de rapaz, e, já de pé, pronto para sair, bateu-lhe no ombro, carinhosamente:

-Você, homem, o que devia era casar!...

E jurou-lhe que o casamento lhe estava mesmo calhando. «O Dias, com aquele gênio e com aquele método, dava por força um bom marido!... Que se casasse, e havia de ver se não teria outra importância!...»

-Olhe! concluiu, digo-lhe agora como o doutor «Banhos! banhos, meu amigo» mas que sejam de igreja, compreende?

E, rindo com a própria pilhéria e todo cheio de sorrisos de boa intenção, saiu do quarto na ponta dos pés, cautelosamente, para que os outros caixeiros, a quem ele não dava a honra de uma visita daquelas, não lhe ouvissem as pisadas.

Quando Ana Rosa acabou de cortar as unhas de Manuelzinho deu-lhe de conselho que estudasse alguma coisa; prometeu que arranjaria com o pai metê-lo em uma aula noturna de primeiras letras, e recomendou-lhe que todos os dias de manhã tomasse o seu banho debaixo da bomba do poço.

-Faça isso, que serei por você, rematou a moça, afastando-o com uma ligeira palmada na cabeça.

O menino retirou-se, muito comovido, para o andar de cima, mas o Dias, de pé, no tope da escada, esperava por ele, furioso.

-Que estava fazendo, seu traste?

-Nada, respondeu a criança, a tremer. Fora a senhora que o chamara!...

Dias, com um murro, explicou que o maroto não podia pôr-se de palestra na varanda, em vez de cuidar das obrigações.

-E se me constar, acrescentou, cada vez mais zangado, que você me torna a ir com lamúrias para o lado de D. Anica, comigo se tem de haver, seu mariola! Vai tudo aos ouvidos do patrão!

Manuelzinho arredou-se dali, convencido de que havia praticado uma tremenda falta; no íntimo, porém, ia muito satisfeito com a idéia de que já não estava tão desamparado, e sentindo renascer-lhe, na obscura mágoa do seu desterro, um desejo alegre de continuar a viver.

A reunião em casa do Freitas esteve animada. Houve violão, cantoria, muita dança. Chegaram a deitar chorado da Bahia.

Mas, pela volta da meia-noite, Ana Rosa, depois de uma valsa, fora acometida de um ataque de nervos. Era o terceiro que lhe dava assim, sem mais nem menos.

Felizmente o médico, chamado a toda a pressa afiançou que aquilo não valia nada. «Distrações e bom passadio!» receitou ele, e, ao despedir-se de Manuel, segredou-lhe sorrindo:

-Se quiser dar saúde à sua filha, trate de casá-la...

-Mas o que tem ela, doutor?...

-Ora o que tem! Tem vinte anos! Está na idade de fazer o ninho! mas, enquanto não chega o casamento, ela que vá dando os seus passeios a pé. Banhos frios, exercícios, bom passadio e distrações! Percebe?

Manuel, na sua ignorância, imaginou que a filha alimentava ocultamente algum amor mal correspondido. Sacudiu os ombros. «Não era então coisa de cuidado.» E, em cumprimento as ordens do médico, inaugurou com a enferma longos passeios pela fresca da madrugada.

Daí a dias, o cônego Diogo, contra todos os seus hábitos, procurava o compadre às sete horas da manhã.

Atravessou o armazém, apressado como quem traz grande novidade, e, mal chegou ao negociante, foi lhe dizendo em tom misterioso:

-Sabe? Faz sinal de aparecer, e é o Cruzeiro...

Manuel largou logo de mão o serviço que fazia, subiu à varanda, deu as suas providências para receber um hóspede, e em seguida ganhou a rua com o amigo.

Eles a saírem de casa e a fortaleza de São Marcos a salvar, anunciando com um tiro, a entrada de paquete brasileiro.

Os dois tomaram um escaler e foram a bordo.

Daí a pouco, entre as vistas interrogadoras dos curiosos, atravessou a Praça do Comércio um rapaz bem parecido, que ia acompanhado pelo cônego Diogo e por Manuel.

A novidade foi logo comentada. Os portugueses vinham, com as suas grandes barrigas, às portas dos armazéns de secos e molhados; os barraqueiros espiavam por cima dos óculos de tartaruga; os pretos cangueiros paravam para «mirar o cara-nova». O Perua-gorda, em mangas de camisa, como quase todos os outros, acudiu logo à rua:

-Quem será esse gajo, ó coisa? perguntou ele ruidosamente a um súcio que passava na ocasião.

-Algum parente ou recomendado do Manuel Pescada. Veio do Sul.

-Ó aquele! sabes quem é o lanceiro que vai com o Pescada?

-Não sei, homem, mas é um rapagão!

Manuel apresentou o sobrinho a vários grupos. Houve sorrisos de delicadezas e grandes apertos de mão.

-É o filho de um mano do Pescada... diziam depois. Conhecemos-lhe muito a vida! Chama-se Raimundo. Estava nos estudos.

-Vem estabelecer-se aqui? indagou o José Buxo.

-Não, creio que vem montar uma companhia...

Outros afiançavam que Raimundo era sócio capitalista da casa de Manuel. Discutiam-lhe a roupa, o modo de andar, a cor e os cabelos. O Luisinho Língua de Prata afirmava que ele «tinha casta».

Entretanto os três subiam a Rua da Estrela.

Chegados a casa, onde já havia pronto um quarto para o Sr. Dr. Raimundo José da Silva, o cônego e Manuel desfizeram-se em delicadezas com o rapaz.

-Benedito! vê cerveja! Ou prefere conhaque, doutor?... Olha moleque, prepara guaraná! Doutor, venha antes para este lado que está mais fresco... não faça cerimônias! Vá entrando! vá entrando para a varanda! O senhor está em sua casa!...

Raimundo queixava-se do calor.

-Está horrível! dizia ele, a limpar o rosto com o lenço. Nunca suei tanto!

-O melhor então é recolher-se um pouco e ficar à vontade. Pode mudar de roupa, arejar-se. A bagagem não tarda aí. Olhe, doutor, entre, entre e veja se fica bem aqui!

Os três penetraram no quarto destinado ao hóspede.

-O senhor, disse Manuel, tem aqui janelas para a rua e para o quintal. Ponha-se a gosto. Se precisar qualquer coisa, é só chamar pelo Benedito. Nada de cerimônias!

Raimundo agradeceu muito penhorado.

-Mandei dar-lhe cama, acrescentou o negociante, porque o senhor naturalmente não está afeito à rede, no entanto se quiser...

-Não, não, muito obrigado. Está tudo muito bom. O que desejo é repousar um pouco justamente. Ainda tenho a cabeça a andar à roda.

-Pois então descanse, descanse, para depois almoçar com mais apetite… Até logo.

E Manuel e mais o compadre afastaram-se, cheios de cortesia e sorrisos de afabilidade.

Raimundo tinha vinte e seis anos e seria um tipo acabado de brasileiro se não foram os grandes olhos azuis, que puxara do pai. Cabelos muito pretos, lustrosos e crespos; tez morena e amulatada, mas fina; dentes claros que reluziam sob a negrura do bigode; estatura alta e elegante; pescoço largo, nariz direito e fronte espaçosa. A parte mais característica da sua fisionomia era os olhos -grandes, ramalhudos, cheios de sombras azuis; pestanas eriçadas e negras, pálpebras de um roxo vaporoso e úmido; as sobrancelhas, muito desenhadas no rosto, como a nanquim, faziam sobressair a frescura da epiderme, que, no lugar da barba raspada, lembrava os tons suaves e transparentes de uma aquarela sobre papel de arroz.

Tinha os gestos bem educados, sóbrios, despidos de pretensão, falava em voz baixa, distintamente sem armar ao efeito; vestia-se com seriedade e bom gosto; amava as artes, as ciências, a literatura e, um pouco menos, a política.

Em toda a sua vida, sempre longe da pátria, entre povos diversos, cheia de impressões diferentes, tomada de preocupações de estudos, jamais conseguira chegar a uma dedução lógica e satisfatória a respeito da sua procedência. Não sabia ao certo quais eram as circunstâncias em que viera ao mundo; não sabia a quem devia agradecer a vida e os bens de que dispunha. Lembrava-se, no entanto, de haver saído em pequeno do Brasil e podia jurar que nunca lhe faltara o necessário e até o supérfluo. Em Lisboa tinha ordem franca.

Mas quem vinha a ser essa pessoa encarregada de acompanhá-lo de tão longe?... Seu tutor, com certeza, ou coisa que o valha, ou talvez seu próprio tio, pois, quanto ao pai, sabia Raimundo que já o não tinha quando foi para Lisboa. Não porque chegasse a conhecê-lo, nem porque se recordasse de ter ouvido de alguém o doce nome de filho, mas sabia-o por intermédio do seu correspondente e pelo que deduzia de algumas vagas reminiscências da meninice.

«Sua mãe, porém, quem seria?...» Talvez alguma senhora culpada e receosa de patentear a sua vergonha!... «Seria boa? Seria virtuosa?...»

Raimundo perdia-se em conjeturas e, malgrado o seu desprendimento pelo passado, sentia alguma coisa atraí-lo irresistivelmente para a pátria. «Quem sabia se aí não descobriria a ponta do enigma?... Ele, que sempre vivera órfão de afeições legítimas e duradouras, como então seria feliz!... Ah, se chegasse a saber quem era sua mãe, perdoar-lhe-ia tudo, tudo!»

O quinhão de ternura, que a ela pertencia, estava intacto no coração do filho. Era preciso entregá-lo a alguém! Era preciso desvendar as circunstâncias que determinaram o seu nascimento!

«Mas, no fim de contas, refletia Raimundo, em um retrocesso natural de impressões, que diabo tinha ele com tudo isso, se até aí, na ignorância desses fatos, vivera estimado e feliz!... Não foi decerto para semelhante coisa que viera à província! Por conseguinte, era liquidar os seus negócios, vender os seus bens e -por aqui é o caminho! O Rio de Janeiro lá estava a sua espera!

«Abriria, ao chegar lá, o seu escritório, trabalharia, e, ao lado da mulher com quem casasse e dos filhos que viesse a ter, nem sequer havia de lembrar-se do passado!

«Sim, que mais poderia desejar melhor?... Concluíra os estudos, viajara muito, tinha saúde, possuía alguns bens de fortuna. -Era caminhar pra frente e deixar em paz o tal- passado! -O passado, passado! Ora adeus!»

E, chegando a esta conclusão, sentia-se feliz, independente, seguro contra as misérias da vida, cheio de confiança no futuro. «E por que não havia de fazer carreira? Ninguém podia ter melhores intenções do que ele?... Não era um vadio, nem homem de maus instintos; aspirava ao casamento, à estabilidade; queria, no remanso de sua casa, entregar-se ao trabalho sério, tirar partido do que estudara, do que aprendera na Alemanha, na França, na Suíça e nos Estados Unidos. Faltava-lhe apenas vir ao Maranhão e liquidar os seus negócios. -Pois bem! cá estava -era aviar e pôr-se de novo a caminho!»

Foi com estas idéias que ele chegou à cidade de São Luís. E agora, na restauradora liberdade do quarto, depois de um banho tépido, o corpo ainda meio quebrado da viagem, o charuto entre os dedos, sentia. Se perfeitamente feliz, satisfeito com a sua sorte e com a sua consciência.

-Ah! bocejou fechando os olhos. É liquidar os negócios e pôr-me ao fresco!...

E, com um novo bocejo, deixou cair ao chão o charuto, e adormeceu tranqüilamente.

No entanto, a história de Raimundo, a história que ele ignorava, era sabida por quantos conheceram os seus parentes no Maranhão.

Nasceu numa fazenda de escravos na Vila do Rosário, muitos anos depois que seu pai, José Pedro da Silva aí se refugiara, corrido do Pará ao grito de «Mata bicudo!» nas revoltas de 1831.

José da Silva havia enriquecido no contrabando dos negros da África e fora sempre mais ou menos perseguido e malquisto pelo povo do Pará; até que, um belo dia, se levantou contra ele a própria escravatura, que o teria exterminado, se uma das suas escravas mais moças, por nome Domingas, não o prevenisse a tempo. Logrou passar incólume ao Maranhão, não sem pena de abandonar seus haveres e risco de cair em novos ódios, que esta província, como vizinha e tributária do comércio da outra, sustentava instigada pelo Farol, contra os brasileiros adotivos e contra os portugueses. Todavia, conseguiu sempre salvar algum ouro; metal que naquele bom tempo corria abundante por todo o Brasil e que mais tarde a Guerra do Paraguai tinha de transformar em condecorações e fumaça.

A fuga fizeram eles, senhor e escrava, a pé, por maus caminhos, atravessando os sertões. Ainda não existia a companhia de vapores e os transportes marítimos dependiam então de vagarosas barcas, a vela e remo e, às vezes, puxadas a corda, nos igarapés. Foram dar com os ossos no Rosário. O contrabandista arranjou-se o melhor que pôde com a escrava que lhe restava, e, mais tarde, no lugar denominado São Brás, veio a comprar uma fazendola, onde cultivou café, algodão, tabaco e arroz.

Depois de vários abortos, Domingas deu à luz um filho de José da Silva. Chamou-se o vigário da freguesia e, no ato do batismo da criança, esta, como a mãe, receberam solenemente a carta de alforria.

Essa criança era Raimundo.

Na capital, entretanto, acalmavam-se os ânimos. José prosperou rapidamente no Rosário; cercou a amante e o filho de cuidados; relacionou-se com a vizinhança, criou amizades, e, no fim de pouco tempo, recebia em casamento a Sra. D. Quitéria Inocência de Freitas Santiago, viúva, brasileira, rica, de muita religião e escrúpulos de sangue, e para quem um escravo não era um homem, e o fato de não ser branco, constituía só por si um crime.

Foi uma fera! às suas mãos, ou por ordem dela, vários escravos sucumbiram ao relho, ao tronco, à fome, à sede, e ao ferro em brasa. Mas nunca deixou de ser devota, cheia de superstições; tinha uma capela na fazenda, onde a escravatura, todas as noites, com as mãos inchadas pelos bolos, ou as costas lanhadas pelo chicote, entoava súplicas à Virgem Santíssima, mãe dos infelizes.

Ao lado da capela o cemitério das suas vítimas.

Casara com José da Silva por dois motivos simplesmente: porque precisava de um homem, e ali não havia muito onde escolher, e porque lhe diziam que os portugueses são brancos de primeira água.

Nunca tivera filhos. Um dia reparou que o marido, a título de padrinho, distinguia com certa ternura o crioulo da Domingas e declarou logo que não admitia, nem mais um instante, aquele moleque na fazenda.

-Seu negreiro! gritava ela ao marido, fula de raiva. Você pensa que lhe deixarei criar, em minha companhia, os filhos que você tem das negras?... Era só também o que faltava! Não trate de despachar-me, quanto antes, o moleque, que serei eu quem o despacha, mas há de ser para ali, para junto da capela!

José, que sabia perfeitamente de quanto ela era capaz, correu logo à vila para dar as providências necessárias à segurança do filho. Mas, ao voltar à fazenda, gritos horrorosos atraíram-no ao rancho dos pretos, entrou descoroçoado e viu o seguinte:

Estendida por terra, com os pés no tronco, cabeça raspada e mãos amarradas para trás, permanecia Domingas, completamente nua e com as partes genitais queimadas a ferro em brasa. Ao lado, o filhinho de três anos, gritava como um possesso, tentando abraçá-la, e, de cada vez que ele se aproximava da mãe, dois negros, à ordem de Quitéria, desviavam o relho das costas da escrava para dardejá-lo contra a criança. A megera, de pé, horrível, bêbada de cólera, ria-se, praguejava obscenidades, uivando nos espasmos flagrantes da cólera. Domingas, quase morta, gemia, estorcendo-se no chão. O desarranjo de suas palavras e dos seus gestos denunciava já sintomas de loucura.

O pai de Raimundo, no primeiro assomo de indignação, tão furioso acometeu sobre a esposa, que a fez cair. Em seguida, ordenou que recolhessem Domingas à casa dos brancos e que lhe prodigalizassem todos os cuidados.

Quitéria, a conselho do vigário do lugar, um padre ainda moço, chamado Diogo, o mesmo que batizara Raimundo, fugiu essa noite para a fazenda de sua mãe, D. Úrsula Santiago, a meia légua dali.

O vigário era muito da casa das Santiago; dizia-se até aparentado com elas. O caso é que foi na qualidade de confessor, parente e amigo, que ele acompanhou Quitéria.

José da Silva, por esse tempo, chegava à cidade de São Luís com o filho. Procurou seu irmão mais moço, o Manuel Pedro, e entregou-lhe o pequeno, que ficaria sob as vistas do tio até ter idade para matricular-se num colégio de Lisboa.

Feito isso, tornou de novo para a sua roça. «Agora contava viver mais descansado; era natural que a mulher se deixasse ficar em casa da mãe.» Ao chegar lá, sabendo que não o esperavam essa noite e como visse luz no quarto da esposa, apeou-se em distância e, para não se encontrar com ela, guardou o cavalo e entrou silenciosamente na fazenda.

Os cães conheceram-no pelo faro e apenas rosnaram. Mas, na ocasião em que ele passava defronte do quarto de Quitéria, ouviu aí sussurros de vozes que conversavam. Aproximou-se levado pela curiosidade e encostou o ouvido à porta. Reconheceu logo a voz da mulher.

«Mas, com quem, diabo, ela conversaria àquela hora?...»

Conteve a impaciência e esperou de ouvido alerta.

«Não havia dúvida! -a outra voz era de um homem!...»

Sem esperar mais nada, meteu ombros à porta e, precipitou-se dentro do quarto, atirando-se com fúria sobre a esposa, que perdera logo os sentidos.

O padre Diogo, pois era dele a outra voz, não tivera tempo de fugir e caíra, trêmulo, aos pés de José. Quando este largou das mãos a traidora, para se apossar do outro, reparou que a tinha estrangulado. Ficou perplexo e tolhido de assombro.

Houve então um silêncio ansioso. Ouvia-se o resfolegar dos dois homens. A situação dificultava-se; mas o vigário, recuperando o sangue-frio, ergueu-se, consertou as roupas e, apontando para o corpo da amante, disse com firmeza:

-Matou-a! Você é um criminoso!

-Cachorro! E tu?! Tu serás porventura menos criminoso do que eu?

-Perante as leis, decerto! porque você nunca poderá provar a minha suposta culpa e, se tentasse fazê-lo, a vergonha do fato recairia toda sobre a sua própria cabeça, ao passo que eu, além do crime de injúria consumado na minha sagrada pessoa, sou testemunha do assassínio desta minha infeliz e inocente confessada, assassínio que facilmente documentarei com o corpo de delito que aqui está!

E mostrava a marca das mãos de José na garganta do cadáver.

O assassino ficou aterrado e abaixou a cabeça.

-Vamos lá!... disse o padre afinal, sorrindo e batendo no ombro do português. Tudo neste mundo se pode arranjar, com a divina ajuda de Deus... só para a morte não há remédio! Se quiser, a defunta será sepultada com todas as formalidades civis e religiosas...

E, dando à voz um cunho particular de autoridade: -Apenas, pelo meu silêncio sobre o crime, exijo em troca o seu para a minha culpa... Aceita?

José saiu do quarto, cego de cólera, de vergonha e de remorso.

-Que vida a sua! exclamava. Que vida, santo Deus!

O padre cumpriu a promessa: o cadáver enterrou-se na capela de São Brás, ao lado das suas vítimas; e todos os do lugar, até mesmo os de casa, atribuíram a morte de Quitéria ao espírito maligno que se lhe havia metido no corpo.

O vigário confirmava esses boatos e continuava a pastorar tranqüilamente o seu rebanho, sempre tido por homem de muita santidade e de grandes virtudes teologais. Os devotos continuaram a trazer-lhe, de muitas léguas de distância, os melhores bácoros, galinhas e perus dos seus cercados.

Em breve, as coisas voltavam todas aos eixos: José entregou a fazenda a Domingas e mais três pretos velhos, que alforriou logo, e, acompanhado pelo resto da escravatura, seguiu para a cidade de São Luís, no propósito de liquidar seus bens e recolher-se à pátria com o filho.

A mãe de Raimundo conseguiu enfim descansar. São Brás criou a sua lenda e foi aos poucos ganhando fama de amaldiçoada. Entretanto, o pequeno, quando chegou à casa do tio na capital, estava, como facilmente se pode julgar, com a pele sobre os ossos. A falta de cuidados espalhara-lhe na carinha opada uma expressão triste de moléstia; quase que não conseguia abrir os olhos. Todo ele era mau trato e fraqueza; tinha o estômago muito sujo, a língua saburrenta, o corpo a finar-se de reumatismo e tosse convulsa, o sangue predisposto à anemia escrofulosa. Apesar do instinto materno, que a tudo resiste e vence, a pobre escrava não podia olhar nunca pelo filho: lá estava Quitéria para desviá-la dele, para cortar-lhe as carícias a chicote; tanto assim, que, quando José lhe anunciou que Raimundo ia para a casa do tio na cidade, a infeliz abençoou com lágrimas desesperadas aquela separação.

Todavia, o desgraçadinho foi encontrar em Mariana, cunhada de seu pai, a mais carinhosa e terna das protetoras. A boa senhora, como sabia que o marido o pouco que tinha devia à generosidade do irmão, julgou-se logo obrigada a servir de mãe ao filho deste. Ana Rosa, único fruto do seu casamento, ainda não era nascida nesse tempo, de sorte que as premissas da sua maternidade pertenceram ao pupilo.

Dentro em pouco, no agasalho carinhoso daquelas asas de mãe, Raimundo, de feio que era, tornou-se uma criança forte, sã e bonita.

Foi então que Ana Rosa veio ao mundo; a princípio muito fraquinha e quase sem dar acordo de si. Manuel andava aflito, com medo de perdê-la. Que luta, os três primeiros meses de sua vida! Parecia morrer a todo instante, coitadinha! Ninguém dormia na casa; o negociante chorava como um perdido, enquanto a mulher fazia promessas aos santos da sua devoção.

Era por isto que a menina, mais tarde, se recordava agradavelmente de ter feito o anjo da verônica nas procissões da quaresma.

E ao lado de Mariana, que noite e dia velava o berço da filhinha enferma, estava o Mundico, o outro filho, que este também a chamava de mãe e já se não lembrava da verdadeira, da preta que o trouxera nas entranhas.

A menina salvou-se, graças aos bons serviços de um médico, que chegara havia pouco da universidade de Montpellier, Dr. Jauffret, e, a partir daí Manuel não quis saber de outro facultativo em sua casa.

Por essa época, mais ou menos, chegava do Rosário a notícia de haver D. Quitéria sucumbido a uma congestão cerebral.

-Deu-lhe de repente! explicava o correio, com o seu saco de couro às costas. Foi obra do sujo, credo!

E, pouco depois, José Pedro da Silva, todo coberto de luto, muito encanecido e desfeito, vinha liquidar os seus negócios e partir logo para Portugal. Manuel estimava-o deveras e sentia-se de vê-lo naquele estado.

Aprontou-se tudo para a viagem e José recolheu-se a última noite em casa do irmão. Mas não pôde pregar olho, estava excitado, e a lembrança dos terríveis sucessos, que ultimamente se haviam dado com ele, nunca o apoquentara tanto. Levantou-se e começou a passear no quarto, a falar sozinho, nervoso, delirante, vendo surgir espectros de todos os lados.

Pelas quatro horas da madrugada, Manuel, impressionado, porque, de todas as vezes que acordava, via luz no quarto do hóspede e ouvia-lhe o som dos passos trôpegos e vacilantes, e sentia-lhe os gemidos abafados e o vozear frouxo e doloroso, não se pôde ter e levantou-se. «Terá alguma coisa o José?...» pensou ele, embrulhando-se no lençol e tomando aquela direção. A porta achava-se apenas no trinco, abriu-a devagar e entrou. O viúvo, ao sentir alguém, voltou-se assombrado e, dando com o fantasma que lhe invadia a alcova, recuou de braços erguidos, entre gritos terror. Manuel correu sobre ele; mas antes que se desse a conhecer, já o assassino de Quitéria havia caído desamparadamente no chão.

Fez-se logo um grande motim por toda a casa, que era nesse tempo no Caminho Grande, e na qual os caixeiros do negociante ainda não moravam com o patrão. A boa Mariana acudiu pronta, cheia de zelo. «Um escalda-pés! depressa!» dizia, apalpando os contraídos e volumosos pés do cunhado. Tisanas, mezinhas de toda a espécie, foram lembradas; pôs-se em campo a medicina doméstica, e, daí a uma hora o desfalecido voltava a si.

Mas não pôde erguer-se: ficara muito prostrado. À síncope sobreveio-lhe uma febre violenta, que durou até à noite, quando chegou afinal o Jauffret.

Era uma febre gástrica, explicou este. E mais: que a moléstia requeria certo cuidado -muito sossego de espírito! Nada de bulha, principalmente!

José, malgrado a recomendação do médico, quis ver o filho. Abraçou-o soluçando, disse-lhe que estava para morrer. E no outro dia ainda de cama, perfilhou-o; pediu um tabelião, fez testamento e, chorando, chamou Manuel para seu lado.

-Meu irmão, recomendou-lhe. Se eu for desta... o que é possível, remete-me logo o pequeno para a casa do Peixoto em Lisboa.

Terminou dizendo «que o queria -com muito saber- que o metessem num colégio de primeira sorte. Ficava aí bastante dinheiro... não tivessem pena de gastar com o seu filho; que lhe dessem do melhor e do mais fino». Estas coisas fizeram-no piorar; já todos os choravam como morto, e, pelos dias de mais risco, quando José delirava na sua febre, apareceu em casa do Manuel o pároco do Rosário; vinha muito solícito, saber do estado do seu amigo José «do seu irmão» dizia ele com uma grande piedade.

E daí, não abandonava a casa. Prestava-se a um tudo, serviçal, discreto, às vezes choramingando porque lhe vedavam a entrada no quarto do enfermo. Manuel e Mariana não se furtavam de apreciar aquela solicitude do bom padre, o interesse com que ele chegava todos os dias para pedir notícias do amigo. Dispensavam-lhe um grande acolhimento; achavam-no meigo, jeitoso e simpático.

-É um santo homem! dizia Manuel convencido.

Mariana confirmava, acrescentando em voz baixa:

-Por adulação não é, coitado! Todos sabem que o padre Diogo não precisa de migalhas!...

-É remediado de fortuna, pois não! Mas, olhe, que sabe aplicar bem o que possui...

Seguia-se uma longa resenha dos episódios louváveis da vida do santo vigário; citavam-se rasgos de abnegação, boas esmolas a criaturas desamparadas, perdões de ofensas graves, provas de amizade e provas de desinteresse. «Um santo! Um verdadeiro santo!»

E assim foi o padre Diogo tomando pé em casa de Manuel e fazendo-se todo de lá. Já contavam com ele para padrinho de Ana Rosa; esperavam-no todas as tardes com café, e à noite, nos serões da família, marido e mulher não perdiam ocasião de contar as boas pilhérias do senhor vigário, glorificar-lhe as virtudes religiosas e recomendá-lo às visitas como um excelente amigo e magnífico protetor. Um dia, em que ele, como sempre, cheio de solicitude, perguntava pelo «seu doente» disseram-lhe que José estava livre de maior perigo e que o restabelecimento seria completo com a viagem à Europa. Diogo sorriu, aparentemente satisfeito; mas, se alguém lhe pudesse ouvir o que resmungava ao descer as escadas, ter-se-ia admirado de ouvir estas e outras frases:

-Diabo!... Querem ver que ainda não se vai desta, o maldito?... E eu, que já o tinha por despachado!...

No dia seguinte, dizia o velhaco ao futuro compadre: -Bom, agora que o nosso homem está livre de perigo, posso ir mais sossegado para a minha paróquia... Já não vou sem tempo!...

E despediu-se, todo boas palavras e sorrisos angélicos, acompanhado pelas bênçãos da família.

-Senhor vigário! gritou-lhe Mariana do patamar da escada. Não faça agora como os médicos, que só aparecem com as moléstias!... Seja cá de casa!

-Venha de vez em quando, padre! acrescentou Manuel. Apareça!

Diogo prometeu vagamente, e nesse mesmo dia atravessou o Boqueirão em demanda da sua freguesia.

Essa noite, nas salas de Manuel, só se conversou sobre as boas qualidades e os bons precedentes do estimado cura do Rosário.

José, com geral contentamento dos de casa, convalescia prodigiosamente. Manuel e Mariana cercavam-no de afagos, desejosos por fazê-lo esquecer a imprudência da madrugada fatal, o que supunham, fosse o único motivo da moléstia; daí a coisa de um mês, o convalescente resolveu tornar à fazenda, a despeito das instâncias contrárias da cunhada e dos conselhos do irmão.

-Que vais lá fazer, homem de Deus? perguntava este. Se era por causa da Domingas, que diabo! fizesse-a vir! O melhor porém, segundo a sua fraca opinião, seria deixá-la lá onde estava. Uma preta da roça, que nunca saiu do mato!...

Não! não era isso! respondia o outro. Mas não iria para a terra, sem ter dado uma vista d'olhos ao Rosário!

-Ao menos não vai só, José. Eu posso acompanhar-te.

José agradeceu. Que já estava perfeitamente bom. E, em caso de necessidade, podia contar com os canoeiros, que eram todos seus homens.

E dizia as inúmeras viagens que tinha feito até ali; contava episódios a respeito do Boqueirão. «E que se deixassem disso! Não estivessem a fazer daquela viagem um bicho de sete cabeças!... Haviam de ver que, antes do fim do mês, estava ele de velas para Lisboa.»

Partiu. A viagem correu-lhe estúpida, como de costume naquele tempo, em que o Maranhão ainda não tinha vapores. Demais, a sua fazenda era longe, muito dentro, a cinco léguas da vila. Urgia, por conseguinte, demorar-se aí algumas horas antes de internar-se no mato; comer, beber, tratar dos animais; arranjar condução e fazer a matalotagem.

Os poucos familiarizados com tais caminhos tomam sempre, por precaução, um «pajem», é este o nome que ali romanticamente se dá ao guia; e o pajem menos serve para guiar o viajante, que a estrada é boa, do que para lhe afugentar o terror dos mocambos, das onças e cobras de que falam com assombro os moradores do lugar.

Não é tão infundado aquele terror: o sertão da província está cheio de mocambeiros, onde vivem os escravos fugidos com suas mulheres e seus filhos, formando uma grande família de malfeitores. Esses desgraçados, quando não podem ou não querem viver da caça, que é por lá muito abundante e de fácil venda na vila, lançam-se à rapinagem e atacam na estrada os viajantes; travando-se, às vezes, entre uns e outros, verdadeiras guerrilhas, em que ficam por terra muitas vítimas.

José da Silva comprou na vila o que lhe convinha e seguiu, sem pajem para a fazenda.

Ah! Ele conhecia perfeitamente essas paragens!...

E quantas recordações não lhe despertavam aquelas carnaubeiras solitárias, aqueles pindovais ermos e silenciosos e aqueles trêmulos horizontes de verdura! Quantas vezes, perseguindo uma paca ou um veado, não atravessou ele, a galope, aqueles barrancos perigosos que se perdiam da estrada!

Pungia-lhe agora deixar tudo isso; abandonar o encanto selvagem das florestas brasileiras. O europeu sentia-se americano, familiar às vozes misteriosas daqueles caités sempre verdejantes, habituado à companhia austera daquelas árvores seculares, às sestas preguiçosas da fazenda, ao viver amplo da roça, descalço, o peito nu, a rede embalada pela viração cheirosa das matas, o sono vigiado por escravos.

E tinha de deixar tudo isso!

«Para que negar? Havia de custar-lhe muito!» considerou ele, fazendo estacar o seu animal. Havia andado quatro léguas e precisava comer alguma coisa.

No interior do Maranhão o viajante, de ordinário, «pousa» e come nas fazendas que vai encontrando pelo caminho, tanto que todas elas, contando já com isso, têm sempre cômodos especiais, destinados exclusivamente aos hóspedes adventícios; mas com José da Silva, que, aliás muitas e muitas vezes pernoitara em diversas e conhecia de perto a hospitalidade dos seus vizinhos, a coisa mudava agora de figura: não queria de forma alguma suportar a companhia de ninguém; receava que o interrogassem sobre a morte da mulher. Preferiu pois jantar mesmo ao relento, e seguir logo sua viagem.

Não obstante, ia já escurecendo, as cigarras estridulavam em coro; ouvia-se o lamentoso piar das rolas que se aninhavam para dormir; toda a natureza se embuçava em sombras, bocejando.

Anoitecia lentamente.

Então, José da Silva sentiu mais negra por dentro a sua viuvez; sentiu um grande desejo de chegar a casa, mas queria encontrar uma boa mesa, onde comesse e bebesse à vontade, como dantes; queria a sua cama larga, de casados, o seu cachimbo, o seu trajo de casa.

Ah! Nada disso encontraria!... O quarto, em que ele, durante tantos anos, dormira feliz, devia ser àquela hora um ermo pavoroso; a cozinha devia estar gelada, os armários vazios, a horta murcha, os potes secos, o leito sem mulher!

Que desconsolo!

Apesar de tudo, sentia fundas saudades da esposa.

-Como o homem precisa de família!... lamentava ele no isolamento. Ah padre! Aquele maldito padre! E daí, quem sabe?... se eu perdoasse?... ela talvez se arrependesse e viesse ainda a dar uma boa companheira, virtuosa e dócil!... Mas... e ele?... Oh nunca! Ele existiria! A dúvida continuava na mesma! Ele, só ele é que eu devia ter matado!

E depois de refletir um instante:

-Não! antes assim! Assim foi melhor!

Esta conclusão, arrancada só pelo seu espírito religioso, foi seguida de um movimento rápido de esporas. O cavalo disparou. Fez-se então um correr vertiginoso, em que José, todo vergado sobre a sela, parecia dormir na cadeia do galope. Mas, de súbito, contraiu as rédeas e o animal estacou.

O cavaleiro torceu a cabeça, concheando a mão atrás da orelha. Vinha de longe uma toada estranha de vozes sussurrantes, e um confuso tropel de cavalgaduras.

A noite exalava da floresta. Sentiam-se ainda as derradeiras claridades do dia e já também um crescente acumular de sombras. A lua erguia-se, brilhando com a altivez de um novo monarca que inspeciona os seus domínios, e o céu ainda estava todo ensangüentado da púrpura do último sol, que fugia no horizonte trêmulo, como um rei expulso e envergonhado.

José da Silva, entregue todo aos seus tormentos, assistia, sem apreciar, ao espetáculo maravilhoso de um crepúsculo de verão no extremo norte do Brasil.

O sol descambava no ocaso, retocando de tons quentes e vigorosos, com a minuciosidade de um pintor flamengo, tudo aquilo que o cercava. Desse lado, montes e vales tinham orlas de ouro; era tudo vermelho e esfogueado: ao passo que, do ponto contrário, lhe opunha o luar o doce contraste da sua luz argentina e fresca, debuxando contra o horizonte o trêmulo e duvidoso perfil das carnaubeiras e dos pindovais.

Destas bandas, no conflito boreal daquelas duas luzes inimigas, um grupo mal-definido e rumoroso agitava-se e crescia progressivamente.

Era uma caravana de ciganos que se aproximava.

Vinha lentamente, com o passo frouxo de uma boiada. Na solidão tristonha e sombria da floresta iam-se pouco a pouco distinguindo vozes de tons diversos e acentuavam-se grupo de homens, mulheres e crianças, de todas as cores e de todas as idades, cavalgando magníficos animais. Uns cantavam ao embalo monótono da besta; outros tocavam viola; esta acalentava o filho, aquela repetia as modas que lhe ensinara a gajoa. Viam-se moços, de calça e quinzena, cabelos grandes, o ar indolente, o cachimbo ao canto da boca, o olhar vago e cheio de volúpia, ao lado de raparigas fortes, queimadas do sol, com as melenas muito negras e lisas escorrendo sobre a opulência das espáduas. Sentavam-se à moda de odaliscas em volumosas trouxas, que serviam, a um tempo, de alforje e de sela. Algumas delas traziam filhos ao colo ou na garupa do cavalo.

E, lenta e pesadamente, a caravana dos ciganos se aproximava. José escondeu-se no mato, para a ver passar.

Com certeza vinha enxotada de alguma fazenda, porque o chefe, um velho membrudo, de grandes barbas brancas, olhos cor de fumo, cavados e sombrios, mas irrequietos e vivos, erguia, de vez em quando, o braço e ameaçava o poente:

-Jacarés te piquem diabo! Atravessado tu sejas na boca de um bacamarte!

E a voz rouca e profunda do ancião perdia-se na floresta.

Meio deitada nas pernas dele, cingindo-lhe a cintura, uma mulher bela, o colo nu e fresco, a garganta lisa e carnuda, procurava, com o olhar muito mole de uma ternura úmida e escrava, diminuir-lhe a cólera.

E a caravana, iluminada pelos últimos raios da claridade poente, foi passando. E a pouco e pouco o sussurrar das vozes foi se perdendo no tristonho murmúrio das matas, como no horizonte se perdia a última réstia de luz vermelha.

Em breve, tudo recaiu no silêncio primitivo, e a lua, do alto, baldeava com a sua luz misteriosa e triste a solidão das clareiras.

José ficou imóvel, pensativo, perdido num desgosto invencível. O espetáculo daquele velho boêmio, abraçado a uma mulher bonita e sem dúvida fiel, mordia-o por dentro com o dente mais agudo da inveja. «Aquele, um vagabundo, um miserável, sem lar, sem dinheiro, sem mocidade ao menos, tinha contudo nesta vida uma fêmea que o acarinhava e seguia como escrava; ao passo que ele, ali, no meio do campo, desacompanhado, inteiramente esquecido, chorava, porque lhe arrancaram tudo, tudo -a casa, a mulher e a felicidade!» E depois pela associação natural das idéias, punha-se a lembrar do rosto pálido de Diogo. A despeito do ódio que lhe votava, achava-o bonito, com o seu cabelo todo anelado, o sorriso terno e piedoso, olhos e lábios de uma expressão sensual e ao mesmo tempo religiosa. Este contraste devia por força agradar às mulheres, vencê-las pelos mistérios, pelo incognoscível. E chorava, chorava cada vez mais.

«Como eles não se amariam!... Quanto prazer não teriam desfrutado!...»

Instintivamente comparava-se ao padre e, cheio de raiva, de inveja, reconhecia-se inferior. De repente, veio-lhe esta idéia:

«E se eu o matasse?...»

Repeliu-a logo, sem querer nem ao menos escutá-la; mas a idéia não ia e agarrava-se-lhe ao cérebro, com uma obstinação de parasita.

Então, vieram-lhe à lembrança, sob uma reminiscência lúcida e saudosa -o seu casamento, os sobressaltos felizes do noivado, o namoro de Quitéria. Tudo isso nunca lhe pareceu tão bom, tão apetecível como naquele momento. Agora, descobria na mulher virtudes e belas qualidades, para as quais nunca atentara dantes.

«Seria eu o culpado de tudo?... Não teria cumprido com os meus deveres de bom esposo?... Seriam insuficientes os meus carinhos?...» interrogava ele à própria consciência; esta respondia opondo-lhe dúvidas que valiam acusações. Ele defendia-se, explicava os fatos, citava provas em favor, lembrava a sua dedicação e a sua amizade pela defunta; mas a maldita rezingueira não se acomodava e não aceitava razões. E José abriu a chorar como um perdido.

Surpreendeu-se neste estado; quis fugir de si mesmo, e cravou as esporas no cavalo. Correu muito, à rédea solta como se fugira perseguido pela própria sombra.

«E se eu o matasse?...»

Era a maldita idéia que vinha de novo à superfície dos seus pensamentos.

«Não! Não!» E ele a repelia de novo empurrando-a para o fundo da sua imaginação, como o assassino que repele no mar o cadáver da sua vítima; ela mergulhava com o impulso, mas logo reaparecia, boiando. «E se eu o matasse?...»

-Não! não! exclamou, desferindo um grito no silêncio da floresta. Já basta a outra!

E assanhavam-se-lhe os remorsos.

Nesse momento uma nuvem escondera a lua. Espectros surgiam no caminho; José suava e tremia sobre a sela; o mais leve mexer de galhos eriçava-lhe os cabelos.

No entanto -corria.

Pouco lhe faltava já para chegar à fazenda, muito pouco, uma miserável distância, e, contudo, mais lhe custava esse pouco do que todo o resto da viagem. Fechou os olhos e deixou que o cavalo corresse à toa, galopando ruidosamente na terra úmida de orvalho. Ele ofegava, acossado por fantasmas. Via a sua vítima, com a boca muito aberta, os olhos convulsos, a falar-lhe coisas estranhas numa voz de moribunda, a língua de fora, enorme e negra, entre gorgolhões de sangue. E via também surgir aquele padre infame, bater-lhe no ombro, apresentar-lhe, sorrindo, um alvitre, propor uma condição e passar logo à ameaça brutal: «Tenho-te na mão, assassino! Se quiseres punir-me, entrego-te à justiça!»

E José gritou, como doido, soluçando:

-E eu aceitei, diabo! Eu aceitei!

Nisto, o cavalo acuou. Um vulto negro agitou-se por detrás do tronco de um ingazeiro, e uma bala, seguida pela detonação de um tiro, varou o peito de José da Silva.

Os negros de São Brás viram aparecer lá o animal às soltas, e todo salpicado de sangue, tinham ouvido um tiro para as bandas da estrada, correram todos nessa direção à procura da vítima.

Foi Domingas quem a descobriu, e, num delírio, precipitou-se contra o cadáver, a beijar-lhe as mãos e as faces.

-Meu senhor! meu querido! meus amores! exclamava ela, a soluçar convulsivamente.

Mas, tomada de uma idéia súbita, ergueu-se, e gritou, apontando vagamente para o lado da vila.

-Foi ele! Não foi outro! Foi aquele malvado! Foi aquele padre do diabo!

E pôs-se a rir e a dançar, batendo palmas e cantando. Era a loucura que voltava.

O crime foi atribuído aos mocambeiros e o corpo de José da Silva enterrado junto à sepultura da mulher, ao lado da capela, que principiava a desmoronar com a míngua dos antigos cuidados.

A fazenda aos poucos se converteu em tapera, e lendas e superstições de todo o gênero se inventaram para explicar-lhe o abandono. O vigário do lugar, pessoa insuspeita e criteriosa, nem só confirmava o que diziam, como aconselhava a que não fossem lá. «Aquilo eram terras amaldiçoadas!»

Anos depois, contavam que nas ruínas de São Brás vivia uma preta feiticeira, que, por alta noite, saía pelos campos a imitar o canto da mãe-da-lua.

Ninguém se animava a passar perto dali, e o caminheiro descuidado, que se perdesse em tais paragens, via percorrer o cemitério, a cantar e a rodar, um vulto alto e magro de mulher, coberto de andrajos.

A morte inesperada de José causou grande abalo no irmão e ainda mais em Mariana. Raimundo era muito criança, não a compreendeu; por esse tempo teria ele cinco anos, se tanto. Vestiram-no de sarja preta e disseram-lhe que estava de luto pelo pai. Manuel tratou do inventário; recebeu o que lhe coube e mais a mulher na herança; depositou no recém-criado banco da província o que pertencia ao órfão e, apesar das vantagens que propôs para vender ou arrendar a fazenda de São Brás, ninguém a quis. Isto feito, escreveu logo para Lisboa, pedindo esclarecimentos à Casa Peixoto, Costa & Cia., e uma vez bem informado no que desejava, remeteu o sobrinho para um colégio daquela cidade.

Muito custou à bondosa Mariana separar-se de Raimundo. Doía aquele coração amoroso ver expatriar-se, assim, tão sem mãe, uma pobre criança de cinco anos. O pequeno, todavia, depois de preparado com todo o desvelo, foi metido, a chorar, dentro de um navio, e partiu.

Ia recomendado ao comandante e lamentava-se muito em viagem. Quando chegou a Lisboa teve horror de tudo que o cercava. Entretanto, foi sempre bem tratado: seu correspondente hospedou-o como a um parente, tratou-o como filho; depois, meteu-o num colégio dos melhores.

Raimundo envergou o uniforme da casa, recebeu um número, e freqüentou as aulas. A princípio, logo que o deixavam sozinho, punha-se a chorar. Tinha muito medo do escuro; à noite, cosia-se contra a parede, abraçado aos travesseiros. Não gostava dos outros meninos, porque lhe chamavam «Macaquinho». Era teimoso, cheio de caprichos, ressentia-se muito da má educação que os portugueses trouxeram para o Brasil.

No colégio era o único estudante que se chamava Raimundo e os colegas ridicularizavam-lhe o nome, «Raimundo Mundico Nico!» diziam-lhe, puxando-lhe a blusa e batendo-lhe na cabeça tosquiada à escovinha; até que ele se retirava enfiado, sem querer tornar ao recreio, a chorar e a berrar que o mandassem para a sua terra. Mas, com o tempo, apareceram-lhe amigos e a vida então se lhe afigurou melhor. Já faziam as suas palestras; os companheiros não se cansavam de pedir-lhe informações sobre o Brasil. «Como eram os selvagens?... E se a gente encontrava, pelas ruas, mulheres despidas; e se Raimundo nunca fora varado por alguma flecha dos caboclos.»

Um dia recebeu uma carta de Mariana e, pela primeira vez, deu-se ao cuidado de pensar em si. Mas as suas reminiscências não iam além da casa do tio; no entanto, queria parecer-lhe que a sua verdadeira mãe não era aquela senhora, aquela vinha a ser sua tia, porque era a mulher de seu tio Manuel; e até, se lhe não falhava a memória, por mais de uma vez ouvira dela própria falar na outra, na sua verdadeira mãe... «Mas quem seria a outra? Como se chamava?... Nunca lho disseram!...»

Quanto a seu pai, devia ser aquele homem barbado que, uma noite, lhe apareceu, muito pálido e aflito, e por quem pouco depois o cobriram de luto. Da cena dessa noite lembrava-se perfeitamente! Já estava recolhido, foram buscá-lo à rede e trouxeram-no, estremunhado, para as pernas do tal sujeito, por sinal que as suas barbas tinham na ocasião certa umidade aborrecida, que Raimundo agora calculava ser produzida pelas lágrimas; depois foi se deitar e não pensou mais nisso. Recordava-se também, mas não com tamanha lucidez, do tempo em que aquele mesmo homem esteve doente, lembrava-se de ter recebido dele muitos beijos e abraços, e só agora notava que todos esses afagos eram sempre ocultos e assustados, feitos como que ilegalmente, às escondidas, e quase sempre acompanhados de choro.

Depois destas e outras divagações pelo passado, Raimundo, se bem que muito novo ainda, punha-se a pensar e os véus misteriosos da sua infância assombravam-lhe já o coração com uma tristeza vaga e obscura, numa perplexidade cheia de desgosto. Todo o seu desejo era correr aos braços de Mariana e pedir-lhe que lhe dissesse, por amor de Deus, quem afinal vinha a ser seu pai e, principalmente, sua mãe.

Passaram-se anos, e ele permaneceu enleado nas mesmas dúvidas. Concluiu os seus preparatórios, habilitou-se a entrar para a Academia. E sempre as mesmas incertezas a respeito da sua procedência.

Matriculou-se em Coimbra. Desde então a sua vida mudou radicalmente; todo ele se transformou nos seus modos de ver e julgar. Principiou a ser alegre.

Mas um golpe terrível veio de novo entristecê-lo -a morte da sua mãe adotiva. Chorou-a longa e amargamente; não só por ela, mas também muito por si próprio: perdendo Mariana, perdia tudo que o ligava ao passado e à pátria. Nunca se considerou tão órfão. Todavia, com o correr dos tempos, dispersaram-se-lhe as mágoas e a mocidade triunfou; a criança melancólica produziu um rapaz cheio de vida e bom humor; sentiu-se bem dentro da sua romântica batina de estudante; meteu-se em pândegas com os colegas; contraiu novos amigos, e afinal reparou que tinha talento e graça; escreveu sátiras, ridicularizando os professores antipatizados; ganhou ódios e admiradores; teve quem o temesse e teve quem o imitasse. No segundo ano deu para namorador: atirou-se aos versos líricos, cantou o amor em todos os metros depois vieram-lhe idéias revolucionárias, meteu-se em clubes incendiários, falou muito, e foi aplaudido pelos seus companheiros. No terceiro ano tornou-se janota, gastou mais do que nos outros, teve amantes, em compensação veio-lhe a febre dos jornais, escreveu com entusiasmo sobre todos os assuntos, desde o artigo de fundo até à crônica teatral. No quarto, porém, distinguiu-se na Academia, criou gosto pela ciência, e daí em diante fez-se homem, firmou a sua imputabilidade, tornou-se muito estudioso e sério. Seus discursos acadêmicos foram apreciados; elogiaram-lhe a tese. Formou-se.

Veio-lhe então à idéia fazer uma viagem. Em Coimbra todos o diziam rico; tinha ordem franca. Preparou as malas. Sua principal ambição era instruir-se, instruir-se muito, abranger a maior quantidade de conhecimentos que pudesse; e sentia-se cheio de coragem para a luta e cheio de confiança no seu esforço.

Às vezes, porém uma sombra de tristeza mesquinha toldava-lhe as aspirações -não sabia ao certo de quem descendia, e de que modo, e por quem, fora adquirido aquele dinheiro que lhe enchia as algibeiras. Procurou o seu correspondente em Lisboa, pediu-lhe esclarecimentos a esse respeito -Nada! O Peixoto dizia-lhe, em tom muito seco, «que o pai de Raimundo havia morrido antes da chegada deste a Portugal, e o tio, o tutor, esse estava no Maranhão, estabelecido na Rua da Estrela com um armazém de fazendas por atacado». De sua mãe -nem uma palavra, nem uma atribuição!...

Era para enlouquecer! «Mas, afinal, quem seria ela?... Talvez irmã daquela santa senhora que foi para ele uma segunda mãe... Mas então por que tanto mistério?... Seria alguma história, a tal ponto vergonhosa, que ninguém se atrevesse a revelar-lhe?... Seria ele enjeitado?... Não, decerto, porque era herdeiro de seu pai...» E Raimundo, quanto mais tentava pôr a limpo a sua existência, mais e mais se perdia no dédalo das conjeturas.

Das cartas que recebia do Brasil, nem uma só lhe falava no passado, e todavia, era tanto o seu empenho em penetrá-lo, que às vezes, com muito esforço de memória, conseguia reconstruir e articular fragmentos dispersos de algumas reminiscências, incompletas e vagas, da sua infância. Lograva recordar-se da Aniquinha, que tantas noites, adormecera a seu lado, na mesma esteira, ouvindo cantar por D. Mariana o «Boizinho do curral, vem papar neném»; recordava-se também da Sra. D. Maria Bárbara, a sogra de Manuel, que ia, com muito aparato, visitar a neta; passar dias. Em geral, ela chegava à boca da noite, no seu palanquim carregado por dois escravos, vestida de enorme roda, cercada de crias e moleques, precedida por um preto encarregado de alumiar a rua com um lampião de folha, oitavado, duas velas no centro. E o demônio da mulher sempre a ralhar, sempre zangada, batendo nos negros e a implicar com ele, Raimundo, a quem, todas as vezes que lhe dava a mão a beijar, pespegava com as costas desta uma pancada na boca. E recordava-se bem do rosto macilento de Maria Bárbara, já então meio descaído; recordava-se dos seus olhos castanho-claros, de seus dentes triangulares, truncados a navalha, como barbaramente faziam dantes, por luxo, as senhoras do Maranhão, criadas em fazenda.

Raimundo, uma vez, ainda em Coimbra, aspirando o cheiro de alfazema queimada, sentiu, como por encanto, surgirem-lhe à memória muitos fatos de que nunca se recordara até então. Lembrou-se logo do nascimento de Ana Rosa: A casa estava toda silenciosa e impregnada daquele odor; Mariana gemia no seu quarto; Manuel andava, de um para outro lado da varanda, inquieto e desorientado; mas, de repente, apareceu na porta do quarto uma mulata gorda, a quem davam o tratamento de «Inhá comadre», e esta, que vinha alvoroçada, chamou de parte o dono da casa, disse-lhe alguma coisa em segredo, e daí a pouco estavam todos felizes e satisfeitos. E ouvia-se vir lá de dentro um grunhido fanhoso, que parecia uma gaita. Na ocasião, Raimundo nada compreendeu de tudo isto; disseram-lhe que Mariana recebera uma menina de França, e ele acreditou piamente.

Assim lhe acudiam outras recordações; por exemplo a do macassar cheiroso, então muito em uso na província, com que D. Mariana lhe perfumava os cabelos todas as manhãs antes do café; mas, dentre tudo, do que melhor ele se recordava era dos lampiões com que iluminavam a cidade. Ainda lá não havia gás, nem querosene; ao bater d'Ave-Marias vinha o acendedor, desatava a corrente do lampião, descia-o, abria-o, despejava-lhe dentro aguarrás misturada com álcool, acendia-lhe o pavio, guindava-o novamente para o seu lugar, e seguia adiante. «E que mau cheiro em todas as esquinas em que havia iluminação!... Oh! a não ser que estivesse muito transformada a sua província devia ser simplesmente horrível!»

Não obstante, queria lá ir. Sentia atrações por essa pátria, quase tão desconhecida para ele como o seu próprio nascimento misterioso. «Com a viagem descobriria tudo! Mas, primeiro, era preciso dar um passeio à Europa.»

E, resolvido, foi ao escritório de Peixoto, Costa & Cia., sacou a quantia de que precisava, abraçou os amigos, e fez-se de vela para a França.

Passou pela Espanha, visitou a Itália, foi à Suíça, esteve na Alemanha, percorreu a Inglaterra, e, no fim de três anos de viagem, chegou ao Rio de Janeiro, onde encontrou os seus antigos correspondentes de Lisboa. Demorou-se um ano na Corte, gostou da cidade, relacionou-se, fez projetos de vida e resolveu estabelecer aí a sua residência.

«E o Maranhão?... Oh, que maçada! Mas não podia deixar de lá ir! Não podia instalar-se na Corte, sem ter ido primeiro à sua província! Era indispensável conhecer a família; liquidar os seus bens e...»

-Verdade, verdade, dizia ele, conversando com um amigo, a quem confiara os seus projetos, a coisa não é tão feia como quer parecer, porque, no fim de contas, fico conhecendo todo o norte do Brasil, dou um pulo ao Pará e ao Amazonas, que desejo ver, e, afinal, volto descansado para cá com a vida em ordem, a consciência descarregada e o pouco que possuo reduzido a moeda. Não posso queixar-me da sorte!

O passeio à Europa não só lhe beneficiara o espírito, como o corpo. Estava muito mais forte bem exercitado e com uma saúde invejável. Gabava-se de ter adquirido grande experiência do mundo; conversava à vontade sobre qualquer assunto tão bem sabia entrar numa sala de primeira ordem como dar uma palestra entre rapazes numa redação de jornal ou na caixa de um teatro. E em pontos de honra e lealdade, não admitia, com todo o direito, que houvesse alguém mais escrupuloso do que ele.

Foi nessa bela disposição de espírito, feliz e cheio de esperanças no futuro que Raimundo tomou o «Cruzeiro» e partiu para a capital de São Luís do Maranhão.

Entretanto, com a chegada de Raimundo, reuniram-se em casa de Manuel as velhas amizades da família. Vieram as Sarmentos com os seus enormes penteados; moças feias, mas de grandes cabelos, muito elogiados e conhecidos na província. «Tranças como as das Sarmentos!... Cabelo bonito como o das Sarmentos! Cachos como os das Sarmentos!...» Estas e outras tantas frases se haviam convertido em preceitos invariáveis. Fora das Sarmentos não conheciam termo de comparação para cabelos; e elas, cônscias daquela popularidade, ostentavam sempre o objeto de tais admirações em penteados assustadores, de tamanhos fantásticos.

-Tenho pena, afetava às vezes D. Bibina Sarmento (esta era Bernardina) de ter tanto cabelo!... Para desembrulhá-lo é um martírio. E, quando depois do banho, não me penteio logo, ou quando passo um dia sem botar óleo... Ah, dona, nem lhe digo nada!...

E arregalava os olhos e sacudia a juba, como se descrevesse uma caçada de leões.

A família Sarmento compunha-se, além desta D. Bibina, de outra rapariga e de uma senhora de cinqüenta anos, muito nervosa, tia das duas moças. A velha só falava em moléstias e sabia remédios para tudo; tinha um grosso livro de receitas, que ela em geral trazia no bolso; em casa uma variadíssima coleção de vidros, garrafas e púcaros; guardava sempre as cascas de laranja, de romã e os caroços de tuturubá, os quais, dizia pateticamente «Abaixo de Deus, eram santo remédio para as dores de ouvido!» Chamava-se Maria do Carmo, e as sobrinhas tratavam-na por «Mamãe outrinha». Era sumamente apreensiva e entendida de doces.

Viúva. Passara a mocidade no Recolhimento de Nossa Senhora da Anunciação e Remédios, onde concebera o seu primeiro filho do homem com quem depois veio a casar -o tenente Espigão, tenente do exército, um espalhafateiro dos quatro costados, que andava sempre de farda e desembainhava a durindana por dá cá aquela palha. Contavam dele que, um dia, num jantar de festa, perdendo a paciência com o peru assado, que parecia disposto a resistir ao trinchante, arranca do chanfalho e esquarteja a golpes de espada o inocente animal.

Gostava de fazer medo as crianças, fingindo que as prendia ou afiando a lâmina reluzente no tijolo do chão; e ficava muito lisonjeado quando lhe diziam que se parecia com o Pedro II. Tinha-se na conta de muito atilado e a todos contava que fora poeta em rapaz: referia-se a meia dúzia de acrósticos e recitativos, que lhe inspirava D. Maria do Carmo, no seu tempo de recolhida.

Coitado! Morreu de uma tremenda indigestão no dia seguinte a uma ceia, ainda mais tremenda, na qual praticara a imprudência de comer uma salada inteira de pepinos, seu pratinho predileto. A viúva ficou inconsolável, e, em homenagem à memória do Espigão, nunca mais comeu daquele legume; seu ódio estendeu-se implacável por toda a família do maldito; não quis ouvir mais falar de maxixes, nem de abóboras, nem de jerimuns.

-Ai o meu rico tenente! lamentava-se ela quando alguém lhe lembrava o esposo. Que maneiras de homem! que coração de pomba! aquilo é que era um marido como hoje em dia não se vê!...

A outra sobrinha de D. Maria do Carmo, chamava-se Etelvina. Criaturinha sumamente magra, e tão nervosa como a tia; nariz muito fino grande e gelado, mãos ossudas e frias, olhos sensuais e dentes podres. Era detestável: os rapazes do comércio chamavam-lhe «Lagartixa».

Fazia-se muito romântica; prezava a sua cor horrivelmente pálida; suspirava de cinco em cinco minutos e sabia estropiar modinhas sentimentais ao violão. Diziam, em ar muito sério, que ela tivera aos dezesseis anos uma formidável paixão por um italiano, professor de canto, o qual fugira aos credores para o Pará e que, desde então, Etelvina nunca mais tomara corpo.

Apresentou-se também em casa de Manuel a sra. D. Amância Sousellas, velha de grande memória para citar fatos, datas e nomes; lembrava-se sempre do aniversário natalício dos seus inúmeros conhecidos, e nesse dia filava-lhes impreterivelmente o jantar. Estava sempre a falar mal da vida alheia, à sombra da qual aliás, vivia; quinze dias em casa de uma amiga, outros quinze em casa de um parente, o mês seguinte em casa de um parente e amigo, e assim por diante; sempre, sempre de passeio. Ia a qualquer parte, fosse ou não fosse desejada, e, às duas por três, era da casa. Conhecia todo o Maranhão; contava, sem reservas, os escândalos que lhe caíam no bico, e andava sozinha na rua, passarinhando por toda a cidade, de xale, metendo o nariz em tudo. Se morria algum conhecido seu, lá estava ela, a vestir o cadáver, a cortar-lhe as unhas, a dizer os lugares-comuns da consolação, tida e citada por muito serviçal, ativa e prestimosa.

Era cronicamente virgem, mas afirmava que em moça, rejeitara muito casamento bom. Dava-se a coisas de igreja; sabia vestir anjos de procissão e pintava os cabelos com cosmético preto.

Detestava o progresso.

-No seu tempo, dizia ela com azedume, as meninas tinham a sua tarefa de costura para tantas horas e haviam de pôr pr'ali o trabalho! se o acabavam mais cedo iam descansar?... Boas! desmanchavam minha senhora! desmanchavam para fazer de novo! E hoje?... perguntava, dando um pulinho, com as mãos nas ilhargas -hoje é o maquiavelismo da máquina de costura! Dá-se uma tarefa grande e é só «zuc-zuc-zuc!» e está pronto o serviço! E daí, vai a sirigaita pôr-se de leitura nos jornais, tomar conta do romance ou então vai para a indecência do piano!

E jurava que filha sua não havia de aprender semelhante instrumento, porque as desavergonhadas só queriam aquilo para melhor conversar com os namorados, sem que os outros dessem pela patifaria!

Também dizia mal da iluminação a gás:

-Dantes os escravos tinham que fazer! Mal serviam a janta iam aprontar e acender os candeeiros, deitar-lhes novo azeite e colocá-los no seu lugar... E hoje? É só chegar o palitinho de fogo à bruxaria do bico de gás e... caia-se na pândega! Já não há tarefa! Já não há cativeiro! É por isso que eles andam tão descarados! Chicote! chicote, até dizer basta! que é do que eles precisam. Tivesse eu muitos, que lhes juro, pela bênção de minha madrinha, que lhes havia de tirar sangue do lombo!

Mas a especialidade de D. Amância Sousellas, o que a tornava adorável para certos rapazes e detestada por muitos pais de família que iam de nariz torcido lhe recebendo visitas e obséquios de cortesia, era, sem dúvida, o seu antigo hábito de contar anedotas baixas e grosseiras. Sempre fora muito desbocada; no entanto alguns basbaques da sua roda, diziam dela, num frouxo de riso: «Com a D. Amância não pode a gente estar séria! -O diabo da velha tem uma graça!...»

Lá estava também em casa de Manuel a Eufrasinha, viúva do oficial de infantaria. Toda enfeitada de lacinhos de fita roxa, moreninha apesar da superabundância do pó-de-arroz; as feições muito desenhadas à superfície do rosto e com um sinal de nitrato de prata ao lado esquerdo da boca, desastradamente imitado do de uma francesa ex-cantora com quem ela se dava. O sinal era para ficar do tamanho de uma pulga e saiu do tamanho e do feitio de um feijão-preto. Saracoteava-se, cheia de novidades, levantando-se de vez em quando, para ir dizer um segredinho ao ouvido de Ana Rosa, enquanto disfarçadamente lhe endireitava o penteado; nestes passeios olhava de esguelha para os quartos e para a varanda -dando fé- e voltava à sua cadeira, mirando-se a furto nos espelhos da sala, sempre muito curiosa, irrequieta, querendo achar em tudo que lhe diziam uma significação dupla, trejeitando sorrisos e momices expressivas quando não entendia, para fingir que compreendera perfeitamente. Tinha a voz sibilante e afetada, assoviava os SS, e dizia silabadas.

O Freitas, em cuja casa Ana Rosa tivera o seu último histérico, também se achava presente, com a filha, a sua querida Lindoca.

O Freitas era um homem desquitado da mulher «que se atirara aos cães», explicava friamente, muito teso, magro, alto, com o pescocinho comprido no seu grande colarinho em pé. Não relaxava as calças brancas, e gabava-se do segredo de conservá-las limpas e engomadas durante uma semana; trazia sempre, apesar do calor da província, o colarinho duro e o peito da camisa irrepreensível; gravata preta -invariavelmente. Tratava uma enorme unha no dedo mínimo, com a qual costumava pentear o bigode, feito de longos fios, tingidos e lisos, que lhe velavam a boca. Jamais consentia que barbeiro algum «lhe encostasse a mão no rosto»; fazia ele mesmo a sua barba, um dia sim, outro não. Escondia a calva com as compridíssimas farripas do cabelo, muito espichadas, como que grudadas a goma-arábica sobre o crânio. Dispunha de uma memória prodigiosa, gabada por toda a cidade; fazia-se grande conhecedor da história antiga; quando falava escolhia termos, procurava fazer estilo, e, sempre que se referia ao Imperador dizia gravemente: «O nosso defensor perpétuo!» Afiançavam que era habilidoso; em tempo fizera, com muita paciência, uma árvore genealógica de sua família e mandara-a litografar no Rio de Janeiro. Este trabalho foi muito apreciado e comentado na província.

Era empregado público havia vinte e cinco anos e só faltara à repartição três vezes -por uma queda, um antraz, e no dia do seu malfadado casamento; contava isto a todos, com glória. Quando temia constipar-se, aspirava cautelosamente o fartum do conhaque. «Isto e o bastante para me fazer ficar tonto!...» afirmava com uma repugnância virtuosa. Tinha honor às cartas e sabia tocar clarinete, mas nunca tocava, porque o médico lhe dissera «não achar prudente». Fumara em tempo, mas o médico dissera do charuto o mesmo que do clarinete. -Nunca mais fumou. Não dançava, para não suar; falava com raiva das mulheres e, nem caindo de fome, seria capaz de comer à noite. «Além do chá, nada! nada!» protestava com firmeza; estivesse onde estivesse, havia de retirar-se impreterivelmente à meia-noite. Usava sapatos rasos, de polimento, e nunca se esquecia do chapéu-de-sol.

Jamais arredara o pé da ilha de São Luís do Maranhão, tal era o medo que tinha do mar.

-Nem para ir a Alcântara! jurava ele, conversando essa noite em casa do Manuel. Daqui -para o Gavião! Nada, meu caro senhor, quero morrer na minha caminha, sossegado, bem com Deus!

-Com toda a comodidade, observou Raimundo, a rir.

Era devoto: todos os anos carregava na procissão o andor do milagroso Senhor Bom Jesus dos Passos. E muito arranjadinho: «Em casa dele havia de tudo, como na botica.» Diziam os seus íntimos. «Só falta dinheiro...» completava o Freitas em ar discreto de pilhéria. No mais: -sempre o mesmo homem; nunca fora de estroinices; mesmo em rapaz, era já metido consigo; não gostava de dever a ninguém; colecionava selos velhos; dava homeopatia de graça, aos amigos, e tinha a fama do maior maçante do Maranhão.

A tal «sua querida Lindoca» era uma menina de dezesseis anos, pequenina, extremamente gorda, quase redonda, bonitinha de feições, curta de idéias, bom coração e temperamento honesto. A Etelvina dissera uma vez que ela estava engordando até nos miolos.

Lindoca Freitas não escondia o seu desejo de casar e amava extremosamente o pai, a quem só tratava por «Nhozinho».

-Tenho um desgosto desta gordura!... Lamentava-se ela às camaradas, que lhe elogiavam a exuberância adiposa. Se eu soubesse de um remédio para emagrecer... tomava!

As amigas procuravam consolá-la: «Dá-me gordura que te darei formosura! -Gordura é saúde!»

Mas a repolhuda moça não se conformava com aquela desgraça. Vivia triste. As banhas cresciam-lhe cada vez mais; estava vermelha; cansava por cinco passos. Era um desgosto sério! Recorria ao vinagre; dava-se a longos exercícios pela varanda; mas qual! -as enxúndias aumentavam sempre. Lindoca estava cada vez mais redonda, mais boleada; a casa estremecia cada vez mais com o seu peso; os olhos desapareciam-lhe na abundância das bochechas; o seu nariz parecia um lombinho; as suas costas uma almofada. Bufava.

Dias, o piedoso, o doce Luís Dias, também comparecera aquela noite à sala do patrão. Lá estava, metido a um canto, roendo ferozmente as unhas, o olhar imóvel sobre Ana Rosa, que, ao piano, dispunha-se a tocar alguma coisa e experimentava as teclas.

Em uma das janelas da frente, encostados contra a sacada, Manuel e o cônego Diogo ouviam de Raimundo a descrição em voz baixa de um passeio de Paris à Suíça. No resto da sala corria o sussurro das senhoras, que conversavam.

-Então! Estamos passando o Boqueirão? exclamou o Freitas, erguendo-se do sofá, a sacudir as calças, para evitar as joelheiras. E, voltando-se para uma das sobrinhas de D. Maria do Carmo: -Diga alguma coisa, D. Etelvina!...

Etelvina ergueu os olhos para o teto e soltou um suspiro.

-Por quem suspiras? perguntou-lhe, em misterioso falsete, a velha Amância que lhe ficava ao lado.

-Por ninguém... respondeu a Lagartixa, sorrindo melancolicamente com os caquinhos dos dentes.

-Ele não é feio... a senhora não acha D. Bibina?... segredava Lindoca à outra sobrinha de D. Maria do Carmo, olhando furtivamente para o lado de Raimundo.

-Quem? O primo d'Ana Rosa?

-Primo? Eu creio que ele não é primo, dona!

-É! sustentou Bibina quase com arrelia. É primo, sim, por parte de pai!... E olhe, ali está quem lhe sabe bem a história!...

E indicava a tia com o beiço inferior.

-An... resmungou a gorducha, passando a considerar da cabeça aos pés o objeto da discussão.

Por outro lado, Maria do Carmo segredava a Amância Sousellas:

-Pois é o que lhe digo, D. Amância: muito boa preta!... negra como este vestido! Cá está quem a conheceu!...

E batia no seu peito sem seios. -Muita vez a vi no relho. Iche!

-Ora quem houvera de dizer!... resmungou a outra, fingindo ignorar da existência de Domingas, para ouvir mais. Uma coisa assim só no Maranhão! Credo!

-É como lhe digo, minha rica! O sujeitinho foi forro à pia, e hoje, olhe só pr'aquilo! está todo cheio de fumaças e de filáucias!... Pergunte ao cônego, que está ao lado dele!

-Cruz! T'arrenego, pé-de-pato!

E Amância bateu por hábito nas faces engelhadas.

Nisto, ouviu-se um grande motim, que vinha da varanda.

-Ó Benedito! Moleque! Ó peste! Está dormindo, sem-vergonha?!

E logo o estalo de uma bofetada. -Arre! que até me fazes zangar com visitas na sala!...

Era Maria Bárbara, que andava às voltas com o Benedito.

-Vai deitar a mesa do chá moleque!

Manuel correu logo à varanda, contrariado.

-Ó senhora!... disse à sogra. Que inferneira! Olhe que está aí gente de fora!...

Freitas passou-se à janela de Raimundo, e aproveitou a oportunidade para despejar contra este uma estopada a respeito do mau serviço doméstico feito pelos escravos.

-Reconheço que nos são necessários, reconheço!... mas não podem ser mais imorais do que são!... As negras, principalmente as negras!... São umas muruxabas, que um pai de família tem em casa, e que dormem debaixo da rede das filhas e que lhes contam histórias indecentes! É uma imoralidade! Ainda outro dia, em certa casa, uma menina, coitada, apareceu coberta de piolhos indecorosos, que pegara da negra! Sei de outro caso de uma escrava que contagiou a uma família inteira de impigens e dartros de caráter feio! E note, doutor, que isto é o menos, o pior é que elas contam às suas sinhazinhas tudo o que praticam aí por essas ruas! Ficam as pobres moças sujas de corpo e alma na companhia de semelhante corja! Afianço-lhe, meu caro senhor doutor, que, se conservo pretos ao meu serviço, é porque não tenho outro remédio! Contudo...

Foi interrompido por Benedito que, nu da cintura para cima e acossado pela velha Bárbara, atravessou a sala com agilidade de macaco. As senhoras espantaram-se, mas abriram logo em gargalhadas. O moleque alcançara a porta da escada e fugira. Então, o Dias, que até aí se conservara quieto no seu canto, ergueu-se de um pulo e deitou a correr atrás dele. Desapareceram ambos.

Benedito era cria de Maria Bárbara; um pretinho seco, retinto, muito levado dos diabos; pernas compridas, beiços enormes, dentes branquíssimos. Quebrava muita louça e fugia de casa constantemente.

A velha estacara no meio da sala furiosa.

-Ai, gentes! não reparem!... bradou. Aquele não-sei-que-diga, aquele maldito moleque!... Pois o desavergonhado não queria vir trazer água na sala, sem pôr uma camisa?... Patife! Ah, se o pego!... Mas deixa estar, que não as perdes, malvado!

E correndo à janela: -Se seu Dias não te alcançar, tens amanhã um campeche te seguindo a pista, sem-vergonha!

E saiu de novo para a varanda, muito atarefada, gritando pela Brígida:

-Ó Brígida! Também estás dormindo, seu diabo?!

Na sala as visitas discutiam rindo a cena do moleque e o mau gênio de Maria Bárbara, mas tiveram de abafar a voz, porque Ana Rosa pôs-se a tocar uma polca ao piano.

Pouco depois, ouviu-se um farfalhar de saias engomadas, e em seguida apresentou-se a Brígida, uma mulata corpulenta a carapinha muito trançada e cheia de flores, um vestido de chita com três palmos de cauda, recendendo a cumaru. Preparava-se daquele modo, para ir à sala, oferecer água. E, segurando com ambas as mãos uma enorme salva de prata, cheia de copos, dirigia-se a todos, um por um, a bambalear as ancas volumosas.

A criadagem de Manuel e Maria Bárbara, contava, além de Brígida e Benedito, de uma cafuza já idosa, chamada Mônica, que amamentara Ana Rosa e lavava a roupa da casa, e mais de uma preta só para engomar, e outra só para cozinhar, e outra só para sacudir o pó dos trastes e levar recados à rua. Pois, apesar deste pessoal, o serviço era sempre tardio e malfeito.

-Estas escravas de hoje têm luxos!... observou Amância em voz baixa a Maria do Carmo, apontando com o olhar para o vulto empantufado de Brígida.

E entraram a conversar sobre o escândalo das mulatas se prepararem tão bem como as senhoras. «Já se não contentavam com a sua saia curta e cabeção de renda; queriam vestido de cauda; em vez das chinelas, queriam botinas! Uma patifaria!» Depois falaram nos caixeiros, que roubavam do patrão para enfeitar as suas pininchas; e, por uma transição natural, estenderam a crítica até aos passeios a carro, às festas de largo e os bailes dos pretos.

-Os chinfrins, como lhes chamava o meu defunto Espigão, acudiu Maria do Carmo, conheço! ora se conheço!... Bastante quizília tivemos nós por amor deles!...

-É uma sem-vergonheira! Ver as escravas todas de cambraia, laços de fita, água de cheiro no lenço, a requebrarem as chandangas na dança!...

-Ah, um bom chicote!... disseram as duas velhas ao mesmo tempo.

-E elas dançam direito?... perguntou a do Carmo,

-Se dançam!... O serviço é que não sabem fazer a tempo e a horas! Lá para dançar estão sempre prontas! Nem o João Enxova!

A indignação secava-lhe a voz.

-Até parecem senhoras, Deus me perdoe! Todas a se fazerem de gente! os negros a darem-lhes excelência. «E porque minha senhora pra cá! Vossa Senhoria pra lá!» É uma pouca vergonha, a senhora não imagina!... Uma vez, em que fui espiar um chinfrim, porque me disseram que o meu defunto estava lá metido, fiquei pasma! E o melhor é que os descarados não se tratam pelo nome deles, tratam-se pelo nome dos seus senhores!... Não sabe Filomeno?... aquele mulato do presidente?... Pois a esse só davam «Sr. Presidente!». Outros são «Srs. Desembargadores, Doutores, Majores e Coronéis!». Um desaforo que deveria acabar na palmatória da polícia!

Ana Rosa terminou a sua polca.

-Bravo! Bravo!

-Muito bem, D. Anica!

E estalaram palmas.

-Tocou às mil maravilhas!...

-Não senhor, foi uma polca do Marinho.

Correram a cumprimentar a pianista. O Freitas profetizou logo «que ali estava um segundo Lira!»

Raimundo foi o único que não se abalou. Estava fumando à janela, e fumando deixou-se ficar. Ana Rosa, sem dar a perceber, sentiu por isso uma ligeira decepção. Esforçara-se por tocar bem e ele, nem assim! «Até parecia não ter notado nada!... É um malcriado!» concluiu ela, de si para si. E, com uma pontinha de mau humor, assentou-se ao lado de Lindoca. Eufrásia correu logo para junto da amiga.

-Que tal o achas?... perguntou em segredo, assentando-se, com muito interesse.

-Quem? disse Ana Rosa, fingindo distração e franzindo o nariz.

A outra indicou misteriosamente a janela com um dos polegares.

-Assim, assim...

E a filha do negociante fez um bico de indiferença.

-Nem por isso!...

-Um peixão! opinou Eufrásia com entusiasmo.

-Gentes!... Que é isto, Eufrasinha?...

-É uma tetéia!

E a viúva mordia os beiços.

-Sim, ele não é feio... tornou Ana Rosa, impacientando-se. Mas também não é lá essas coisas!...

-Que olhos! que cabelos! e que gestos!... olha, olha, menina! como ele brinca com o charuto!... olha como ele se encosta à grade da janela!... Parece um fidalgo, o diabo do homem!...

Ana Rosa, sem desfranzir o nariz, enviesava os olhos contra o primo e sentia melhor do que a amiga, a evidência do que esta lhe dizia. «Raimundo era com efeito elegante e bem bonito, mas, que diabo, desde que chegara ainda lhe não tinha dispensado uma única palavra de distinção, um só gesto que a especializasse, quando ali, no entanto, era ela, incontestavelmente, a mais chique, a mais simpática, e, além disso -sua prima! (Ana Rosa pouco, ou nada, sabia ao certo do grau do seu parentesco com ele) Não! Não fora correto! Falara-lhe como às outras, igualmente frio e reservado; não fizera como os rapazes do Maranhão, que, mal se aproximavam dela estavam desfeitos em elogios e protestos de amor!» Aquela indiferença de Raimundo doía-lhe como uma injustiça: sentia-se lesada, roubada, nos seus direitos de moça irresistível. «Um pedante é o que ele é! Um enfatuado! Pensa que vale muito, porque se formou em Coimbra e correu a Europa! Um tolo!...»

Nessa ocasião, entraram na sala, com ruídos, dois novos tipos -o José Roberto e o Sebastião Campos.

Foram logo apresentados a Raimundo e seguiram a cumprimentar as senhoras, dando a cada qual uma frase ou uma palavra ou um gesto de galanteio familiar: «D. Eufrasinha sempre bela como os amores, que pena ser eu já papel queimado!» -Então, D. Lindoca, onde vai com essa gordura? divida a metade comigo! -Quando se come doce desse casamento, D. Bibina?... E tinham sempre na ponta da língua uma pilhéria, um dito, para bulir com as moças; coisas desengraçadas e sediças, mas que as faziam rebentar de riso.

-Deus os fez e o diabo os ajuntou! explodiu, com um estalo de boca, a velha Amância quando os dois passaram por ela.

José Roberto, a quem só tratavam por «Seu Casusa», era moço de vinte e tantos anos; magro, moreno, crivado de espinhas, olhos muito negros, boca em ruínas, uma enorme cabeleira, rica, toda encaracolada e reluzente de óleo cheiroso, preta, bem preta, dividida pacientemente ao meio da cabeça. Usava lunetas azuis e cantava ao violão modinhas da sua própria lavra e de outros, apimentadas à baiana com o travo sensual e árabe dos lundus africanos. Quando tocava, tinha o amaneirado voluptuoso do trovador de esquina; vergava-se todo sobre o instrumento, picando as notas com as unhas cujos dedos pareciam as pernas de um caranguejo doido, ou abafando com a palma da mão o som das cordas, que gemiam e choravam como gente.

Tipo do Norte, perfeito, cheio de franquezas, com horror ao dinheiro, muito orgulhoso e prevenido contra os portugueses, a quem perseguia com as suas constantes chalaças, imitando-lhes o sotaque, o andar e os gestos. Tinha alguma coisinha de seu e passava por estróina. Gostava das serenatas, das pândegas com moças; pilhando dança -não perdia quadrilha nem pulada, mas no dia seguinte ficava de cama, estrompado.

Havia muito que José Roberto procurava agradar a Ana Rosa; esta sempre o repelia, a rir. Também poucos o tomavam a sério: «Um pancada», diziam; mas queriam-lhe bem.

O Sebastião Campos, esse era viúvo da primeira filha de Maria Bárbara e, como aquele, um tipo legítimo do Maranhão; nada, porém, tinha do outro senão o orgulho e a birra aos portugueses, a quem na ausência só chamava «marinheiros -puças -galegos».

Senhor de engenho, de um engenho de cana, lá para as bandas do Munim, onde passava três meses no tempo da colheita; o resto do ano passava-o na cidade. Devia ter quase o duplo da idade de José Roberto, baixote, muito asseado, mas com a roupa sempre malfeita. Usava calças curtas, em geral brancas, deixando aparecer, desde o tornozelo, os seus pezinhos ridiculamente pequenos e mimosos; barba cerrada, ainda preta, e cabelo à escovinha; olhos de pássaro, vivos e lascivos, nariz de criança e testa enorme; uma grande cabeça, desproporcionada do corpo, beiços grossos e vermelhos, mostrando a dentadura miudinha e gasta, porém muito bem tratada, tratada a mel de fumo de corda, que era com que ele asseava a boca.

Bairrista, isso ao último ponto: a tudo preferia o que fosse nacional. «Não trocava a sua boa cana-capim -e o seu vinho de caju por quantos cognacs e vinhos do Porto havia por aí! nem o seu gostoso e cheiroso fumo de molho, fabricado no Maranhão, pelo melhor tabaco estrangeiro, ou mesmo importado das outras províncias! Ou bem que se era maranhense ou bem que se não era!»

Não cochilava com os seus escravos. Na roça era temido até pelo feitor, um pouco devoto e cheio de escrúpulos de raça. «Preto é preto; branco é branco! Moleque é moleque; menino é menino!» E estava sempre a repetir que o Brasil teria ganho muito, se perdesse a Guerra dos Guararapes.

-A nossa desgraça, rezava ele, é termos caído nas mãos destas bestas! Uns lesmas! Uma gente sem progresso, que só cuida de encher o papo e aferrolhar dinheiro!

Favores, de quem quer que fosse, não os aceitava «que não queria dever obrigações a nenhum filho da mãe!...» Mas também, quando dava para meter as botas em qualquer pessoa -era aquela desgraça! Não tinha papas na língua! Era nervoso e ativo; gostava todavia de ler ou conversar, escarranchado na rede durante horas esquecidas, em ceroulas, fumando o seu cachimbo de cabeça preta, fabricado na província. Na rua, encontravam-no de sobrecasaca aberta, coletinho de chamalote, camisa bordada, guarnecida por três brilhantes grandes; ao pescoço, prendendo o cebolão, um trancelim muito comprido, de ouro maciço, obra antiga, com passador. Adorava os perfumes ativos, as jóias e as cores vivas; para ele, nada havia, porém, como um passeio ao sítio embarcado, à fresca da madrugada, bebericando o seu trago de cachaça e pitando o seu fumo do Codó. Em casa muito obsequiador. Passava à farta.

Com a vinda destes dois, a reunião tornou-se mais animada. Reclamou-se logo o violão, e seu Casusa, depois de muito rogado, afinou o instrumento e principiou a cantar Gonçalves Dias:

«Se queres saber o meio

Por que às vezes me arrebata

Nas asas do pensamento

A poesia tão grata;»



Nisto, rebentou uma corda do violão.

-Ora pistolas!... resmungou o trovador. E gritou: -Ó D. Anica! a senhora não terá uma prima?

Ana Rosa foi ver se tinha, andou remexendo lá por dentro da casa, e voltou com uma segunda. «Era o que havia.» O Casusa arranjou-se com a segunda e prosseguiu, depois de repetir os versos já cantados; ao passo que o Freitas, na janela, importunava Raimundo, a propósito do autor daquela poesia e de outros vultos notáveis do Maranhão «da sua Atenas brasileira» como a denominava ele. O cônego fugiu logo para a varanda, covardemente, com medo à seca.

-Não sou bairrista, não senhor... dizia o maçante, mas o nosso Maranhãozinho é um torrão privilegiado!...

E citava, com orgulho, «os Cunha, os Odorico Mendes, os Pindaré e os Sotero et cetera! et cetera!« O seu modo de dizer et cetera era esplêndido!

-Temos os nossos faustos, temos!

Passou então a falar nas belezas da sua Atenas: no dique das Mercês, «estava em construção, mas havia de ficar obra muito de se ver e gostar...» afiançava ele cheio de gestos respeitosos. Falou do Cais da Sagração, «também não estava concluído», dos Quartéis, «iam entrar em conserto», na igreja de Santo Antônio, «nunca chegaram a terminá-la, mas se o conseguissem, seria um belo templo!» Elogiou muito o teatro São Luís. «Dizia o cônego que era o São Carlos de Lisboa, em ponto pequeno!» Lembrou respeitosamente a companhia lírica do Ramonda, o Remorini, o tenor «morrera de febre amarela, depois de ser muito aplaudido na Gemma de Vergi. Ah, como aquela, jurava não voltaria outra companhia ao Maranhão! Mas que, mesmo na província, havia moços de grande habilidade...» Referia-se a uma sociedade particular, de curiosos. «Tinham seu jeito, sim senhor!» E, engrossando a voz, com muita autoridade: «Representavam Os Sete Infantes de Lara! -Os Renegados! -O Homem da Máscara Negra, e outras peças de igual merecimento! Tinham a sua queda para a coisa, tinham!... Não se pode negar!...» E assoava-se, meneando a cabeça, convencido. «Principalmente a dama... sim! o moço que fazia de dama!... Não havia que desejar -o pegar do leque, o revirar dos olhos, certos requebros, certas faceirices!... Enfim, senhores, era perfeito, perfeito, perfeito!»

Raimundo bocejava.

E o Freitas nem cuspia. Acudiam-lhe fatos engraçados sobre o teatrinho; soltava as anedotas em rebanho, sem intervalos. Raimundo já não achava posição na janela; virava-se da esquerda, da direita, firmava-se ora numa perna, ora na outra deixando afinal pender a cabeça e olhando para os pés, entristecido pelo tédio. «Que maçante!...» pensava.

Entretanto, o Freitas a sacudir-lhe a manga do fraque, que Raimundo sujara na caliça da janela, ia confessando que «estavam em vazante de divertimentos; que a sua distração única era cavaquear um bocado com os amigos...»

-Ah! exclamou, minto! minto! Há uma festa nova! -a de Santa Filomena! Mas não será como a dos Remédios, isso, tenham paciência!...

-Sim, decerto, balbuciou Raimundo, fingindo prestar atenção.

E espreguiçou-se.

-A festa dos Remédios!... repetiu o outro, estalando os dedos e assoviando prolongadamente, como quem diz: «Vai longe!»

Raimundo estremeceu, ficou gelado até a raiz dos cabelos; percebeu aquela tremenda ameaça e mediu instintivamente a altura da janela, como se premeditasse uma fuga.

-O nosso João Lisboa... disse o Freitas. E meteu profundamente as mãos nas algibeiras das calças. O nosso João Lisboa já, em um folhetim publicado no número... Ora qual é o número do Publicador Maranhense?... Espere!...

E fitou o teto.

-1173 -Sim! 1173, de 15 de outubro de 1851. Pois nesse folhetim descreve ele, circunstanciadamente e com muito donaire e gentilezas de estilo, a nossa popular e pitoresca festa dos Remédios.

Raimundo, aterrado, prometeu, sob palavra de honra, ler o tal folhetim na primeira ocasião.

-Ah!... volveu terrível o Freitas, é que ela hoje é outra coisa!... Hoje não se compara! -há muito mais luxo, mas muito!

E, segurando com ambas as mãos a gola do fraque de Raimundo e ferrando-lhe em cima dos olhos arregalados, acrescentou energicamente: -Creia, meu doutor, mete pena o dinheirão que se gasta naquela festa! faz dó ver as sedas, os veludos, as anáguas de renda, arrastarem-se pela terra vermelha dos Remédios!...

Raimundo empenhou a cabeça como faria idéia aproximada.

-Qual! Qual! Tenha paciência meu amigo, não é possível! E Freitas repeliu com força a vítima. Aquilo só vendo e sentindo, Sr. Dr. Raimundo José da Silva!

E descreveu minuciosamente a cor, a sutileza da terra; como a maldita manchava o lugar em que caía; como se insinuava pelas costuras dos vestidos, das botas, nas abas dos chapéus, nas máquinas dos relógios; como se introduzia pelo nariz, pela boca, pelas unhas, por todos os poros!

-Aquilo, meu caro amigo...

Raimundo queixou-se inopinadamente de que tinha muito calor.

Freitas levou-o pelo braço até a varanda; deu-lhe uma preguiçosa, passou-lhe uma ventarola de Bristol, preparou-lhe uma garapada, e, depois de havê-lo regalado bem, como antigamente se fazia com os sentenciados antes do suplício, de pé, implacável, verdadeiro carrasco em face do paciente, despejou inteira uma descrição do dia da festa dos Remédios, recorrendo a todos os mistérios da tortura, escolhendo palavras e gestos, repetindo as frases, frisando os termos, repisando o que lhe parecia de mais interesse, cheio de atitudes como se discursasse para um grande auditório.

Principiou expondo minuciosamente o Largo dos Remédios, com a sua ermida toda branca, seus bancos em derredor; muitos ariris, muita bandeira, muito foguete, muito toque de sino. Descreveu com assombro o luxo exagerado em que se apresentavam todos, todos! para a missa das seis e para a missa das dez, nas quais, dizia ele circunspectamente, «reúne-se a nata da nossa judiciosa sociedade!...» Era tudo em folha, e do mais caro, e do mais fino. Nesse dia todos luxavam, desde o capitalista até o ralé caixeiro de balcão; velho ou moço, branco ou preto, ninguém lá ia, sem se haver preparado da cabeça aos pés; não se encontrava roupa velha, nem coração triste!

-Às quatro horas da tarde, acrescentou o narrador, torna-se o largo a encher. Pensará talvez o meu amigo que tragam a mesma fatiota da manhã...

-Naturalmente...

-Pois engana-se! é tudo outra vez novo! são novos vestidos, novas calças, novas...

-Etc., etc.! Vamos adiante.

-Afirmam alguns estrangeiros... e dizendo isto tenho dito tudo!... que não há, em parte alguma do mundo festa de mais luxo!...

E a voz do maçante tomava a solenidade de um juramento.

-O que lhe posso afiançar, doutor, é que não há criança que, nessa tarde, não tenha a sua pratinha amarrada na ponta do lenço. Aparecem cédulas gordas, moedas amarelas; troca-se dinheiro; queimam-se charutos caros, no bazar (há um bazar) as prendas sobem a um preço escandaloso! Digo-lhe mais: nesse dia não há homem, por mais pichelingue, que não gaste seu bocado nos leilões, nas barracas, nos tabuleiros de doce ou nas casas de sorte; nem há mulher, senhora ou moça-dama, que não arrote grandeza, pelo menos seu vestidinho novo de popelina. Vêem-se enormes trouxas de doce seco, corações unidos de cocada, navios de massa com mastreação de alfenim, jurarás dourados, cutias enfeitadas dentro da gaiola, pombos cheios de fitas, frascos de compota de murici, bacuri, buriti, o diabo, meu caro senhor! As pretas-minas, cativas ou forras, surgem com os seus ouros, as suas ricas telhas de tartaruga, as suas ricas toalhas de rendas, suas belas saias de veludo, suas chinelas de polimento, seus anéis em todos os dedos, aos dois e aos três em cada um... E este povo mesclado, coberto de luxo, radiante, com a barriga confortada e o coração contente, passeia, exibe-se, ancho de si, pensando erradamente chamar a atenção de todos, quando aliás cada qual só pensa e repara em si próprio e na sua própria roupa!

Raimundo ria-se por delicadeza, e espreguiçava-se na cadeira, bocejando.

-À noite, continuou o Freitas, ilumina-se todo o largo. Armam-se grandes e deslumbrantes arcos transparentes, com a imagem da santa e os emblemas do Comércio e da Navegação, que Nossa Senhora dos Remédios é padroeira do Comércio, e é este que lhe dá a festa. Mas bem, faz-se a iluminação -armas brasileiras, estrelas, vasos caprichosos, o nome da santa, tudo a bico de gás, não contando uma infinidade de balõezinhos chineses, que brilham por entre as bandeiras, os florões os ariris, as casas de música; em uma palavra fica tudo, tudo, claro como o dia!

Raimundo soltou um suspiro profundo e mudou de posição.

-Há também, para os moleques, um pau-de-sebo, balanços e cavalinhos. É verdade! o doutor sabe o que e um pau-de-sebo?...

-Perfeitamente. Tenha a bondade de não explicar.

-Com franqueza! Se não sabe, diga, que eu posso...

-Ora, por amor de Deus! faz-me o favor em não se incomodar, juro-lhe! Estou impaciente pelo resultado da festa. Continue!

-Pois sim, senhor. Dão oito horas... Ah, meu caro amigo! então surge de todos os cantos da cidade uma aluvião interminável de famílias, de velhos, moços, meninos, mulatinhas e negrinhas, que enchem o largo que nem um ovo! Pretos de ambos os sexos e de todas as idades; desde o moleque até o tio velho, acodem, trazendo equilibradas nas cabeças imensas pilhas de cadeiras, e, com estas cadeiras, formam-se grandes rodas mesmo na praça, ao ar livre, e as famílias, ou ficam aí assentadas, ou, a título de passeio, acotovelam-se entre o povo. Fazem-se grupos, a gente ri, discute, critica, namora, zanga-se, ralha...

-Ralha?

-Ora! Já houve uma senhora que castigou um moleque a chicote, lá mesmo no largo!

-A chicote?

-Sim, a chicote! Aquilo, meu caro doutor, é uma espécie de romaria! As famílias levam consigo potes de água, cuscuz, castanhas assadas, biscoitos e o mais... E tudo isto ao som desordenado da pancadaria de três bandas de música, dos gritos do leiloeiro e da inqualificável algazarra do povo!

Raimundo quis levantar-se; o outro obrigou-o a ficar sentado, pondo-lhe as mãos nos ombros.

-Estamos no apogeu da festa! exclamou o maçante.

-Ah! gemeu Raimundo.

-Soltam-se balões de papel fino; cruzam-se moças aos pares; giram aos pares os janotas; vendem-se roletos de cana, sorvetes, garapa, cerveja, doces, pastéis, chupas de laranja; sentem-se arder charutos de canela; gastam-se os últimos cartuchos; esvaziam-se de todo as algibeiras e, finalmente, com grande júbilo geral arde o invariável fogo de artifício. Então rebentam todas as bandas de música a um só tempo, levanta-se uma fumarada capaz de sufocar um fole, e, no meio do estralejar das bombas e do infrene entusiasmo da multidão, aparece no castelo, deslumbrante de luzes, a imagem de Nossa Senhora dos Remédios. Foguetes de lágrimas voam aos milhares pelo espaço; o céu some-se. Todos se descobrem, em atenção à santa, e abrem o chapéu-de-sol com medo das tabocas. Há uma chuva de luzes multicores; tudo se ilumina fantasticamente; todos os grupos, todas as fisionomias, todas as casas, tomam sucessivamente as irradiações do prisma. Durante esta apoteose o povo se concentra numa contemplação mística, terminada a qual, está terminada a festa!

E Freitas tomou fôlego. Raimundo ia falar, ele atalhou:

-De repente, o povo acorda e quer sair! Corre, precipita-se em massa à Rua dos Remédios, aglomera-se, disputa os carros, pragueja, assanha-se! Cada um entende que deve chegar primeiro à casa; há trambolhões, descomposturas, gritos, gargalhadas, gemidos, rinchos de cavalos, tabuleiros de doce derramados, vestidos rotos, pés esmagados, crianças perdidas, homens bêbados; mas, de súbito, como por encanto, esvazia-se o largo e desaparece a multidão!

-Como? por quê?

-Daí a pouco estão todos recolhidos, sonhando já com a festa do ano seguinte, calculando economias, pensando em ganhar dinheiro, para na outra fazer ainda melhor figura!

E o Freitas resfolegou prostrado, com a língua seca.

-Mas por que diabo se retiram tão depressa?... perguntou Raimundo.

Freitas engoliu sofregamente três goles de água e voltou-se logo.

-É porque este povinho, por fogo de vista, é pior que macaco por banana! Tirem-lhe de lá o fogo que ninguém se abalará de casa!

-Com efeito! E é muito antiga esta festa, sabe?

-Bastante. Ela já tem seu tempo. Ora espere!

E o memorião atirou logo o olhar para o teto.

-No tempo dos governadores portugueses, disse, depois de uma pausa, era ali o convento de São Francisco; isso foi... poderia ser... em.. em mil, setecentos... e dezenove! Chamava-se então a ponta, que forma hoje o Largo dos Remédios, «Ponta do Romeu». Ora, os frades cederam esse terreno a um tal Monteiro de Carvalho, que fez a ermida, como se pode calcular, no mato. Uma ocasião, porém, um preto fugido matou nesse lugar o seu senhor, e os romeiros, que lá iam constantemente, abandonaram receosos a devoção. Só depois de cinqüenta e seis anos, é que o governador Joaquim de Melo e Póvoas mandou abrir uma boa estrada, a qual vem a ser hoje a nossa pitoresca Rua dos Remédios. A ermida caiu em ruínas, mas o ermitão, Francisco Xavier, mandou, em 1818, construir a que lá está presentemente; e daí data a festa, que tive a honra e o gosto de descrever-lhe.

-De tudo isso, aventurou Raimundo, o que mais me admira é a sua memória: o senhor com efeito tem uma memória de anjo.

-Ora! O senhor ainda não viu nada! Vou contar-lhe...

O outro ia disparatar sem mais considerações, quando, felizmente, acudiram todos à varanda. Criou alma nova.

-Apre! disse Raimundo consigo, respirando. É de primeira força!...

Serviu-se o chocolate.

O cônego vinha a discretear para Manuel em voz soturna:

-Pois é o que lhe digo, compadre, fique você com as casas e divida-as em meias-moradas, que rendem?...

-Acha então que vou bem, dando quatro contos de réis por cada uma...

-Decerto, são de graça!... Homem aquilo é pedra e cal -construção antiga! -deita séculos! Além disso, as casinhas têm bom quintal, bom poço e não são devassadas pela vizinhança... verdade é que não deixam de ser um bocadinho quentes, mas...

-Abrem-se-lhe janelas para o nascente, concluiu o negociante.

E, assim, conversando, chegaram à varanda, onde já estavam à mesa.

José Roberto e Sebastião Campos serviam às senhoras, acompanhando com uma pilhéria cada prato que lhes ofereciam. Raimundo pediu dispensa do chá, com medo do Freitas que lhe abrira um lugar ao lado do seu.

Ouviu-se mastigar as torradas e sorver, aos golinhos, o chocolate quente.

-Doutor, exclamou o cônego, procurando espetar com o garfo uma fatia de um bolo de tapioca. Prove ao menos do nosso «Bolo do Maranhão». Também o chamam por aí «Bolo podre». Prove, que isto não há fora de cá... é uma especialidade da terra!

-Não é mau... disse Raimundo, fazendo-lhe a vontade. Muito saboroso, mas parece-me um tanto pesado...

-É de substância -acrescentou Maria Bárbara. Faz-se de tapioca de forno e ovos.

-D. Bibina! chamou Ana Rosa, apontando para os beijus. São fresquinhos...

Amância, com a boca cheia, dizia baixo a Maria do Carmo:

-Pois, minha amiga, quando precisar de missa com cerimônia, não tem mais do que se entender com o padre que lhe digo... É muito pontual e contenta-se com o que a gente lhe dá! Est'r'o dia, apanhou-me dezoito mil-réis por uma missinha cantada, mas também podia se ver a obra que o homem apresentou!... Pois então! Há de dar uma criatura seus cobrinhos, que tanto custam a juntar, a muito padre, como há por aí, desses que, mal chegam ao altar, estão pensando no almoço e na comadre?... Deus te livre, credo! Até pesa na consciência de um cristão!

-Como o padre Murta!... lembrou a outra.

-Oh! Esse, nem se fala! Às vezes, Deus me perdoe! nos enterros, até se apresenta bêbado!

E Maria do Carmo bateu na boca -Cá está, acrescentou, quem já o viu a todo o pano encomendar o corpo de José Caroxo!...

-Não! que hoj'em dia a gente perde a fé... isso está se metendo pelos olhos!... Mas é o que já não tem o outro... porta-se muito bem! muito bem procedido! muito cumpridor das suas obrigações! Zeloso da religião! Acredite, minha amiga, que faz gosto... Dizem até...

E Amância segredou alguma coisa à vizinha. Maria do Carmo baixou os olhos, e resmungou beaticamente:

-Deus lhe leve em conta, coitado!

Houve um rumor de cadeiras que se arrastam. Os comensais afastaram-se dos seus lugares.

-Mesa feita, companhia desfeita!... gritou logo José Roberto, chupando os restos dos dentes. E tratou de seguir as senhoras, que se encaminhavam silenciosas para a sala.

Nisto, entrou o Dias, trazendo o Benedito pelo cós. Vinha a deitar os bofes pela boca e, quase sem poder falar, contou que «seguira o ladrão até o fim da Rua Grande, e que o ladrão quebrara para o Largo dos Quartéis e quase que alcança o mato da Camboa». Dito isto, conduziu ele mesmo o moleque lá para dentro. «Anda, peste! Vai preparando o pêlo, que ainda hoje te metes em relho!»

Apreciaram muito o serviço do Dias, e conversaram sobre aquele ato de dedicação, elogiando o zelo do bom amigo e caixeiro de Manuel. Daí a uma hora despediam-se as moças, entre grande barafunda de beijos e abraços.

-Lindoca! gritava Ana Rosa, agora não arribe de novo, ouviu?...

-Sim, minha vida, hei de aparecer... olha!

E subiu dois degraus para lhe dizer um segredinho.

-Sim, sim! Eufrasinha, adeus! D. Maria do Carmo, não deixe de levar essas meninas à quinta no dia de São João. Temos torta de caranguejos, olhe lá!

-Adeus, coração!

-Etelvina, não se esqueça daquilo!...

-Bibina, despeça-se da gente!... guarde seus quatro vinténs!...

-Olhe, observou o Sebastião Campos, que as tais moças, para se despedirem... são temíveis!

-«Pudesse uma só nau contê-las todas...» recitou o Freitas, coçando o bigode com a sua unha de estimação, «e o piloto fosse eu... triunfo eterno!...» E, após uma gargalhada seca, voltou-se para Raimundo e ofereceu-lhe com ar pretensioso «um talher na sua parca mesa».

-Vá doutor, vá por aquela choupana, disse. Vá aborrecer-se um pouco...

Raimundo prometeu distraidamente. Bocejava. Por mera delicadeza, perguntou se alguma das senhoras «queria um criado para acompanhá-las a casa».

As Sarmentos aceitaram logo, com muitos trejeitos de cortesia. Ele, interiormente contrariado, levou-as até às Mercês, onde moravam, ali mesmo, perto. Voltou pouco depois.

-Recolha-se, doutor, trate de recolher-se... aconselhou-lhe Manuel, que o esperava de pé. O senhor deve estar com o corpo a pedir descanso...

Raimundo confessou que sim, apertou-lhe a mão. «Boas noites, e obrigado».

-Até amanhã! Olhe! se precisar de qualquer coisa, chame pelo Benedito, ele dorme na varanda. Mas deve estar tudo lá; a Brígida é cuidadosa. Passe bem!

Raimundo fechou-se no quarto; despiu-se, acendeu um cigarro e deitou-se. Abriu por hábito um livro; mas, no fim da primeira página, as pálpebras se lhe fechavam. Soprou a vela. Então sentiu um bem-estar infinito, profundamente agradável; abraçou-se aos travesseiros e, antes que algum dos acontecimentos desse dia lhe assaltasse o espírito, adormeceu.

Todavia, a pouca distância dali, alguém velava, pensando nele.

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