I
Caso oculto de amor -certo- supondes,
5
que um moço trovador é sempre amores:
nem pode outro condão sobre seu peito,
nem se acurva -tão cedo- a outras dores.
Julgais bem; -porém pouco... que em minha alma
amor plantou -mais fundo- o seu feitiço:
10
Dai mais peso ao que eu sinto, homens, que trago
o viver, como vedes, tão submisso!
Não cuideis que o penoso sentimento,
que toda prende a amor minha existência,
é como este sentir que todos sentem,
15
de um dia, sem ardor, sem veemência!
Também já assim amei, se amor se pode
chamar essa ilusão de namorado,
mas hoje esse sentir me é tão da vida
que, se ele me faltar, ver-me-eis finado.
20
II
Indagais meu sofrer! Buscai na terra
o ente mais formoso,
aquele que do céu for mais mimoso-
que todo meu sentir nele se encerra.
Vendo-o, formai de mim vosso juízo;
25
se o encontrardes ledo,
contai que descobristes o segredo
do meu prazer... -vereis- sou todo riso.
Mas, se, ao contrário, virdes o quebranto
da tristeza em seu rosto,
30
julgai-me logo a padecer exposto;
sabei logo o que sou... sou todo pranto.
Se o virdes pôr em mim seus olhos belos,
seus lábios me sorrindo,
e seu seio a ondular cândido e lindo...-
35
O que eu sou -decifrai- sou todo anelos.
Se uma palavra der-me, à semelhança
das palavras, do céu,
do coração rasgai-me o tênue
véu,
e aí lede o que sou -sou todo esp'rança!
40
Contemplai a que amo. -Ora em langores
quase desfalecida;
ora toda expressão, incêndio e vida-
e dir-me-eis se hei-de, ou não, morrer de amores.
Homens! Eis o que sou! -Dos trovadores
45
o que mais sofre e sente;
por este coração, por esta mente,
sou todo inspirações, sou todo amores!
III
Mas perguntais-me vós, porqu'inda triste
vou caminho da vida pensativo,
50
depois de o ente achar, que único deve
por áureas sendas ao porvir levar-me?!
Por quê? Porque inda resta-me a incerteza,
essa inimiga certa da esperança,
que se me antolha horrenda em meus transportes!
55
Di-lo-ei todavia, homens (embora
traia o meu coração neste segredo,
que a mim só confiou), di-lo-ei -é
força,
pois o exigis, é força confessar-vo-lo-
o que serei, ouvi... é vaticínio
60
de um coração, a quem tornou profeta
a luz de uns olhos lá do céu descidos.
Serei Nume, ou Demônio sobre a terra...
todo ternura e amor, ou todo cólera...
Todo venturas, ou desgraças todo.
65
Ser minha, ou não -eis todo o meu futuro,
para o qual duas páginas abertas
em perfeito contraste há neste livro
imenso do porvir. É uma delas
toda negra e de sangue salpicada;
70
a outra toda rósea, e matizada
de azul e verde, com relevos de ouro!
Destas páginas n'uma os nossos nomes,
o dela e o meu, por força hão de gravar-se.
Ver-me-eis Demônio apascentando fúrias,
75
precipitado a caminhar na terra,
como quem busca o termo da existência;
dos olhos a saltarem-se faíscas
de loucura e furos; na destra um ferro,
nos lábios um som único -vingança!
80
E assim medonho, impenetrável, louco,
pisando por abrolhos sem senti-los,
insensível a tudo, aos próprios crimes,
querendo o mundo enfim todo de sangue!...
Se ela minha não for -serei Demônio!
85
Ver-me-eis, porém, um Nume de venturas,
um prisma de afeições, cândidas todas,
um poeta de amor, sorrindo à terra,
um ente só feliz olhando encantos;
ver-me-eis co'os olhos em seu rosto impressos,
90
como os seus em minha alma impressos brilham;
ver-me-eis co'os lábios em seus pés, e ao
mundo
entretanto c'os pés calcando a fronte!!
Se Eulina minha for! -serei um Nume!!
IV
Homens! Eis meu porvir: -dos trovadores
95
ou o mais desgraçado,
ou um Poeta mágico, inspirado,
bebendo vida e luz num céu de amores.
Bahia, 21 de janeiro de 1855.
Antônio Joaquim RODRIGUES DA COSTA
Se, Anjo de salvação mandado ao mísero,
5
sorrindo, pelo céu jurasse a bela
fazer-me cada vez por novos beijos
mais rubra a cor do dia...
Se fiel companheira em toda parte
quisesse me seguir, presa comigo,
10
como um raio celeste preso a um astro
a iluminar-lhe o curso...
Se a visse, desdenhosa a mil tesouros,
só por ter-me, deixá-los e contente
a gabar-me o sabor do pão grosseiro
15
que me alimenta a vida...
Não a crera; e talvez que até julgasse
tantas provas de amor atroz perfídia,
se amor me não brilhasse nos seus olhos
no centro de uma lágrima.
20
Amor é fogo; o coração que ama
todo nas suas chamas se evapora,
no rosto se condensa, e chega aos olhos
em água convertido.
Que é um riso? -Um prazer. Prisão estreita
25
de duas almas? -Simpatia apenas:
E os abraços e beijos? -Muitas vezes
sustento de lascívia.
Tudo isso diz amor; mas quando? -Quando,
filho de um doce afeto que se apura
30
nos cadinhos da dor, é batizado,
num batismo de prantos.
É belo ver-se uns olhos cintilantes,
acesos em vulcões de fogo ignoto,
a dardejar faíscas invisíveis
35
que os corações abrasam:
É belo ver-se um rosto nacarado
no carmim do prazer: é belo ver-se
partir fino coral de rubros lábios
um
sim d'alma saído:
40
Mas em rostos assim amor não fala;
e, se fala, as mais vezes diz mentiras;
e este -sim- que tomamos por verdade
é escárnio do crente.
Quereis vê-lo sincero? Observai-o
45
n'açucena de um rosto desmaiado,
entre os lírios de uns lábios que roxeiam
suspiros de agonia:
Nuns olhos, cuja luz crepusculante,
entre a neve das lágrimas, pareça
50
revérbero da alâmpada mortiça
do templo da saudade.
Aí podeis lhe crer o que disser-vos,
podeis segui-lo sem temer um crime;
que amor, se o pranto lhe borrifa as asas,
55
seu vôo ao céu dirige.
Ah!... já sei: n'um peito vário
5
emblema foste de amor:
O peito mudou de afeto,
e tu mudaste de cor.
Mas não; só peito animado
por constância e lealdade,
10
unida pode trazer-te
consigo, minha saudade.
Demais tu não mudas; seja
qual for o destino teu,
conservas sempre o aspecto
15
que a natureza te deu.
Que tens, mimosa saudade?
Assim branca quem te fez?
Quem te pôs tão desmaiada,
minha flor? Que palidez!
20
Quem sabe se és flor, saudade?
Quem sabe? Da sepultura
amor nas pedras penetra
por milagre da ternura.
Quem sabe... (Oh! meu Deus não seja,
25
não seja esta idéia vã!)
Se em ti não foi transformada
a alma de minha irmã?!
«Minha alma é toda saudades;
de saudades morrerei»-
30
disse-me, quando a minh'alma
em saudades lhe deixei:
E agora esta saudade
tão triste e pálida... assim
como a saudade que geme
35
por ela dentro de mim!...
A namorar-me os sentidos!
A fascinar-me a razão!...
Julgo que sinto a voz dela
falar-me no coração!
40
Exulta, minh'alma, exulta!...
Aos meus lábios, flor louçã!
No meu peito... Toma um beijo...
Outro beijo, minha irmã!
Outro beijo, que estes beijos
45
não te proíbe o pudor;
sou teu irmão, não te mancham
os beijos de meu amor.
Fala um pouco. Se almas podem
em flores se transformar,
50
sendo almas encantadas,
as flores podem falar.
Mas não falas?... não respondes?...
Oh! cruéis enganos meus!
Saudade, por que me iludes?
55
Minha irmã!... Meu Deus!... Meu Deus!...
Minha irmã!... minha ventura,
esperança, encanto meu!
É teu irmão quem te chama!...
Responde!... fala!... Sou eu!
60
Dista muito o céu da terra?
Os anjos asas não têm?
Desata um vôo, meu anjo!
Não tardes, meu anjo! Vem!
Vem! Ao menos um momento
65
quero ver-te, irmã querida:
Embora, depois de ver-te,
fique cego toda a vida.
Mas não vens? Deus te não deixa
vir ao mundo, meu amor?
70
Só devo encontrar no pranto
lenitivo à minha dor?
Ah! minh'alma desfalece...
E o coração, que apressado
com tanta força batia,
75
mal palpita... está cansado.
Muda, sem termos, nem vozes
me vai ralando a agonia:
A tempestade de angústias,
mudou-se em melancolia.
80
Que é isto?! Como tão negro
ficou-me todo o horizonte!
Que suor me banha o rosto!
Que peso sinto na fronte!
Ah! meu Deus! graças! aos olhos
85
o pranto sinto chegar;
se a boca não fala, ao menos
os olhos podem chorar.
Nós temos duas saudades;
uma de sangue ensopada
90
pela mão do desespero
no seio d'alma plantada;
outra da melancolia
toma o gesto, e veste a cor,
exangue, pálida e fria,
95
mas calada em sua dor.
Parece que a natureza
quis provar esta verdade,
quando diversa da roxa
te criou, branca saudade.
100
I
Que o diga a Primavera
nos prados e nos montes,
nos jardins, nas searas
descuidada deixando cair flores,
e aparando teus versos no regaço.
10
Que o diga em noite estiva,
a Lua melancólica,
pálida -imóvel- a chorar ternuras,
ouvindo-te saudosa -enamorada
uma canção de amores.
15
Que o digam essas brisas tão suaves
que ao viajor cansado, em nossos bosques,
refrigeram, deleitam, enfeitiçam,
trazendo-lhe o aroma que desprendem
as flores bafejadas por teu estro.
20
Que o digam a escutar-te, quando altíssono
nos narras inspirado
dos livres os triunfos, glória, e brios,
a liberdade rindo,
e o terror a tremer nas faces frias
25
dos pálidos tiranos.
Que o diga amor, e escreva
nos troféus que levanta,
quando, tangendo as cordas
da lira de diamantes,
30
rendidos corações arrastas presos
nos grilhões de teu canto até seu
sólio.
Diga a mulher enfim, -não a que nutre
nos olhares ardentes de volúpia
a chama impura das paixões nocivas;
35
divindade fatal, de cujos templos
a razão a fugir ao crime entrega
as aras e o turíbulo; -mas a virgem,
a virgem, que descer dos céus à terra
por escada de flores viu o homem
40
no lindo sonho do dormir primeiro:
O anjo que no exílio acompanhava
O primeiro proscrito, e no pão negro,
que lhe dera o pecado, transformou-lhe
c'um beijo em mel de rosa o fel das lágrimas:
45
A estrela, que, depois de conduzir-nos
por mares de delícias,
onde afogados de prazer morremos,
a vida nos restaura,
e de luz divinal num raio amigo
50
nos embebe no seio o amor paterno.
Sim, que o diga a mulher, mas a perfeita,
a completa mulher por Deus formada,
norma daquele cofre que devera
arca de salvação, guardá-lo um dia,
55
e cuja cópia transladaste em verso!
II
Eu não posso dizer o que é teu canto,
nem cantar-te louvores,
se chama etérea me acendesse o estro...
Se no meu coração vingasse ao menos
60
uma flor de poesia...
Porém não vinga a flor sobre o rochedo,
não medra a chama, nem se nutre o raio,
nas cortadoras úmidas montanhas
de aglomerados gelos.
65
III
Gratidão e amizade,
que dentro em mim se batem neste empenho,
podem muito, Moniz, porém não podem
de um trovista, qual eu, fazer poeta,
poetar como tu, para cantar-te!
70
Seja, pois, fraco e fido testemunho
de quanto por ti sinto
este desejo que te envio.
IV
Amigo,
do riso e da aflição me acarinhaste
75
do estéril pensamento os pecos frutos;
zeloso Mestre, as trovas me lavaste
no límpido Jordão da clara mente;
amigo e Mestre, deixa que te chame!
-Amigo, -porque o és- minha alma o sabe;
80
-mestre, -porque me pede o entusiasmo
dizer-te como tal; porque preciso,
um nada como sou, do mundo às portas,
com o mérito teu cobrir meu nome.
I
como filho querido, nos teus braços
amorosa apertaste,
de ti merece ainda uma lembrança,
pátria, querida pátria da minha alma,
5
terreno abençoado onde, aos milhares,
prantos que derramei brotaram risos,
recebe neste canto um revérbero
das chamas da amizade
eterna que por ti arde em meu peito.
10
II
Ao lindo sol da glória, que teus campos
liberal fertiliza,
minha primeira luz não deve os raios,
nem teus jardins me deram
flores com que adornasse o pobre berço;
15
lá das campinas tuas não medimos
nem eu, nem sócios meus, brincando alegres
velocidade e forças
na carreira e nas lutas esforçados:
As mal pronunciadas
20
preces minhas sumir-se no infinito
não foram do teu céu, quando cansada
a Tarde no Ocidente despe a púrpura
que o Nascente lhe deu, chamando-a -Aurora;
nessa hora, em que a brisa da saudade
25
suspiro da saudosa Natureza,
com brando movimento agita as folhas
extremas do arvoredo, os passarinhos
volvem aos ninhos apressados vôos,
e dúbia luz, com trevas misturada,
30
pouco a pouco se esvai entre as cinzentas
montanhas vaporosas; nessa hora,
em que todo o universo, extasiado
num culto involuntário,
parece ver passar o Anjo do Tempo,
35
que vai, guarda da terra, a Deus dar conta
dos trabalhos diurnos; nessa hora,
em que a melancolia afaga os peitos,
em que a alma se contrai ouvindo a queda
do pó que mede a vida,
40
e, transido de mágoa, o campanário
deixa cair as lágrimas metálicas
no sepulcro do dia.
Amei onde nasci. Essa esperança
tão doce e feiticeira
45
que na idade viril desponta n'alma;
essa idéia de fogo, onde releva
a mão da fantasia imagem de anjo
que nos seduz e arrasta,
tive-a no meu torrão. O mesmo astro
50
que no berço me viu, viu meus amores.
O ameno Mon-Serrate, a fresca Barra,
o místico Bonfim não asilaram
meus primeiros segredos de ternura;
essa história de enleios toda guardam
55
amigas margens do meu pátrio Rio,
que até no curso rápido desenha
a rapidez das ditas,
do gozo, do prazer que tive nela.
O nascimento, a infância,
60
os primeiros amores,
não, não te devo a ti, terra querida;
mas a dívida imensa
deste amor desvelado que me deste,
sem temor de baixeza, me consente
65
chamar-te -minha pátria.
III
Quando, pela desgraça arremessado
no solo teu, sem nome, pobre enfermo,
quase a esmolar um pão, busquei teus filhos,
ilesos do desprezo que aos felizes
70
a desgraça sugere,
irmãos, não só amigos,
pais, não só protetores me abraçaram;
as portas da ciência,
que a chave da indigência me fechara,
75
tuas mãos generosas
abriram francas a meu livre ingresso;
e a vida almejavas ver-me o termo
da difícil viagem,
enxugar-me na frente iluminada
80
o suor da fadiga,
e a coroa de espinhos
que a sorte me cingiu tornar de louros.
IV
O Berço do nascimento,
ou em palácio opulento
85
trajando a gala real,
ou cama de palhas feita
onde a escrava o filho deita
enrolado no sendal;
o Céu que a primeira prece,
90
de tarde ou quando amanhece,
a criança ouvia rezar,
quer puro, e ledo sorrindo,
quer furioso bramindo,
fuzilando a trovejar;
95
o lugar onde primeiro
o coração todo inteiro,
amor dizendo, se abriu;
prado florente e risonho,
ou vale escuro e medonho,
100
que sangue humano tingiu;
a pátria, enfim, tem encantos,
tão sedutores e tantos,
que não se pode vencer!
É uma visão divina,
105
que a vida nos ilumina,
e nos segue até morrer;
mas também o porto amigo
onde nos braços consigo
a amizade nos levou,
110
e d'alma, toda chagada,
as feridas consternada
uma por uma curou;
onde destras apertamos
em que pasmados achamos
115
o calor só natural
a chama que o céu ateia,
quando veia, sobre veia
sente sangue paternal;
essa terra benfazeja,
120
inda que pátria não seja,
igual atrativo tem;
e o estranho protegido
pode, sendo agradecido,
chamá-la pátria também.
125
lisonja, adulação, alcunhe embora,
o vulgo o puro amor que te consagro,
o culto que te rendo;
recebeste o meu pranto no teu seio,
da fortuna enjeitado perfilhaste-me,
130
pátria, teu filho sou, e assim te adoro.
Mistério! -Ave criada entre os altares,
5
acaso a turba impura
do mundo com seu bafo envenenado
abriu-te a sepultura?!
Punindo-te o desprezo de seus lares
o Anjo de Sião
10
por ordem do Senhor tão presto deu-te
a morte, em punição?!
Preso o espírito, acaso, nas cadeias
do voto eterno e forte
teve, na luta acerba espedaçando-as,
15
por liberdade a morte?!
Mistério! -Respeitemos nesta campa
decretos divinais!
Sobre as cinzas do morto ao vivo toca
o pranto e nada mais!
20
Rei que fora! -Era um servo que devia
a vida ao Senhor seu!
Seu Senhor o chamou, a voz ouviu-lhe
e pronto obedeceu!
Duvidais do que digo? -Erguei a campa...
25
Esse corpo o que é?!
E negareis ainda que era um servo?!
Aí tendes a libré!
Viveu como poeta, de poeta
deixou o canto e a fama.
30
inda no crânio morto tem -bem vedes-
do louro verde a rama!
Leste-lhe a poesia? Eram arquejos
d'um coração aflito!
De uma alma que ensaiava na matéria
35
os vôos do infinito!
Voou!... Cisne de luz, adeja livre
mau grado a humanidade!
Os hinos dos arcanjos são seus hinos
seu mundo -a eternidade!
40
Porém tu, amor-perfeito,
tu, nascido, tu afeito
aos incêndios que amor tem,
tu que abrasas, tu que inflamas,
10
tu que vegetas nas chamas,
por que secaste também?!
Ah! bem sei. De acesas fráguas
as chamas são tuas águas,
o fogo é água de amor.
15
como as rosas se murcharam,
porque as águas lhes falharam,
sem fogo murchaste, flor.
É assim, que bem florente
eras, quando o fogo ardente
20
de uns olhos que raios são,
em breve, mas doce prazo,
te orvalhou naquele vaso
que, já foi meu coração.
Secaste, porque esse pranto
25
que chorei, que choro há tanto,
de todo o fogo apagou.
Triste, sem fogo, sem frágua
secaste, como sem água,
a triste rosa secou.
30
Que olhos foram aqueles!
Quando eu mais fiava deles
meu presente e meu porvir,
faziam cruéis ensaios
para matar-me. Eram raios,
35
tinham por fim destruir.
Destruíram-me: contudo
perdôo o pesar agudo,
perdôo a pungente dor
que sofri nos meus tormentos,
40
pelos felizes momentos
que me deram nesta flor.
Ai! querido amor-perfeito!
Como vivi satisfeito,
quando te vi florescer!
45
Ai! não houve criatura
no prazer e na ventura
que me pudesse exceder.
Ai! seca flor, de bom grado,
se tanto pedisse o fado,
50
quisera sacrificar
liberdade e pensamento,
sangue, vida, movimento,
luz, olfato, sons e ar.
Só para ver-te florente,
55
como quando o fogo ardente,
de uns olhos que raios são,
em breve, mas doce prazo,
te orvalhou naquele vaso
que já foi meu coração.
60
A luta é forte: o coração sucumbe
5
quase nas ânsias do lutar terrível;
a paixão o devora quase inteiro,
devorá-lo de todo é impossível!
Jamais! a chama crepitante lastra,
em curso impetuoso se propaga,
10
lancem-lhe embora prantos sobre prantos,
é inútil, que o fogo não se apaga.
Mas chega um ponto em que lhe acena o ímpeto
em que não queima já, mas martiriza,
em que tristeza branda e não loucura
15
à razão se sujeita e harmoniza.
É nesse ponto de indizível tempo
onde, por misterioso encantamento,
o sentir a razão vencer não pode,
nem a razão vencer ao sentimento.
20
No fundo de noss'alma um espetáculo
se levanta de triste majestade,
se de um lado a razão seu facho acende
de outro os lírios seus planta a saudade.
Melancólica paz domina o sítio,
25
só da razão o facho bruxoleia
quando por entre os lírios da saudade
do zelo semimorto a serpe ondeia!
Dous limites então na atividade
conhece o ser pensante, o ser sensível:
30
um impossível -a razão escreve,
escreve o sentimento outro impossível!
Amei-te! os meus extremos compensaste
com tanta ingratidão, tanta dureza,
que assim como adorar-te foi loucura,
35
mais extremos te dar fora baixeza.
Minh'alma nos seus brios ofendida
de pronto a seus extremos pôs remate,
que mesmo apaixonada uma alma nobre
desespera-se, morre, não se abate.
40
Pode queixar-se inteira a felicidade
de teu olhar de fogo inextinguível,
acabar minha crença, meu futuro,
aviltar-me! jamais! É impossível!
Mas a razão, que salva da baixeza
45
o coração depois de idolatrar-te,
me anima a abandonar-te, a não querer-te,
mas a esquecer-te, não, sempre hei de amar-te!
Porém amar-te desse amor latente,
raio de luz celeste e sempre puro
50
que tem no seu passado o seu presente,
e tem no seu presente o seu futuro.
Tão livre, tão despido de interesse,
que para nunca abandonar seu posto,
para nunca esquecer-te, nem precisa
55
beber, te vendo, vida no teu rosto.
Que, desprezando altivo quantas graças
no teu semblante, no teu porte via,
adora respeitoso aquela imagem
que deles copiou na fantasia.
60
Os olhos fecha quem a vida perde,
5
o bem perdido jamais pode ver;
eu, morto n'alma, fitos os olhos tenho
no bem querido, que não posso ter.
Embora firam desgraçada vítima
ervados gumes de cruéis punhais,
10
as dores cessam mal que chega a morte,
sangue as feridas lhe não vertem mais.
Desta ferida nada o sangue estanca...
A dor recresce mais, e mais pungente;
morta minha alma para os gozos todos,
15
só vê que vive pela dor que se sente.
O céu perdoe a quem assim compensa
os sacrifícios deste coração;
porém a mágoa me desvaira a mente:
se não há crime, como haver perdão?
20
A fronte curva, delinqüente altivo,
a fronte curva, não és mais que um réu;
teu bafo impuro, que o pecado alenta,
acende o raio que te arroja o céu.
Perdão!... mas seja para mim somente,
25
nesse olhar terno que o perdão exprime;
perdão te peço, Querubim celeste;
une o culpado, mas perdoa o crime.
Rola de bosque, da inocência ao ninho
eu cego o verme da paixão levei-te;
30
anjo risonho, sobre a fronte lisa
a ruga acerba do cismar tracei-te!
Turvei-te a face, nebulei-te os olhos,
cobri de espinhos o teu santo leito,
e da tristeza, que a minh'alma encobre,
35
parte dos goivos te lancei no peito!
Mas Deus puniu-me...! Da sentença austera
tu escrevias a primeira parte,
quando a meus rogos de extremoso amante
só respondias -eu não posso amar-te!
40
Mas não bastava: -ao martírio imenso
dobrar devias a cruel tristura;
num sim de amores que me deste um dia,
um céu me abriste de falaz ventura.
Mas presto nuvens o horizonte toldam,
45
de todo nelas a visão se esvai,
e o cego doudo, que fitava os anjos,
de novo em trevas envolvido cai.
Não ter-te, fora já penar bastante;
perder-te, extremo de cruel penar!
50
Pensei que a pena se acabava nisto,
mas inda tinha mais que suportar!...
Desprezo em troca de meu culto; às ânsias
de minha angústia riso mofador,
de ti, daquele a quem me sacrificas,
55
para mostrar-lhe todo o teu amor.
Que a fronte calques, que por ti velando
consome dias, noites sem cessar;
que a fronte calques, que desdenha o mundo
e varre a terra p'ra teus pés beijar...
60
É dura afronta, mas com essa afronta
eu não me avilto, nem me desabono:
é nobre o solo que as rainhas pisam,
chama-se solo convertido em trono;
porém que aplaudas, que consintas outro,
65
também calcar-me escarnecer de mim...
Eu não me lembro que fizesse um crime,
que merecesse ser punido assim!...
Estrela d'Alva de divina aurora,
deixa-me em trevas, é destino meu!
70
Deus te dirige neste mundo os raios,
tu não governas o clarão que é teu.
Não quero o riso desbotado e morno
de complacente, caridoso amor;
de amor a planta quem a prova incauto
75
morre do fruto, se não goza a flor.
Deus de teus braços me recusa a dita,
mudo a sentença sofrerei -sou réu;
banhei meus lábios nos paúis do crime,
beijar não posso Querubins do céu!
80
Mas não mereço do escárnio o riso
mas não sou digno de desprezos tais;
se me não podes destruir a pena,
muda o tormento, que não posso mais!...
Ao batismo e liberdade de uma menina
Da liberdade a estrela
no berço da inocência
10
derrama a providência
de duas redenções;
mostrando um'alma limpa
do crime primitivo
no corpo de um cativo
15
que quebra os seus grilhões.
Que assunto mais merece
um hino de poesia?
Que dia tem mais dia?
Que feito tem mais Luz?
20
Do cativeiro um anjo
quebrando infames laços,
à cruz estende os braços
e os braços lhe abre a cruz.
Perfilha Deus o anjo
25
na filiação da graça,
e o ser que o crime embaça
puniu a redenção!
E o homem, dissipando
do berço insano agravo,
30
em menos um escravo
abraça um novo irmão!
Que foras, inocente,
que foras, nesta vida,
da escravidão perdida
35
no bárbaro bazar!?
Pobre rola ferida
da infâmia pelo espinho,
em que ramo, em que ninho
te havias de aninhar?
40
Infante, sem afagos,
temendo-te altiveza,
querendo-te a vileza
plantar no coração,
dariam-te nos gestos,
45
nas vestes, no aposento,
na mesa, no alimento,
somente -escravidão!
Donzela (oh! sacrilégio!)
amor, qual flor sem viço,
50
mil vezes é serviço
que fero senhor quer!
É dor que o fel requinta,
que a ímpia sorte agrava
daquela que é escrava
55
depois de ser mulher!
Se mãe (é mãe escrava!)
Quem sabe se verias
teu filho mãos ímpias
do seio te arrancar?
60
E surdos ao teu pranto
mandarem-te com calma
do seio da tua alma
a outro alimentar?!
Criança mas sem veres
65
da infância as verdes cores,
donzela sem amores,
talvez alam sem Deus!
Não foras arrastada
da vida pelos trilhos,
70
nem tu, e nem teus filhos
seriam filhos teus.
Ó vós que hoje lhe destes
o dom da liberdade,
que junto à divindade
75
matais a escravidão,
ao trovador propícios
de ação tão excelente
em culto reverente...
Guardai esta canção.
80
Eu sei que haveis guardá-la,
que em tão santa amizade
não vem a variedade
deitar veneno atroz.
Sou vosso desde a infância:
85
Da vida até o fim
sereis tanto por mim
como serei por vós!
Mas na marcha que levam sinais deixam
5
de uma vida constante ou transitória:
umas do esquecimento engole o pego
outras medram no campo da memória.
Aí frondosas árvores florentes
os mausoléus que a dor tem levantado
10
são os frutos que colhe uma alma atenta
quando vaga nos mundos do passado.
Daí vem que o espírito, voando
do passado na vasta imensidade,
ergue às vezes um hino de alegria,
15
às vezes chora um pranto de saudade!
Bem-vinda sejas, hora sacrossanta
das raras festivais -bem-vinda sejas!
Oh! nunca a nuvem negra do desgosto
ofusque a luz divina que dardejas!
20
Anos oitenta e dous há, que do mundo
viu feliz a primeira claridade
um ente, em quem prudência, brio e honra
se juntaram, formando uma -TRINDADE!
Despido de brasões, nobre na essência,
25
de elevado sentir, modesto e puro,
fazendo do trabalho o seu destino,
arrancou de si mesmo o seu futuro!
Disse -sou homem!- trabalhou, e fez-se...
se achou tropeços, fez em mil pedaços:
30
E sentindo-se, enfim, robustecido,
piedoso ao aflito estende os braços.
Se as coroas não têm desses pequenos
que a fama como grandes apregoa,
as virtudes que brilham-te na fronte
35
decerto que lhe dão melhor coroa!
É grinalda do céu, de viço eterno,
onde refulgem, qual celeste orvalho,
os prantos do indigente agradecido,
as gotas do suor de seu trabalho!
40
Sus, vivente feliz, bendiz teu fado,
que o céu a teu favor se pronuncia;
para bem penetrar-te esta verdade,
contempla um pouco o quadro deste dia!
Como prêmio, já na vida,
45
do teu honesto labor,
deu-te Deus na terra um Anjo
que te enxugasse o suor!
Um Anjo de caridade,
de candura e singeleza;
50
um Anjo, enfim, adornado
com os dotes de -TERESA!
Por anos tão numerosos
o Senhor tem conservado
o Anjo sempre contigo,
55
tu sempre ao Anjo ligado!
Na tempestade e bonança
sempre o par se conservou
unido, como dous ramos
que o mesmo tronco gerou!
60
Que nunca se perturbe a paz tranqüila
deste Par tão ditoso!
Que seja o Filho, qual tem sido sempre,
uma cópia do pai; e imensos anos
se renove este dia
65
que nos enche de glória e de alegria!
É a virtude, raio que no mundo
5
do céu dardeja o sol da eternidade,
em si bem como Deus o tempo encerra,
anos não conta, nem aumenta a idade.
O homem que a contempla, embora viva
séculos a contemplar-lhe a formosura,
10
mais aroma lhe sente, e vê na forma
mor garbo, mais beleza e mais doçura.
Não, as cãs da velhice não enfeiam
a fronte da matrona virtuosa;
diadema de prata nela brilha,
15
qual na da mocidade brilha a rosa.
se a grinalda de rosas da donzela
é bela por dizer graça e meiguice,
exprime mais solenes predicados
a coroa de prata da velhice.
20
Mostra uma virtude ainda nascente,
as galas, o trajar da juventude,
e a outra, coroa de triunfos,
que já colheu dos anos a virtude.
Esta flor, tão estéril nos prazeres,
5
quando em retiro
quase sempre do seio magoado
brota um suspiro.
Achava estes suspiros e saudades
encantadores,
10
embora fossem flores da tristeza,
sempre eram flores.
Demais, quem tem das ditas deste mundo
chegado ao termo,
quem traz de ingratidões e desenganos
15
o peito enfermo;
quem tem com a flor que às almas venturosas
do prazer fala?
Que ao ver-lhe o coração trajando luto
traja de gala?
20
A tristeza que tendes, minhas flores,
é vosso encanto.
E como éreis formosas orvalhadas
pelo meu pranto!
Mas secastes também?! Faltou-vos água?
25
Demais tivestes.
Fogo? Desde nascidas sempre em chamas
de amor vivestes.
Secastes? Com razão, que destas flores
certo não é
30
verdadeiro alimento, água nem fogo
faltando a fé.
Vivem com fogo e água, se dos prados
nascem no chão;
mas não se flores d'alma dentro d'alma
35
nascendo vão.
Quando morta a f'licidade,
a fé expira também!
saudades de que se nutrem?
Os suspiros que alvo têm?
40
Morta a fé, vai-se a esperança,
como pois viver pudera
saudade que não tem crença,
saudade que desespera?
Onde as graças do passado,
45
se altivo gênio sanhudo
o cepticismo nos brada,
foi mentira, engano tudo?
Em nada creio do mundo:
ludíbrio da desventura
50
a felicidade me acena,
só de um ponto -a sepultura.
Morreram minhas saudades,
e meus suspiros calados
dentro d'alma pouco a pouco
55
vão morrendo sufocados.
Chorando sangue a virgindade foge,
e mais não vem:
botão de rosa, no botão fechada,
depois que a rosa foi desabrochada,
vida não tem.
10
Prossegue o fogo, e faz que a flor aberta
murchando vá;
mas quase sempre generoso amor
em recompensa da perdida flor
Um fruto dá.
15
Desses frutos o mundo se povoa
em sua imensidade;
formam eles o grupo da família,
os reinos, as nações, a maravilha
chamada humanidade!
20
Feliz aquele que feliz recolhe
o seu fruto de amor!
Que seguindo da lei divina o trilho,
como filho de Deus vê no seu filho
um filho do Senhor!
25
Feliz o que cumprindo um dever santo
às santas aras vem,
fazendo o mesmo que seus pais fizeram,
a Deus, como seus pais outrora o deram,
seu filho dar também!
30
Felizes vós portanto neste dia,
em que da culpa o véu
rasgando aos olhos de dous novos crentes,
fizestes de dous anjos inocentes
dous anjos para o céu!
35
Folgai, ó anjos, que o espaço é vosso,
a cintilar!
Vede... a estrela da graça se levanta!...
Ganhastes asas nessa pia santa...
Podeis voar!
40
Voar, meu Deus? Defende-os das torpezas
do mundo réu;
pela bondade que teu seio encerra,
dá que estes anjos sem roçar na terra
cheguem ao céu!
45
Ao meu amigo Leopoldo Luís da Cunha
Uma lágrima, um suspiro,
eis quanto custa o morrer;
10
custa-nos sempre o viver
prantos, suspiros, sem fim!
Que tormento fora a vida,
se não fosse transitória!?...
Não me risques da memória,
15
porém não chores por mim.
Enchem trevas o sepulcro,
mas ninguém delas se queixa;
quando o morto os olhos fecha,
não quer luz, quer sossegar;
20
aquele fundo silêncio,
aquele extremo abandono,
dão-lhe tão profundo sono,
que nem pode despertar.
Já tive medo da morte,
25
agora tenho da vida;
sinto minha alma abatida,
sem vigor o coração;
já cansado de viver,
para a morte os olhos lanço;
30
vejo nela o meu descanso,
a minha consolação.
Abençoa-me! -Parto; dá-me a
bênção!
5
Que ao filho desgraçado,
mesmo o ser infeliz dá mais direitos
a ser abençoado.
És rica, eu nada tenho; mas ao nada
me soube acostumar;
10
dispenso os teus tesouros, mas a bênção
não posso dispensar.
Adoro-a, quero-a, sim; porque custou-me
aspérrimo desgosto,
torturas inauditas, conservar-lhe
15
sem manchas este rosto.
Quero de filial doce ventura
encher meu coração,
revendo nela, filho abençoado,
a minha filiação.
20
Nunca me foste mãe pelos carinhos;
ao menos um sinal
dá-me, dá-me de mãe, que sou teu filho,
na bênção maternal.
Adeus!... Perdoa se me queixo; as queixas
25
que exalo em minha dor
ofender-te não devem, que são filhas
de meu ardente amor.
Esses braços ao filho que se aparta
estende por quem és,
30
que o filho por teus braços abraçado
abraçará teus pés!...
nesta ausência tão distante,
cada vez mais encravado
o espinho penetrante,
o coração sossegado
5
me não deixa um só instante.
Como do caos primitivo
surgiu bela criação,
do caos da minha tristeza
da pátria surge a visão!
10
Tenho saudades dos montes,
dos ares, dos horizontes
que à pátria servem de véu;
saudades dos meus palmares,
saudades daqueles ares,
15
saudades daquele céu!
É puro, mas com ser puro
este céu me não convém;
que tendo tantas estrelas
a minha estrela não tem!
20
Muitas vezes a procuro,
mas debalde!... um ponto escuro
no seu lugar se fitou;
conheço e vejo a verdade:
Foi a nuvem da saudade,
25
que a minha estrela apagou.
Sim, meu bem, brilhou a estrela
sem rival nos brilhos seus,
enquanto a luz recebia
do lume dos olhos teus;
30
quando teus olhos ardentes,
rutilando de contentes
iam-se nela fitar.
Hoje que estão desmaiados
por prantos continuados,
35
com seus sóis quase apagados,
como há de a estrela brilhar?
Cada dia que se passa
neste desgosto cruel,
tem novo quadro a desgraça,
40
tem a ausência novo fel,
mais compunge o peito ansiado
esse espinho envenenado,
que a saudade me cravou;
e a dor me tem convencido
45
que do espinho introduzido
novo espinho se gerou.
Eu o sinto, quando estreito
nos meus transportes de dor,
sobre os lábios, sobre o peito,
50
o meu talismã de amor;
o meu fiel companheiro
e talvez o derradeiro
presente de amor, de ti,
na hora da despedida
55
em que tudo (exceto a vida
para chorar-te) perdi!
Se d'alma a essência celeste
pudesse ser transmitida,
o retrato que me deste
60
não fora um corpo sem vida
que, ao vê-lo, minh'alma ardente,
no transporte mais veemente,
sente ao semblante subir,
e nos olhos condensada,
65
em lágrimas transformada,
sobre o retrato cair.
Aos tormentos que já sobram
novos reúne a saudade;
os seus negrumes redobram
70
as sombras da soledade.
na mente a imagem se agita
dessa ventura infinita
que junto a ti desfrutei,
em quadros tão sedutores,
75
quais nunca dos meus amores,
nem nos sonhos divisei.
O amor com que me abraças,
então não posso dizer!
Da saudade sinto as asas
80
no coração me bater;
e contemplando os espaços
que te roubam aos meus braços,
e que não posso transpor,
perco a luz, e desmaiada
85
cai-me a fronte atordoada
pelos combates de amor!
Assim passo em tua ausência.
eis qual é o meu viver!
Melhor que tal existência
90
mil vezes fora morrer,
se não tivesse a esperança
que venturosa bonança
à tormenta porá fim;
se não tivesse a certeza
95
que me adoras com firmeza,
que não te esqueces de mim.
De tudo quanto há belo enriquecida,
coberta pelo azul de um céu brilhante,
5
de sempre verdes prados guarnecida;
cujos pórticos guarda vigilante
de dia e noite imóvel sentinela,
um disforme e grandíssimo gigante;
que tão soberba em forma se revela,
10
como amável no trato hospitaleiro
com que abraça a quem vive à sombra dela;
se desse pátrio ninho, onde primeiro
vimos ambos a luz, inda é lembrado
daquele solo o filho derradeiro;
15
ou se em todas as mentes apagado,
pelo buril eterno d'amizade
seu nome inda na tua está lembrado;
recebe nesta um culto de saudade,
de afeto, e desse afeto que termina
20
onde encontra seu termo a eternidade;
desse afeto do céu, que não fascina,
sol brilhante nos dias de ventura,
nas dores, da desgraça medicina;
no que te digo vai verdade pura;
25
as linhas que te escrevo, Brito, amigo,
são alívios à dor que me tortura!
Aqui, por mais que busque, não consigo
ter por minha de tantas uma hora
igual àquelas que passei contigo!
30
Tédio enfadonho tudo me descora;
marca-me o tempo lentamente a vida,
que aos outros entes rápido devora!
Parti... e, nessa hora da partida
(não sei se foi meu corpo, se minh'alma),
35
porém um fez do outro a despedida!
Dizem que com o tempo a dor se acalma;
mas a amante, a quem tal bem sucede,
ao verdadeiro amante ceda a palma.
Quando a vista ansiosa o espaço mede,
40
e a imagem divinal do bem perdido
em vão à terra, ao mar e aos astros pede;
quando, da perda infausta convencido,
chega a crer que partiu, a crer n'ausência,
que já não tem presente o bem querido;
45
quando, cedendo à força da evidência,
nem lhe resta uma nuvem de esperança
para os olhos vendar da consciência;
não é decerto um tempo de bonança!
Longe a certeza acorda a tempestade,
50
que perto sobre a dúvida descansa!
E quanto mais conhece-se a verdade,
mais funda, mais pungente e mais dorida,
se vai abrindo a chaga da saudade!...
É esta aqui, meu Brito, a minha vida!
55
Nem exagera a pena meu tormento,
em poéticas tintas embebida!
Tenho n'alma um cruel pressentimento
(talvez não mui remota profecia
que não posso apagar do pensamento!)
60
Espero cedo o meu extremo dia;
e a morte, da pátria tão distante,
é quadro que me abate de agonia!
A saudade tornou-me tolerante!
Que importa ser da pátria desprezado?
65
Serei sempre da pátria filho amante.
Se outrora, contra ela conspirado,
os males que me fez lancei-lhe em rosto,
hoje tudo lhe tenho perdoado.
Dos lances em que a sorte me tem posto
70
esquecido, o desgosto de não vê-la
é dos desgostos meus maior desgosto!
Ah! que não fosse a hora de perdê-la,
a hora em que parti!... O sul formoso
é belo, benfazejo, é lar ditoso:
75
Mas eu tenho no Norte a minha estrela!
Não deixes despercebido
o rei dos dias passar,
mostrai que não sois escravos,
mostrai que o dia dos bravos
inda sabeis festejar!
10
Se o misérrimo que sofre
da escravidão os rigores,
às vezes repete a história
dos seus passados de glória
nas senzalas dos senhores;
15
nós livres, a quem escravos
inda não pôde fazer
o furor do despotismo,
nossos feitos de heroísmo
não devemos esquecer.
20
Não devemos esquecer
esse dia, a cuja luz
os deus dos Americanos
escreveu -morte aos tiranos-
nos braços da Santa-Cruz.
25
Esse dia que provou
com solene majestade
ao vil tirano atrevido,
quanto pode um povo unido,
quando grita -liberdade-
30
com as frontes coroadas
de louros vamos cantar
hinos aos fortes soldados,
que valentes, denodados,
nos souberam libertar.
35
Todos os ódios se esqueçam,
demo-nos todos as mãos,
e empenhemos nosso orgulho
em festejar dous de julho,
em um banquete d'irmãos!
40
Nem receeis que algum braço,
que para nos esmagar
ocultamente trabalha,
da nossa mesa a toalha
venha com sangue manchar.
45
Não, que tem a liberdade
seus amores neste dia,
e, temendo as iras dela,
se atormenta, se arrepela,
mas não fala a tirania.
50
Comece pois o festim,
e nas galas sem rival
entre as ledas comitivas,
impelido pelos vivas
rode o carro triunfal.
55
Saia à noite, que não há de
cobri-lo da noite o véu;
brandões hão de iluminá-lo,
de luzes hão de banhá-lo
os candelabros do céu!
60
Nele do dia dos livres
veja o formoso arrebol,
essa cabocla engraçada
que tem a face tostada
dos beijos que deu-lhe o sol!
65
E quando voltar dirão
com toda a gente os louvores,
o mar por canhões bradando,
os ares vivas troando,
a terra brotando flores!
70
Seja então tudo prazer,
tudo sonoras canções,
tudo banquete de bravos,
tudo remorsos de escravos
que inda desejam grilhões!
75
Eia, Baianos, raiar
vai na terra do Cruzeiro
esse dia tão jucundo,
que, apesar de ser segundo,
há de sempre ser primeiro.
80
Não deixeis despercebido
o rei dos dias passar,
mostrai que não sois escravos,
mostrai que o dia dos bravos
inda sabeis festejar.
85
Fragmento dos Túmulos
I
Um dia para os mortos, se é que o dia
nos túmulos penetra.
entre tantos de riso um só de pranto
seja sagrado às lousas
fechadas pela morte, e onde seu selo,
5
segunda morte grava o esquecimento.
II
Terra de mortos, deixa que pisem
os pés dos vivos, deixa; no teu reino
pedaços d'alma dos que vivem dormem.
entre os círios funéreos
10
arde também amor, geme a saudade.
mãe extremosa, os restos seus recebes
quando do mundo inteiro abandonados
vêm no teu leito procurar descanso.
O pai idolatrado
15
a ti confia o órfão;
entrega-te seu filho a mãe querida;
os irmãos, os amigos
seus irmãos, seus amigos, te entregaram:
Um dia, ao menos, querem vê-los: -Cede,
20
pois tens tudo o que é seu.
III
Um espírito único
desgraçado daquele que só teve
quando peregrinou por estes lares!
O triste foi um tronco sem raízes
25
que aos impulsos da sorte foi tombando.
Té que por fim caiu na eternidade.
Nem há na espécie humana
infeliz tão bastardo da ventura,
que tão ermo ficasse sobre a terra.
30
É uma planta só a humanidade:
por mais extremo que lhe seja um ramo,
pela seiva comum é sustentado,
e a cicatriz, que fica se o decotam,
da vida que se foi narrando a perda,
35
da vida que ficou narra a saudade...
IV
Terra de mortos, deixa que dos vivos
as almas se dilatem; frias cinzas
animar-se não podem; mas são elas
quinas dos edifícios abatidos
40
que o espírito só a Deus conhecem.
Deixai-os divagar nessas ruínas,
que são domínios seus. -A terna ave,
a quem a companheira arrebataram,
deixa, ao menos, voar em torno ao ninho.
45
V
Podeis entrar, fiéis. -Que o pó do mundo
vos não venha nos pés. -Quando é da
vida,
tudo estranho é aqui; a gala é óbito;
o banquete são preces: Deus reparte
o pão espiritual que o sacerdote
50
prepara nos altares;
são convivas os mortos, que recebem
também com ele
o sangue sacrossanto, que enfraquece
da punição o fogo. -Frágeis
lágrimas,
55
ah! do mundo não são, tanto que o mundo
não as quer nem conhece.
VI
Entremos... Mas... O nível dos sepulcros
não vejo aqui!!... Marmóreos monumentos
aqui, ali se erguem distinguindo
60
o pó do pó que a morte confundira.
Ilusão pueril! É cinzas tudo!
Só diverge a morada no aspecto:
Os donos são iguais.
Não mintam ao sepulcro apresentando
5
um rico funeral d'aspecto nobre:
como agora a zombar me dizem vivo,
digam-me também morto -aí vai um pobre!
De amigos hipócritas não quero
públicas provas de afeição fingida;
10
deixem-me morto só, como deixaram-me
lutar contra a má sorte toda a vida.
Outros prantos não quero, que não sejam
esse pranto de fel amargurado
de minha companheira de infortúnios,
15
que me adora apesar de desgraçado.
O pranto, açucena de minh'alma,
do coração sincero, d'alma sã,
de um anjo que também sente meus males,
de uma virgem que adoro como irmã.
20
Tenho um jovem amigo, também quero
que junte em minha Essa os prantos seus
aos de um pobre ancião que perfilhou-me
quando a filha entregou-me aos pés de Deus
dos meus todos eu sei que terei preces,
25
saudades, lágrimas também;
que não tenho a lembrança de ofendê-los
e sei quanta amizade eles me têm.
E tranqüilo, meu Deus, a vós me entrego,
pecador de mil culpas carregado:
30
Mas os prantos dos meus perdão vos pedem,
e o muito que também tenho chorado.