Selecciona una palabra y presiona la tecla d para obtener su definición.

O que sou, e o que serei!3

I

Homens, que vedes-me a passar sombrio

pela estrada que vai da vida à morte!

Talvez buscais saber meu que de vida-

o que sou, que serei, qual é meu norte.

Caso oculto de amor -certo- supondes,
5

que um moço trovador é sempre amores:

nem pode outro condão sobre seu peito,

nem se acurva -tão cedo- a outras dores.

Julgais bem; -porém pouco... que em minha alma

amor plantou -mais fundo- o seu feitiço:
10

Dai mais peso ao que eu sinto, homens, que trago

o viver, como vedes, tão submisso!

Não cuideis que o penoso sentimento,

que toda prende a amor minha existência,

é como este sentir que todos sentem,
15

de um dia, sem ardor, sem veemência!

Também já assim amei, se amor se pode

chamar essa ilusão de namorado,

mas hoje esse sentir me é tão da vida

que, se ele me faltar, ver-me-eis finado.
20

II

Indagais meu sofrer! Buscai na terra

   o ente mais formoso,

aquele que do céu for mais mimoso-

que todo meu sentir nele se encerra.

Vendo-o, formai de mim vosso juízo;
25

   se o encontrardes ledo,

contai que descobristes o segredo

do meu prazer... -vereis- sou todo riso.

Mas, se, ao contrário, virdes o quebranto

   da tristeza em seu rosto,
30

julgai-me logo a padecer exposto;

sabei logo o que sou... sou todo pranto.

Se o virdes pôr em mim seus olhos belos,

   seus lábios me sorrindo,

e seu seio a ondular cândido e lindo...-
35

O que eu sou -decifrai- sou todo anelos.

Se uma palavra der-me, à semelhança

   das palavras, do céu,

do coração rasgai-me o tênue véu,

e aí lede o que sou -sou todo esp'rança!
40

Contemplai a que amo. -Ora em langores

    quase desfalecida;

ora toda expressão, incêndio e vida-

e dir-me-eis se hei-de, ou não, morrer de amores.

Homens! Eis o que sou! -Dos trovadores
45

    o que mais sofre e sente;

por este coração, por esta mente,

sou todo inspirações, sou todo amores!

III

Mas perguntais-me vós, porqu'inda triste

vou caminho da vida pensativo,
50

depois de o ente achar, que único deve

por áureas sendas ao porvir levar-me?!

Por quê? Porque inda resta-me a incerteza,

essa inimiga certa da esperança,

que se me antolha horrenda em meus transportes!
55

Di-lo-ei todavia, homens (embora

traia o meu coração neste segredo,

que a mim só confiou), di-lo-ei -é força,

pois o exigis, é força confessar-vo-lo-

o que serei, ouvi... é vaticínio
60

de um coração, a quem tornou profeta

a luz de uns olhos lá do céu descidos.

Serei Nume, ou Demônio sobre a terra...

todo ternura e amor, ou todo cólera...

Todo venturas, ou desgraças todo.
65

Ser minha, ou não -eis todo o meu futuro,

para o qual duas páginas abertas

em perfeito contraste há neste livro

imenso do porvir. É uma delas

toda negra e de sangue salpicada;
70

a outra toda rósea, e matizada

de azul e verde, com relevos de ouro!

Destas páginas n'uma os nossos nomes,

o dela e o meu, por força hão de gravar-se.

Ver-me-eis Demônio apascentando fúrias,
75

precipitado a caminhar na terra,

como quem busca o termo da existência;

dos olhos a saltarem-se faíscas

de loucura e furos; na destra um ferro,

nos lábios um som único -vingança!
80

E assim medonho, impenetrável, louco,

pisando por abrolhos sem senti-los,

insensível a tudo, aos próprios crimes,

querendo o mundo enfim todo de sangue!...

Se ela minha não for -serei Demônio!
85

Ver-me-eis, porém, um Nume de venturas,

um prisma de afeições, cândidas todas,

um poeta de amor, sorrindo à terra,

um ente só feliz olhando encantos;

ver-me-eis co'os olhos em seu rosto impressos,
90

como os seus em minha alma impressos brilham;

ver-me-eis co'os lábios em seus pés, e ao mundo

entretanto c'os pés calcando a fronte!!

Se Eulina minha for! -serei um Nume!!

IV

Homens! Eis meu porvir: -dos trovadores
95

ou o mais desgraçado,

ou um Poeta mágico, inspirado,

bebendo vida e luz num céu de amores.


Bahia, 21 de janeiro de 1855.

Antônio Joaquim RODRIGUES DA COSTA

Amor e lágrimas4

Se fosse possível na minha alma

amanhecer um dia da ventura,

corado por um beijo de donzela

   ao despontar d'aurora...

Se, Anjo de salvação mandado ao mísero,
5

sorrindo, pelo céu jurasse a bela

fazer-me cada vez por novos beijos

    mais rubra a cor do dia...

Se fiel companheira em toda parte

quisesse me seguir, presa comigo,
10

como um raio celeste preso a um astro

   a iluminar-lhe o curso...

Se a visse, desdenhosa a mil tesouros,

só por ter-me, deixá-los e contente

a gabar-me o sabor do pão grosseiro
15

   que me alimenta a vida...

Não a crera; e talvez que até julgasse

tantas provas de amor atroz perfídia,

se amor me não brilhasse nos seus olhos

   no centro de uma lágrima.
20

Amor é fogo; o coração que ama

todo nas suas chamas se evapora,

no rosto se condensa, e chega aos olhos

   em água convertido.

Que é um riso? -Um prazer. Prisão estreita
25

de duas almas? -Simpatia apenas:

E os abraços e beijos? -Muitas vezes

    sustento de lascívia.

Tudo isso diz amor; mas quando? -Quando,

filho de um doce afeto que se apura
30

nos cadinhos da dor, é batizado,

   num batismo de prantos.

É belo ver-se uns olhos cintilantes,

acesos em vulcões de fogo ignoto,

a dardejar faíscas invisíveis
35

   que os corações abrasam:

É belo ver-se um rosto nacarado

no carmim do prazer: é belo ver-se

partir fino coral de rubros lábios

   um sim d'alma saído:
40

Mas em rostos assim amor não fala;

e, se fala, as mais vezes diz mentiras;

e este -sim- que tomamos por verdade

   é escárnio do crente.

Quereis vê-lo sincero? Observai-o
45

n'açucena de um rosto desmaiado,

entre os lírios de uns lábios que roxeiam

   suspiros de agonia:

Nuns olhos, cuja luz crepusculante,

entre a neve das lágrimas, pareça
50

revérbero da alâmpada mortiça

    do templo da saudade.

Aí podeis lhe crer o que disser-vos,

podeis segui-lo sem temer um crime;

que amor, se o pranto lhe borrifa as asas,
55

   seu vôo ao céu dirige.


A saudade branca5

Que tens, mimosa saudade?

Assim branca quem te fez?

Quem te pôs tão desmaiada,

minha flor? Que palidez!...

Ah!... já sei: n'um peito vário
5

emblema foste de amor:

O peito mudou de afeto,

e tu mudaste de cor.

Mas não; só peito animado

por constância e lealdade,
10

unida pode trazer-te

consigo, minha saudade.

Demais tu não mudas; seja

qual for o destino teu,

conservas sempre o aspecto
15

que a natureza te deu.

Que tens, mimosa saudade?

Assim branca quem te fez?

Quem te pôs tão desmaiada,

minha flor? Que palidez!
20

Quem sabe se és flor, saudade?

Quem sabe? Da sepultura

amor nas pedras penetra

por milagre da ternura.

Quem sabe... (Oh! meu Deus não seja,
25

não seja esta idéia vã!)

Se em ti não foi transformada

a alma de minha irmã?!

«Minha alma é toda saudades;

de saudades morrerei»-
30

disse-me, quando a minh'alma

em saudades lhe deixei:

E agora esta saudade

tão triste e pálida... assim

como a saudade que geme
35

por ela dentro de mim!...

A namorar-me os sentidos!

A fascinar-me a razão!...

Julgo que sinto a voz dela

falar-me no coração!
40

Exulta, minh'alma, exulta!...

Aos meus lábios, flor louçã!

No meu peito... Toma um beijo...

Outro beijo, minha irmã!

Outro beijo, que estes beijos
45

não te proíbe o pudor;

sou teu irmão, não te mancham

os beijos de meu amor.

Fala um pouco. Se almas podem

em flores se transformar,
50

sendo almas encantadas,

as flores podem falar.

Mas não falas?... não respondes?...

Oh! cruéis enganos meus!

Saudade, por que me iludes?
55

Minha irmã!... Meu Deus!... Meu Deus!...

Minha irmã!... minha ventura,

esperança, encanto meu!

É teu irmão quem te chama!...

Responde!... fala!... Sou eu!
60

Dista muito o céu da terra?

Os anjos asas não têm?

Desata um vôo, meu anjo!

Não tardes, meu anjo! Vem!

Vem! Ao menos um momento
65

quero ver-te, irmã querida:

Embora, depois de ver-te,

fique cego toda a vida.

Mas não vens? Deus te não deixa

vir ao mundo, meu amor?
70

Só devo encontrar no pranto

lenitivo à minha dor?

Ah! minh'alma desfalece...

E o coração, que apressado

com tanta força batia,
75

mal palpita... está cansado.

Muda, sem termos, nem vozes

me vai ralando a agonia:

A tempestade de angústias,

mudou-se em melancolia.
80

Que é isto?! Como tão negro

ficou-me todo o horizonte!

Que suor me banha o rosto!

Que peso sinto na fronte!

Ah! meu Deus! graças! aos olhos
85

o pranto sinto chegar;

se a boca não fala, ao menos

os olhos podem chorar.

Nós temos duas saudades;

uma de sangue ensopada
90

pela mão do desespero

no seio d'alma plantada;

outra da melancolia

toma o gesto, e veste a cor,

exangue, pálida e fria,
95

mas calada em sua dor.

Parece que a natureza

quis provar esta verdade,

quando diversa da roxa

te criou, branca saudade.
100


Francisco Muniz Barreto6

I

Dizer não posso o que és, o que é teu canto,

que o diga o Sol da Pátria

nos céus aos astros, quando, derramando

a luz que neles bebe,

os astros vê nadando em novos lumes!
5

Que o diga a Primavera

nos prados e nos montes,

nos jardins, nas searas

descuidada deixando cair flores,

e aparando teus versos no regaço.
10

Que o diga em noite estiva,

a Lua melancólica,

pálida -imóvel- a chorar ternuras,

ouvindo-te saudosa -enamorada

uma canção de amores.
15

Que o digam essas brisas tão suaves

que ao viajor cansado, em nossos bosques,

refrigeram, deleitam, enfeitiçam,

trazendo-lhe o aroma que desprendem

as flores bafejadas por teu estro.
20

Que o digam a escutar-te, quando altíssono

nos narras inspirado

dos livres os triunfos, glória, e brios,

a liberdade rindo,

e o terror a tremer nas faces frias
25

dos pálidos tiranos.

Que o diga amor, e escreva

nos troféus que levanta,

quando, tangendo as cordas

da lira de diamantes,
30

rendidos corações arrastas presos

nos grilhões de teu canto até seu sólio.

Diga a mulher enfim, -não a que nutre

nos olhares ardentes de volúpia

a chama impura das paixões nocivas;
35

divindade fatal, de cujos templos

a razão a fugir ao crime entrega

as aras e o turíbulo; -mas a virgem,

a virgem, que descer dos céus à terra

por escada de flores viu o homem
40

no lindo sonho do dormir primeiro:

O anjo que no exílio acompanhava

O primeiro proscrito, e no pão negro,

que lhe dera o pecado, transformou-lhe

c'um beijo em mel de rosa o fel das lágrimas:
45

A estrela, que, depois de conduzir-nos

por mares de delícias,

onde afogados de prazer morremos,

a vida nos restaura,

e de luz divinal num raio amigo
50

nos embebe no seio o amor paterno.

Sim, que o diga a mulher, mas a perfeita,

a completa mulher por Deus formada,

norma daquele cofre que devera

arca de salvação, guardá-lo um dia,
55

e cuja cópia transladaste em verso!

II

Eu não posso dizer o que é teu canto,

    nem cantar-te louvores,

se chama etérea me acendesse o estro...

Se no meu coração vingasse ao menos
60

   uma flor de poesia...

Porém não vinga a flor sobre o rochedo,

não medra a chama, nem se nutre o raio,

nas cortadoras úmidas montanhas

   de aglomerados gelos.
65

III

    Gratidão e amizade,

que dentro em mim se batem neste empenho,

podem muito, Moniz, porém não podem

de um trovista, qual eu, fazer poeta,

poetar como tu, para cantar-te!
70

Seja, pois, fraco e fido testemunho

   de quanto por ti sinto

este desejo que te envio.

IV

       Amigo,

do riso e da aflição me acarinhaste
75

do estéril pensamento os pecos frutos;

zeloso Mestre, as trovas me lavaste

no límpido Jordão da clara mente;

amigo e Mestre, deixa que te chame!

-Amigo, -porque o és- minha alma o sabe;
80

-mestre, -porque me pede o entusiasmo

dizer-te como tal; porque preciso,

um nada como sou, do mundo às portas,

com o mérito teu cobrir meu nome.


I

Se o trovador, que outrora,

como filho querido, nos teus braços

   amorosa apertaste,

de ti merece ainda uma lembrança,

pátria, querida pátria da minha alma,
5

terreno abençoado onde, aos milhares,

prantos que derramei brotaram risos,

recebe neste canto um revérbero

    das chamas da amizade

eterna que por ti arde em meu peito.
10

II

Ao lindo sol da glória, que teus campos

    liberal fertiliza,

minha primeira luz não deve os raios,

   nem teus jardins me deram

flores com que adornasse o pobre berço;
15

lá das campinas tuas não medimos

nem eu, nem sócios meus, brincando alegres

   velocidade e forças

na carreira e nas lutas esforçados:

    As mal pronunciadas
20

preces minhas sumir-se no infinito

não foram do teu céu, quando cansada

a Tarde no Ocidente despe a púrpura

que o Nascente lhe deu, chamando-a -Aurora;

nessa hora, em que a brisa da saudade
25

suspiro da saudosa Natureza,

com brando movimento agita as folhas

extremas do arvoredo, os passarinhos

volvem aos ninhos apressados vôos,

e dúbia luz, com trevas misturada,
30

pouco a pouco se esvai entre as cinzentas

montanhas vaporosas; nessa hora,

em que todo o universo, extasiado

   num culto involuntário,

parece ver passar o Anjo do Tempo,
35

que vai, guarda da terra, a Deus dar conta

dos trabalhos diurnos; nessa hora,

em que a melancolia afaga os peitos,

em que a alma se contrai ouvindo a queda

   do pó que mede a vida,
40

e, transido de mágoa, o campanário

deixa cair as lágrimas metálicas

   no sepulcro do dia.

Amei onde nasci. Essa esperança

tão doce e feiticeira
45

que na idade viril desponta n'alma;

essa idéia de fogo, onde releva

a mão da fantasia imagem de anjo

   que nos seduz e arrasta,

tive-a no meu torrão. O mesmo astro
50

que no berço me viu, viu meus amores.

O ameno Mon-Serrate, a fresca Barra,

o místico Bonfim não asilaram

meus primeiros segredos de ternura;

essa história de enleios toda guardam
55

amigas margens do meu pátrio Rio,

que até no curso rápido desenha

   a rapidez das ditas,

do gozo, do prazer que tive nela.

   O nascimento, a infância,
60

    os primeiros amores,

não, não te devo a ti, terra querida;

   mas a dívida imensa

deste amor desvelado que me deste,

sem temor de baixeza, me consente
65

chamar-te -minha pátria.

III

Quando, pela desgraça arremessado

no solo teu, sem nome, pobre enfermo,

quase a esmolar um pão, busquei teus filhos,

ilesos do desprezo que aos felizes
70

    a desgraça sugere,

   irmãos, não só amigos,

pais, não só protetores me abraçaram;

    as portas da ciência,

que a chave da indigência me fechara,
75

   tuas mãos generosas

abriram francas a meu livre ingresso;

e a vida almejavas ver-me o termo

   da difícil viagem,

enxugar-me na frente iluminada
80

   o suor da fadiga,

   e a coroa de espinhos

que a sorte me cingiu tornar de louros.

IV

O Berço do nascimento,

ou em palácio opulento
85

trajando a gala real,

ou cama de palhas feita

onde a escrava o filho deita

enrolado no sendal;

o Céu que a primeira prece,
90

de tarde ou quando amanhece,

a criança ouvia rezar,

quer puro, e ledo sorrindo,

quer furioso bramindo,

fuzilando a trovejar;
95

o lugar onde primeiro

o coração todo inteiro,

amor dizendo, se abriu;

prado florente e risonho,

ou vale escuro e medonho,
100

que sangue humano tingiu;

a pátria, enfim, tem encantos,

tão sedutores e tantos,

que não se pode vencer!

É uma visão divina,
105

que a vida nos ilumina,

e nos segue até morrer;

mas também o porto amigo

onde nos braços consigo

a amizade nos levou,
110

e d'alma, toda chagada,

as feridas consternada

uma por uma curou;

onde destras apertamos

em que pasmados achamos
115

o calor só natural

a chama que o céu ateia,

quando veia, sobre veia

sente sangue paternal;

essa terra benfazeja,
120

inda que pátria não seja,

   igual atrativo tem;

    e o estranho protegido

   pode, sendo agradecido,

   chamá-la pátria também.
125

lisonja, adulação, alcunhe embora,

o vulgo o puro amor que te consagro,

   o culto que te rendo;

recebeste o meu pranto no teu seio,

da fortuna enjeitado perfilhaste-me,
130

pátria, teu filho sou, e assim te adoro.


À morte de Junqueira Freire

Do retiro claustral cisne sagrado

    o vôo desprendeu!

Enchendo os ares pátrios de harmonias

   cantou, depois morreu!

   Mistério! -Ave criada entre os altares,
5

acaso a turba impura

do mundo com seu bafo envenenado

   abriu-te a sepultura?!

Punindo-te o desprezo de seus lares

    o Anjo de Sião
10

por ordem do Senhor tão presto deu-te

   a morte, em punição?!

Preso o espírito, acaso, nas cadeias

    do voto eterno e forte

teve, na luta acerba espedaçando-as,
15

    por liberdade a morte?!

Mistério! -Respeitemos nesta campa

    decretos divinais!

Sobre as cinzas do morto ao vivo toca

    o pranto e nada mais!
20

Rei que fora! -Era um servo que devia

    a vida ao Senhor seu!

Seu Senhor o chamou, a voz ouviu-lhe

   e pronto obedeceu!

Duvidais do que digo? -Erguei a campa...
25

    Esse corpo o que é?!

E negareis ainda que era um servo?!

    Aí tendes a libré!

Viveu como poeta, de poeta

    deixou o canto e a fama.
30

inda no crânio morto tem -bem vedes-

    do louro verde a rama!

Leste-lhe a poesia? Eram arquejos

   d'um coração aflito!

De uma alma que ensaiava na matéria
35

    os vôos do infinito!

Voou!... Cisne de luz, adeja livre

mau grado a humanidade!

Os hinos dos arcanjos são seus hinos

seu mundo -a eternidade!
40


Amor-perfeito7

Secou-se a rosa... era rosa;

flor tão fraca e melindrosa,

muito não pôde durar.

Exposta a tantos calores,

embora fossem de amores,
5

cedo devia secar.

Porém tu, amor-perfeito,

tu, nascido, tu afeito

aos incêndios que amor tem,

tu que abrasas, tu que inflamas,
10

tu que vegetas nas chamas,

por que secaste também?!

Ah! bem sei. De acesas fráguas

as chamas são tuas águas,

o fogo é água de amor.
15

como as rosas se murcharam,

porque as águas lhes falharam,

sem fogo murchaste, flor.

É assim, que bem florente

eras, quando o fogo ardente
20

de uns olhos que raios são,

em breve, mas doce prazo,

te orvalhou naquele vaso

que, já foi meu coração.

Secaste, porque esse pranto
25

que chorei, que choro há tanto,

de todo o fogo apagou.

Triste, sem fogo, sem frágua

secaste, como sem água,

a triste rosa secou.
30

Que olhos foram aqueles!

Quando eu mais fiava deles

meu presente e meu porvir,

faziam cruéis ensaios

para matar-me. Eram raios,
35

tinham por fim destruir.

Destruíram-me: contudo

perdôo o pesar agudo,

perdôo a pungente dor

que sofri nos meus tormentos,
40

pelos felizes momentos

que me deram nesta flor.

Ai! querido amor-perfeito!

Como vivi satisfeito,

quando te vi florescer!
45

Ai! não houve criatura

no prazer e na ventura

que me pudesse exceder.

Ai! seca flor, de bom grado,

se tanto pedisse o fado,
50

quisera sacrificar

liberdade e pensamento,

sangue, vida, movimento,

luz, olfato, sons e ar.

Só para ver-te florente,
55

como quando o fogo ardente,

de uns olhos que raios são,

em breve, mas doce prazo,

te orvalhou naquele vaso

que já foi meu coração.
60


Dous impossíveis

Jamais! quando a razão e o sentimento

disputam-se o domínio da vontade,

se uma nobre altivez nos alimenta

não se perde de todo a liberdade.

A luta é forte: o coração sucumbe
5

quase nas ânsias do lutar terrível;

a paixão o devora quase inteiro,

devorá-lo de todo é impossível!

Jamais! a chama crepitante lastra,

em curso impetuoso se propaga,
10

lancem-lhe embora prantos sobre prantos,

é inútil, que o fogo não se apaga.

Mas chega um ponto em que lhe acena o ímpeto

em que não queima já, mas martiriza,

em que tristeza branda e não loucura
15

à razão se sujeita e harmoniza.

É nesse ponto de indizível tempo

onde, por misterioso encantamento,

o sentir a razão vencer não pode,

nem a razão vencer ao sentimento.
20

No fundo de noss'alma um espetáculo

se levanta de triste majestade,

se de um lado a razão seu facho acende

de outro os lírios seus planta a saudade.

Melancólica paz domina o sítio,
25

só da razão o facho bruxoleia

quando por entre os lírios da saudade

do zelo semimorto a serpe ondeia!

Dous limites então na atividade

conhece o ser pensante, o ser sensível:
30

um impossível -a razão escreve,

escreve o sentimento outro impossível!

Amei-te! os meus extremos compensaste

com tanta ingratidão, tanta dureza,

que assim como adorar-te foi loucura,
35

mais extremos te dar fora baixeza.

Minh'alma nos seus brios ofendida

de pronto a seus extremos pôs remate,

que mesmo apaixonada uma alma nobre

desespera-se, morre, não se abate.
40

Pode queixar-se inteira a felicidade

de teu olhar de fogo inextinguível,

acabar minha crença, meu futuro,

aviltar-me! jamais! É impossível!

Mas a razão, que salva da baixeza
45

o coração depois de idolatrar-te,

me anima a abandonar-te, a não querer-te,

mas a esquecer-te, não, sempre hei de amar-te!

Porém amar-te desse amor latente,

raio de luz celeste e sempre puro
50

que tem no seu passado o seu presente,

e tem no seu presente o seu futuro.

Tão livre, tão despido de interesse,

que para nunca abandonar seu posto,

para nunca esquecer-te, nem precisa
55

beber, te vendo, vida no teu rosto.

Que, desprezando altivo quantas graças

no teu semblante, no teu porte via,

adora respeitoso aquela imagem

que deles copiou na fantasia.
60


Não posso mais!

Não sei se é vida, porém sei que a morte

terá de certo menos amargor;

só sei que a morte tem uma agonia,

e não sei quantas tenho nesta dor!

Os olhos fecha quem a vida perde,
5

o bem perdido jamais pode ver;

eu, morto n'alma, fitos os olhos tenho

no bem querido, que não posso ter.

Embora firam desgraçada vítima

ervados gumes de cruéis punhais,
10

as dores cessam mal que chega a morte,

sangue as feridas lhe não vertem mais.

Desta ferida nada o sangue estanca...

A dor recresce mais, e mais pungente;

morta minha alma para os gozos todos,
15

só vê que vive pela dor que se sente.

O céu perdoe a quem assim compensa

os sacrifícios deste coração;

porém a mágoa me desvaira a mente:

se não há crime, como haver perdão?
20

A fronte curva, delinqüente altivo,

a fronte curva, não és mais que um réu;

teu bafo impuro, que o pecado alenta,

acende o raio que te arroja o céu.

Perdão!... mas seja para mim somente,
25

nesse olhar terno que o perdão exprime;

perdão te peço, Querubim celeste;

une o culpado, mas perdoa o crime.

Rola de bosque, da inocência ao ninho

eu cego o verme da paixão levei-te;
30

anjo risonho, sobre a fronte lisa

a ruga acerba do cismar tracei-te!

Turvei-te a face, nebulei-te os olhos,

cobri de espinhos o teu santo leito,

e da tristeza, que a minh'alma encobre,
35

parte dos goivos te lancei no peito!

Mas Deus puniu-me...! Da sentença austera

tu escrevias a primeira parte,

quando a meus rogos de extremoso amante

só respondias -eu não posso amar-te!
40

Mas não bastava: -ao martírio imenso

dobrar devias a cruel tristura;

num sim de amores que me deste um dia,

um céu me abriste de falaz ventura.

Mas presto nuvens o horizonte toldam,
45

de todo nelas a visão se esvai,

e o cego doudo, que fitava os anjos,

de novo em trevas envolvido cai.

Não ter-te, fora já penar bastante;

perder-te, extremo de cruel penar!
50

Pensei que a pena se acabava nisto,

mas inda tinha mais que suportar!...

Desprezo em troca de meu culto; às ânsias

de minha angústia riso mofador,

de ti, daquele a quem me sacrificas,
55

para mostrar-lhe todo o teu amor.

Que a fronte calques, que por ti velando

consome dias, noites sem cessar;

que a fronte calques, que desdenha o mundo

e varre a terra p'ra teus pés beijar...
60

É dura afronta, mas com essa afronta

eu não me avilto, nem me desabono:

é nobre o solo que as rainhas pisam,

chama-se solo convertido em trono;

porém que aplaudas, que consintas outro,
65

também calcar-me escarnecer de mim...

Eu não me lembro que fizesse um crime,

que merecesse ser punido assim!...

Estrela d'Alva de divina aurora,

deixa-me em trevas, é destino meu!
70

Deus te dirige neste mundo os raios,

tu não governas o clarão que é teu.

Não quero o riso desbotado e morno

de complacente, caridoso amor;

de amor a planta quem a prova incauto
75

morre do fruto, se não goza a flor.

Deus de teus braços me recusa a dita,

mudo a sentença sofrerei -sou réu;

banhei meus lábios nos paúis do crime,

beijar não posso Querubins do céu!
80

Mas não mereço do escárnio o riso

mas não sou digno de desprezos tais;

se me não podes destruir a pena,

muda o tormento, que não posso mais!...


As duas redenções

Ao batismo e liberdade de uma menina

Inda uma vez tanjamos

a lira, e mais um hino

consinta-me o destino

erguer nos cantos meus;

que vá, de sons profanos
5

despido e desquitado

em vôo arrebatado,

voando aos pés de Deus.

Da liberdade a estrela

no berço da inocência
10

derrama a providência

de duas redenções;

mostrando um'alma limpa

do crime primitivo

no corpo de um cativo
15

que quebra os seus grilhões.

Que assunto mais merece

um hino de poesia?

Que dia tem mais dia?

Que feito tem mais Luz?
20

Do cativeiro um anjo

quebrando infames laços,

à cruz estende os braços

e os braços lhe abre a cruz.

Perfilha Deus o anjo
25

na filiação da graça,

e o ser que o crime embaça

puniu a redenção!

E o homem, dissipando

do berço insano agravo,
30

em menos um escravo

abraça um novo irmão!

Que foras, inocente,

que foras, nesta vida,

da escravidão perdida
35

no bárbaro bazar!?

Pobre rola ferida

da infâmia pelo espinho,

em que ramo, em que ninho

te havias de aninhar?
40

Infante, sem afagos,

temendo-te altiveza,

querendo-te a vileza

plantar no coração,

dariam-te nos gestos,
45

nas vestes, no aposento,

na mesa, no alimento,

somente -escravidão!

Donzela (oh! sacrilégio!)

amor, qual flor sem viço,
50

mil vezes é serviço

que fero senhor quer!

É dor que o fel requinta,

que a ímpia sorte agrava

daquela que é escrava
55

depois de ser mulher!

Se mãe (é mãe escrava!)

Quem sabe se verias

teu filho mãos ímpias

do seio te arrancar?
60

E surdos ao teu pranto

mandarem-te com calma

do seio da tua alma

a outro alimentar?!

Criança mas sem veres
65

da infância as verdes cores,

donzela sem amores,

talvez alam sem Deus!

Não foras arrastada

da vida pelos trilhos,
70

nem tu, e nem teus filhos

seriam filhos teus.

Ó vós que hoje lhe destes

o dom da liberdade,

que junto à divindade
75

matais a escravidão,

ao trovador propícios

de ação tão excelente

em culto reverente...

Guardai esta canção.
80

Eu sei que haveis guardá-la,

que em tão santa amizade

não vem a variedade

deitar veneno atroz.

Sou vosso desde a infância:
85

Da vida até o fim

sereis tanto por mim

como serei por vós!


Ao Sr. João Antônio da Trindade8

Ora de rosas, ora de ciprestes,

as horas da existência coroadas

voam nas asas do volúvel tempo

lentas algumas, outras apressadas.

Mas na marcha que levam sinais deixam
5

de uma vida constante ou transitória:

umas do esquecimento engole o pego

outras medram no campo da memória.

Aí frondosas árvores florentes

os mausoléus que a dor tem levantado
10

são os frutos que colhe uma alma atenta

quando vaga nos mundos do passado.

Daí vem que o espírito, voando

do passado na vasta imensidade,

ergue às vezes um hino de alegria,
15

às vezes chora um pranto de saudade!

Bem-vinda sejas, hora sacrossanta

das raras festivais -bem-vinda sejas!

Oh! nunca a nuvem negra do desgosto

ofusque a luz divina que dardejas!
20

Anos oitenta e dous há, que do mundo

viu feliz a primeira claridade

um ente, em quem prudência, brio e honra

se juntaram, formando uma -TRINDADE!

Despido de brasões, nobre na essência,
25

de elevado sentir, modesto e puro,

fazendo do trabalho o seu destino,

arrancou de si mesmo o seu futuro!

Disse -sou homem!- trabalhou, e fez-se...

se achou tropeços, fez em mil pedaços:
30

E sentindo-se, enfim, robustecido,

piedoso ao aflito estende os braços.

Se as coroas não têm desses pequenos

que a fama como grandes apregoa,

as virtudes que brilham-te na fronte
35

decerto que lhe dão melhor coroa!

É grinalda do céu, de viço eterno,

onde refulgem, qual celeste orvalho,

os prantos do indigente agradecido,

as gotas do suor de seu trabalho!
40

Sus, vivente feliz, bendiz teu fado,

que o céu a teu favor se pronuncia;

para bem penetrar-te esta verdade,

contempla um pouco o quadro deste dia!

Como prêmio, já na vida,
45

do teu honesto labor,

deu-te Deus na terra um Anjo

que te enxugasse o suor!

Um Anjo de caridade,

de candura e singeleza;
50

um Anjo, enfim, adornado

com os dotes de -TERESA!

Por anos tão numerosos

o Senhor tem conservado

o Anjo sempre contigo,
55

tu sempre ao Anjo ligado!

Na tempestade e bonança

sempre o par se conservou

unido, como dous ramos

que o mesmo tronco gerou!
60

Que nunca se perturbe a paz tranqüila

deste Par tão ditoso!

Que seja o Filho, qual tem sido sempre,

uma cópia do pai; e imensos anos

se renove este dia
65

que nos enche de glória e de alegria!


A Sra. D. Teresa Maria Caetana da Trindade9

Que importam anos? Uma flor existe

que, quanto mais por ela o tempo corre

mais seu aroma e seu verdor aumenta;

com o tempo revive, nunca morre.

É a virtude, raio que no mundo
5

do céu dardeja o sol da eternidade,

em si bem como Deus o tempo encerra,

anos não conta, nem aumenta a idade.

O homem que a contempla, embora viva

séculos a contemplar-lhe a formosura,
10

mais aroma lhe sente, e vê na forma

mor garbo, mais beleza e mais doçura.

Não, as cãs da velhice não enfeiam

a fronte da matrona virtuosa;

diadema de prata nela brilha,
15

qual na da mocidade brilha a rosa.

se a grinalda de rosas da donzela

é bela por dizer graça e meiguice,

exprime mais solenes predicados

a coroa de prata da velhice.
20

Mostra uma virtude ainda nascente,

as galas, o trajar da juventude,

e a outra, coroa de triunfos,

que já colheu dos anos a virtude.


Suspiros e saudades

Depois de tantas perdas só restou-me

    na soledade,

em que deixou-me a dor, para consolo

   roxa saudade.

Esta flor, tão estéril nos prazeres,
5

   quando em retiro

quase sempre do seio magoado

   brota um suspiro.

Achava estes suspiros e saudades

   encantadores,
10

embora fossem flores da tristeza,

   sempre eram flores.

Demais, quem tem das ditas deste mundo

   chegado ao termo,

quem traz de ingratidões e desenganos
15

   o peito enfermo;

quem tem com a flor que às almas venturosas

    do prazer fala?

Que ao ver-lhe o coração trajando luto

    traja de gala?
20

A tristeza que tendes, minhas flores,

   é vosso encanto.

E como éreis formosas orvalhadas

   pelo meu pranto!

Mas secastes também?! Faltou-vos água?
25

    Demais tivestes.

Fogo? Desde nascidas sempre em chamas

   de amor vivestes.

Secastes? Com razão, que destas flores

   certo não é
30

verdadeiro alimento, água nem fogo

   faltando a fé.

Vivem com fogo e água, se dos prados

   nascem no chão;

mas não se flores d'alma dentro d'alma
35

   nascendo vão.

Quando morta a f'licidade,

a fé expira também!

saudades de que se nutrem?

Os suspiros que alvo têm?
40

Morta a fé, vai-se a esperança,

como pois viver pudera

saudade que não tem crença,

saudade que desespera?

Onde as graças do passado,
45

se altivo gênio sanhudo

o cepticismo nos brada,

foi mentira, engano tudo?

Em nada creio do mundo:

ludíbrio da desventura
50

a felicidade me acena,

só de um ponto -a sepultura.

Morreram minhas saudades,

e meus suspiros calados

dentro d'alma pouco a pouco
55

vão morrendo sufocados.


Os dous batizados10

O fogo santo que dá vida à vida,

    chama-se amor;

botão de rosa, que o pudor defende,

quando dous corpos este fogo acende,

   desabrocha em flor.
5

Chorando sangue a virgindade foge,

   e mais não vem:

botão de rosa, no botão fechada,

depois que a rosa foi desabrochada,

   vida não tem.
10

Prossegue o fogo, e faz que a flor aberta

   murchando vá;

mas quase sempre generoso amor

em recompensa da perdida flor

    Um fruto dá.
15

Desses frutos o mundo se povoa

   em sua imensidade;

formam eles o grupo da família,

os reinos, as nações, a maravilha

   chamada humanidade!
20

Feliz aquele que feliz recolhe

    o seu fruto de amor!

Que seguindo da lei divina o trilho,

como filho de Deus vê no seu filho

   um filho do Senhor!
25

Feliz o que cumprindo um dever santo

   às santas aras vem,

fazendo o mesmo que seus pais fizeram,

a Deus, como seus pais outrora o deram,

   seu filho dar também!
30

Felizes vós portanto neste dia,

    em que da culpa o véu

rasgando aos olhos de dous novos crentes,

fizestes de dous anjos inocentes

    dous anjos para o céu!
35

Folgai, ó anjos, que o espaço é vosso,

   a cintilar!

Vede... a estrela da graça se levanta!...

Ganhastes asas nessa pia santa...

    Podeis voar!
40

Voar, meu Deus? Defende-os das torpezas

    do mundo réu;

pela bondade que teu seio encerra,

dá que estes anjos sem roçar na terra

   cheguem ao céu!
45


Ao meu amigo Leopoldo Luís da Cunha


Quando eu morrer, minha morte

não lamentes, caro amigo,

que o sepulcro é um jazigo

onde eu devo descansar;

a minha triste existência
5

é tão pesada, é tão dura,

que a pedra da sepultura

já me não pode pesar.

Uma lágrima, um suspiro,

eis quanto custa o morrer;
10

custa-nos sempre o viver

prantos, suspiros, sem fim!

Que tormento fora a vida,

se não fosse transitória!?...

Não me risques da memória,
15

porém não chores por mim.

Enchem trevas o sepulcro,

mas ninguém delas se queixa;

quando o morto os olhos fecha,

não quer luz, quer sossegar;
20

aquele fundo silêncio,

aquele extremo abandono,

dão-lhe tão profundo sono,

que nem pode despertar.

Já tive medo da morte,
25

agora tenho da vida;

sinto minha alma abatida,

sem vigor o coração;

já cansado de viver,

para a morte os olhos lanço;
30

vejo nela o meu descanso,

a minha consolação.


À terra natal11

Adeus!... Vou procurar talvez um túmulo

   longe do teu regaço.

Nunca me foste mãe, mas sou teu filho,

    concede-me um abraço!

Abençoa-me! -Parto; dá-me a bênção!
5

    Que ao filho desgraçado,

mesmo o ser infeliz dá mais direitos

   a ser abençoado.

És rica, eu nada tenho; mas ao nada

    me soube acostumar;
10

dispenso os teus tesouros, mas a bênção

   não posso dispensar.

Adoro-a, quero-a, sim; porque custou-me

   aspérrimo desgosto,

torturas inauditas, conservar-lhe
15

   sem manchas este rosto.

Quero de filial doce ventura

   encher meu coração,

revendo nela, filho abençoado,

    a minha filiação.
20

Nunca me foste mãe pelos carinhos;

   ao menos um sinal

dá-me, dá-me de mãe, que sou teu filho,

   na bênção maternal.

Adeus!... Perdoa se me queixo; as queixas
25

   que exalo em minha dor

ofender-te não devem, que são filhas

   de meu ardente amor.

Esses braços ao filho que se aparta

   estende por quem és,
30

que o filho por teus braços abraçado

   abraçará teus pés!...


Da saudade, bem amado,

nesta ausência tão distante,

cada vez mais encravado

o espinho penetrante,

o coração sossegado
5

me não deixa um só instante.

Como do caos primitivo

surgiu bela criação,

do caos da minha tristeza

da pátria surge a visão!
10

Tenho saudades dos montes,

dos ares, dos horizontes

que à pátria servem de véu;

saudades dos meus palmares,

saudades daqueles ares,
15

saudades daquele céu!

É puro, mas com ser puro

este céu me não convém;

que tendo tantas estrelas

a minha estrela não tem!
20

Muitas vezes a procuro,

mas debalde!... um ponto escuro

no seu lugar se fitou;

conheço e vejo a verdade:

Foi a nuvem da saudade,
25

que a minha estrela apagou.

Sim, meu bem, brilhou a estrela

sem rival nos brilhos seus,

enquanto a luz recebia

do lume dos olhos teus;
30

quando teus olhos ardentes,

rutilando de contentes

iam-se nela fitar.

Hoje que estão desmaiados

por prantos continuados,
35

com seus sóis quase apagados,

como há de a estrela brilhar?

Cada dia que se passa

neste desgosto cruel,

tem novo quadro a desgraça,
40

tem a ausência novo fel,

mais compunge o peito ansiado

esse espinho envenenado,

que a saudade me cravou;

e a dor me tem convencido
45

que do espinho introduzido

novo espinho se gerou.

Eu o sinto, quando estreito

nos meus transportes de dor,

sobre os lábios, sobre o peito,
50

o meu talismã de amor;

o meu fiel companheiro

e talvez o derradeiro

presente de amor, de ti,

na hora da despedida
55

em que tudo (exceto a vida

para chorar-te) perdi!

Se d'alma a essência celeste

pudesse ser transmitida,

o retrato que me deste
60

não fora um corpo sem vida

que, ao vê-lo, minh'alma ardente,

no transporte mais veemente,

sente ao semblante subir,

e nos olhos condensada,
65

em lágrimas transformada,

sobre o retrato cair.

Aos tormentos que já sobram

novos reúne a saudade;

os seus negrumes redobram
70

as sombras da soledade.

na mente a imagem se agita

dessa ventura infinita

que junto a ti desfrutei,

em quadros tão sedutores,
75

quais nunca dos meus amores,

nem nos sonhos divisei.

O amor com que me abraças,

então não posso dizer!

Da saudade sinto as asas
80

no coração me bater;

e contemplando os espaços

que te roubam aos meus braços,

e que não posso transpor,

perco a luz, e desmaiada
85

cai-me a fronte atordoada

pelos combates de amor!

Assim passo em tua ausência.

eis qual é o meu viver!

Melhor que tal existência
90

mil vezes fora morrer,

se não tivesse a esperança

que venturosa bonança

à tormenta porá fim;

se não tivesse a certeza
95

que me adoras com firmeza,

que não te esqueces de mim.


Epístola ao meu amigo F. de Paula Brito

Se dessa nobre irmã, que as mais domina,

que de gala e de pompa revestida

majestosa nos ares se reclina:

De tudo quanto há belo enriquecida,

coberta pelo azul de um céu brilhante,
5

de sempre verdes prados guarnecida;

cujos pórticos guarda vigilante

de dia e noite imóvel sentinela,

um disforme e grandíssimo gigante;

que tão soberba em forma se revela,
10

como amável no trato hospitaleiro

com que abraça a quem vive à sombra dela;

se desse pátrio ninho, onde primeiro

vimos ambos a luz, inda é lembrado

daquele solo o filho derradeiro;
15

ou se em todas as mentes apagado,

pelo buril eterno d'amizade

seu nome inda na tua está lembrado;

recebe nesta um culto de saudade,

de afeto, e desse afeto que termina
20

onde encontra seu termo a eternidade;

desse afeto do céu, que não fascina,

sol brilhante nos dias de ventura,

nas dores, da desgraça medicina;

no que te digo vai verdade pura;
25

as linhas que te escrevo, Brito, amigo,

são alívios à dor que me tortura!

Aqui, por mais que busque, não consigo

ter por minha de tantas uma hora

igual àquelas que passei contigo!
30

Tédio enfadonho tudo me descora;

marca-me o tempo lentamente a vida,

que aos outros entes rápido devora!

Parti... e, nessa hora da partida

(não sei se foi meu corpo, se minh'alma),
35

porém um fez do outro a despedida!

Dizem que com o tempo a dor se acalma;

mas a amante, a quem tal bem sucede,

ao verdadeiro amante ceda a palma.

Quando a vista ansiosa o espaço mede,
40

e a imagem divinal do bem perdido

em vão à terra, ao mar e aos astros pede;

quando, da perda infausta convencido,

chega a crer que partiu, a crer n'ausência,

que já não tem presente o bem querido;
45

quando, cedendo à força da evidência,

nem lhe resta uma nuvem de esperança

para os olhos vendar da consciência;

não é decerto um tempo de bonança!

Longe a certeza acorda a tempestade,
50

que perto sobre a dúvida descansa!

E quanto mais conhece-se a verdade,

mais funda, mais pungente e mais dorida,

se vai abrindo a chaga da saudade!...

É esta aqui, meu Brito, a minha vida!
55

Nem exagera a pena meu tormento,

em poéticas tintas embebida!

Tenho n'alma um cruel pressentimento

(talvez não mui remota profecia

que não posso apagar do pensamento!)
60

Espero cedo o meu extremo dia;

e a morte, da pátria tão distante,

é quadro que me abate de agonia!

A saudade tornou-me tolerante!

Que importa ser da pátria desprezado?
65

Serei sempre da pátria filho amante.

Se outrora, contra ela conspirado,

os males que me fez lancei-lhe em rosto,

hoje tudo lhe tenho perdoado.

Dos lances em que a sorte me tem posto
70

esquecido, o desgosto de não vê-la

é dos desgostos meus maior desgosto!

Ah! que não fosse a hora de perdê-la,

a hora em que parti!... O sul formoso

é belo, benfazejo, é lar ditoso:
75

Mas eu tenho no Norte a minha estrela!


Eia, Baianos, raiar

vai na terra do Cruzeiro

esse dia tão jucundo,

que, apesar de ser segundo,

há de sempre ser primeiro!
5

Não deixes despercebido

o rei dos dias passar,

mostrai que não sois escravos,

mostrai que o dia dos bravos

inda sabeis festejar!
10

Se o misérrimo que sofre

da escravidão os rigores,

às vezes repete a história

dos seus passados de glória

nas senzalas dos senhores;
15

nós livres, a quem escravos

inda não pôde fazer

o furor do despotismo,

nossos feitos de heroísmo

não devemos esquecer.
20

Não devemos esquecer

esse dia, a cuja luz

os deus dos Americanos

escreveu -morte aos tiranos-

nos braços da Santa-Cruz.
25

Esse dia que provou

com solene majestade

ao vil tirano atrevido,

quanto pode um povo unido,

quando grita -liberdade-
30

com as frontes coroadas

de louros vamos cantar

hinos aos fortes soldados,

que valentes, denodados,

nos souberam libertar.
35

Todos os ódios se esqueçam,

demo-nos todos as mãos,

e empenhemos nosso orgulho

em festejar dous de julho,

em um banquete d'irmãos!
40

Nem receeis que algum braço,

que para nos esmagar

ocultamente trabalha,

da nossa mesa a toalha

venha com sangue manchar.
45

Não, que tem a liberdade

seus amores neste dia,

e, temendo as iras dela,

se atormenta, se arrepela,

mas não fala a tirania.
50

Comece pois o festim,

e nas galas sem rival

entre as ledas comitivas,

impelido pelos vivas

rode o carro triunfal.
55

Saia à noite, que não há de

cobri-lo da noite o véu;

brandões hão de iluminá-lo,

de luzes hão de banhá-lo

os candelabros do céu!
60

Nele do dia dos livres

veja o formoso arrebol,

essa cabocla engraçada

que tem a face tostada

dos beijos que deu-lhe o sol!
65

E quando voltar dirão

com toda a gente os louvores,

o mar por canhões bradando,

os ares vivas troando,

a terra brotando flores!
70

Seja então tudo prazer,

tudo sonoras canções,

tudo banquete de bravos,

tudo remorsos de escravos

que inda desejam grilhões!
75

Eia, Baianos, raiar

vai na terra do Cruzeiro

esse dia tão jucundo,

que, apesar de ser segundo,

há de sempre ser primeiro.
80

Não deixeis despercebido

o rei dos dias passar,

mostrai que não sois escravos,

mostrai que o dia dos bravos

inda sabeis festejar.
85


Ao dia dos finados

Fragmento dos Túmulos

I

Um dia para os mortos, se é que o dia

    nos túmulos penetra.

entre tantos de riso um só de pranto

   seja sagrado às lousas

fechadas pela morte, e onde seu selo,
5

segunda morte grava o esquecimento.

II

Terra de mortos, deixa que pisem

os pés dos vivos, deixa; no teu reino

pedaços d'alma dos que vivem dormem.

   entre os círios funéreos
10

arde também amor, geme a saudade.

mãe extremosa, os restos seus recebes

quando do mundo inteiro abandonados

vêm no teu leito procurar descanso.

    O pai idolatrado
15

    a ti confia o órfão;

entrega-te seu filho a mãe querida;

   os irmãos, os amigos

seus irmãos, seus amigos, te entregaram:

Um dia, ao menos, querem vê-los: -Cede,
20

    pois tens tudo o que é seu.

III

    Um espírito único

desgraçado daquele que só teve

quando peregrinou por estes lares!

O triste foi um tronco sem raízes
25

que aos impulsos da sorte foi tombando.

Té que por fim caiu na eternidade.

    Nem há na espécie humana

infeliz tão bastardo da ventura,

que tão ermo ficasse sobre a terra.
30

É uma planta só a humanidade:

por mais extremo que lhe seja um ramo,

pela seiva comum é sustentado,

e a cicatriz, que fica se o decotam,

da vida que se foi narrando a perda,
35

da vida que ficou narra a saudade...

IV

Terra de mortos, deixa que dos vivos

as almas se dilatem; frias cinzas

animar-se não podem; mas são elas

quinas dos edifícios abatidos
40

que o espírito só a Deus conhecem.

Deixai-os divagar nessas ruínas,

que são domínios seus. -A terna ave,

a quem a companheira arrebataram,

deixa, ao menos, voar em torno ao ninho.
45

V

Podeis entrar, fiéis. -Que o pó do mundo

vos não venha nos pés. -Quando é da vida,

tudo estranho é aqui; a gala é óbito;

o banquete são preces: Deus reparte

o pão espiritual que o sacerdote
50

   prepara nos altares;

são convivas os mortos, que recebem

   também com ele

o sangue sacrossanto, que enfraquece

da punição o fogo. -Frágeis lágrimas,
55

ah! do mundo não são, tanto que o mundo

   não as quer nem conhece.

VI

Entremos... Mas... O nível dos sepulcros

não vejo aqui!!... Marmóreos monumentos

aqui, ali se erguem distinguindo
60

o pó do pó que a morte confundira.

Ilusão pueril! É cinzas tudo!

Só diverge a morada no aspecto:

Os donos são iguais.


Último canto do cisne

Quando eu morrer, não chorem minha morte,

entreguem meu corpo à sepultura;

pobre, sem pompas, sejam-lhe a mortalha

os andrajos que deu-me a desventura.

Não mintam ao sepulcro apresentando
5

um rico funeral d'aspecto nobre:

como agora a zombar me dizem vivo,

digam-me também morto -aí vai um pobre!

De amigos hipócritas não quero

públicas provas de afeição fingida;
10

deixem-me morto só, como deixaram-me

lutar contra a má sorte toda a vida.

Outros prantos não quero, que não sejam

esse pranto de fel amargurado

de minha companheira de infortúnios,
15

que me adora apesar de desgraçado.

O pranto, açucena de minh'alma,

do coração sincero, d'alma sã,

de um anjo que também sente meus males,

de uma virgem que adoro como irmã.
20

Tenho um jovem amigo, também quero

que junte em minha Essa os prantos seus

aos de um pobre ancião que perfilhou-me

quando a filha entregou-me aos pés de Deus

dos meus todos eu sei que terei preces,
25

saudades, lágrimas também;

que não tenho a lembrança de ofendê-los

e sei quanta amizade eles me têm.

E tranqüilo, meu Deus, a vós me entrego,

pecador de mil culpas carregado:
30

Mas os prantos dos meus perdão vos pedem,

e o muito que também tenho chorado.