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Uma pupila rica

Joaquim Manuel de Macedo

Nota Informativa: Uma pupila rica intitula-se comédia, mas é na verdade um drama sobre as tentativas de um tutor de apoderar-se da herança de sua protegida, casando-a com seu filho, mantendo a fortuna na família e assim evitando a falência. Mas o amor vai interferir nessa trama e atrapalhar esse casamento por interesse. Essa temática do rico herdeiro cuja herança é alvo da ambição de pessoas inescrupulosas é bastante comum na literatura e no teatro do século XIX, tendo sido inclusive abordada em 1845 na famosa comédia de Martins Pena, O noviço. Outras características do enredo -como a defesa dos interesses femininos e o anti-escravagismo- são também muito freqüentes na obra de Joaquim Manuel de Macedo.

A peça, embora completa e acabada, permaneceu inédita mesmo depois da sua morte em 1882. Isso provavelmente se deveu ao insucesso crítico de Antonica da Silva, seu último texto encenado em vida, de 1880, e do posterior recolhimento do autor em sua residência, ao que parece sofrendo de algum tipo de doença mental. Há no entanto uma certa confusão sobre a data em que foi escrita. A cópia existente na Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional é datada de 1840, onde é creditada ao dr. Manuel Joaquim de Macedo (?). Ora, existiu um Manuel Joaquim de Macedo, que não era doutor, mas maestro de profissão, sobrinho do nosso autor, para quem musicou algumas obras teatrais. Nesta data, no entanto, ainda não era nascido. O próprio Joaquim Manuel de Macedo em 1840 tinha apenas 20 anos de idade, e ainda não era formado em medicina (só vai sê-lo em 1844), portanto não podia se intitular doutor. Se fosse verdade, Uma pupila rica teria antecedido em quase uma década a sua estréia como autor teatral (O cego, 1849), e permanecido guardada por 42 anos, o que não parece verossímil, entre outras coisas pelo estilo maduro e comedido do texto, longe das brejeirices românticas de sua juventude.

Apesar dessa data equívoca estar bastante visível na primeira página da cópia manuscrita, tanto J. Galante de Souza (O teatro no Brasil, INL, 1960 e Machado de Assis e outros estudos, Ed. Cátedra/INL, 1979) quanto Tania Rebelo Costa Serra (Os dois Macedos/A luneta mágica do II Reinado, Fundação Biblioteca Nacional/DNL), os dois melhores estudiosos de Joaquim Manuel de Macedo, que confessadamente não leram a peça, a dataram de 1870. Esse outro erro, do qual os dois pesquisadores não são culpados, por sua vez originou-se de artigo de Artur Mota publicado na seção Perfis Acadêmicos da Revista da Academia Brasileira de Letrasnº 113, de maio de 1931, páginas 80/99. Nele é informado que os originais pertenceram ao extinto Instituto dos Bacharéis em Letras (1867-1875) e é feita a referência à cópia existente na Biblioteca Nacional. Embora Galante de Souza considerasse que Artur Mota «não merecia crédito total por não revelar suas fontes» (página 316 do já citadoO teatro no Brasil), reproduziu essa informação, por sua vez repetida no livro de Tania Rebelo Costa Serra.

Em 1995, Uma pupila rica foi pela primeira vez editada em co-edição da Prefeitura Municipal de Itaboraí, RJ (terra natal do escritor) com a Biblioteca Nacional. Foi nela que baseamos o nosso texto, que, por ter permanecido inédito, possui alguns lapsos e trechos de difícil entendimento, assinalados respectivamente como (sic) e ilegível. Outras pequenas falhas (troca de nome de personagens ou da numeração de cenas) foram corrigidas por notas de pé de página.

João Carlos Rodrigues.

Uma pupila rica

(Título original)

Comédia em 5 atos

por Dr. Manuel Joaquim de Macedo
1840
1 , 2

PERSONAGENS



TEODORA.
FIRMINO.
SUZANA.
PEREGRINO.
CRIADO.
TOMÁS.
CARLOS.
ESTEFÂNIA.
JÚLIA.
CORINA.
SILVIA.
TEÓFILO.
SIMÃO.
FORTUNATO.
ANDRÉ.

Sala de estudo e de trabalho de senhoras: duas portas ao fundo: ao lado direito uma porta ao fundo e janelas abrindo para o jardim: piano, harmônico ou harpa, músicas, mesa contendo frutas, papéis, álbum, estojos de desenho, bastidores ricos para bordados, grande espelho, mobília elegante e apropriada, ornamentos, quadros de trabalhos de seda e de flores, flores naturais e vasos.

Cena I

FIRMINO e TEODORA.

TEODORA.-Isso não... eu não posso deixar de convidar Estefânia: sei que o sobrinho tentou fazer ou mesmo fez a corte a Corina e sou capaz de jurar que a tia não foi estranha a isso; mas tua pupila repelia definitivamente a um, e eu te asseguro que hei de espantar a outra.

FIRMINO.-Todavia! conhecer-lhes as intenções e chamá-los para casa é o maior dos erros: bastam as visitas com que eles me importunam...

TEODORA.-Queres que eu rompa minhas relações com Estefânia?... digo-te que não vale a pena lembrar a pretensão já anulada de Fortunato... sabes, se também devo ter cuidado...

FIRMINO.-Bem. (Toma nota a lápis.) Vá mais d. Estefânia e seu sobrinho Fortunato. (Dobra o papel.) Dezoito convidados: não passo além.

TEODORA.-Por exceção valia a pena dar um baile: o filho do barão do Lago Azul se vaneceria do obséquio: asseguro-te que ele está cativo de Júlia.

FIRMINO.-Parece, mas começamos errando: embora Teófilo já tivesse uma vez encontrado Júlia em casa de tua irmã, devias quando esse mancebo te foi apresentado anteontem, limitar-te a oferecer-lhe a nossa amizade.

TEODORA.-Foi isso que fiz, já te disse vinte vezes; conheces porém a cabecinha de nossa filha: apenas minha irmã fez-lhe o presente da boneca, propôs logo o batizado, declarou-se madrinha, e convidou para padrinho Teófilo que aceitou encantado. Que poderia eu dizer?...

FIRMINO.-Júlia está muito adiantada! convém abrir-lhe os olhos, ou pelo contrário aconselhá-la a não abri-los tanto...

TEODORA.-Inocência de menina...

FIRMINO.-Inocência?... o batizado é pretexto para festa, e a boneca é chamariz de bonecas.

TEODORA.-Ainda bem que o boneco é filho de fazendeiro riquíssimo.

FIRMINO.-Sim, o partido é ótimo: todavia... tua irmã foi casada com um parente de Teófilo: foi ela quem deu a boneca a Júlia; a festa do tal batizado bem poderia ter sido determinada para sua casa... eu faria as despesas: depois convidaríamos Teófilo a jantar conosco...

TEODORA.-Isso não tem senso comum, Firmino; minha irmã é uma pobre paralítica, e somos nós que temos interesse em atrair o filho do barão do Lago Azul.

FIRMINO.-E só por esta razão cedi, mas vê bem que as reuniões e saraus em nossa casa por ora não possa convir-nos: Corina já fez 15 anos, e apesar do retiro em que a temos, é patente o cerco que lhe fazem: depois do dr. André de Araújo, conto mais dois pretendentes ao seu dote.

TEODORA.-Devias tê-la deixado presa no colégio até que ela se resolvesse.

FIRMINO.-No colégio até os quinze anos! Já estaria casada sem vontade própria, sem audiência minha, e sem licença do juiz dos órfãos.

TEODORA.-E por causa de Corina há um ano que suspendemos os nossos saraus! É preciso acabar com isso!

FIRMINO.-Maldita ambição dos homens! Se Corina não tivesse seus duzentos contos de réis, nem pensaria na minha pupila. Poucos a têm, e ela tem mais pretendentes do que Júlia: eu até desconfio de Teófilo...

TEODORA.-De quem a culpa? Desde alguns meses Corina podia estar casada com o meu Carlos, se não te obstinasses em querê-la para o filho da tua primeira mulher!

FIRMINO.-Recomeças, Teodora!...

TEODORA.-Sempre me fizeste a vontade; agora, porém, queres sacrificar meu filho à memória e ao amor da tua defunta: é porque sou muito menos amada do que ela o foi.

FIRMINO.-Reflete, Teodora: teu primeiro marido foi rico, e na herança paterna Carlos possui bom princípio de fortuna, o meu Peregrino não herdou um real de sua mãe e assim...

TEODORA.-Tenho eu culpa de que a tua defunta não tivesse onde cair morta? Há dezessete anos que o teu Peregrino gozou, não pouco, do que me deixou o pai de Carlos. Não basta?...

FIRMINO.-Neste assunto hei de resistir aos teus caprichos.

TEODORA.-E ainda há pouco falavas na maldita ambição!... Que tutor modelo és tu, Firmino!...

FIRMINO.-Principias a ofender-me!...

TEODORA.-Se me provocas!... Eu quero Corina casada com o meu Carlos!

FIRMINO.-Que inocente paixão por Corina!..

TEODORA.-É como a tua... melhor do que a tua!

FIRMINO.-Corina é minha pupila! Sou eu que tenho direitos sobre ela.

TEODORA.-Menos a de condená-la a ser desgraçada com teu filho, que só quer empolgar-lhe o dote...

FIRMINO.-Empolgar-lhe!... ah! mas se fosse Carlos... Teodora... isto não é decente... acabemos...

Cena II

FIRMINO, TEODORA e SUZANA.

SUZANA.-Não é decente, não: (Avançando.) os criados podem ouvir!

FIRMINO.-Tia Suzana!

SUZANA.-Acabo de voltar da igreja com a alma cheia de consolação, e, entrando em casa, acho logo um desgosto!... Por que não procuram a igreja, como eu?...

TEODORA.-Minha tia...

SUZANA.-Vocês viveram bem até hoje. Deus nosso Senhor estava nesta casa; que tentação maligna os expõe à perder a celeste graça?...

TEODORA.-Nós nos amamos, como antes, minha tia. Tivemos apenas arrufos sem conseqüência.

SUZANA.-Não, eu sei o que é. Desde algum tempo vocês disputam a miúdo, e nem sabem guardar a disputa para a hora e o lugar em que o sacrário dos esposos se fecha aos olhos e aos ouvidos da família. Essa indiscrição é o castigo da ira, como essa luta cruel em que estão, é o castigo de ambiciosa avareza.

FIRMINO.- (A TEODORA.) E esta? É bem feito: aturamo-la agora.

SUZANA.-Tenho-os ouvido por vezes... custara-me a confundi-los com a verdade... hoje não posso mais... o dever da consciência o manda: é por amor de vocês que vou falar...

TEODORA.- (A FIRMINO.) Tem paciência, ouçamos o sermão da santa velha.

SUZANA.-Meus filhos, uma órfã é criatura sagrada. Por isso mesmo que na terra perdeu seus pais, por isso mesmo que é raro o tutor que sabe servir de pai, ela é a filha mimosa do Pai do céu: das lágrimas da cruz, uma lágrima é a sagração da paternidade divina da órfã. Quem atormenta a órfã, flagela a Jesus.

TEODORA.-Que quer dizer, minha tia?...

SUZANA.-Corina é órfã e está marcada para vítima da ambição do ouro: sua vida se resume em duas palavras: -sofrer por ter.

FIRMINO.-Tia Suzana!

SUZANA.-É a verdade que devo fazer-lhes ouvir.

Corina é rica, e só porque é rica o tutor a quer para seu filho, a esposa do tutor a exige para o seu e discordes nesse antagonismo de ambições, conspiram de acordo contra a liberdade da órfã, premeditando o seu sacrifício...

FIRMINO.-Senhora!...

TEODORA.- (A FIRMINO.) Deixe-a falar; é inofensiva.

SUZANA.-A órfã vive enclausurada: Júlia vai ao teatro, aos bailes, aos passeios, e Corina fica sempre com a velha Suzana. Júlia canta, dança e toca na sociedade para atrair admiradores, e Corina não tem direito de ostentar as mesmas prendas que, aliás, possui; Júlia se mostra em toda a parte para ser desejada e amada, e Corina só por acaso chega à janela, mas sempre ao lado do seu tutor que lhe encadeia os olhos: vem-lhe do mal o bem, porque a órfã vive ao menos na ignorância das perversões do mundo, e em vez de ser mártir, se conserva anjo.

FIRMINO.-Conservava pois o meu zelo e os meus escrúpulos de tutor?...

SUZANA.-Desconfio de quem é mais escrupuloso como tutor, do que como pai. Bastava a Corina metade dos inocentes gozos de Júlia.

FIRMINO.-É portanto uma acusação?...

SUZANA.-Não acuso, apenas por amor de nós mesmos mostro o vosso pecado, e peço o arrependimento do tutor ambicioso. Corina é sonegada ao mundo para que não seja senão Peregrino e Carlos: o tutor e mulher do tutor enclausuram a órfã para obrigá-la a aceitar, a receber um de seus cativeiros como simulacro de liberdade. Meus filhos, eu juro pelos Santos Evangelhos, que vós ofendeis assim a lei da terra, e a santa religião daquele que morreu na cruz do Calvário...

TEODORA.-Minha tia, que idéias são essas?...

SUZANA.-Se estou em erro, peço humildemente perdão, mas eu tenho ouvido mais de uma vez a disputa do marido e da mulher, não sobre o merecimento, porém sobre o dote da órfã desejada para enriquecer os filhos... vejo na clausura da órfã a premeditação do sacrifício.... depois da clausura pressinto a violência.... tudo quanto a ambição inspira... talvez o crime.

FIRMINO.-Senhora!...

SUZANA.-A violência.... o crime.... meus filhos: eu não hei de ver a violência e o crime sem protestar contra eles. Era isto o que eu tinha a dizer... custou-me muito: perdoem-me, porque vos amo; mas arrependam-se, porque estão em pecado mortal.

FIRMINO.-Vá rezar o seu rosário, tia Suzana; vá...

SUZANA.-Vou: o meu rosário é a minha fortaleza, e com a inspiração do meu rosário hei de cumprir sempre o meu dever diante de Deus. Fiquem, se podem, na paz do Senhor.

(Vai-se.)

Cena III

FIRMINO e TEREZA3.

FIRMINO.-Quem esperaria por semelhante sermão de quaresma?... Tu és a culpada, Teodora, pois que nos comprometes ambos com imprudentes e importunas contestações.

TEODORA.-Acabemos de uma vez com elas: enquanto minha tia ralhava, eu refletia pois que nenhum de nós cede ao outro, deixemos a Carlos e a Peregrino o empenho de conquistar o coração de Corina e a esta o direito de escolher entre os dois.

FIRMINO.-Acho muito razoável esse alvitre.

TEODORA.-Ambos nos conservaremos absolutamente alheios à luta rival: nem tu apoiarás as pretensões de teu filho, nem eu as do meu.

FIRMINO.-Convenho; já deveríamos ter assim resolvido a questão.

TEODORA.-Em oito dias obrigaremos Corina a decidir-se por Carlos ou por Peregrino.

FIRMINO.-Perfeitamente.

TEODORA.-Eu te juro, sob minha palavra de honra, que serei em tudo fiel a este acordo.

FIRMINO.-Faço o mesmo juramento.

TEODORA.-Vês? Acabo sempre por concordar contigo: muito bem: agora mais duas palavras sobre o batizado da boneca: teimas em não querer que a reunião seja numerosa?

FIRMINO.-Um batizado de boneca é um passatempo tão juvenil que concedido à uma moça de dezesseis anos, só se tolera em família e em sociedade de íntimos amigos.

TEODORA.-É uma explicação; mas se Júlia exigir grande festa e baile?...

FIRMINO.-Júlia! Júlia! Tu a deitaste a perder...

TEODORA.-Sim... fui eu!... Mas se ela exigir?...

FIRMINO.-Oh! Não lhe digas que resumimos os convites; deixa que ela sonhe com o baile.

TEODORA.-Previno-te de que em caso de revolta direi a Júlia que se entenda contigo.

FIRMINO.-Não: é melhor iludi-la... Júlia é uma bonequinha... mas parece que a lembrança de Teófilo não lhe perturba o sono. (Consulta o relógio.) Dez horas da manhã!

TEODORA.-Vou ver se as duas meninas já se resolveram a amanhecer. (Vai-se.)

FIRMINO.- (Seguindo-a.)Até logo... saio; mas volto cedo.

Cena IV

FIRMINO e PEREGRINO.

FIRMINO.-Ah! Pensei que não estavas em casa.

PEREGRINO.-Entrei agora mesmo: vim pedir a meu pai que não esqueça o meu amigo Simão de Souza na lista dos seus convidados para o batizado da boneca de Júlia.

FIRMINO.-Simão de Souza... que espécie de interesse...

PEREGRINO.-Ele me protege em meus negócios: ainda há três dias adiantou-me dinheiro para comprar quatro escravos que logo vendi com seiscentos mil réis de lucro.

FIRMINO.-Ah! Eu sempre o tive por homem de bem... ultimamente festeja muito Teodora, quando a encontra no teatro ou no baile. Vou mandar convidá-lo...

PEREGRINO.-O convite o exultará: o meu amigo pensa também, como outros, a respeito de Corina...

FIRMINO.-Em Corina?... Onde a viu?...

PEREGRINO.-Não a viu ainda, mas tem conhecimento de seu dote...

FIRMINO.-Não pode ser convidado.

PEREGRINO.-Meu pai, Simão de Souza começa a envelhecer, é feio e rude. Não há risco em deixá-lo vir; mas dada a hipótese de que fosse feliz, eu que receio não vencer a indiferença glacial de Corina, teria a consolação de vinte por cento do dote da noiva.

FIRMINO.-Então ele te propôs?...

PEREGRINO.-Isso é casar-me com uma sobrinha que possui cerca de trinta apólices de conto de réis.

FIRMINO.-Convidarei em todo o caso o homem. (Vai à porta do interior.)

PEREGRINO.-Obrigado, meu pai.

FIRMINO.-Teodora está no segundo andar: escutas, trata com atividade de agradar a Corina: eu tenho de fingir-me neutro, chama ao teu partido a filha do teu padrinho, que gosta muito da minha pupila... eu já vou falar ao compadre: nada disso seria preciso se eu não tivesse oposição em casa... mas Carlos.

PEREGRINO.-Carlos não me incomoda: é um excelente mancebo, que estudou suas letras, agora passa a vida, freqüentando as galerias das câmaras, fazendo versos e lendo romances e poesias. Está arrufado comigo porque soube que eu negociava em escravos.

FIRMINO.-E que tem isso?...

PEREGRINO.-Carlos é um pobre e vão sonhador; há de proceder como eu quiser.

FIRMINO.-Sim... porém a mãe de Carlos...

PEREGRINO.-Minha madrasta... esposa do meu pai... eu a respeito e amo; todavia é mãe, e é raro que, julgando de seu filho, haja mãe que deixe de ser tola.

FIRMINO.- (Rindo.) Este Peregrino!... mas... já te disse o que queria... Teodora pode chegar... vai-te.

Cena V

FIRMINO, PEREGRINO, que se retira, CRIADO, que se retira, e logo TOMÁS Pereira.

CRIADO.-Osenhor Tomás Pereira.

FIRMINO.-Conduza-o para esta sala.

(Vai-se o CRIADO.)

PEREGRINO.-Meu pai, eu prevenirei ao meu amigo Simão de Souza...

FIRMINO.-Ele receberá o convite daqui a duas horas...

PEREGRINO.-Vossa mercê me dá dinheiro a ganhar... hoje comprei escravos. Não tenho reservas com meu pai: uma pupila rica é mina de ouro.... o caso é saber explorar a mina... (Vai-se.)

FIRMINO.- (A TOMÁS.) Sem cerimônia... o senhor é amigo da família. (Saúdam-se.) Sente-se... (Sentam-se.) por aqui a esta hora?

TOMÁS.-Dever de fiel corretor: vendi as três apólices melhor do que esperava: eis o dinheiro e a nota da transação. (Entrega.)

FIRMINO.- (Examinando o papel e o dinheiro.) Que diligência! Obrigado.

TOMÁS.-A minha visita ainda tem outro motivo... mas confidencial.

FIRMINO.-Pode falar, estamos sós.

TOMÁS.-Sou corretor, procurador, negociador, e quando proponho, não ofendo: franqueza, no seu lugar eu já tinha casado sua pupila; uma vez porém que o senhor o não quer fazer, digo-lhe que seria loucura rematada não ganhar licitamente algumas dezenas de contos, livrando-se do encargo da tutoria.

FIRMINO.-É uma nova, a terceira proposta que me vem fazer para casar Corina?...

TOMÁS.-Um negociante, boa firma, casa acreditada, moço elegante e honrado pede a mão da sua pupila; condição: vinte por cento do dote ao tutor, cinco por cento ao corretor, perpétuo segredo da transação. Que diz?

FIRMINO.-Que o Senhor me confunde com os tutores sem consciência e sem honra, com os traficantes que exploram em seu proveito um depósito sagrado.

TOMÁS.-Não se ofenda e ouça-me: recebi a confiança dos seus negócios, conheço a situação da sua casa e da sua fortuna: devo dizer-lhe que os seus recursos estão quase esgotados, e que a sua ruína será completa no fim de um ou de dois anos.

FIRMINO.-Ficar-me-á ilesa a probidade e tranqüila a consciência. Corina ainda é muito criança: quando estiver no caso de fazê-lo, escolherá livremente o seu noivo: o juiz dos órfãos aprovará esta minha disposição: estou satisfeito.

TOMÁS.-Sua alma sua palma: quer ser Catão, seja-o, há de, porém, em breve, dormir na esteira da pobreza.

FIRMINO.-Dormirei nela sono que muitos milionários não podem dormir em seus leitos dourados.

TOMÁS.-Senhor Firmino, sou seu amigo: abandone essas teorias poéticas, chegue-se à razão prática: veja em primeiro lugar se pode casar sua pupila com seu filho, ou ao menos casar com seu enteado... o dinheiro ficará em casa...

FIRMINO.-E o meu crédito atirado ao meio da rua...

TOMÁS.-Ao contrário, muito mais fortalecido pela presunção de maior base de capital: esta é que é a realidade; mas se escrupuliza, negocie o casamento da pupila rica em transação secreta, e peça a Deus que lhe dê mais duas ou três tutorias, como essa, para arranjo da vida.

FIRMINO.-Eu penso de modo inteiramente diverso: Não posso aceitar a sua proposta, e peço-lhe que não insista neste assunto.

TOMÁS.-Quando proponho, não ofendo, e também a negativa não me ofende: tomo tudo isto debaixo do ponto de vista mercantil: não faz conta, paciência: amigos como d'antes?

FIRMINO.-Certamente.

TOMÁS.-Cada vez o respeito e o lamento mais: o senhor é um homem do outro tempo... há de ser vítima da sua escrupulosa e exagerada probidade...

FIRMINO.-Por quem é... não me confunda...

TOMÁS.- (Levantando-se e tomando o choque.) Sou eu que saio confundido...

FIRMINO.-Saiamos juntos.

TOMÁS.-A companhia me exalta: reconheço-me por demônio ao lado de um santo.

FIRMINO.-Quer dizer de um tolo...

TOMÁS.-Ou isso.. salvo o respeito devido.

FIRMINO.-Vamos, senhor Tomás Pereira.

(Vão-se.)

Cena VI

TEODORA e CARLOS.

TEODORA.-Saíram enfim.

CARLOS.-Eu também vou sair... são quase onze horas...

TEODORA.-Carlos, eu esperava que teu padrasto nos deixasse em liberdade para te ocupar de questão muito séria.

CARLOS.-Mas hoje não posso perder a sessão do Senado: o ministério vai receber sova magistral... faz gosto ouvir os oradores da oposição...

TEODORA.-Se não fosse o Senado, inventarias outro motivo para ausentar-te...

CARLOS.-Com efeito... à tarde tenho sessão magna da Sociedade Filopoética.

TEODORA.-É sempre assim! eu te peço dez minutos ao menos...

CARLOS.- (Abrindo o relógio.) Dez minutos hoje, e amanhã o dia todo para minha mãe.

TEODORA.-Meu filho, tu me confessaste que amavas Corina, e eu abençoei esse amor da beleza e da virtude...

CARLOS.-Sim, minha mãe, eu amo Corina; mas infelizmente ela me parece um anjo amigalhado...

TEODORA.-Se a esqueces tanto! aposto que ainda não lhe confessaste o amor que lhe tributas...

CARLOS.-Ah! os meus olhos devem ter-lhe dito tanto!... E além dos meus olhos, já dez vezes tenho tentado declarar-lhe a minha paixão, mas...

TEODORA.-Acaba...

CARLOS.-Júlia me ridiculariza, e Corina põe-se a rir.

TEODORA.-Não deves falar-lhe de amor em presença de Júlia.

CARLOS.-Se uma nunca deixa a outra! Júlia é intolerável, minha mãe.

TEODORA.-Eu ralharei com ela; tu, porém, sê mais freqüente junto de Corina: tens boa voz... canta a miúdo com ela... mostra-te mais ocupado da sua pessoa...

CARLOS.-Ontem à noite escrevi-lhe um acróstico: ela há de lê-lo na Revista da Sociedade Filopoética.

TEODORA.-A poesia não basta... em regra as senhoras confiam pouco nos poetas...

CARLOS.-Mas eu não compreendo amor sem poesia e sem flores: ontem fiz versos a Corina, hoje hei de trazer-lhe um buquê de violetas, e amanhã dar-lhe-ei a ler o romance Paulo e Virgínia anotado por mim.

TEODORA.-Versos, flores, romances, dá-lhe tudo isso, Carlos, exalta-lhe a imaginação, mas sobretudo sê menos acanhado... menos... não sei como digo, menos contemplativo, e... meramente respeitoso, ama-a como homem deste mundo... as senhoras... as donzelas precisam parecer forçadas a ouvir... a amar... a conceder inocentes favores...

CARLOS.-Corina é um anjo.

TEODORA.-Os anjos da terra têm sempre na sua natureza alguma coisa de material. Carlos, eu quero que Corina seja tua esposa...

CARLOS.-Se eu merecer o seu amor espontâneo... flor do coração... isento de cálculos de família... livre... sem rigor, nem opressão... porque ela é rica... e eu não toleraria...

TEODORA.-Perfeitamente... oh! Quem se lembra de riqueza! Eu só penso na formosura e na virtude de Corina!

CARLOS.-Oh, muito bem, minha mãe!... Um amor poético!...

TEODORA.-Todavia, receio muito pelo teu amor e pela felicidade de Corina, se não fores mais diligente, mais fervoroso...

CARLOS.-Por que? Por que?...

TEODORA.-Segredo inviolável, meu filho: teu padrasto resolveu casar Corina com Peregrino...

CARLOS.-O mercador de escravos? Eu desconfiava disso: Peregrino compra e vende seus irmãos em Deus: é indigno de Corina...

TEODORA.-E o teu amor pode salvar a vítima...

CARLOS.-Corina esposa de um escravagista!... Minha mãe - hoje mesmo... (Ouve dar onze horas.) Ah, em vez de dez minutos, um quarto de hora... até logo...

TEODORA.- (Detendo-o pelo braço.) Escuta ainda...

CARLOS.-Não posso perder a sessão do Senado...

TEODORA.-Cinco minutos só...

CARLOS.-Já sei tudo! Há de ver como procederei...

TEODORA.-Ao menos vai buscar-me o acróstico que fizeste.

CARLOS.- (Tirando um papel do bolso.) Ei-lo aí... mas não o mostre a Corina:quero que ela o leia com surpresa na Revista da Sociedade Filopoética.

(Vai sair e encontra-se (sic) com ESTEFÂNIA.)

Cena VII

TEODORA, CARLOS, que logo se retira, ESTEFÂNIA.

ESTEFÂNIA.-Ah! Carlos, quase que me deste um abraço...

TEODORA.- (Indo a ESTEFÂNIA.) Estefânia!

CARLOS.-Desculpe: foi ardor parlamentar. (Beija a mão de ESTEFÂNIA.) Sinto não poder demorar-me. É a hora da sessão do Senado: vou a correr. (Vai-se.)

ESTEFÂNIA.-Carlos é um querubim; mas voa com excessivo ardor.

TEODORA.-Agradeço-te a prontidão com que acudiste ao meu chamado. Senta-te. (Sentam-se.)

ESTEFÂNIA.-Acho-te desassossegada...

TEODORA.-A minha luta com Firmino continua e se agrava.

ESTEFÂNIA.-No jogo da teima não há mulher que não ganhe a partida ao marido.

TEODORA.-Mas quando não é só o marido a vencer?... Até bem poucos dias, o que me preocupava era que essa teima de Firmino demorava o casamento de Carlos e que a demora podia aproveitar a algum astucioso e feliz pretendente de Corina.

ESTEFÂNIA.-Com efeito! Os especuladores são tantos!...

TEODORA.-Agora, porém, é o meu maldito enteado que me está ameaçando com as mais temíveis probabilidades da sua vitória...

ESTEFÂNIA.-Ora... Peregrino... Corina o trata com tanta indiferença...

TEODORA.-Tu és como minha irmã: a nossa amizade...

ESTEFÂNIA.-Começou no colégio... (Olhando em torno.) ninguém nos ouve: começou no Colégio há trinta e cinco anos.

TEODORA.-É por isso que me animo a dizer-te, pensando no meu pobre Carlos, o que aliás por lealdade também te diria, se teu sobrinho...

ESTEFÂNIA.-Não falemos em Fortunato: sabemos ambas que se ele um dia pôs-se a requestar dona Corina, soube esta desenganá-lo para sempre: além disso eu te comuniquei o projeto de casamento que formei desde muito para meu sobrinho.

TEODORA.-Eu me comprometi a auxiliar-te com todo o esforço nesse empenho. Creio até que tenho feito já alguma coisa.

ESTEFÂNIA.-Muito: e uma mão lava a outra: ocupemo-nos de Carlos.

TEODORA.-Vou confiar-te um segredo delicadíssimo e pedir-te um conselho.

ESTEFÂNIA.-O segredo ficará no coração; o conselho sairá da reflexão.

TEODORA.-Isto morre aqui: eu suspeitei... e enfim verifiquei que Peregrino... abusando da casa de seu pai... entretinha relações secretas... criminosas com a mísera Corina...

ESTEFÂNIA.-Oh!... É horrível!... Estás bem certa do que dizes?...

TEODORA.-Infelizmente é verdade.

ESTEFÂNIA.-Que escândalo! Mas então é caso julgado... pobre Carlos!

TEODORA.-Conforme...

ESTEFÂNIA.-Pois aí há conforme?... (Cravando os olhos em TEODORA.) Ah! Sim! Neste mundo tudo é conforme: eu também juraria que dona Corina detestava Peregrino e todavia.. mas.. conforme o que?...

TEODORA.-Corina é ainda no seu erro tão inocente como tola, e por felicidade no colégio a tornaram fanática: há quatro dias que tive a certeza do seu opróbrio e não tardei em recorrer aos bons ofícios de minha religiosa tia, e a boa da velha reteirou o demônio com tanta eloquência que a triste menina malvadamente enganada, apenas agora compreende o que fez, e abomina Peregrino com sentimento de horror.

ESTEFÂNIA.- (Sorrindo.) É um pouco inverossímil: eu, no teu caso, desconfiava.

TEODORA.-A tia Suzana assegura o arrependimento de Corina, que parece ter sido vítima de sua rude ignorância a certos respeitos...

ESTEFÂNIA.-Mas o diabo não sai tão facilmente do corpo, em que conseguiu uma vez entrar.

TEODORA.-Julgas que estou sossegada? eu passo as noites velando: temo da influência fatal adquirida por Peregrino... tenho medo de que amanhã, ou em outro dia, Eva de novo atenda à serpente... mas dada a hipótese do arrependimento sincero e essa ignorância do mal que se praticava...

ESTEFÂNIA.-Entendo... (Sorrindo.) dada a hipótese...

TEODORA.-Nestas circunstâncias devo ainda pensar em Corina para esposa de meu filho?... tenho escrúpulos: aconselha-me.

ESTEFÂNIA.-Tanta inocência da alma obriga a esquecer em dona Corina o erro que foi só da ignorância: não refletes assim?...

TEODORA.-Confesso que penso desse modo. Sê franca: faço bem em insistir no casamento de Corina com o meu Carlos?...

ESTEFÂNIA.-Fazes... fazes...

TEODORA.-Dizes isso em um tom...

ESTEFÂNIA.-De quem se admira da hesitação: dona Corina não é só moça bonita... é meio milhão. Teima.

TEODORA.-Tu me resolves; mas em tal caso preciso do teu concurso. Corina é muito amiga tua; quero que patrocines a causa de Carlos.

ESTEFÂNIA.-Como se ele fosse meu filho: hei de fazer prodígios. Verás.

TEODORA.- (Apertando-lhe a mão.) Minha Estefânia!...

ESTEFÂNIA.-Carlos ainda não conseguiu tocar o coração de dona Corina?...

TEODORA.-Tem perdido o seu tempo em êxtases poéticos: o inocente bate à porta daquele coração a compassos diversos.

ESTEFÂNIA.-Com uma menina de quinze anos os versos tem seu lugar.

TEODORA.-A propósito: aqui está um acróstico do nosso poeta.

ESTEFÂNIA.-Lê.

TEODORA.-

(Lendo.)

A voz do coração, voz que é gemido

Mudo enleio que a fala tolhe e prende

O terno olhar nos olhos teus perdido,

Culto de fogo ao Sol que o fogo acende;

O receio, a esperança, a queixa, o medo

Rompendo d'alma que a teus pés se rende

Inda trêmulos n'alma em segredo

No poético ardil que amor socorre,

Amor de quem por merecer se morre.


(Voltando o papel e lendo.) As iniciais dos versos dizem: «Amo Corina», na verdade é bonito! Não achas bonito?...

ESTEFÂNIA.-Melhor do que isso, declaração em regra.

TEODORA.-E os versos trazem a assinatura de Carlos: é positivo!... Que talento o de meu filho!...

ESTEFÂNIA.-Cantarei como sereia aos ouvidos de dona Corina.

TEODORA.-Minha amiga, minha irmã!

ESTEFÂNIA.-Agora volto para receber a minha modista que talvez me esteja esperando... (Em pé.)

TEODORA.-Oque eu disse relativamente a Corina...

ESTEFÂNIA.-Sepultou-se aqui. (Aponta para o coração.)

TEODORA.-Confio em ti. (Abraça-a.) Sê mãe de Carlos.

ESTEFÂNIA.-Tenho medo de adorá-lo demais.

(Beijam-se. ESTEFÂNIA sai.)

Cena VIII

TEODORA e logo CARLOS.

(TEODORA acompanha ESTEFÂNIA até a porta: volta; relê para si os versos, sorri, vai à mesa escolhe um álbum, gruda com goma arábica que haverá em um vidro competente, o papel dos versos em uma das folhas do álbum e desfolha uma rosa na mesma página.)

CARLOS.- (Entrando.) Não houve sessão no Senado por falta de quorum. (Vendo TEODORA junto da mesa.) Que faz, minha mãe?... (Começa o canto dentro.)

TEODORA.-Silêncio! Júlia e Corina vão entrar.

JÚLIA.- (Cantando dentro e até o fim.)

Di

CARLOS.- (Continua o canto.) O meu acróstico!...

TEODORA.-Silêncio.

(Cai o pano durante o canto.)

FIM DO 1º ATO

A mesma cena do 1º ato.

Cena I

JÚLIA e CORINA.

JÚLIA.- (Deixando a janela.) Minha mãe está no jardim conversando com o seu poeta.

CORINA.- (Entrando.) Vou buscar a tua boneca...

JÚLIA.-Para que?...

CORINA.-Far-lhe-emos um vestido rico... todo de gaze branco e rendas.

JÚLIA.-Ora! na nossa idade brincar com bonecas?...

CORINA.-Mas então o batizado...

JÚLIA.-Não vês que foi pretexto para te dar um baile?...

CORINA.-Ah! a mim ou ao padrinho?

JÚLIA.-Em todo caso ganhas...

CORINA.-Que faremos esta manhã?

JÚLIA.-Tudo e nada: por exemplo, olhar-nos ao espelho. Vem cá... (Defronte do espelho.)

CORINA.-Para que isto?... (Indo para o espelho.)

JÚLIA.-Somos ambas bem bonitas!

CORINA.-Me parece...

JÚLIA.-Tipos diferentes; ambos porém igualmente lindos.

CORINA.-Eu menos...

JÚLIA.-Tu menos? Suponhamos! Como é então...

CORINA.-O que?

JÚLIA.- (Deixando o espelho.) Vamos fazer um jogo?... (Vai buscar um baralho de cartas, que devem ser muito friqnos (sic).) Queres ver?... Tu és a dama de ouros, eu sou a que aparecer primeiro. (Corre as cartas.) A de espadas. (Baralha.) Quem vence?...

CORINA.-Tu com as espadas...

JÚLIA.-Sim? E tu com o ouro? Vejamos a quem saem os condes4. (Vai deitando as cartas a uma e outra dama.) Aí tens: saiu para ti o de paus... também o de espadas. (Larga as cartas.) Não quero mais... Entendes isto?... (À frente da mesa.)

CORINA.-Eu não: é acaso.

JÚLIA.-Isto quer dizer que me é preciso que te cases... solteira, tu me fazes perder no jogo dos condes.

CORINA.-Estás doida?

JÚLIA.-Eu?... Escuta: desde alguns meses que sinto a verdade: o sobrinho de d. Estefânia fazia-me a corte, e de súbito mudou de rumo, e é a ti que rende finezas, quando a tia nos visita. Pouco me importa... não deixou saudades...

CORINA.-E eu por ventura o animo?

JÚLIA.-É outra questão: o moço que costuma passar a tarde em faetonte5, esquecia os olhos em mim; mas depois ou fica vesgo, ou é só para ti que olha, quando por acaso te deixam ir à janela...

CORINA.-E se ele soubesse como o acho horrível!...

JÚLIA.-É outra questão, já disse. Nos bailes, aos quais meu pai não te quer levar, é certo que os moços me cumprimentam; mas as tias, as mães e as irmãs armam-me tais laços para informar-se de ti, que evidentemente elas te prefeririam para os sobrinhos, para os filhos e os irmãos.

CORINA.-Ainda bem que o padrinho da boneca te ama.

JÚLIA.-Veremos: já esperei mais. Também ele perguntou-me por ti. Desconfio da curiosidade.

CORINA.-Podes esperar tudo... eu te juro.

JÚLIA.-Não podes jurar o que não sabes. Uma experiência; vejamos: (Vai buscar uma flor e tira as pétalas.) Sim... não, sim... não... (Até o fim.) não! Estás vendo? Exijo que te cases.

CORINA.-Acabarás por aborrecer-me, Júlia!

JÚLIA.-Eu? Se tu me fazes conhecer os homens!... Amo-te! Tu és o fogo em que provo a minha prata: se Teófilo for casquinha, boa viagem! (Indo ao piano.) Vamos ensaiar um dueto?

CORINA.-Com que fim? O senhor Firmino não consente que eu cante em sociedade.

JÚLIA.-Mas se eu quiser...

CORINA.-Prefiro que não queiras.

JÚLIA.-Tu te resignas demais: eu no teu lugar me revoltava, (Abrindo o relógio.) onze horas e três quartos... que dia comprido!... (Boceja.) Ah! É verdade: a outra questão. Corina, tu tens o coração encouraçado?...

CORINA.-Que pergunta, Júlia!

JÚLIA.-Ainda não amas? Porém é indispensável que ames... digo-te que me é preciso que te cases... perde esse coração uma vez, Corina! Ah, eu tenho perdido o meu tantas vezes!... (Rindo-se.) Ainda bem que ele foge e volta, vai e vem, como passarinho acostumado à gaiola!

VOZ DE MULHER.- (Dentro.) Uma esmola à pobre velha pelo amor de Deus!...

CORINA.-Ah! É a voz da minha pobre! (Querendo ir.)

Cena II

JÚLIA, CORINA, TEODORA e CARLOS.

TEODORA.-Menina, já lhe temos dito que não deve ir sozinha dar esmola à sua pobre: venha comigo...

CORINA.-Perdoe-me... não tornarei a ir só...

(Vão-se as duas e voltam.)

CARLOS.-Isto é contra o preceito do Evangelho: a esmola da caridade não deve ter testemunhas; o segredo é a santa poesia da esmola: também o segredo, o mistério é quase sempre poético; não acha?...

JÚLIA.-Acho tudo quanto quiseres, menos somente uma coisa.

CARLOS.-Oque?...

JÚLIA.-Oteu juízo, de que ninguém me dá notícias.

(Voltam as duas.)

CARLOS.-Minha mãe, Júlia começa a provocar-me...

TEODORA.-É uma estouvada: eu te livro dela; vem comigo, Júlia; tenho que dizer-te. (Vai-se.)

JÚLIA.- (Beliscando CORINA.) Gare aux vers!

Cena III

CORINA e CARLOS.

CARLOS.-Ela nem sabe falar o francês, e quer fazer calembour!...

CORINA.-Não admira, aqui estou eu que ignoro até o português.

CARLOS.-Se eu não a conhecesse tão instruída, chegaria a suspeitá-lo; porque a senhora finge não entender...

CORINA.-O que?

CARLOS.-O meu penar cruel...

CORINA.-Então está doente?...

CARLOS.-Do coração, bela Corina.

CORINA.-Isso é grave: deve quanto antes consultar os médicos.

CARLOS.-Porque zomba de mim?... Que fez do buquê de violetas que lhe ofereci?

CORINA.-Pu-lo de molho por amor das violetas.

CARLOS.-Essas flores nada lhe disseram?

CORINA.-As flores?... Flores falando! Senhor Carlos...

CARLOS.-Isto desespera! Porque assim me trata? Tanta impiedade quando me rendo a seus pés?... Um desengano, é apenas sentença que infelicita; mas o escárnio é injúria bárbara. Uma vez ao menos falemos seriamente...

CORINA.-Se o assunto for sério...

CARLOS.-Não pode sê-lo mais: ouça e decida. A minha alma vai falar, e a minha vida concentrar-se nos meus lábios: o amor em que se abrasa o meu coração é puro, como o fogo dos seus olhos, amo-a como Petrarca amou a Laura, Lamartine a Graziella, Gonzaga, ou antes Dirceu à Marilia! (CORINA ri.) Por quem é não ria-se... tudo o que quiser, menos rir assim. Eu a adoro... adoro-a nos meus sonhos... adoro-a nas minhas tormentosas vigílias... de dia a minha alma é seu altar... de noite... (CORINA põe-se a rir.) podes fazer-me o favor de não rir?...

CORINA.-Mas é impossível conter-me! (Rindo ainda.)

CARLOS.-Oh! A senhora ri enquanto o meu coração se afoga em pranto envenenado! Nós devíamos ser como duas flores que o almo sopro de amor aproximasse; mas a estrela do céu não vê o verme da terra que a namora, como diz Victor Hugo! (CORINA desatando a rir, leva o lenço à boca.) Oh! O rir aqui é inteiramente fora de propósito!...

CORINA.-Mas o senhor tinha dito que ia falar seriamente...

CARLOS.-E que há de mais sério que este amor poético, arrebatador, vulcânico... (CORINA ri.) e a senhora a rir! Aí está uma coisa com que dou o cavaco! Desengane-me, se quiser, mas não ria-se... não ria-se...

CORINA.-Senhor Carlos... eu o estimo muito... faço justiça aos seus sentimentos... mas, tornando ao sério... (Desata a rir.)

CARLOS.-Basta de rir: dona Corina, além do terno interesse do meu amor, eu quero, posso e devo livrá-la do mais horrível naufrágio...

CORINA.-Oh! não se exponha por mim... deixe-me naufragar.

CARLOS.-Peço-lhe a mão de esposa... o marido será um escravo, o meu amor será culto a divindade... Corina a minha Eva sem o pecado... eu, o Adão, inocente, vivendo em êxtase de amor puro... (CORINA desata a rir.) ora... assim não se pode... a senhora a rir... e a rir... e a rir... em vez de rir diga de uma vez - sim ou não?...

CORINA.-Senhor Carlos... eu... (Desata a rir.) perdoe-me... (Rindo.) eu... sou assim... rio-me de tudo... (Rindo.)

CARLOS.-É de matar! Há risos mais frios que o gelo, mas faça-me o favor de não continuar a rir, minha senhora!...

Cena IV

CORINA, CARLOS, TEREZA6 e JÚLIA.

TEODORA.-Conversaram?... O que?...

CORINA.-Osenhor Carlos falava-me sobre flores e poesia.

TEODORA.-É incorrigível... jurou viver respirando perfumes e amando os anjos... mania de poeta... mas parece que também revolveram músicas... (Chegando-se à mesa.) e junto das músicas o álbum de Corina que também o examinaram... (Toma o álbum e abre-o.)

CORINA.-Nem sequer olhamos para ele...

TEODORA.-Oh! folhas de rosas... versos de Carlos... (Fingindo ler.)

CORINA.-Isto é novo para mim... (A CARLOS.) o sr. não podia escrever no meu álbum sem a minha permissão...

CARLOS.-Eu?... minha mãe... esse acróstico...

TEODORA.-Amo Corina!... que quer dizer isto? Reprovo severamente o proceder de ambos: menina, eu me oponho a semelhante amor... proíbo, condeno esta afeição!...

CORINA.-Juro que foi um abuso de seu filho!... (Quase a chorar.)

CARLOS.-Abuso!... E esta?... Minha mãe... isto é demais...

TEODORA.-Silêncio, senhor! (A CORINA.). Ordeno-lhe que nem olhe para meu filho! Não quero que o ame... (A CARLOS.) Não quero que a ame... ouviram?... Não quero...

CARLOS.-Preciso explicar-me... não direi quem foi... mas eu não fui...

TEODORA.-Basta! Venha comigo, senhor. (Leva CARLOS pela mão.) Júlia, espera-me: vou tomar o chapéu.

Cena V

CORINA e JÚLIA.

CORINA.-Que indigno proceder: querem talvez comprometer-me! (A JÚLIA que está lendo os versos.) Deixa-me rasgar essa folha do álbum...

JÚLIA.-Por que?... O pobre Carlos não merece tal castigo...

CORINA.-Mas o abuso... o desrespeito... a ousadia...

JÚLIA.-Tens a certeza de que foi ele quem colou os versos no álbum?

CORINA.-Júlia!

JÚLIA.- (Indo à porta e voltando.) Psiu! Aposto que isto é travessura de minha mãe... ela se empenha em casar-te com Carlos: (Olhando.) eu já estou no segundo... se quiseres conta comigo.

CORINA.-É para enlouquecer-me...

JÚLIA.-É; porque também meu pai te destina para Peregrino.

CORINA.-Sei tudo isso, há muito!...

JÚLIA.-Então não enlouqueces mais: (Olhando.) todavia as exigências vão ser mais fortes... nota: minha mãe já te ordenou que não amasses a Carlos de propósito para te provocar a contrariá-la...

CORINA.-Oh, como é lamentável ser rica!

JÚLIA.-Que tola!... Eu trocava a tua sorte pela minha...

CORINA.-Tu?... Oh, sabes tu o que é não ter mais na terra pai nem mãe?...

JÚLIA.- (Comovida.) Corina!... Perdôo-a... eu não trocava, não... mas tens ao menos em mim uma irmã... e doravante...

CORINA.-Chegam. (Vai cortar a folha do álbum e dobrá-la.)

JÚLIA.-Como se rasga um coração em uma folha de papel! Coitado de Carlos!

Cena VI

CORINA, JÚLIA, TEODORA, e depois CARLOS e SILVIA.

TEODORA.-Júlia, vamos: (A CORINA.) menina; voltaremos antes de duas horas... esqueçamos o que se passou a pouco...

CORINA.-Mas o sr. Carlos terá a bondade de guardar, se quiser, os seus versos... (Entrega a folha do álbum.)

CARLOS.- (Recebendo.) Eu quero restabelecer os fatos... protesto que...

TEODORA.-Agora não; vamos sair: (A CORINA.) a tia Suzana já está prevenida para fazer companhia a senhora. (Com voz ressentida.) Silvia! Irás dizer a tia Suzana que já saímos. (A CARLOS.) Vem... (Toma-lhe o braço.)

JÚLIA.-Adeus, Corina, até logo (Abraça-a e beija-a.)

CARLOS.-Isto não fica assim... eu explicarei os fatos, ainda que seja em outra poesia.

(Vão-se os três: SILVIA segue.)

Cena VII

CORINA, em pé e meditando. SILVIA volta logo. PEREGRINO que com expressiva mímica e falando em segredo à porta, recomenda que demore o chamado de SUZANA: SILVIA ri e acode: PEREGRINO espera à porta.

SILVIA.-Vou chamar a sr.ª d. Suzana..

CORINA.- (Sem olhar.) Você.

(Vai-se SILVIA que olha e ri para PEREGRINO.)

PEREGRINO.- (Depois de um momento.) Ah! D. Corina...

CORINA.- (Voltando-se.) Senhor Peregrino...

PEREGRINO.-Eu procurava meu pai...

CORINA.-Creio que não está em casa.

PEREGRINO.-Perdoe se penetrei até aqui, estando a senhora só: minha madrasta saiu também com Júlia e Carlos..., porque não a levaram?...

CORINA.-Porque sou demais: não sei outra razão.

PEREGRINO.-Pode haver outra: os tesouros mais preciosos guardam-se, escondem-se com avareza.

CORINA.-É portanto uma desgraça ser tesouro precioso.

PEREGRINO.-Deixa transpirar uma queixa bem fundada: o seu viver assim é triste, já o disse a meu pai; ele porém julga um dever não expô-la às seduções e aos laços de infames exploradores da inocência e da confiança cega das donzelas ricas.

CORINA.-Reconheço a bondade e os cuidados do meu tutor; nem me lastimo... distraio-me tanto neste meu enclausuramento... nunca estou só... tenho o piano, o estojo do desenho... a lã e a seda com que bordo. Sou tão feliz... (Vai tocar.)

PEREGRINO.-Não: a influência desses vis exploradores é fatal, porque é um perigo para a moça rica, e desanima o amor leal e honesto que teme ser confundido com as fingidas e interesseiras afeições: não pensa como eu?...

CORINA.-Desculpe-me: ocupada com a música, fui incivil ao ponto de não ouvir o que me dizia. Não tocarei mais. (Deixa o piano e vai sentar-se à mesa.)

PEREGRINO.-Eu maldizia àqueles que simulam amor, adorando só a riqueza, e maldigo pelo que sinto: maldigo porque me tenho condenado a fechar até hoje no coração o mais puro amor pelo receio de uma suspeita que ofenderia a delicadeza dos meus sentimentos.

CORINA.-Ah! agora ouvi mas ainda arriscando-me a parecer-lhe néscia... confesso que não entendo. (Desenha.)

PEREGRINO.-Quer que eu fale bem claro?... Eu amo e me contenho à força: a donzela que amo é rica e mil ambiciosos a desejam sem ao menos tê-la visto, a querem por esposa sem a conhecerem... e eu que a vejo todos os dias... que aprecio o valor da sua virtude... que me sinto cativo dos seus encantos... ver que me julgo capaz de faze-la feliz... ainda não ousei, e, apenas agora, deixo escapar a primeira e incompleta confissão do amor mais ardente e santo!

CORINA.-Quem é que diz... ora... o desenho é como o piano... eu estava distraída... não ouvi: perdoe-me.

PEREGRINO.-D. Corina... eu lho peço... esqueça o piano e o desenho... não me confunda com distrações que se me afiguram desprezos cruéis...

CORINA.- (Levantando-se.) Oh, não!... Eu não desprezo pessoa alguma, ainda menos o filho do meu tutor; mas em verdade não sei o que me dizia...

PEREGRINO.-Agora pois não toca, nem desenha: ouvir-me-á, eu a espero: estamos sós... o momento é oportuno... receba a declaração sincera do segredo mais terno...

CORINA.-Espere: o senhor disse que o momento é oportuno, porque estamos sós; portanto se seu pai e sua madrasta estivessem presentes, não diria o que pretende...

PEREGRINO.-Oh! É a confissão de um sentimento irresistível cheio de celeste fogo, que só à senhora devo revelar!

CORINA.-É pena; mas seu pai me proibiu confidências desta natureza: decididamente só na presença dele e de sua madrasta é que poderei ouvi-lo.

PEREGRINO.-Ah! D. Corina!... quer dizer que me autoriza...

CORINA.-Não... autorizar não; eu não posso autorizar o que não compreendo... toquei piano e desenhei enquanto o sr. falava... e não entendi coisa alguma...

PEREGRINO.-Mas depois não tocou, nem desenhou, e eu falei com tanta clareza, que somente não rasguei o véu do respeito.

CORINA.-Então é que eu sou tão tola que nem compreendo as coisas mais claras e simples...

PEREGRINO.-Oh, pois que se finge ignorar, não deve negar-se a ouvir a explicação mais completa...

CORINA.-A sós, como estamos? Deus me livre: seu pai mo proibiu...

PEREGRINO.-D. Corina!...

CORINA.-Ah! Sinto os passos da tia Suzana: na presença dela sim, o senhor pode explicar-me tudo...

PEREGRINO.-Não... agora não... tenho pressa... peço-lhe até por favor, que não refira a tia Suzana o que eu lhe dizia... (Saindo.)

CORINA.-Ainda que eu quisesse, não poderia fazê-lo: pode crer que não entendi nada.

(Seguindo-o dois passos. Vai a PEREGRINO.)

Cena VIII

CORINA e SUZANA.

SUZANA.-Que foi que não entendeste, menina?

CORINA.-O que sou obrigada a ouvir e a entender todos os dias.

SUZANA.-Então finges e simulas; mas no fingimento há malícia: a candura é que é agradável ao Senhor. (Senta-se.)

CORINA.-Guardo a franqueza só para a confiança: vivo nesta casa há um ano e ainda não fui fingida com a tia Suzana.

SUZANA.-Creio-te Corina; mas na tua idade que é a das expansões!...

CORINA.-Expansões?... Tive-as, enquanto meu pai viveu; aos dez anos porém, pobre órfã, presa no colégio, o que logo me ensinaram, foi a desconfiar de todos: falavam-me de minha riqueza e de mil perigos que me cercaram: por ordem de meu tutor acompanhava-me sempre uma espionagem suspeitosa e ainda mais nociva por ser mais de ostentação do que de vigilante cuidado: fizeram-me adivinhar o mal e ter medo do mundo...

SUZANA.-Não exageras?...

CORINA.-Afetaram disputar-me o ar, a liberdade, os vôos de menina nas horas de recreio: menina, fui passarinho com as asas cortadas, vendo o espaço e sem poder voar, pareciam vigiar-me de dia e de noite com apreensões sinistras: tudo isso me aterrorizava, mas também me fazia crer que me achava defendida e livre de qualquer traição: todavia um dos meus professores teve tempo para tentar seduzir-me, e uma das alunas do colégio atormentar-me com o amor de um seu irmão que se propunha a raptar-me.

SUZANA.-Que horror!... Coitadinha...

CORINA.-Aos quatorze anos vim esperançosa para a casa do meu tutor, mas bem depressa tive de chorar pelo meu colégio! Aqui a prisão chega a ser cruel: a tia Suzana sabe como o sr. Firmino e sua esposa conspiram contra os direitos do meu coração, cada qual de seu lado, e no interesse material de seus filhos!

SUZANA.-Tens razão...

CORINA.-Não consentem que eu tenha uma amiga, nem que eu desça sozinha ao jardim, nem que saia uma vez de casa, ao menos para levarem-me à igreja: despediram a minha ama-de-leite que meu pai libertara com a condição de acompanhar-me até o meu casamento: enclausurada e suspeita, as criadas espiam-me, a minha escrivaninha é a miúdo revolvida (sic): sofro injusta opressão... e sinto-me ameaçada pela prepotência e... oh, tia Suzana... chego a temer o crime...

SUZANA.-Pobre menina! Tem paciência, espera.

CORINA.-Sim, espero; mas sem mãe, sem pai, educada na desconfiança, no medo, nos sofrimentos e nas aflições, de cinco anos de orfandade, sou o que me fizeram ser, sou fingida, e espero, sim espero, escudando-me com o fingimento.

SUZANA.-Era mais nobre ser franca, mas deveras nunca fingiste para enganar-me.

CORINA.-Nunca, porque a tia Suzana desde o primeiro dia em que me falou, falou-me a linguagem que em pequenina eu ouvi da minha mãe.

SUZANA.-Obrigada... podes confiar na velha Suzana...

CORINA.-Com o coração todo aberto e os seus olhos, como eu o abria aos olhos de minha mãe...

SUZANA.-Mas... se nela guardasses um segredo...

CORINA.-Seria seu... e sem reservas. Até hoje a tia Suzana é o único seio leal e amigo que tem acolhido e consolado a triste órfã!...

SUZANA.-Órfã!... Órfã!... Não me chamarás em vão tua mãe!... Serás minha filha. (Abraça-a.)

VOZ DE MULHER.- (Dentro.)Uma esmola à pobre velha pelo amor de Deus!

CORINA.- (Estremece.) Oh, é a minha pobre! Posso ir dar-lhe esmola?

SUZANA.-Vai... vai... e abençoada sejas, porque estendes a mão da caridade ao pobre!

(CORINA vai-se pela porta do jardim: SUZANA levanta-se e a segue, abençoando-a, risonha; mas recua da porta e vem sentar-se triste.)

CORINA.- (Voltando alegre.) Já se foi.

SUZANA.-Os outros pobres esmolam à escada da frente, como é que esta vem até aqui, entrando pelo jardim?

CORINA.-Pedi e obtive que lhe permitissem isso: é a minha pobre.

SUZANA.-Ah, e tu trazes sempre dinheiro contigo? (Silêncio e confusão de CORINA.) Tinhas dinheiro, Corina?

CORINA.- (Abrindo os olhos.) Não... tia Suzana... não tinha...

SUZANA.-Então!... o que deste à tua pobre?...

CORINA.-Eu não dei... recebi... tia Suzana... recebi uma carta do homem que amo, e com quem espero casar. Ei-la aqui. (Mostra.)

SUZANA.-Um grave erro, menina! Tu mesma sentiste que procedeste mal, pois certamente correste, recebendo essa carta. Mas... eu tinha um peso sobre o coração... tiras-te-mo; por que não mentiste.

CORINA.-E eu lhe digo tudo: o dr. André de Araújo ama-me...

SUZANA.-Doutor André de Araújo?... Não conheço: onde viste esse doutor?...

CORINA.-Outrora na casa de meu pai: nossas famílias eram amigas. Dez anos mais velho que eu, André muitas vezes carregou-me em seus braços, e quando me achei mais crescida, ele me dava bonecas e flores... foi no tempo em que eu era anjo... no tempo da felicidade e dos risos... depois...

SUZANA.-Depois?...

CORINA.-Meu pai morreu: vi ainda uma vez André na hora terrível do saimento para o enterro... ele chorava também, e chegando-se a mim, beijou-me a fronte... sinto ainda esse beijo, e na minha face uma lágrima que lhe caiu!... Separamo-nos; há dois anos, porém, André levou para o meu colégio uma sobrinha, viu-me, reconheceu-me, saudou-me com ternura melancólica, e eu não pude saudá-lo, porque desatei a chorar, lembrando-me de meu pai: depois... tornamos a ver-nos uma... dez... vinte vezes... e pouco a pouco... ah, tia Suzana não sei como foi... nós nos amamos.

SUZANA.-E por que não vem ele pedir-te em casamento?...

CORINA.-Há dois meses que o fez, e meu tutor o repeliu.

SUZANA.-Talvez não seja digno de ti.

CORINA.-André?... Eu ouvi o que diziam dele no meu colégio: é a virtude, a bondade e a ciência entesouradas em um homem a quem não seduz a minha fortuna, pois é mais rico do que eu, e desconhece a avareza por brilha (sic) pela caridade.

SUZANA.-Que entusiasmo! E que te diz ele em suas cartas?...

CORINA.-Pede-me que o ame e espere; e que respeite o meu tutor. Confesso: propus-lhe que apelasse para a autoridade e que me arrancasse deste meu cativeiro.

SUZANA.-E ele?

CORINA.-Condenou esse recurso que provoca o ruído público, mas assegurou-me que em caso extremo não hesitará...

SUZANA.-E que mais...

CORINA.-É tudo: confiar-lhe-ei todas as suas cartas. Quer ler esta que ainda não abri?...

SUZANA.-Quero antes de tudo que me prometas não receber outra.

CORINA.-Oh, e que será de mim?...

SUZANA.-Sairei em breve a informar-me sobre o doutor André. Se ele for honrado e virtuoso, como o acreditas, a velha Suzana tem uma missão a cumprir, protegerá o amor da órfã, o amor de sua filha em nome de Deus.

CORINA.-E meu tutor? E sua esposa?... E Peregrino e Carlos?...

SUZANA.-Falei-te em Deus: como podes temer os homens?... Se o teu amor é puro, os anjos o abençoam; se és vítima de opressão e se a violência te ameaça, levanta os olhos para o céu: tem fé!...

CORINA.-Esperança e fé, meu Deus!... (De joelhos.)

SUZANA.-Reza! A oração é já em si uma graça, porque na oração falamos ao Senhor. Corina, reza à virgem mãe de Jesus que é a protetora e a mãe sagrada das órfãs...

CORINA.- (Começando a rezar.) Ave Maria!...

SUZANA.-Espera: tenho-te ouvido em suave canto a saudação sublime: reza cantando, mas cantando com fé! Se assim rezares com fé, as harmonias do teu canto serão asas de anjo a levar tua oração ao céu!...

CORINA.-Oh, sim! fé! E com a minha fé, a esperança do meu amor!

(Senta-se à harmônica e canta «Ave Maria». SUZANA, em pé, ergue os braços. Cai o pano.)

FIM DO 2º ATO

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