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Espaçosa (sic) sala interior: porta ao fundo, pela qual se apercebe mal outra sala onde se ouve música e se dança: ao lado direito, porta abrindo para um gabinete: portas laterais, brilhantismo de luz: sinais de festim.

Cena I

PEREGRINO sentado; CARLOS que entra.

PEREGRINO.-Também te aborreceu o jogo de prendas?

CARLOS.-Se Júlia é intolerável!... Há meia hora que sem piedade me martiriza! Não pude mais sofrê-la!

PEREGRINO.-Júlia é apenas uma menina leviana que brinca: hoje há aqui alguém que muito mais nos incomoda: eu sou franco; é o filho do barão... e Teófilo...

CARLOS.-Que queres dizer?

PEREGRINO.-Veio, entrou-nos em casa com aparência de pretendente de Júlia, e evidentemente é de Corina que ele se ocupa... e ela o atende... e parece encantada...

CARLOS.-Seu proveito... talvez não me tenha sido agradável essa observação que também já fiz... talvez mesmo tenha isso concorrido para impacientar-me; porque eu amo Corina, ouviste?... mas se ela ama Teófilo... que seja feliz.

PEREGRINO.-Eis aí: eu não amo Corina, e todavia não sou tão tolerante. Teófilo me aflige muito.

CARLOS.-Mas... se dizes que não amas...

PEREGRINO.-Não é dizer que eu não queira casar com ela: o seu dote arranjaria muito a minha vida; confesso.

CARLOS.-Peregrino!

PEREGRINO.-Não ralhes como ralhaste no caso do negócio de escravos: cada qual tem seus princípios. Eu quero Corina para esposa, mesmo sem amor e até muito contra sua vontade: apontar-me-ão nas ruas com reprovação... dirão que sacrifiquei o coração ao ouro; mas sendo rico, serei poderoso, e a sociedade virá em breve lisonjear-me respeitosa.

CARLOS.-Essa teoria é infame!

PEREGRINO.-Dá-lhe o nome que quiseres: faço-te justiça: tu, meu poeta, não quererias ser esposo não sendo amado; hesitarás, mesmo na hipótese de merecer amor, ante a suspeita de vil interesseiro, que em todo o caso despertarias no ânimo dos maliciosos.

CARLOS.-E levantaria ufano esta cabeça de homem honesto...

PEREGRINO.-Cabeça de poeta... pois bem, cada qual com os seus princípios... e daí quem sabe, se não és ainda mais ladino do que eu?... Desejo, aconselho-te que o sejas: se Corina não for minha esposa, estimarei que seja tua.

CARLOS.-Não quero que me imagines com os teus sentimentos: vai comprar e vender homens...

PEREGRINO.-Olha... acabou o jogo de prendas... estão tomando sorvetes... vamos arrefecer o sangue...

(Vai-se. CARLOS passeia agitado.)

Cena II

CARLOS e TEODORA.

TEODORA.-Por que fugiste da sala? Não devias dar importância aos gracejos de tua irmã.

CARLOS.-Minha mãe, cumpre-me preveni-la de que vou sufocar o amor que sentia ou sinto por Corina.

TEODORA.-Temos ciúmes? Não sejas criança.

CARLOS.-Juro-lhe que só desposarei Corina, se partir dela manifesta e publicamente a proposição mais livre e positiva.

TEODORA.-Mas isso é contra todas as regras, seria até indecoroso.

CARLOS.-Ou eu farei a proposição franca e altamente com a condição de passar todo o seu dote para algum estabelecimento de caridade. (Em fogo mal contido.)

TEODORA.-Estás delirando... agora não podemos conversar. Vai distrair-te e sossega.

(Vai-se CARLOS.)

Cena III

TEODORA que se retira, ESTEFÂNIA e CORINA, tomando sorvete.

ESTEFÂNIA.-Roubei por momentos Corina a seus admiradores.

TEODORA.-Fazes-me ter ciúmes desta menina que parece amar-te mais do que a mim: não me roube de todo o seu coração. (Vai-se.)

ESTEFÂNIA.-Vê como é hipócrita?... Toma-se, (sic) acautele-se dela! Não atraiçoe o segredo que lhe confiei... diga pelo contrário, queixando-se de mim, que empenhei-me em induzi-la a desposar Carlos... mas, eu lho peço, ouça ao menos por breves momentos a meu sobrinho... prometa-me uma contradança para Fortunato.

CORINA.-Mas eu já prometi a outro a seguinte... e além disso...

ESTEFÂNIA.-Fortunato a ama... livra-la-á do inferno em que vive... creia que a senhora está exposta aos maiores perigos, e meu sobrinho que é o mais nobre cavalheiro, que a adora, e que daria a vida pelo seu amor...

CORINA.-Olhe, quanta gente chega.

Cena IV

CARLOS, PEREGRINO, SIMÃO de Souza, TOMÁS Pereira, TEÓFILO, FIRMINO, FORTUNATO, ESTEFÂNIA, CORINA, TEODORA, JÚLIA, senhoras, cavalheiros; conversação geral, movimento.

TEÓFILO.- (Com a boneca nos braços.) A minha linda afilhadinha não pode dormir com semelhante ruído! Acabou de despertar chorando assustada... onde melhor lhe poremos o berço? (Embala a boneca.) Tempo perdido! Nos meus braços não dorme: (A CORINA.) minha senhora, por quem é, acalente esta menina.

CORINA.-Compete esse dever à madrinha.

TEÓFILO.-A madrinha está carregando o berço... e que pesa!...

ESTEFÂNIA.-Que feliz (sic) boneca!

(CORINA recebe-a e acalenta-a.)

JÚLIA.- (Com o berço nos braços.) Qual! Uma pobre enjeitadinha, que não tem pai nem mãe!

SIMÃO.-Enjeitada! Pronto a declarar-me pai da menina. (Riso.)

TEÓFILO.-Ah; senhor! Acaba de matar-nos a esperança de achar mãe para a criança!... (Risadas.)

SIMÃO.- (A Pereira7.) Eu não sei porque esta gente ri assim!...

TEÓFILO.-E a menina dormiu ao doce calor dos seus braços: (A CORINA.) V. Exª. há de por compaixão e caridade apresentá-la à pia... mas onde depositaremos o berço?...

FIRMINO.-Neste gabinete.

(Abre a porta onde entram JÚLIA e CORINA.)

TEÓFILO.-Minhas senhoras, deixemos a menina dormindo. (Segue-as.)

TOMÁS.- (A FIRMINO.) Que enchente de puerilidades; na comédia do mundo somente o dinheiro é coisa séria: e o senhor não quer crer!...

SIMÃO.- (A Pereira8.) Ainda não pude manifestar-me: não sei, como hei de conseguir que a moça olhe para mim...

PEREIRA.- 9 (A SIMÃO.) Convide-a para dançar.

(JÚLIA e CORINA voltam.)

TEÓFILO.- (A SIMÃO.) V. Exª. terá a bondade de ser o padre que batize a criança... acho-o com jeito... com a aparência de cônego...

SIMÃO.-Aceito in limine: (A Pereira10.) É um modo de me manifestar...

TEODORA.-Oh, nunca me trataste assim Firmino!

FIRMINO.-E tu?... E tu?... Nossa casa era um paraíso... mudaste de caráter por amor de teu filho..., a tentação da riqueza...

TEODORA.-Sim... é isso... a fome de dinheiro.

Cena VI11

FIRMINO, TEODORA e ESTEFÃNIA.

ESTEFÂNIA.-Que dois pombinhos! Festejam-se mais ternos do que moças que... (Começa a rir.)

TEODORA.-Oh, que torpe sede de ouro!...

FIRMINO.-Confessa: é por causa do teu Carlos que me vejo exposto ao mais triste desengano... Teófilo me roubará Corina!...

JÚLIA.-Minha afilhada dorme: vamos dançar?...

TEODORA.-É o senhor com o seu Peregrino: para que se casou comigo, se só vive pelo filho da sua defunta?

FIRMINO.-Faço-lhe igual pergunta: tem a bondade de me responder!... creio, porém, que ali vai um teu rival. (Vai-se.)

SIMÃO.- (Tomando o braço de Pereira12.) Aquele padrinho me parece muito estúpido!

(TOMÁS sorri. Vão-se.)

Cena V13

FIRMINO e TEODORA.

FIRMINO.-Eis aí em que está dando o batizado da boneca!... Não me sujeitarei mais aos caprichos de Júlia.

TEODORA.-Júlia está bem castigada: sua esperança vai morrendo... já morreu talvez... Teófilo voltou-se para Corina.

FIRMINO.-Uma indignidade e um perigo a mais!

JÚLIA.-Minha afilhada dorme: vamos dançar?...

TEÓFILO.-Decreto de rainha: (A CORINA.) é a nossa contradança... (Baixo.) por procuração... (Oferecendo-lhe a mão.)

CORINA.-Com o maior prazer. (Toma-lhe a mão vão sair todos.)

FORTUNATO.- (A ESTEFÂNIA dando-lhe o braço.) Que devo esperar?...

ESTEFÂNIA.- (A FORTUNATO.) Por ora nada; mas desesperar nunca. (Vão-se.)

CARLOS.- (A TOMÁS) A idolatria do ouro é esquálida, lá se rendem ternuras, dançando!

TEODORA.-Este nosso amor já é hábito, não merece elogio.

FIRMINO.-É a felicidade pelo egoísmo... só cuidamos de nós. Eu tenho, porém, meus momentos de abnegação: aí lhe deixo a sua amiga. (Vai-se.)

ESTEFÂNIA.-Tenho perdido toda a minha eloqüência esta noite: Corina não quer ouvir falar de Carlos: é preciso ser severa e um pouco clara e inclemente com ela: fecha a porta de tua casa ao filho do barão...

TEODORA.-É a primeira vez que eles se encontram. Julgávamos Teófilo apaixonado de Júlia...

ESTEFÂNIA.-Vou ver como Teófilo e Corina se namoram. Estão tocando a indecência...

TEODORA.-Estefânia, que dizes?...

ESTEFÂNIA.-Eu falo-te assim só por amor de Carlos... tolerar as loucuras desta noite é, sem dúvida, sacrifício obrigado ao decoro, e ao dever; mas desde amanhã ou só prepotente, austera, terrível, ou despede-te de Corina...

TEODORA.-Eu não devia ter saído da sala... vamos.

ESTEFÂNIA.-Vamos... (Indo.) é porém tarde... a contradança acabou.

TEODORA.-Não importa.

(Vão-se; tem acabado a música.)

Cena VII

PEREGRINO e SIMÃO.

PEREGRINO.-Que tem?... que quer?...

SIMÃO.-Aquele padrinho que dança com ela quem é?...

PEREGRINO.-É filho de um barão.

SIMÃO.-Assim não me diz nada, barão? Tenho uma dúzia de barões embrulhados na minha burra.

PEREGRINO.-Chama-se Teófilo e é filho do barão do Lago Azul.

SIMÃO.-Do barão do Lago Azul!... Estou perdido. Vale muito mais do que eu... podia ser marquês ou duque... já não tenho ânimo de manifestar-me.

PEREGRINO.-Espere sempre... eu sirvo para alguma coisa

SIMÃO.-Qual! Se eu fosse mulher casava-me logo com o filho do barão do Lago Azul... vou-me embora...

PEREGRINO.-Não... não... dance primeiro com a bela Corina, e ainda que ela se mostre indiferente e fria, tenha esperança... eu sustentarei a sua causa...

SIMÃO.-Não posso mais apresentar-me candidato... aquela firma é melhor que a minha...

PEREGRINO.-Que homem desanimado!... Demore-se e mostre-se amável: olhe... isto é segredo de família... Teófilo tem outras intenções... creio que minha irmã...

SIMÃO.-Hein?... Que está dizendo?... Eu, porém, o vejo muito mais ocupado a conversar com a outra...

PEREGRINO.-Disfarce de namorada...

SIMÃO.-O senhor dá-me alma nova... então tratarei de manifestar-me... mas não me engane...

PEREGRINO.-Voltemos à sala... estão servindo o chá.

(Vão-se.)

Cena VIII

JÚLIA e CORINA.

CORINA.-Não tens razão... acredita-me

JÚLIA.-Se tenho! É casquinha como os outros.

CORINA.-É prata de lei.

JÚLIA.-Por isso estás perdida por ele.

CORINA.-Teófilo adora-te...

JÚLIA.-Sim; já mo repetiu dez vezes e continua a dizê-lo; mas sem nunca te haver conhecido teve que dizer-te tanta coisa em voz baixa... ocupa-se tanto de ti...

CORINA.-É verdade...

JÚLIA.-E tu pareces tão contente, tão feliz...

CORINA.-É verdade...

JÚLIA.-Ah! confessas?... E então?...

CORINA.-Confesso o que acabas de dizer; juro, porém, que é a ti que ele ama.

JÚLIA.-E tu?...

CORINA.-Confia em mim.

JÚLIA.-Desta vez ficou-me um espinho no coração... Corina! Sabias que eu amava Teófilo...

CORINA.-E bendigo do teu amor... oh! Júlia tu nem pensas como eu amo o teu amor.

JÚLIA.-Que fogo!... Mas ou eu não te posso entender ou tu és a sonsa mais refinada...

CORINA.-Aceito o dilema.

JÚLIA.-Então... há um jogo...

CORINA.-Convenho.

JÚLIA.-E esse jogo... esse jogo... Corina, tu contas ganhar?...

CORINA.-Se tu ganhares...

JÚLIA.-Tu esperavas Teófilo?...

CORINA.-Esperava-o.

JÚLIA.-Corina!...

CORINA.-Não pude ver-te sofrer e julgar mal de mim... Deixei transpirar já metade do meu segredo: basta...

JÚLIA.-Ah, sonsa!... tu amas... tu amas... ele o sabe?...

CORINA.-Atraiçoa-me agora, se quiseres...

JÚLIA.-O que eu quero é entrar no jogo... já devias ter falado... como é a história toda?

CORINA.-Agora... aqui é impossível... depois eu te direi tudo.

JÚLIA.-Mas se eu quero entrar no jogo!... Hei de perguntar a Teófilo... (Sinal de contradança.)

CORINA.-Júlia!

JÚLIA.-Não dizes que é a mim que ele ama?

CORINA.-Pergunta-lho: o teu amor é a minha fiança.

Cena IX

JÚLIA, CORINA, TEÓFILO e logo SIMÃO, FIRMINO aparece e desaparece, observando.

TEÓFILO.-Por ordem da música e da ambição de glória perturbo a conferência angélica. (A JÚLIA.) Vim lembrar a V. Exª. a minha contradança... (Oferecendo-lhe a mão.)

JÚLIA.-Posso perguntar, Corina?...

CORINA.-Podes.

TEÓFILO.-Oh! E eu serei tão feliz que possa responder?...

CORINA.-Pode.

JÚLIA.-Ainda bem! Vou entrar no jogo. (Os três vão sair.)

SIMÃO.-V. Exª. não pretende, creio eu, dançar com duas senhoras...

TEÓFILO.-Pretendo, sim senhor...

SIMÃO.-Esta é nova! E como?

TEÓFILO.-Dançando agora com uma e logo com a outra.

SIMÃO.-Ah! isso é claro... mas eu estava meio só...

CORINA.-O senhor me havia pedido esta contradança... com todo o prazer... (Toma o braço a SIMÃO.)

TEÓFILO.-De vis-à-vis14 conosco... sim?...

SIMÃO.-Não faço questão de vis-à-vis... (De mau modo.)

TEÓFILO.-Admirável! De vis-à-vis toda a noite!

(Vão-se.)

Cena X

FIRMINO e PEREGRINO.

PEREGRINO.- (Moitando.) Vê, meu pai?...

FIRMINO.-Agora ao menos é Júlia o seu par!...

PEREGRINO.-Corina não podia sê-lo sempre.

FIRMINO.-Mas Júlia estava contrariada e agora vai radiante.

PEREGRINO.-Também desconfio de Júlia.

FIRMINO.-Ela ama Teófilo, não é admissível que conspire contra o seu amor.

PEREGRINO.-Mas os dois namorados acharam meio de iludi-la, e de abusar da sua credulidade.

FIRMINO.-Nesse caso deves lamentar tua irmã, e não desconfiar dela...

PEREGRINO.-É que Júlia deixa-se enganar com simplicidade pueril!... Meu pai me desculpe... é natural que eu esteja desensofrido...

FIRMINO.-Tens razão: tudo nos contraria: até havia de acontecer que teu padrinho adoecesse hoje, para que a filha não pudesse vir!...

PEREGRINO.-Mas que lembrança infeliz a de Júlia com a sua maldita boneca!...

FIRMINO.-Pensas que não me tenho arrependido desta malfadada reunião?... Mas que hei de fazer agora?... É indispensável mostrar o rosto alegre...

PEREGRINO.-Sem dúvida: hoje é sofrer com paciência; mas desde amanhã, meu pai...

FIRMINO.-O que?

PEREGRINO.-Sempre sou transparente aos olhos de meu pai: Corina é o meu brilhante futuro pela sua riqueza; mais do que isso, é a regeneração da fortuna paterna pela dedicação e pela diligência do filho enriquecido.

FIRMINO.-Sei tudo isso, mas só me lembro de ti.

PEREGRINO.-Tão importante fim deve ser atingido por todos os meios e sem hesitação nem demora.

FIRMINO.-Portanto...

(Soa sempre a música.)

PEREGRINO.-Meu pai, Corina é simplesmente uma boneca rica.

FIRMINO.-E assim...

PEREGRINO.-Uma boneca não tem vontade, nem ação própria.

FIRMINO.-Compreendo; tenho, porém, fora de casa, o juiz dos órfãos a quem aliás é fácil enganar, e enfim confundir impunemente com um casamento consumado, e dentro de casa, o que é pior, minha mulher contra nós, minha mulher que me transtorna todos os esforços e todos os planos.

PEREGRINO.-Por isso mesmo... exatamente por isso mesmo.

FIRMINO.-Explica-te... fala claro...

PEREGRINO.-O que me parece: que meu pai deve ajudar-me a fazer para que a boneca rica me pertença a despeito do juiz dos órfãos e de minha madrasta!...

FIRMINO.-Sim... sim...

PEREGRINO.-Como me é preciso proceder para possuir a boneca rica?...

FIRMINO.-Estás hoje insuportável! Dize de uma vez.

PEREGRINO.-Meu pai há de vê-lo hoje mesmo e dentro em poucos minutos em um apólogo vivo.

FIRMINO.-Mas que é?...

(Cessa a música.)

PEREGRINO.-A noite é de contrariedade e de paciência forçada; espere. Meu pai me perdoe; eu lhe peço o favor de ir observar se os seus convidados já se preparam e se o ordenam para a cena burlesca do batizado da boneca de Júlia; creio que é a hora aprazada...

FIRMINO.-Sim... é meia-noite... o tal batismo tem de preceder à ceia.

PEREGRINO.-Meu pai, por quem é... vá ver...

FIRMINO.-Que aborrecíveis mistérios!...

(Vai-se.)

Cena XI

PEREGRINO e logo FIRMINO.

(PEREGRINO olha em torno... e apressado entra no gabinete.)

FIRMINO.- (Voltando.) Já vem todos... Peregrino! Peregrino! (Sai PEREGRINO do gabinete.) Que fazias aí?

PEREGRINO.-Preparava o apólogo... o apólogo que é lição.

FIRMINO.-Ei-los que chegam...

Cena XII

PEREGRINO, FIRMINO, CARLOS, SIMÃO, TOMÁS, TEÓFILO, FORTUNATO, ESTEFÂNIA, TEODORA, JÚLIA, CORINA, senhoras, cavalheiros. TEÓFILO traz uma salva contendo rosas desfolhadas, CORINA imensa toalha de renda, JÚLIA um manto de renda (ilegível) próprio de senhora.

TEÓFILO.-Eu entrego a pia ao sacristão...

ESTEFÂNIA.-Quem é o sacristão?

TEÓFILO.-O mais moço e o mais bonito do sexo masculino: (A SIMÃO.) não se adiante que não é o senhor... (A CARLOS.) É o senhor Carlos.

SIMÃO.- (A PEREGRINO.) Que homem impertinente! eu não me adiantei... ele é que parece querer divertir-se comigo!

CARLOS.- (Recebendo a salva.) Obedeço: fico sendo sacristão de bonecas.

TEÓFILO.-Agora o padre à frente: senhor Simão, tenha a bondade de chegar-se...

SIMÃO.- (A Pereira15.) Isto cheira-me a zombaria... que diz?...

PEREIRA.- 16 (A SIMÃO.) Carlos prestou-se logo... não se faça rogado...

SIMÃO.- (A Pereira17.) Com efeito... em todo caso a preferência me distingue... e eu me manifesto. (Chega a frente.)

TEÓFILO.-Eu o paramento... permita. (Toma de JÚLIA o manto e o põe nos ombros de SIMÃO.) Agora o barrete de cônego: (Põe-lhe na cabeça o chapéu roxo de ESTEFÂNIA.) Perfeitamente!... A madrinha a meu lado: estamos prontos. (A CORINA.) Tenha V. Exª. a bondade de ir buscar e de apresentar a menina, como se chama ela?...

CORINA.-A madrinha é que o sabe. (Entra no gabinete.)

JÚLIA.-Esperança...

TEÓFILO.-O cônego tem de fazer um discurso, e o sacristão de improvisar um soneto...

CARLOS.-Improvisarei um soneto...

SIMÃO.-Discurso eu não faço... protesto...

CORINA.- (Ea porta do gabinete.) A boneca não está no berço!...

JÚLIA.-A minha boneca!... (Corre para o gabinete.)

TEODORA.-Como é isto?... Desapareceu a boneca?...

CARLOS.-O caso seria romanesco!

JÚLIA.- (Saindo aflita.) Furtaram a minha boneca!

CORINA.- (Saindo.) Sem dúvida que a furtaram... não está lá!...

VOZES.-Oh! Oh!... (Movimento.)

TEODORA.-É incrível!...

TEÓFILO.-Quem ousou roubar a Esperança? Em nome da beleza e da aflição da madrinha, restituam a menina!...

ESTEFÂNIA.-Ficamos então sem o batizado?...

JÚLIA.-A minha boneca!... Que mau brinquedo!...

TEÓFILO.- (Tomando a salva de CARLOS.) Em falta da menina receba a madrinha o batismo de flores. (Senta as flores sobre JÚLIA.)

JÚLIA.-A minha boneca!... (Recebendo a chuva de flores.)

TEÓFILO.-Vamos procurá-la por toda parte: eu piano! A madrinha cantará... a menina roubada há de por força acudir nos milagres da harmonia e da voz mais terna!...

JÚLIA.-Não poderei cantar!...

TEÓFILO.-Nesse caso faremos corpo de delito e iniciaremos um processo criminal... demito de cônego ao sr. Simão e o nomeio delegado de polícia... vamos fazer vingar o império da lei..., vamos... d. Júlia por amor da Esperança... vamos!...

(Vão-se todos, menos FIRMINO e PEREGRINO.)

FIRMINO.- (Ao fundo depois de todos se retirarem.) Peregrino, como foi isto?...

PEREGRINO.- (Tirando a boneca do bolso e mostrando-a.) É o apólogo, meu pai; por meio de um rapto apoderei-me da boneca rica... (Com intenção.) que ficou no meu bolso.

FIRMINO.-Oh!... O rapto!!!

FIM DO 3º ATO

Sala da recepção; portas laterais; porta de entrada no fundo; janela.

Cena I

FIRMINO, TEODORA, CARLOS, JÚLIA; CORINA bordando.

FIRMINO.- (A TEODORA.) A hora se aproxima: não achas conveniente mandar Corina para dentro? (Na frente com TEODORA.)

TEODORA.- (A FIRMINO.) Não... não... eu sou mãe e não me engano: é Júlia que ele ama... e a carta e a visita solene...

FIRMINO.- (A TEODORA.) Se vier pedir-me Corina, eu lha negarei, mas seria imprudência que ela estivesse presente... se for Júlia, que importa a ausência da outra?...

TEODORA.- (A FIRMINO.) Ele repararia na ausência... mostrou interessar-se muito por Corina... pelo menos não é delicado escondê-la... deixe-mo-lo vir.

CARLOS.- (A CORINA.) Há nesse rosto que está bordando aparências de retrato... creio que conheço um nariz com esse...

JÚLIA.- (A CARLOS.) E que tens tu com o nariz do bordado de Corina? Ela tem tanto direito de copiar teu conhecido, como tu de furtar pensamentos e versos de poetas que lês.

CARLOS.-Isso é aleive revoltante: na Sociedade Filopoética tenho reputação de original.

(FIRMINO e TEODORA conversam.)

JÚLIA.-Mas a tua originalidade é só em composições que não tem senso comum.

CARLOS.-Segue-se que as minhas composições poéticas se parecem muito contigo.

TEODORA.-Já vocês estão a brigar! Carlos, Júlia é uma senhora.

JÚLIA.-Mamãe, é preciso que Carlos não publique mais poesia alguma que não tenha passado pela minha censura; ele se desacredita por plagiário...

CARLOS.-Ouve-a?... É uma injúria...

TEODORA.-Não vês que ela se diverte contigo?... (A FIRMINO.) Estás enganado...

FIRMINO.- (A TEODORA.) Verás... é Corina que ele vem pedir-nos em casamento.

TEODORA.- (A FIRMINO.) Terás sempre tempo de mandá-la sair; agora nem temos o recurso ou o pretexto da companhia de nossa velha. É verdade... (Voltando-se.) sabem onde foi minha tia, que tanto se demora?...

CORINA.-Eu não sei.

FIRMINO.-Aposto que subiu ao castelo, se está confessando com algum frade barbadinho.

TEODORA.-Talvez: com o júbilo do concílio de Roma triplicou de devoção e de penitência.

JÚLIA.-E tu já te confessaste, Carlos? Precisas fazê-lo...

CARLOS.-Não tenho contas a dar-te, e nem estou para graças: (Tomando o chapéu. A TEODORA e FIRMINO.) Eu saio... com licença: vou à sessão do Senado...

TEODORA.-É melhor; vai.

JÚLIA.-Quem perde com a tua ausência, sou eu, ingrato!

(Vai-se CARLOS.)

Cena II

FIRMINO e TEODORA, na frente; JÚLIA e CORINA sentadas ordando; FIRMINO e TEODORA conversam.

CORINA.- (A JÚLIA.) Estão a fazer castelos à espera da visita.

JÚLIA.- (A CORINA.) Sem Carlos ao pé de mim não posso dissimular... estou tremendo...

CORINA.- (A JÚLIA.) Cala a boca.

JÚLIA.- (A CORINA.) Se meus pais adivinhassem tudo...

CORINA.- (A JÚLIA.) Pelo amor de Deus!...

FIRMINO.- (A TEODORA, abrindo o relógio.) Chega a hora... Corina não devia estar aqui...

TEODORA.- (A FIRMINO.) Não é natural separá-la de nós: esquece Corina, e lembra-te de nosso filho.

JÚLIA.- (A CORINA.) Vamos sair da sala?... Eu sinto frio e fogo... nem sei que sinto... vamos sair...

CORINA.- (A JÚLIA.) Não... domina-te... finge-te alheia a tudo.

JÚLIA.- (A CORINA.) Como estou nervosa!... É um tremor...

FIRMINO.-Nervosa?... Que é... com efeito... (Tomando-lhe a mão.) trêmula e fria como o gelo. Júlia! estás incomodada?...

JÚLIA.-Não sei papai... foi de repente... sem causa...

FIRMINO.-Oh! Teodora! Ela não está boa...

TEODORA.- (Trazendo FIRMINO à frente.) Não há de ser nada... (A FIRMINO.) Que simplicidade a tua! Não vês que Júlia espera por Teófilo!...

FIRMINO.- (A TEODORA.) Como os filhos nos enganam!... (Voltando-se.) Parou um carro à porta... (Indo à porta.)

JÚLIA.- (Estremecendo e querendo levantar-se.) Eu fujo...

CORINA.- (A JÚLIA.) Da felicidade, Júlia?...

Cena III

FIRMINO, TEODORA, JÚLIA, CORINA (CRIADO que logo sai) e TEÓFILO.

CRIADO.-O senhor Teófilo de Carvalho. (Vai-se.)

TEÓFILO.-Minha senhora... minhas senhoras... senhor Firmino...

FIRMINO.-Como passou V. Exª.?... tenha a bondade de sentar-se.

TEÓFILO.- (Sentando-se.) Profundamente penhorado me confesso pela extrema delicadeza com que V. Exas se dignaram em receber tão prontamente a minha visita...

TEODORA.-De nossa parte havia mais do que dever, gratidão e glória...

FIRMINO.-Estas meninas iam recolher-se, quando V. Exª. chegou. A retirada de ambas nos deixaria em plena liberdade sem inconveniente algum, se V. Exª. não ordenar o contrário...

TEÓFILO.-Eu vim somente para ouvir e obedecer; mas com franqueza, o assunto de que me devo ocupar diz respeito a uma das duas senhoras, e nem por isso é exigente a ausência da outra.

FIRMINO.-Senhor Teófilo ordena-lhes que fiquem...

TEÓFILO.-Senhor Firmino, minha senhora, tenho a honra de vir pedir a V. Exas a srª d. Júlia em casamento.

FIRMINO.-Júlia?... Oh!...

TEODORA.-A proposição de V. Exª. nos exalta muito e estou certa que Júlia sente e pensa como seus pais.

FIRMINO.-Sem a menor dúvida... Júlia, responde...

TEÓFILO.- (A JÚLIA.) Minha senhora...

TEODORA.-Fala, menina...

JÚLIA.-Senhor... meus pais responderam por mim. (Trêmula.)

TEÓFILO.-Oh!... É mais do que mereço! (Beija a mão de JÚLIA.)

FIRMINO.-Este dia é o mais feliz da minha vida! Devo crer que o senhor barão do Lago Azul...

TEÓFILO.-Autorizou, aprovou e abençoa a escolha do meu coração.

TEODORA.-Minha Júlia... (Abraça-a.)

FIRMINO.-Perdoe-me... mas a felicidade tem suas ânsias: nós nos entregamos ao seu arbítrio... Júlia será sua esposa, é já sua noiva; mas a mim que sou pai, é lícito perguntar, quando deseja que se realize o seu casamento...

TEÓFILO.-Por mim eu o quisera amanhã: e quase adia a própria data; tenho porém uma dependência que me pode prender até um ano.

TEODORA.-Um ano!...

TEÓFILO.-Imprudente compromisso de estudante; eu e um íntimo amigo, com quem fraternizo desde o colégio, ajustamos que se fosse possível, nos casaríamos à mesma hora e na mesma igreja, e que para isso aquele que primeiro contratasse casamento, preveniria o outro, correndo-lhe o dever de esperar um ano para a execução do compromisso.

FIRMINO.-Mas esse amigo... já talvez tenha também encontrado.

TEÓFILO.-Amou antes de mim; a noiva de sua escolha foi-lhe porém negada.

FIRMINO.-Ah, mas nesse caso...

TEÓFILO.-Ele não desanimou ainda, e confia no seu amor...

TEODORA.-É da corte o seu amigo?

TEÓFILO.-É; a sua amada não sei; respeitei o segredo que ele não me revelou espontaneamente: o meu amigo V. Exas sem dúvida conhecem, é o dr. André de Araújo...

FIRMINO.-Oh!...

(Emoção de CORINA.)

TEODORA.-Senhor Teófilo... o segredo do seu amigo...

FIRMINO.-Sobre este assunto hei de explicar-me com V. Exª. em particular... e o dr. André de Araújo...

TEÓFILO.-Perdão: não tenho amigo a quem preze tanto, como ao dr. André; mas o seu projeto de casamento apenas influi sobre o meu, podendo obrigar-me a esperar até um ano, conforme o nosso desastrado ajuste. Quanto ao mais sei que André foi reservado comigo e basta isso para que eu me ocupe exclusivamente da minha felicidade.

FIRMINO.-Aplaudo o seu ótimo juízo; por amor de Júlia, porém, se o dr. André não pode obter a mão da noiva que desejava, a influência de sua amizade conseguirá levá-lo a fazer em breves meses, outra e mais oportunada escolha.

(Movimento de CORINA.)

TEÓFILO.-Outra vez perdão: se nem procuro conhecer-lhe o amor, também não me é lícito combatê-lo. Vou esperar um século, se d. Júlia quiser esperar-me um ano.

JÚLIA.-E deve ser assim...

TEÓFILO.-A glória que mereci, me embriaga... (Levantando-se.) O coração pede-me expansões, e almeja mandar longe as suas alegrias.

TEODORA.-Pois quer deixar-nos já?...

TEÓFILO.-Tenho pressa de felicitar meu pai pela encantadora filha que lhe vou dar. Despacharei hoje mesmo um próprio. Se me for permitido voltarei freqüentemente...

FIRMINO.-Todos os dias...

TEODORA.-Não vai ser nosso filho?... Olhe-nos já como sua família.

TEÓFILO.-E preso para sempre por duas cadeias de flores, a do amor... e a da gratidão. Minha senhora... (TEODORA o abraça.) d. Júlia... (Beija-lhe a mão.) minha senhora... (Aperta a mão de CORINA.) senhor Firmino!...

FIRMINO.-Um abraço bem apertado!

(Abraçam-se, vai-se TEÓFILO; FIRMINO e TEODORA o acompanham.)

Cena IV

JÚLIA, CORINA: FIRMINO e TEODORA que voltam.

CORINA.-É ou não prata de lei?

JÚLIA.-Prata de lei? É brilhante sem jaça.

TEODORA.- (Abraçando JÚLIA.) Minha filha, Deus ouviu os votos de tua mãe!...

FIRMINO.-E eu? E eu?... Júlia, não tenho um abraço?... (Abraça.)

TEODORA.-É pena somente que não se case já... é pena!...

FIRMINO.-E por causa de um libertino... de um homem que se diverte a enganar pobres moças com esperanças de casamento que nunca se realiza!...

TEODORA.-Conheces de perto esse doutor André?

FIRMINO.-De perto não o quero ver... mas de longe conheço-o pelos desatinos e costumes desenvoltos...

TEODORA.-Ah! Então é amizade bem ruim para Teófilo. (Tomando-o à parte.) Estás se excedendo... toma cuidado...

FIRMINO.- (A TEODORA.) Este embaraço é terrível... devemos casar Corina antes de oito dias... (Conversam com viveza.)

CORINA.- (A JÚLIA.) Que injustiça... que crueldade...

JÚLIA.- (A CORINA.) Queres ver como faço a minha entrada no jogo?...

CORINA.- (A JÚLIA.) Júlia!... Sê discreta.

JÚLIA.- (Suspirando.) Ai!... Ai!...

FIRMINO.-Júlia... gemeste?...

JÚLIA.- (Chegando-se.) Papai... eu confesso que não posso esperar um ano.

FIRMINO.-Com esta contava eu! Menina, isso não é bonito.

JÚLIA.-É melhor papai entender-se com o sr. Teófilo e com esse doutor André...

FIRMINO.-Não sabes o que dizes..., tens a cabeça perdida.

JÚLIA.-Ora... papai talvez conheça a família da moça com quem o doutor quer casar, e interessando-se por este resolveria tudo em meu favor...

FIRMINO.-É claro que estou metido em uma roda viva...

TEODORA.-Júlia, é necessário mostrar juízo...

JÚLIA.-Mamãe, esperar um ano eu não posso. Declaro que não hei de esperar um ano!!! (Com viveza.)

Cena V

FIRMINO, TEODORA, JÚLIA, CORINA, CARLOS e SUZANA muito fatigada.

CARLOS.-Não houve sessão no Senado por falta de quorum; mas em compensação encontrei a tia Suzana ao chegar em casa.

JÚLIA.- (Correndo.) Tia Suzana!... Não sabe?...

TEODORA.-Menina!... Menina!...

FIRMINO.-A senhora nos estava dando cuidado...

SUZANA.-Deixem-me descansar... (Senta-se, toda (ilegível).) andei muito! Nem em moça... quando... na quinta-feira de endoenças18 saía a visitar as igrejas...

TEODORA.-E onde foi, minha tia?...

SUZANA.-Deixem-me descansar. (Respira descansando.)

JÚLIA.- (A CORINA.) Esquece esse bordado, Corina.

CARLOS.-Pois ainda trabalha?

CORINA.-Esquecê-lo? O bordado me faz não sentir as horas que passam: o que mais gosto de esquecer... é o tempo.

JÚLIA.-Tens razão: o tempo custa muito a passar! E um ano então!...

SUZANA.-Ah!... (Respirando.)

FIRMINO.-Está menos fatigada?...

TEODORA.-Por onde andou?...

SUZANA.-Andei por (sic) onde me levou o amor do próximo: eu tenho rezado três noites em relação ao meu sentido, e tenho para mim que foi o Senhor que me inspirou o que fiz.

FIRMINO.-E é segredo de devoção ou de penitência?...

SUZANA.-Para que segredos? O que não é justo, não se faça; o que é justo, faça-se com os olhos em Deus e sem temor dos homens. Corina, vem cá.

(CORINA obedece SUZANA a achega.)

TEODORA.-Que temos de novo!

SUZANA.-O doutor André de Araújo e Corina se amam...

FIRMINO.-Se amam?!!!

CORINA.-Tia Suzana...

SUZANA.-Firmino, tu negaste a mão de tua pupila ao doutor André e eu quis convencer-me da justiça dessa recusa: tenho ainda bons amigos do outro tempo, que receberam em festa a velha Suzana: inquiri a todos, a todos ouvi...

FIRMINO.- (Severo à CORINA.) Retire-se para o seu quarto...

SUZANA.- (Abraçando CORINA pela cintura.) Não: que mal faz que ela ouça o que já sabe?

TEODORA.-Minha tia, que imprudência é essa?...

SUZANA.-Voltei com os ouvidos cheios de elogios ao doutor André: não houve boca que não lhe louvasse as virtudes, não achei coração que o não amasse: como é isso, Firmino?... Além de seus tesouros morais, ele nem pode ser suspeito de interesseiro, porque não é menos rico do que Corina, e tem as mãos abertas para dar aos pobres.

FIRMINO.-E quem a convidou a envolver-se neste assunto?...

SUZANA.-Os pais de André e de Corina foram amigos: a afeição dos dois jovens começou na mais pura ligação de suas famílias, e hoje o amor que os está fazendo sofrer na terra, é sem dúvida abençoado no céu. Firmino! com que direito impedes a felicidade da tua pupila?...

FIRMINO.-Donde lhe vieram tais informações?... Mas eu estou vendo... vejo na confusão da hipocrisia...

SUZANA.-Corina me confessou o seu amor, é verdade: ama um homem digno dela, o seu tutor devia aplaudir a sua escolha, mas aqui se premedita um crime de lesa orfandade; tu por Peregrino, Teodora por Carlos, não quereis que haja fogo santo no altar deste coração inocente!

FIRMINO.-Inocente... ela que engana seu tutor!...

SUZANA.-Oh! Vocês não imaginam que crimes intentam cometer! Pensem bem: o despojo recolhido pelo salteador chama-se roubo, porque é tomado com violência e abuso da força: como se há de chamar a usurpação do dote de uma pupila tomado por meio de casamento imposto pela violência e pelo abuso da autoridade do tutor?...

FIRMINO.-Senhora!...

TEODORA.-Minha tia!...

SUZANA.-Eu digo que vocês não pensam no que fazem, mas isso é pecado que brada ao céu!... Oh, faço idéia do que irá por esse mundo com as desgraçadas pupilas ricas! Quantas mártires! Quantos tutores e mulheres de tutores que para enriquecer seus filhos, esmagam os corações e lançam para sempre no abismo da desgraça as míseras órfãs.

TEODORA.-Minha tia nos ultraja.

SUZANA.- (Em pé.) Meu Deus! se não há na terra leis que tornem impossíveis tais atentados, sede misericordioso, Senhor, com os pais que morrem esquecidos das suas almas e absolvidos nas aflições do mundo, porque não haverá pai nem mãe que não morram nesse pecado, deixando filha menor exposta à opressão e aos tormentos do tutor ambicioso! Perdoai a esses, meu Deus! E amaldiçoados sejam os tutores que sacrificam as pupilas!

FIRMINO.- (A TEODORA.) Faze calar tua tia... ou não me contenho mais.

SUZANA.-Disse-vos a verdade: refleti no que tendes feito e tentares fazer: por mim eu me declaro mãe desta menina; mãe no serviço do Senhor: se atentares contra a liberdade de Corina, a pobre velha sairá para sempre da casa do crime; saindo, porém, há de ir logo denunciar ao juiz dos órfãos, ao povo, ao rei o martírio da órfã, e a tirania dos algozes.

TEODORA.-Denunciar-nos!...

FIRMINO.-É uma velha demente...

SUZANA.-Sou apenas uma triste pecadora, mas temente a Deus nosso Senhor, o que disse não foi por mal: eu vos amo e padeço pela cegueira com que vos vejo atirados na perdição: pensai bem no que me ouvistes, meus filhos!... Agora vou descansar: vem comigo, Corina, vem...

FIRMINO.-Doravante proíbo a Corina a sua companhia.

SUZANA.-Na minha companhia será sempre honesta e pura: sou sua mãe no serviço do Senhor: ela há de vir comigo... quero poupa-la às tuas asperezas... (A FIRMINO.) afasta-te!...

FIRMINO.- (Tomando-lhe o passo.) Quem manda aqui, senhora?...

SUZANA.- (Levantando a cabeça.) Aqui e em toda parte, acima de todos... Deus!

(Comoção: FIRMINO recua um passo: SUZANA passa com CORINA.)

Cena VI

FIRMINO, TEODORA, JÚLIA, CARLOS.

FIRMINO.-Fanática e demente!... E no fanatismo e na demência a língua desenvolta e envenenada!...

TEODORA.-Com efeito! Minha tia sempre foi intratável com os seus escrúpulos e casos de consciência; nunca porém a vi tão desatinada e insensata!...

CARLOS.-Insensata!...

FIRMINO.-Tenho-a sofrido muito! E se não fosse a sua velhice e a minha reputação, despedi-la-ia de nossa casa, provando assim como desprezo o que ela possui, e que de direito herdaríamos por sua morte... Despedi-la-ia...

TEODORA.-Firmino, ela é irmã de minha mãe...

FIRMINO.-Ao menos não quero que continue a desmoralizar Corina: recomendo-te que faças cortar todas, absolutamente todas as suas relações. (Passeia agitado.)

CARLOS.- (A TEODORA.) Minha mãe...

TEODORA.-Que queres?... Bem vês que devo estar preocupada...

CARLOS.-Eu também: é por isso que desejava dizer-lhe já...

TEODORA.-O que?...

CARLOS.-Qualquer idéia que tenha havido de casar-me com Corina, a pupila de meu padrasto, não é mais concebível de hoje em diante.

TEODORA.-E por que?

CARLOS.-Porque a tia Suzana disse a verdade.

FIRMINO.- (Com aspereza.) A verdade?!!!

JÚLIA.- (Oferecendo a mão a CARLOS que a afasta.) Muito bem! Meu irmão! meu Carlos! Acabas de improvisar um belo poema: muito bem...

FIRMINO.-Também tu?...

JÚLIA.-Também: papai, eu o sinto... o que a tia Suzana disse, caíra-lhe do céu no coração... foi voz de Deus falando pela boca de uma santa velha... chorei ouvindo-a... chorei...

TEODORA.-Tola!

JÚLIA.-Tola?... Papai e mamãe adoram-me: adoram-me tanto que eu vejo bem que muitas vezes abuso caprichosa. Papai e mamãe vivem por mim... são felizes com as minhas alegrias doidas... atormentar-se-iam um século para que eu não padecesse um dia... eu sei... adoram-me.

TEODORA.-Feiticeira!...

FIRMINO.-Se és um anjo, minha filha!...

JÚLIA.-Façam pois de conta... a idéia é horrível, mas é força imaginá-la... meu Deus! Perdoai-me a idéia medonha, eu, porém, sou ainda menor... e papai e mamãe estão ali a morrer... (Profundamente comovida.) eu, sua filha querida, em consternação a chorar... a estender os braços... a pedir compaixão e misericórdia... no pé de mim o tutor que escolheram... papai e mamãe agonizando abraçados comigo... (Chorando.) e com os olhos em meu tutor pedindo amor e piedade para sua filha, depois o horror da morte. Sua filha querida só no mundo... e depois... o meu tutor oprimindo-me... o meu tutor atormentando-me... e violentando o meu coração... impondo-me a escravidão de um casamento forçado. Papai, mamãe... a sua Júlia, a sua filha, o seu anjo a gemer... a chorar... a padecer... a desejar a morte...

FIRMINO.- (Em pranto.) Minha filha!...

TEODORA.- (Chorando.) Júlia, minha Júlia!...

CARLOS.- (Soluçando.) Minha irmã... muito bem!... eu não brigo mais contigo.

JÚLIA.-Oh!... E Corina?... Papai, mamãe, o pai e a mãe de Corina que morreram deixando-a só no mundo?... Oh!... E o papai e a mamãe de Corina? (Tristíssima.)

TEODORA.-Minha filha, tu és uma santa, que ainda vives no céu.

CARLOS.-Segue-se que a terra pode parecer o céu com o cumprimento da lei a paternidade.

FIRMINO.-Mas é preciso viver neste mundo com as condições deste mundo.

JÚLIA.-Oh, papai!

FIRMINO.-Corina se há de casar com quem deve casar-se.

TEODORA.-Pensa mais em ti do que em Corina: confia em teu pai que é um tutor honrado e consciencioso.

CARLOS.-Ficando entendido que eu estou absolutamente fora de todo e qualquer projeto de casamento.

JÚLIA.- (Em outro tom e revoltada.) E pela minha parte protesto, que não posso e não hei de esperar um ano.

TEODORA.-Isto é fora de propósito!...

JÚLIA.-Eu não fico aí: acabo de tomar uma resolução definitiva.

FIRMINO.-Qual?... Vejamos...

JÚLIA.-É inútil pensar no meu casamento com Teófilo, se Corina não se casar com o doutor André.

FIRMINO.-Oh! Dir-se-ia uma conspiração geral!... é a guerra no seio da família... Teodora, livra-me de Júlia.

TEODORA.-Estás afligindo teu pai; vem, menina. Carlos...

CARLOS.-Eu vou trabalhar no meu romance.

(Vão-se os três.)

Cena VII

FIRMINO e PEREGRINO.

PEREGRINO.- (A FIRMINO que vai entrar no gabinete.) Meu pai.

FIRMINO.-Ah! Peregrino... se soubesses...

PEREGRINO.-Sei tudo já: Teófilo é o noivo de Júlia, e de ajuste com esta e com sua pupila protege a causa do doutor André e lhe prepara o triunfo.

FIRMINO.-Pensas!... Teófilo...

PEREGRINO.-A maquinação é patente: sei mais que a tia Suzana impelida por Corina.

FIRMINO.-Quem te informou de tudo?...

PEREGRINO.-Foi Silvia, a criada de Corina, que me está dedicada.

FIRMINO.-Ah! Silvia... contanto que ela não venda também a outro essa dedicação, que sem dúvida lhe compraste: bem vês que devo desconfiar de todos... o nosso empenho vai mal, Peregrino...

PEREGRINO.-Sim, meu pai, o dia é sinistro para mim. Simão de Souza fechou-me a bolsa, e deixei por isso de arrematar hoje dez escravos.

FIRMINO.-Fechou-te a bolsa?... E por quê?

PEREGRINO.-Anteontem à noite Corina repeliu, como eu esperava, as suas pretensões... e... o que foi pior, e ninguém o suspeitaria, minha madrasta provavelmente com o fim de poupar a seu filho um rival a mais, confessou a Simão de Souza um segredo revoltante...

FIRMINO.-Qual?...

PEREGRINO.-O de minhas relações de amor com a pupila de meu pai...

FIRMINO.-É falso! é impossível!... A desonra de Corina!...

PEREGRINO.-Uma dose de veneno, que só a mim pode aproveitar: sem o querer minha madrasta me auxilia...

FIRMINO.-Peregrino! Teodora é incapaz dessa infâmia! Simão de Souza mentiu...

PEREGRINO.-E se além dele mais alguém tivesse recebido a mesma confidência?...

FIRMINO.-Peregrino... isto é demais... é horrível... minha mulher é vítima de um aleive perverso...

PEREGRINO.-Tranqüilize-se, meu pai... creio também que caluniam minha madrasta, cuja inocência há de brilhar a toda a luz; mas o ardil de Teófilo, a conivência de Júlia, a intervenção da tia Suzana, esse mesmo aleive perverso que ofende em sua esposa anunciam que a minha causa está perdida se não a salvarmos com o extremo recurso.

FIRMINO.-Sempre a idéia do rapto...

PEREGRINO.-É o meio vulgar, mas infalível.

(Aparece TEODORA.)

FIRMINO.-E as conseqüências?

PEREGRINO.-Realizado o rapto, o casamento com o raptor satisfaz a lei, e a sociedade o sanciona depois de murmurar alguns dias.

FIRMINO.-E eu?... Nunca pensas no tutor!...

PEREGRINO.-Delineei plano seguro, no qual meu pai fica livre de toda a responsabilidade...

Cena VIII

FIRMINO, PEREGRINO, e TEODORA que tem parado à porta e vai logo entrar no gabinete.

FIRMINO.-Com efeito... as circunstâncias urgem, mas eu não quisera recorrer a esse crime...

PEREGRINO.-Quem recorre sou eu. Meu pai é vítima da minha traição...

FIRMINO.-Se fosse exeqüível...

PEREGRINO.-O meu plano?... Seguríssimo: eu lho exponho. (Vai fechar a porta de entrada depois de observar a do interior.)

FIRMINO.-Não tranques a porta: vamos fechar-nos no meu gabinete.

PEREGRINO.-Tem razão: é mais prudente.

(Vai-se: aparece TEODORA à porta.)

FIRMINO.-Teodora!

PEREGRINO.- (Ao mesmo tempo e recuando.) Oh!...

TEODORA.-Um rapto!!

FIRMINO.-Silêncio!... A senhora vai escutar-nos?...

TEODORA.-Eu vinha dizer-te que desisto de todos os meus intentos relativamente a Carlos e a tua pupila.

FIRMINO.-Melhor: está simplificada a questão.

TEODORA.-Vinha dizer-te que por amor de nossa filha a cujo casamento não devemos criar embaraços, te cumpre ir já tratar do consórcio de Corina com o amigo de Teófilo.

FIRMINO.-Ah!... Pois que Carlos se revolta, e te desobedece...

TEODORA.-Vinha dizer-te... mas ouvi a palavra rapto e quis saber tudo: escutei... sim... e o que fiquei sabendo é ignóbil.

FIRMINO.-Teodora!...

TEODORA.-A madrasta era indigna, talvez malvada, porque desejava casar o filho com uma jovem rica, e o enteado, (Para PEREGRINO.) e o senhor... é a alma cândida, santo mártir, quando prepara o plano do rapto da pupila de seu pai!...

FIRMINO.-Basta... basta...

TEODORA.-É um homem honesto, tipo de virtudes, exemplo de pureza, quando premedita a vergonha da própria família, a difamação da casa paterna...

FIRMINO.-Peregrino... retira-te! (PEREGRINO imóvel.)

TEODORA.-É um filho modelo que atira às garras da maledicência; o nome de teu pai, que faz da desonra de teu pai o fundamento da tua fortuna!

FIRMINO.-Ponhamos termo a esta cena... Teodora!...

TEODORA.-É um irmão sublime, que, comprometendo o casamento de sua irmã, quer pela infâmia do rapto arrebatar a riqueza de uma órfã que o despreza!...

FIRMINO.-Senhora!...

PEREGRINO.-Perdão, minha madrasta! Ao menos cuido em pagar a dívida mais sagrada: ouça-me bem! Testemunhas Simão de Souza e d. Estefânia: quero regenerar com o casamento, a vítima de minha sedução, a amante que a senhora me deu na casa de meu pai!

TEODORA.- (Confundida.) Oh!

FIRMINO.-Desgraçada!... Que calúnia atroz!!!

FIM DO 4º ATO