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- XI -

A casa do dr. Pedrosa era uma das mais antigas da rua Senador Vergueiro. À sua fachada, de velho estilo português, a vaidade do dono mandara adicionar uma cimalha, que encobria as telhas aldeãs com os seus floreados medalhões de estuque e dois torreões laterais, ligados ao corpo central por passadiços envidraçados, de caixilhos miúdos. Dentro de um vasto jardim, fechado por gradil prateado, essa residência ficava meio encoberta da rua por dois misericordiosos tamarineiros, altos e frondosíssimos.

Num dos torreões fazia o senhor ministro o seu gabinete de trabalho. O outro, todo esteirado e guarnecido de caquemonos, era chamado em casa o «pavilhão japonês», e destinado a Sinhá, que aí recebia as amigas e pintava as suas tímidas aquarelas.

Era noite de recepção e a Pedrosa embarafustou pelo quarto da filha.

-Estás pronta?

-Sim, mamãe.

-Que! de azul?! Não! muda de vestido. Branco, branco! Trouxe-te os meus brincos de pérolas. Toda de branco, só com estas duas pérolas nas orelhas, ficarás melhor. Como uma noiva...

O olhar da mãe acariciava a filha, que sorriu com tristeza.

A Pedrosa tornou a sair, recomendando pressa; ela ia para a sala esperar os amigos; antes de abrir a porta, puxou a filha a si e beijou-a com ternura.

A moça começou passivamente a desenlaçar o seu vestido azul, pensando no ar misterioso com que a mãe a atraíra naquele beijo.

Sem poder obedecer às ordens maternas, que lhe haviam imposto pressa, ela, mal enfiou o seu vestido branco, deixou-se cair sentada na beira do leito e ali ficou um largo espaço de tempo, com os olhos fixos no vácuo e os dedos embaraçados nas fitas desatadas do cinto.

Tinha pensado muito desde aquele passeio ao Corcovado e começava a compreender o seu papel... A mãe oferecia-a ao Argemiro... era por causa dele que lhe pusera nas orelhas aquelas pérolas, que pareciam queimá-la... Por quê? Porque ele era rico e ocupava na sociedade um lugar brilhante... Amava-a ele? não!... amava-o ela? talvez...

Na verdade, a imagem de Argemiro nunca se lhe apresentara senão levada pela mão da mãe... lembrava-se mesmo de que a primeira vez que o vira achara-o velho e triste... depois, a pouco e pouco, habituara-se a imaginar-se noiva daquele homem sério, que todo o mundo dizia votado inteiramente à sua viuvez... e agora ei-la enciumada de uma mulher de cuja existência até as vésperas nem suspeitara e que ocupava já o lugar que a mãe lhe destinava a ela!

A figura de Alice desenhava-se inteira diante dos olhos pasmados da moça. Revia-lhe o rosto de um moreno pálido, de feições irregulares; o talhe esbelto do corpo, as mãos longas, o vestido cinzento, alegrado por uma gravatinha azul...

Que idéia faria dela o Argemiro? Um leve rubor subiu-lhe às faces e ela escondeu o rosto entre as mãos geladas.

A criada veio apressá-la. Sinhá levantou-se resolutamente e concluiu a sua toalete sem hesitação.

Quando entrou na sala, a mãe, entre um grupo de amigas, conversava com um homem gordo, de longos bigodes cor de vinhático. Apresentou-a; era o encarregado de negócios de Inglaterra no Rio de Janeiro!

Sinhá cumprimentou-o, admirada da habilidade da mãe; ela conseguira o seu desejo!

Ali estava na sua sala o homem por quem ela subira inutilmente o Corcovado. Bem o dissera ela: realizo todos os meus empreeendimentos!

Atendendo às visitas que rodeavam a mãe, Sinhá prestava atenção, a ver se distinguia a voz de Argemiro entre as vozes dos homens que palestravam no gabinete do pai.

Aí, entre os livros de direito e de economia política, arrumados em estantes de canela ou espalhados sobre a secretária e a mesa, conversavam animadamente Adolfo Caldas, Argemiro, dr. Sebrão, o conselheiro Isaías e o dono da casa.

-Falem-me de tudo! -exclamava o Pedrosa, súplice-, menos da política! Vocês não imaginam! não lhes direi que estou farto dela até os cabelos, porque sou careca; mas ultrapassa a minha força aturá-la até nos cavacos entre camaradas.

Conselheiro Isaías, lembrando-se lá consigo do empenho do Pedrosa para alcançar a pasta, comentou do canto onde acolhera o seu corpinho murcho:

-Percebe-se o sacrifício...

Caldas levantou-se com estrondo, disfarçando a malícia do outro, e foi ao lampião reacender o charuto, enquanto Pedrosa continuava:

-É muito grande, e só mesmo a pátria poderia exigir tanto de mim. A ação de governar vai se tornando cada vez mais perigosa nesta terra... Nós temos maus auxiliares e o povo tem má fé... A oposição agora serve-se de todos os meios para impedir-nos os passos, usando das armas mais pérfidas, que são as do ridículo e as da calúnia...

-Essa senhora é velha como Sócrates... não faça caso... -disse o conselheiro.

-Não faço caso, mas no fundo, francamente, desgosta-me. Trabalho sem interrupção e afinal...

-Não faz nada! -disse o conselheiro, rindo.

-Não seja perverso, amigo! ou declare-se já contra mim! Quem sabe se é você o autor daqueles versinhos que andam por aí carpindo a minha falta de eloqüência e de desinteresse, que julgam as qualidades primordiais para um homem de Estado!

-E são...

-Nego. Um político, do que precisa, sobretudo, é de tenacidade, sangue frio, patriotismo, sinceridade e um grande domínio sobre as suas paixões... além das qualidades superiores, que lhe são indispensáveis, de inteligência e de ilustração...

-É por isso que o seu colega Marcondes está fazendo tão bonita figura!... -disse ainda o conselheiro, com um fundo suspiro. Riram-se todos, que bem conheciam os dotes fraquíssimos do Marcondes.

Pedrosa continuou, com um sorrizinho magnânimo:

-Ele é bem intencionado, e trabalha! Há dias em que nem tenho tempo de beijar minha filha... O homem público é um galé, principalmente neste nosso país, em que os mais puros devotamentos são sempre interpretados às avessas!

-Muito bem! Apoiado! -exclamou o conselheiro, levantando-se.

-Eu sei que você é um homem corajoso, desde aquela célebre caçada que fizemos juntos em Teresópolis... lembra-se? -perguntou, sorrindo, o dr. Sebrão ao Pedrosa.

-E com bastantes saudades!

-Quem tem idade e competência para arcar com o peso de uma pasta é ali o amigo Argemiro... -disse o conselheiro Isaías.

Argemiro protestou; era um homem sem maleabilidade; não podia servir bem à política. Ao mesmo tempo o dr. Sebrão, voltado para Adolfo Caldas, começou a descrever a caçada feita com o Pedrosa e outro amigo nas florestas da serra.

-Tinham-nos falado em javalis. Uma madrugada partimos da Várzea, montados nuns velhos cavalos de aluguel, nós e mais um velho de Teresópolis, que se inculcara como excelente guia. Levávamos boas armas, bom farnel para o almoço, estando combinado voltarmos a jantar com a família. Trotamos para o alto, o velhote na frente; nós, muito esperançosos, atrás. Chegados a um certo ponto, amarramos os animais e metemo-nos a pé pelo mato. Imaginem que entrar nas florestas da serra é como entrar na treva. Ali, para se ser bom caçador é preciso ter afeito a vista à escuridão do ervaçal e ter criado sobre a epiderme uma segunda pele, ou melhormente uma espécie de couro, onde os espinhos se quebrem sem lograr ferir. Cada vez que os nossos pés se afundavam no colchão de folhas mortas, a idéia de ser mordido pelas cobras juntava-se ao prazer de conseguir matar algum porco do mato. O guia assegurava ter encontrado sinais; galhos quebrados, rastro de animais em fuga. Seguimo-lo com fé. Era prudente almoçar cedo. Comemos à beira do Paquequer, entre touceiras cheirosas de lírios. As águas convidavam. Quis banhar-me, mas o Pedrosa ponderou que a fresquidão da linfa aplacaria o meu humor sanguinário, que antes deveria ser exacerbado por um golinho de parati... Tropeçando em troncos, enrodilhando-nos em cipós, alagando-nos até o queixo em valas, passamos o dia inteiro à espera da porcada glorificadora! Mas os diabos dos porcos, zombando dos caçadores sem cães, deram-nos ao desprezo. Escureceu. Quer dizer: o negrume ainda se fez mais negro. O guia, desnorteado, levava-nos para um lado, para outro, sem achar saída...

Tiritando de frio, rodeados pelo fragor da água e do vento, ali passamos uma noite pavorosa; eu, gemendo com dores nas articulações, Pedrosa febril e impressionado com a idéia do susto que havia de estar curtindo a nossa boa d. Petronilha... Só no outro dia, às dez horas, esfomeados, lanhados e rotos, conseguimos sair da mata. Correu todo o mundo a ver-nos. As famílias choravam. Tinham andado pelas estradas, à noite, com archotes, gritando por nós... Tivemos de passar cabisbaixos e envergonhadíssimos por entre os curiosos... explicar aventuras... imaginárias... E querem vocês saber? Passáramos a noite a pequena distância de um hotel! O barulho da água e do vento abafou os outros rumores que nos denunciariam essa salvação. Foi uma tragédia cômica!

-A evocação não foi das mais felizes para consolar o amigo Pedrosa das suas atribulações! -disse ainda o murcho conselheiro Isaías, levantando-se do seu canto. E depois, para o Argemiro:

-É tempo de irmos prestar as nossas homenagens às senhoras; não lhe parece?

Levantaram-se todos e iam para a sala, quando o dr. Teles, entrando pela porta do jardim, reteve o Pedrosa, que deixou sair os outros e ficou com o deputado confabulando sobre política.

Caldas, antes de entrar na sala, puxou Argemiro de parte e, com o pretexto de acabar o charuto, encostado ao gradil do passadiço, espalhando baforadas para o jardim, foi avisando:

-Olha que a Pedrosa já teve uma conferência comigo a teu respeito esta tarde!

-Hein?!

-Não me faças repetir palavras: aviso-te de que já se sabe por aqui que tens uma ménagère moça, bonita... e que os conceitos são naturais. Quero dizer: maldosos.

-Ora!

-Ora! mais nada?

-Então? que lhe respondeste?

-Fiquei meio burro... disse-lhe que efetivamente tu tinhas uma ménagère, mas que a não conhecias!

-E ela?

-Riu-se.

-Riu-se?!

-Escandalosamente. Eu também me ri.

-Tu?!

-Que querias que eu fizesse? Crias uma situação de comédia e impões seriedades de melodrama?

-Mas que tem ela com a minha vida? Já se viu uma tal indiscrição? É boa!

-Cobiça-te para genro. Sabes perfeitamente disso! Estás farto, fartíssimo de o saber, e ainda te admiras? Ora, meu velho!

-Mas essa senhora já deve estar convencida de que não lhe aceito a filha. Não quero casar! Aposto em como não aproveitaste a ocasião para lhe dizer isto?

-Certamente que não! mas afinal aquela rapariga que lá tens em casa é séria ou não é séria?

-Eu presumo que sim.

-Se é séria, manda-a embora, porque a comprometes; se não é... não deves ter escrúpulos em fazê-la passar como tal!

-E minha filha? Lembra-te que tenho uma mulher em casa, não tanto pela boa ordem de minha vida, como para poder recebê-la e guardá-la de vez em quando comigo... E depois, sabes que mais?! pouco me importo com a opinião dos outros! Deita fora o charuto. Vou despedir-me lá dentro. Estou enojado. Lá te espero quarta-feira. Não te esqueças...

-Ó egoísta! lá irei com um baralho novo!

Argemiro entrou na sala a tempo de aplaudir a Sinhá, que acabava de tocar uma réverie ao piano. Vendo-o, a Pedrosa foi ao seu encontro:

-Pensei que fosse hoje todo do meu marido! Chego a ter ciúmes da política, acredite!

Ele sorriu.

-Foi pena que não tivesse ouvido Sinhá desde o princípio... ela toca com muito sentimento... anime-a... diga-lhe, embora mentindo... que a apreciou... as suas palavras são o melhor incentivo para ela...

A Pedrosa procurou a filha com a vista, para aproximá-la de Argemiro, mas já a moça desaparecera da sala.

Argemiro percebeu-lhe a contrariedade no olhar e apressou-se em dizer meia dúzia de banalidades, à espera do momento de se despedir. Mas a Pedrosa tinha que dividir a sua atenção. Estava com a casa cheia, e as moças mostravam desejos de dançar...

Por fortuna, as sobrinhas, as três filhas do dr. Adão, ajudavam-na a armar as quadras para os lanceiros, tirando pares e influindo os moços, que se deixavam arrastar, por complacência, para o meio da casa...

Como tardasse o pianista, foi mesmo a Pedrosa para o piano, rompendo com força os primeiros compassos da quadrilha. Argemiro aproveitou aquele instante de alegria para ir buscar o chapéu e o sobretudo ao pavilhão japonês e sair para a rua sem ser visto.

O pavilhão estava a meia luz. Nas paredes forradas de esteirinha as japonesas dos caquemonos requebravam-se entre os cetins das suas kobaias e o ouro das borboletas e dos crisântemos dos seus penteados... Carinhas de marfim, graciosamente pendidas sobre os ombrinhos estreitos, pareciam oferecer as cerejas das boquinhas para a guloseima de um beijo. Aves e insetos delicados, de asinhas transparentes, voejavam entre os galhos de pessegueiro em flor, nos panos cinzentos dos biombos. No meio do pavilhão, um enorme vaso bojudo, fabricado em Kioto, sustinha um profuso ramo de camélias brancas, grandes e silenciosas...

Os passos de Argemiro morreram ao entrar no pavilhão, abafados na esteirinha, e ele dirigira-se para o fundo, onde deixara o agasalho, quando Sinhá saiu de trás do biombo e veio ao seu encontro, trazendo-lhe ela mesma nas mãos a capa e o chapéu.

Argemiro não pôde conter um movimento de surpresa. Ela, muito séria, com uma gravidade que a tornava linda, estendeu para ele o agasalho e disse com um fio de voz suave e triste:

-Agradeço a sua resolução... vá-se embora e peço-lhe que não volte, senão quando souber que eu já não estou aqui... Para o senhor isso não será um sacrifício; e quanto a nós... a saudade que nos deixar será atenuada pela certeza do seu respeito e da sua estima...

Toda de branco, naquela meia luz em que bailavam insetos e sorriam japonesas, a figura grave da moça ressuscitava uma visão de sonho que perturbava o espírito de Argemiro. Ele curvou-se, beijou-lhe as pontas dos dedos gelados e, com a voz engasgada pela comoção, afirmou:

-Eu não a tinha compreendido, distanciado como estou da sua idade e da sua perfeição... Consinta que eu volte no dia em que o seu coração de menina tiver encontrado um outro coração moço e digno dele! Bastará então uma palavra sua: venha!

Sinhá não respondeu. Argemiro aceitou o agasalho das mãos dela e saiu comovido, tonto. Fora, as estrelas palpitavam luminosamente no fundo aveludado do céu. O ar cheirava a flores. E o viúvo caminhava a pé, sozinho, pensando nas surpresas desta vida de civilização, e revendo a palidez da moça, o seu olhar sincero e transparente. Não teria ele repelido a felicidade?

Entretanto, vendo-o sair, Sinhá recolheu-se para trás do biombo, chorando devagarinho, devagarinho, em segredo.

- XII -

«Bem dizem os romancistas que os romances se fazem por si. Criada a personagem, posta no meio em que terá de agir, ela caminhará por seus pés até o ponto final do último capítulo.

Acontece, por isso, que o autor tem, às vezes, verdadeiras surpresas, como se todos os atos dos seus heróis não fossem obra sua! Concebida a idéia fundamental do livro, está criado o sopro de vida que o animará. A dificuldade está toda no primeiro impulso! Hei de sempre lembrar-me de uma noite em que fui encontrar o Tadeu, pálido, passeando agitadíssimo pelo escritório, com um verdadeiro ar de fúria.

-Que tens tu?! -perguntei-lhe assustado, de entre portas.

Voltou para mim os olhos esgazeados e disse, com uma sinceridade comovedora:

-Tenho que o patife do Brás apaixonou-se por tal forma pela Delfina, que não sei como hei de casá-lo com a Lucinda! -e apontava com o dedo colérico para as folhas esparsas do seu romance, desordenadas por um vento de insubmissão. O caso era grave. Entrei, sentei-me e fiquei calado, assistindo ao duelo fantástico de um romancista com a sua personagem revoltada.

Por fim, aventurei timidamente, querendo valer àquela aflição:

-Por que não casas essa tal Lucinda com outro? que diabo!

-Com outro?! estás doido! Ela adora o Brás e não pode absolutamente casar com outro. Seria um desastre! Com o Brás é que ela há de casar, quer ele queira, quer não queira!

O desespero do romancista era tão evidente e profundo, que eu não ri. Fiquei desde então convencido de que a ficção, como a realidade, obedece a leis de imprevisto e de fatalidade. Li depois o romance... O Brás não casou com a Lucinda. Porque não quis, está claro!»

Adolfo, acabando de dizer estas palavras, soltou uma baforada de fumo, afundou mais o corpo na larga poltrona do Argemiro e suspirou:

-Está-se bem aqui!

-Não achas? Pois essa poltrona amável estava encerrada no quarto dos badulaques por imprestável! Foi ela que a arrancou de lá, mandou-a ao estofador e pô-la aqui. E guerreiam uma mulher que me presta tais serviços!

-Deixa guerrear... Na vida, como nos folhetins, os romances fazem-se por si... Vê tu o trabalho e os manejos da Pedrosa em que deram! Surpreendeu-me tanto o que disseste da filha, que estou quase apaixonado por ela... Palavra! nunca a supus capaz de uma cena tão fina. Parece do Tadeu.

-E estava linda!

-Demais a mais... -e depois de uma pausa: -A tua governanta é bonita? Disse-me a Pedrosa que não. Por isso infiro que sim.

-Não sei...

-Deixa-te de asneiras; sê franco.

-Já te disse.

-Ela leva o seu rigor até os teus amigos?

-Parece. A não ser o Assunção...

-Teria graça se o nosso Assunção atirava a batina às urtigas por amor da tua...

-Cala-te, ímpio!

-Estou calado! Mas é cada vez mais adorável, o Assunção! Para mim, ele tem lá dentro coisa oculta, obra de feitiçaria, que nem a minha sagacidade nem talvez a tua intimidade pode adivinhar... Não te parece?

-Não. Nele há só o amor do céu... mais nada...

-Estás seráfico! Pois tu acreditas que, hoje em dia, um homem válido se faça padre só por amor do céu? Qual, histórias! Eles escolhem a vida clerical como poderiam escolher outra qualquer acomodada ao seu egoísmo e à sua habilidade... Os inteligentes pensam tanto na vida eterna como eu ou tu, mas fazem nesta o que podem para chegarem a bispos... Tenho um medo deles que me pelo... O nosso Assunção é um exemplar único, faz-me lembrar um desses sacerdotes virtuosos dos romances anticlericais, com que o autor adula o sentimento dos leitores piegas... O que me agrada sobretudo no Assunção é que ele é mais amigo da humanidade que dos santos; e gasta-se mais em esmolas que em jejuns... Não vês o recato em que ele envolve as suas ações e as suas idéias? Anula a sua personalidade, como para dar vulto ao fato e pôr em toda a evidência a personalidade alheia... A palavra eu parece que lhe morre na garganta antes de lhe chegar à boca, e todavia ele é inteligente. Já me tenho servido da sua biblioteca; é opulenta em obras clássicas portuguesas. Se fosse escritor, seria um defensor da língua!

-O valor do Assunção, para mim, que o conheço desde bem moço, está principalmente no coração. Ele é bom. Às vezes penso que ele estaria melhor num lugarejo qualquer do interior, ensinando crianças e animando a pobreza a suportar a vida, do que no Rio de Janeiro. Dizes bem. Ele não é lutador nem ambicioso; é um resignado e um meigo. se eu tivesse um irmão não lhe quereria mais. Entretanto, o Assunção nunca me confiou o seu segredo, que ele guardou sempre com tamanho recato que tive escrúpulo em interrogá-lo. Por que não havemos de acreditar na vocação? Ele sempre foi um místico. A mãe, uma senhora adorável, fez tudo para desviá-lo do sacerdócio, batalhou como uma heroína; mas ele dizia-se chamado por Deus, e Deus venceu a vontade materna. Fomos sempre amigos. Ele vivia com a sua ilusão, eu com o meu pecado; e com tão opostas idéias nunca ofendemos a nossa amizade. É verdade que ele me contagiou um pouco do seu sentimentalismo. É mais forte do que eu, que não lhe transmiti nem uma sombra da minha personalidade...

-Não lhe conheceste nem uma paixão?

-A dos livros, de que falaste há pouco; e essa mesma há alguns anos é que me dá a impressão de ser a tábua flutuante do seu naufrágio!

-E tua filha?

-Sim, ele adora minha filha!

-Ora, pois, já tem com que se entreter. Dá-me outro charuto. São magníficos os teus charutos... Realmente, está-se bem aqui. Estou vai não vai a raptar-te a tua Alice!

-Psiu! fala baixo...

-Receias que ela esteja atrás da porta?

-Quem sabe?...

-Não duvides! Uma governanta de casa de um viúvo só, vinda por anúncio de jornal... deve ter ao menos um defeitozinho, e olha que o da curiosidade é quase virtuoso... Antes do que me disse a Pedrosa, eu supus que vocês estivessem a mangar comigo, e que a tua mulherzinha fosse por aí uma matrona gorda, de cabelos pintados e verruga no queixo. Mas a Pedrosa, mais afortunada do que eu, esbarrou de cara com ela, e pela raiva com que lhe ficou, deduzi que a rapariga deve ser bonita...

-A Pedrosa disse-te isso?

-Disse que era feia.

-Então!

-Por isso mesmo fiquei sabendo que o não é. As mulheres, nesse assunto, são sempre contraditórias. Para experimentá-la, exclamei com ar de desgosto:

-Oh! minha senhora, uma velha! E ela logo, indignada: «Velha?! moça! E toda presunçosa, com a sua gravatinha azul!»

-Pensou, talvez, que a gravata fosse minha!

-E daí?!... Ó diabo, corre aquele reposteiro!

-Fala à vontade. Ninguém nos ouve.

-Que confiança!

-Absoluta.

-É extraordinário!

-É extraordinário. Desde que esta mulher entrou em minha casa eu sou outro homem, muito mais tranqüilo e muito mais feliz. Nunca a vejo, mas sinto-a; a sua alma de moça como que enche estas salas vazias de juventude e de alegria. Sozinho com os criados, eu abandonava-me. Ia às vezes para o almoço de chambre e de chinelos; passava pelo jardim sem olhar para os canteiros; e, no escrúpulo de alterar as coisas da antiga ordem em que as dispusera minha mulher, deixava-as envelhecer monotonamente, sem uma reforma que as alegrasse. Eu estava mofado, tinha bolor na alma. Botava pontas de cigarros pela casa... estava, enfim, de um desmazelo torpe! Depois, sentindo a influência dela, percebendo-lhe os gostos finos, que em tudo se demonstravam, comecei a exigir de mim hábitos mais corteses e a tratar a minha pessoa com mais consideração e maior carinho. A idéia de que ela poderia ver-me por uma fresta da veneziana, quando eu ia para a rua, fazia-me prestar atenção ao meu jardim e observar o seu progresso e melhor tratamento... Almoçando, eu via na cadeira vazia em frente ao meu lugar, a minha governanta a observar por que maneira eu levava o garfo à boca ou enchia o copo de vinho. Retomei insensivelmente os meus atos de elegância, prejudicados com o abandono em que por tantos anos vivi nesta casa, dirigida por um preto ladino. Entrando da rua, nunca surpreendi a minha governanta, como aconteceu à Pedrosa; mas ela vinha e vem ao meu encontro num aroma fresco de pomar florido, e que eu nunca sentira antes da sua estada nesta casa. Tu o disseste há bocado: «Está-se bem aqui!». A pouco e pouco as coisas mudas que me rodeavam, e que só sugeriam idéias saudosas e melancólicas, foram se despindo desse aspecto doentio e talvez tolo e animando-se em novos polimentos ou cores risonhas, que me davam saúde. Cadeiras velhas, esgarçadas no estofo, atiradas para uma alcova do porão, subiram lustradas e estofadas de novo para os cantos desguarnecidos das salas, onde o conforto é muito maior do que foi sempre! Repara para o soalho: um espelho! Vê as cortinas: resplandecentes! Em um meio que se asseava cada vez com maior primor, eu tive de corrigir-me dos defeitos que ia adquirindo na solidão e no desmazelo... Estou só, sentindo que sou o alvo da atenção e da magnanimidade de alguém... Esta carícia sem mãos sabe-me bem; tanto mais que me dispensa o trabalho do agradecimento! Se não a queria ver antes, por prudência, não a quero ver agora, por egoísmo, para não desfazer esta ilusão agradável e esquisita, mas bem sincera. Uma noite, entrando inesperadamente em casa, percebi que alguém fugia precipitadamente da sala. Não pude vencer a minha curiosidade; entrei. Junto à janela do jardim, perto de uma cadeira de balanço, encontrei um livro aberto. Ergui-o. Cheirava a flor de fruta. Era um romance inglês. A minha governanta lia inglês! Foi a sua primeira revelação. Depus o livro fechado sobre a mesa e vi o nome dela escrito na capa. Para simpatizar com ela bastaria, talvez, isso -para respeitá-la, o modo por que tem sabido corrigir Glória das suas brutalidades de menina malcriada...

-Como terminará tudo isto!

-Não terminará. Enquanto ela se sujeitar a este papel, eu ficarei muito bem naquele em que estou. Se não... ir-se-á embora e tratarei de arranjar outra pelo mesmo processo escandaloso, mas cômodo.

-Hum!...

-Afinal, talvez seja fácil...

-É impossível, digo-te eu! Essa mulher deve ter vindo acossada por uma grande miséria! Lembra-me uma garça marítima que vi caçar na floresta do alto da Serra! Tinha fugido à tempestade sozinha, branca, até aquelas paragens desconhecidas e inóspitas. Pobre ave do mar!

-Mataram-na?

-E empalharam-na.

-Esperemos que esta não tenha a mesma sorte.

-Pelos desejos da tua sogra!

-Que ciumenta! como se pudesse haver alguém neste mundo que me fizesse esquecer Maria!

-Há...

-O tempo?

Caldas não respondeu e sorriu.

E depois:

-Dizem que fama sem proveito faz mal ao peito. A tua governanta morrerá tísica!

-Coitada... defende-a quando se te oferecer ensejo. Eu sou tão mau que a sacrifico ao meu bem estar. E à minha imperfeição! Ignominioso! não achas?

-Humano. Ela veio ao encontro desse desastre. Tinha obrigação de prevê-lo. Talvez o desejasse... Que somos nós todos? Poços de mistério! Que pode esperar uma mulher que se aluga -por mais que te repugne a expressão, ela é corrente aqui- para tomar conta e governar a casa de um homem só? O teu egoísmo explica-se; tu pagas esse direito; agora, a sua sujeição, meu Argemiro, é que não tem duas faces por onde possa ser encarada. Para mim, ela é, única e simplesmente, uma especuladora.

-Não digas isso!

-Por que te indignas?

-Não...

-Acaba...

-Sem ter posto os olhos nunca em cima desta pobre moça, parece-me que a conheço já há muito... Ela fiava-se naturalmente na sua altivez para defender-se de qualquer assalto. Por que não acreditar que tenha, como tu disseste, vindo acossada pela miséria, estonteadamente, até a minha porta? A única impressão que tive dela, no dia em que a contratei, foi a de lhe ver as botinas esfoladas... Não lhe vi o rosto, que o trazia velado; mas vi-lhe os pés. Caprichosa como revela ser em tudo, bem vês que só por grande necessidade se sujeitaria a andar assim...

-Por que só uma pobre se sujeita a tal posição, naturalmente; mas as pobres honestas têm outros meios de ganhar o pão, menos suspeitos e sobretudo menos arriscados... Tua sogra tem uma certa pontinha de razão na insensatez do seu ciúme... De fora ninguém pode acreditar que esta situação seja senão uma fantasia.

-Mas que têm com isso?

-Nós outros, nada; mas tua sogra talvez tenha alguma coisa, por causa da tua filha!

-Não é por causa de Maria... é por mim! Minha sogra é uma sentinela sempre alerta na defesa do meu coração. Ela não se importa que me roubem os haveres ou que eu esbanje a minha fortuna; que eu tenha ou não tenha amigos, que eu trabalhe ou que descanse, que eu sofra ou me divirta; o que ela não quer, absolutamente, é que eu ame! Maria há de viver eternamente diante dos meus olhos, como vive diante dos seus, e hei de manter até o meu último alento a promessa que lhe fiz de não tornar a casar-me...

-Tolice...

-Que queres!

-Maria era um anjo... mas hoje é um fantasma; e um homem não pode viver abraçado a uma sombra...

-Dize-lhe isso...

-Na primeira ocasião.

-Não a mortifiques. Eu, bem o sabes, estou perfeitamente de acordo com ela.

-É o que te parece. Em todo o caso, dou-te um conselho: despede a tua governanta, ou dá um piparote nestas convenções românticas em que te embaraças e trata-a como toda a gente trata as governantas... Parece-me que nos temos ocupado demais com uma criatura que talvez não mereça tanto...

-Ou talvez mais...

-É o que eu digo!

-Não te entendo.

-Não admira, visto que nem te entendes a ti! Só te direi outra coisa, para concluir: a imaginação é uma amiga perigosa, e tu estás abusando dela.

-Estás tolo e sibilino. Na tua, queres dizer que acabarei apaixonado por uma mulher que vive em minha casa e que me obstino em não conhecer, julgando, talvez, que me ocupo em pensar nisso! Mas, nada! Eu penso tanto na minha governanta, que talvez seja picada de bexigas, ou desdentada, como penso na Sinhá, que tem os olhos que sabes e a pele lindíssima. Fiel à minha morta, não por virtude, mas porque não encontro no mundo mulher que se lhe compare, eu deleito-me no sacrifício de viver abraçado a sombras... É a minha esquisitice...

-Faze-te espírita.

-Nunca.

-Como espectador, eu estou gostando do caso. O que te peço é licença para conquistar a menina...

-Tens toda...

-E se ela aceitar a corte?

-Tanto melhor para ti...

-Não impões condições?

-De não ser em minha casa...

-Sabes onde é a dela?

-Não sei de onde veio, nem presumo para onde irá!

-Como um sonho!

-Tal qual!

O relógio do escritório marcava seis horas quando o dr. Teles e o padre Assunção entraram em casa de Argemiro. Teles resplandecia. Tinha falado nessa quarta-feira na Câmara. Via-se-lhe na cara, nua de pelos, a vaidade, e todo o corpo emproado num terno de sobrecasaca cor de avelã, parecia empertigar-se com mais satisfação. De vez em quando, ele olhava com um sorrisinho para as unhas reluzentes, como se relesse nelas o seu discurso famoso e sensacional...

Assunção vinha triste, com um ar fatigado, que mal dissimulava, dizendo-se amolecido por uma grande caminhada a pé. Enquanto os outros, com o cálice de vermute na mão, discutiam o último escândalo da Câmara, ele, recostado no divã, levantou o olhar para o retrato de Maria, suspenso na parede em frente, com o seu doce perfil de loura a esvair-se já no embranquecimento das tintas.

A beleza... a bondade... a juventude... tudo com o tempo se esvai, como o fumo delével. Na curta passagem da vida, confundem-se à distância todos os traços, os que marcam os caminhos da alegria, como os que vêm da tristeza... A saudade do passado é o nevoeiro que envolve tudo na mesma claridade enganadora e opaca...

- XIII -

A noite estava escura. Alice levantou a gola do casaco e, puxando o véuzinho até a queixo, desatou a andar em direção ao largo do Machado, sem paciência de esperar o bonde à porta de casa.

Atrás dela, à curta distância, Feliciano não lhe tirava os olhos de cima, cosendo às paredes o seu corpo esguio. A sombra, protetora de segredos, confundia-se com a cor do seu rosto, esvaindo-lhe a imagem. Os tacões da moça batiam na calçada em pancadinhas miúdas e sonoras; os dele dir-se-iam forrados de veludo.

A espionagem tem asas de morcego, teme a luz, mas espalma-se na treva sem rumor nem receio. Seu elemento é o mistério. O desejo do mal é silencioso. Oh, se ele pudesse estender as unhas afiadas e fazer sangrar na escuridão a carne branca daquela mulher!

Não fora ela quem o desprestigiara diante dos outros que ele dominara antigamente como senhor? Todas as suas fraquezas, os seus crimezinhos de infidelidade não tinham sido farejados e descobertos por essa criatura imperativa e doce a um tempo? Nem uma palavra lhe saíra dos lábios, mas a verdade salta pelos olhos quando a não deixam sair pela boca.

Ela sabia tudo. Tratava-o como um inferior, uma máquina de serviço, sempre necessitada de direção. Não fora para isso que ele aprendera a ler na mesma cartilha da sua antiga iaiá!

Revoltado contra a natureza que o fizera negro, odiava o branco com o ódio da inveja, que é o mais perene. Criminava Deus pela diferença das raças. Um ente misericordioso não deveria ter feito de dois homens iguais dois seres dessemelhantes!

Ah, se ele pudesse despir-se daquela pele abominável, mesmo que a fogo lento, ou a afiados gumes de navalha, correria a desfazer-se dela com alegria. Mas a abominação era irremediável. O interminável cilício duraria até que, no fundo da cova, o verme pusesse a nu a sua ossada branca...

Branca! Era a mulher branca que ele preferia, desprezando com asco as da sua raça.

A superioridade daquela que ia toc-toc na sua frente exasperava-o. O seu humor inalterável, os seus hábitos de asseio e de ordem não lhe tinham dado ensejo para a intriguinha fácil e perturbadora. Chegara o dia de castigar a afronta daquela branca intrometida, que ele odiava, e ardia por esmagar com a divulgação de algum segredo que a comprometesse. Desprezava o ardil pela verdade; mas, se esta lhe escapasse, então recorria a tudo, até ao feitiço de algum velho parceiro africano.

Mas desse recurso extremo só lançaria mão quando não pudesse contar com os da sua inteligência e malignidade.

Tinha ainda na memória uma sentença materna: «quem faz feitiço morre de feitiço», e essa idéia afligia-o. A mãe era filha de mina. Devia saber... aquela branca pobre e presunçosa, que era mais do que ele na ordem das coisas, para o tratar assim por cima do ombro, com um arzinho superior de patroa fidalga?

-Ela há de me pagar!

O que ele queria agora era saber bem da sua vida, penetrar no mistério daquela existência flutuante, sem raízes conhecidas; assenhorear-se de um segredo que a tornasse escrava da sua vontade poderosa.

Como aos de Adolfo Caldas, ela também representava aos seus olhos o encardido papel de especuladora.

Não era outra coisa; mas a intrusa teria o seu castigo, zurzido com mão de ferro, na hora marcada pela sua justiça.

O arrependimento entraria, então, no coração de Argemiro.

O bonde tardava e Alice não diminuía o ritmo dos passos. Antes assim; ele gostava de ir andando a pé, atrás daquela figurinha nervosa e fugidia.

Quem tanto se apressa, corre para a felicidade, que para o aborrecimento o passo é tardo. Pensava o negro: «Ela vai para alguma entrevista de amor...»

Isso contrariava-o... e crescia-lhe com essa idéia a raiva pela usurpadora dos seus regalados descansos e da sua autoridade de chefe!

Ela matara o seu prestígio. Viesse quem viesse depois dela, encontraria lançada na casa a semente da desconfiança. Fora um dia o Feliciano, que lia jornais nas cadeiras do amo, com deliciosos charutos entalados entre os beiços.

Um bonde! E o bonde parou a um gesto de Alice, que subiu para um dos bancos da frente, aconchegando com um arrepio o casaco cor de mel ao corpo friorento.

Feliciano, em pé na plataforma, não a perdia de vista.

No largo do Machado ela desceu e, passando pela frente da igreja, tomou a direção da rua Bento Lisboa.

O negro, a pequena distância, ia atrás dela, dando graças ao vento que fazia ulular o arvoredo da praça, abafando outros rumores. Na rua Bento Lisboa, Alice acelerou a marcha. Parecia levada por um grande desejo. Feliciano espiava-a aflito, numa ansiedade!

A sua admiração era não ver aparecer um homem, a quem ela desse o braço, que a comprometesse e o ajudasse na intriga... De resto, ele não queria crer, queria denunciar!

De repente estacou; a moça sumira-se na portinha negra de uma casa antiga, meio arruinada.

Feliciano passou, tornou a voltar, sondou com olhar atrevido o corredor escuro, procurou ver se estaria alguém a quem pudesse fazer qualquer pergunta na vizinhança, encostou-se a um umbral fronteiro e esperou, indignado, contra aquelas paredes, que um murro de homem deitaria abaixo e que lhe escondiam o mistério desejado!

O vento e o pó obrigavam os moradores do lugar à reclusão. As janelas fechadas estristeciam a rua ordinariamente animada. Que se passaria lá dentro?

Feliciano esteve uma ou duas horas à espera, como um vigia cuidadoso, firme no seu posto. Nem uma réstia, um tênue fio de luz vinha cortar a treva daquela fachada muda!

O negro tinha ímpetos de ir encostar o ouvido às janelas ou penetrar no corredor, cansado de esperar, numa impaciência que o adoecia.

Eram quase dez horas quando ouviu rumor de vozes e reconheceu a de Alice. Depois a moça reapareceu, puxando a porta sobre si.

A casa, impenetrável, guardava o seu segredo. Alice deslizava na sombra com o mesmo passo apressado. Dir-se-ia que igual desejo a levava ao ponto de onde partira três horas antes!

Desnorteado, Feliciano hesitava se deveria acompanhar Alice, cujo destino conhecia, se ficar mais alguns instantes esperando alguém que porventura saísse daquela casa. Alice nunca entrava nas suas quartas-feiras depois das dez horas; logo, ela marchava para o Cosme Velho. Interessava-o agora quem ficava ali. Começaram a cair grossos pingos de chuva e a escuridão era apenas dissimulada pelos lampiões de gás. Já sem receio de ser surpreendido, Feliciano verificou o número da porta por onde Alice saíra, mas só se afastou quando ouviu que a ferrolhavam de dentro.

«Quem estava, fica... logo, vou-me embora». E ele voltou, intrigado, aborrecido, com maior ódio ainda por aquela mulher que se lhe escapava de entre os dedos fracos quando julgava prendê-la para toda a vida!

Enfim, já sabia alguma coisa: aprendera o caminho da toca, onde ela vinha furtivamente todas as semanas, em horas e dias determinados...

«Quem se fia em mulheres está bem servido!...» -pensava consigo o negro, desandando no seu caminho. Esta ainda é pior do que as outras, porque é fingida. Fingida como Judas!

-Ela há de me pagar...

Alice deu volta à casa do jardim e entrou por uma porta do fundo, evitando um encontro provável com Argemiro, que falava alto no escritório, junto à saleta da frente.

Cansada, sentou-se um momento na sala de jantar, antes de subir para o seu quarto, vigiando a porta do escritório, pronta a fugir num relance, caso ele aparecesse. Com as mãos abandonadas nos joelhos, sorria com amargura às palavras de Argemiro, que lhe chegavam nitidamente aos ouvidos. Ele arengava contra as mulheres. Os outros davam-lhe razão, citavam exemplos destacados de escândalos, riam-se alto, declarando o casamento uma instituição prejudicada.

A uma frase atrevida de Argemiro, respondeu Adolfo Caldas maliciosamente:

-Enquanto pelo anúncio do Jornal acudirem governantas moças para as casas de viúvos sós... Mas é que nem todos são viúvos, meu caro!

Teles riu alto; a voz de Assunção disse qualquer coisa que a palestra dos outros sufocou.

Poderiam gritar. Alice tapara os ouvidos com os dedos e subiu correndo para o seu quarto, onde se fechou por dentro.

Quem falava agora na sala era o padre Assunção:

-Ainda há mulheres tão puras como as mais puras de todos os tempos. Tenho ouvido muitas Ruths no confessionário, e conhecido almas adoráveis de inocência e de bondade. Vocês conhecem-nas pelas exterioridades, eu pelos sacrifícios -que são ordinariamente as sacrificadas que nos vêm pedir conselho e consolação. Tenho encontrado em meu caminho sublimes abnegações, sempre por parte das mulheres...

-Por que os homens não se confessam!...

-Confessam-se alguns, mas não dizem tudo, ou, quando o dizem, fazem tremer! Tenho muito respeito pela mulher e sobretudo pela mulher pobre, porque nunca a pobreza deixou de ser afrontada, nem a mulher deprimida...

-Meu evangélico Assunção, parece-me que a tua psicologia está errada! Nós sacrificamo-nos muito mais...

-Nós sacrificamo-nos pelas idéias; elas sacrificam-se por nós, que somos menos compensadores e mais ingratos...

-Bonitas coisas você deve ter ouvido, padre! A mim o que me espanta e revolta é que ainda haja pais e maridos que consintam nessa abominação do confessionário. A religião não poderia ter inventado coisa mais vil nem mais repugnante. Vamo-nos embora.

-Vamo-nos embora, que a noite está negra que nem uma alma pecadora -disse Teles, ao mesmo tempo que Adolfo continuava:

-A minha confissão é que tu não ouves, padre! que me mandarias pelo telégrafo para o inferno. Basta que eu te confesse isto: amanhã darei um salto à tua biblioteca. Preciso de Rodrigues Lobo... Daquele -Pastor peregrino.

Assunção, procurando o chapéu, exclamou:

«Cabelos que na cor formosa e pura

Estais ao mesmo sol fazendo inveja,

Que confiança em vós será segura...»


Mas o Teles interrompeu:

-Olhem que o Argemiro está com sono e eu morto por me ver na pensão!...

Desceram, e, já na rua, o padre relembrou ainda uma frase do clássico:

-Deixai-me enganosas alegrias, que eu não busco na ventura senão o que a meu desterro sem esperança e à minha vida desesperada convém.

-Sinto cheiro a bafio quando ouço clássicos -comentou o deputado.

Adolfo acendia um charuto. Assunção adiantou-se para mandar parar o bonde.

- XIV -

A baronesa não recebera ainda a carta anunciada pela cartomante e andava inquieta, doente. Glória voltava radiante todas as segundas-feiras das visitas paternas e não tinha na boca senão o nome de d. Alice.

Aquilo fazia recrudescer o desespero da pobre senhora.

-D. Alice! d. Alice! não falas senão da tal d. Alice! que personagem!

-Eu gosto dela...

Prendendo as mãos da neta, puxando-a para si, a avó perguntava entre suplicante e imperativa:

-Mas que te faz essa mulher para lhe quereres assim?

-Nada... passeia comigo... conversa...

-Tenho medo dessas conversas... É a tal história dos sapatinhos de ferro!

-Da vaquinha Victória?

-Sim... Que te diz ela?

-Tantas coisas... Ontem fomos ao Jardim Zoológico. Vovó há de crer? Ela contou-me a vida daqueles bichos todos!

-Mentiras... Que pode ela saber!

-Eu contei a papai e ele afirmou que era verdade!

-Ah! tu contas a teu pai tudo que ela te diz? Bem disse eu! É a tal história dos sapatinhos de ferro... Um dia há de enterrar-te como a madrasta fez à outra.

-Mas ela não é minha madrasta! Nem diz nada de mal... Vovó pergunte só ao padre Assunção. Ele também gosta de conversar com ela. Ontem estavam muito tristes...

-Ambos?!

-Ambos.

A baronesa riu-se.

-De que se ri, vovó?

-De nada... achei graça! Ia bem vestida a tua d. Alice?

-Assim... assim... ela anda quase sempre com o mesmo vestido, quando sai. É pobre...

-Ela usa anéis?... tem alguma jóia?...

A neta admirou-se de ver a avó tão corada de repente; e, antes de responder à pergunta, exclamou:

-Nunca vi vovó tão vermelha! -e depois, naturalmente: -Não usa anéis... também não usa jóias.

-Nunca te falou da família?...

-Nunca... Papai me recomendou que eu nunca lhe perguntasse por isso!

-Ah! teu pai recomendou!...

-Por que seria, vovó?

-Porque geralmente mulheres assim não têm família.

-Coitadas! Mas assim como? D. Alice é como as outras!

-Talvez mais bonita...

-Não... Ontem então ela estava com os olhos tão pisados!

-Pobre infeliz!

-Eu queria que vovó gostasse dela!

-Para quê? Estamos muito bem assim... Cada um no seu lugar!

-Já tenho aprendido muita coisa com ela...

-Deus queira que não aprendas tudo!

-Papai gosta que ela me ensine!

-Ah...

-Padre Assunção também... Ele ontem assistiu à minha primeira lição de desenho. Uma lição só por semana é pouco... Vovó deixa d. Alice vir cá de vez em quando dar-me outra lição?

-Nunca!

Glória recuou espantada; a velha conteve-se, e depois:

-Os retratos de tua mãe ainda estão nos mesmos lugares?

-Estão... um em cima do piano... outro no escritório... outro no quarto de papai...

-Já tiraram o do quarto de toalete?!

-Ah! é verdade! e outro no quarto de toalete! Como vovó se lembra!

-Minha pobre filha!

-O do quarto do papai está ficando branco...

-Até desaparecer! É que a imagem de Maria está sumindo ao mesmo tempo da memória e do papel! -disse a baronesa abafando um suspiro.

-Da memória de quem?!

-Vai brincar, minha Glória; corre, faze das tuas brutalidades antigas... quero ouvir os teus gritos, as tuas risadas... Onde está a tua cabrinha? Já nem fazes caso dela!

-Como não?! D. Alice até me prometeu uma coleira para ela!

-Já me tardava...

As mãos da avó afrouxaram. Glória fugiu para o quintal.

-Está tudo acabado! Venceu e domina a todos. Glória, a filha da minha filha, talvez já ame à outra mais do que a mim!... Tem trabalhado, a maldita... e não há quem defenda a minha pobre Maria! Nem o Assunção... ninguém!...

A baronesa revia a cena, que não lhe saía diante dos olhos: Maria, recostada nos almofadões da cama, muito diáfana, com os cabelos louros espalhados sobre os ombros magros e os olhos engrandecidos, circulados de violeta... À sua cabeceira, em pé, o padre Assunção, lívido, com os olhos velados por uma expressão de agonia dominada. Argemiro, de joelhos ao lado da moribunda; ela aos pés da cama, de mãos postas, olhando, na insensata esperança do milagre!

Na sua alma ecoava ainda a vozinha da filha:

-Jura, Argemirao, que não te tornarás a casar...

-Juro!

-Jura que viverei sempre no teu coração!

-Juro!

A voz dela era como um sopro; a dele, formidável!

Maria morreu sorrindo, com os dedos embaraçados nos cabelos do esposo... Não falara na filha... não olhara para a mãe. Fora toda dele... e ele repelia aquela imagem angelical, para substituí-la pela de uma mercenária! Aquela amaldiçoada.

Como expulsá-la dali?! Não estaria perdendo muito tempo?...

Uma tarde, o Feliciano procurou-a; e ao relatar-lhe a sua espionagem ela mandou-o calar-se. Não queria saber de nada por esse modo. Que se fosse embora!

O negro não pôde reprimir um movimento de espanto. Não fora ela que o impelira àquilo?

Fora, mas em um momento de desânimo e de fraqueza. Envergonhara-se. Readquiria a calma; estava feito o seu plano. O negro foi despedido sem explicações e com a proibição de acompanhar a moça.

Feliciano saiu murcho, maldizendo as mulheres.

A baronesa dirigiu os seus passos pesados de mulher gorda para o escritório do marido, que se entretinha na coleção do seu herbário.

-325... -murmurava o barão, olhando para as suas listas; e depois:

-Que temos? -perguntou ele sem levantar a cabeça, mas percebendo no ar qualquer novidade.

-Que tomei uma deliberação.

-Qual?...

-Ir morar com Argemiro.

-Hein?

-Ir morar com Argemiro.

-Ora essa!

O barão tirou os óculos e olhava agora de face para a mulher.

-Que idéia!

-Como outra qualquer... meu velho...

-Qual! nós não podemos viver na cidade!

-Por que não?

-Por quê?... por tudo! Tu gostas desta liberdade... há trinta anos que te enterraste aqui e que daqui não tens querido sair para nada... eu, ao princípio, confesso, fazia sacrifício; hoje não. Olha para esta mesa: vês? estou catalogando as minhas plantas... plantadas aqui na minha chácara e tratadas só por mim!...

-Virás à chácara de vez em quando.

-Estás doida!

-Nunca o estive menos!

-No tempo em que Maria era viva nunca pensaste nisso, e então agora... Ora adeus!

-No tempo de Maria eu não era lá precisa para nada; e agora sou.

-Precisa? Em casa do Argemiro?! Para quê? Estás sonhando...

-Bem acordada. Vocês é que estão dormindo...

-Hum... já sei... deixa lá a rapariga em paz, minha velha ciumenta -exclamou o barão, rindo e cavalgando de novo a luneta no nariz.

-Também tu!...

-Também eu... Que diabo! tu imaginas um mundo ao teu feitio e queres governá-lo a teu bel-prazer? Guerrear a moça? Por quê? Porque é limpa, econômica, dirige bem a casa do teu genro e ainda por cima dá lições úteis à tua neta? Mas isso é uma insensatez!

-Para que te servem os olhos? Para que te serve o entendimento e a moral? Já te esqueceste das últimas palavras da nossa Maria? Não as ouviste tão de perto e tão bem como eu?

-A nossa Maria... morreu...

-Para ti e para os ingratos; não para mim, sua mãe, que a adoro e a vejo sempre diante dos meus olhos! Como é triste a morte, que até faz esquecidas as filhas aos próprios pais!

O barão retirou de novo os óculos, colocou um peso sobre os papéis em que catalogava as suas plantas e contemplou a mulher demoradamente, com tristeza. Ela estava abatida, com os olhos empapuçados, as faces emaciadas, o pescoço mais mole e pelancoso.

-Minha pobre velha! tem paciência e resigna-te. Compreendo a tua mágoa, mas é preciso esforçares-te por compreeender também o mundo tal como ele é. Imagina que a tua neta é ela, a nossa Maria, e concentra nela todo o teu carinho e todo o teu amor... já não peço nada para mim... bem vês! Glória é a filha da tua filha, vive para ela aqui, no meio das tuas árvores e não penses no que vai lá por baixo, pela casa dos outros.

-Casa de minha filha.

-De teu genro. Tua filha já não existe.

-Para mim existe! E depois, tu não vês que já me vão também roubando a neta? Daqui a pouco estaremos sós!

-Não... não é tanto assim!

-Desde que o Argemiro tem aquela peste em casa...

-Que está satisfeito e tem o seu lar em ordem. Se em vez de ser sogra fosses mãe dele, tu bendirias essa pobre rapariga... Tem juízo, minha filha, não vivas com os olhos fixos num fantasma e pensa na realidade das coisas.

-Seria bom... se o Argemiro não violasse o juramento que fez... ao fantasma... como tu lhe chamas!

-Escuta; quando ele jurou fez bem em jurar. Acreditava então poder cumprir tal juramento, e caso mesmo não acreditasse juraria do mesmo modo, porque essa era a vontade de uma moribunda. Nossa filha morreu sorrindo, graças a essa promessa. Não me interrompas! O Argemiro foi um marido raro, amoroso, sério e deu à mulher a mais ampla e perfeita felicidade. Ela acabou. Ele foi (se ainda o não é) fiel à sua memória por muitos anos. Se agora tivesse alguma paixão, não terias que dizer. Ele ainda é moço, e essa circunstância basta para explicar tudo. Somos-lhe obrigados.

-Achas então muito natural e muito bonito que ele ponha a filha em contato com a...

-Não acabes...

-Também tu a defendes!

-Também eu!

-Mas não a conheces!

-Conheço o Argemiro. Basta-me. Ele já nos expôs mais de uma vez em que condições tinha essa moça em casa. Se ele lhe entrega a filha é porque a julga digna de a receber -e não podes negar a influência moral que ela tem exercido sobre tua neta! Glória repete palavras e pratica ações que refletem um grande senso moral. É ou não é verdade isso?

-Quem nos diz que não seja essa uma obra de hipocrisia?

-Ora, adeus!

-Vocês estão cegos!

-Só tu vês!

-Só eu.

-Pois antes fosses cega, que a tua clarividência só te faz mal. De que te serve perceber ao longe tanta coisa que ninguém mais vê?

-Serve-me para defender quem não tem mais ninguém por si!

-Se tua filha do céu te escutasse, choraria!

-Fazes bem em dizer tua filha. Ela é só minha, agora!

-Bom... acalma-te...

-Estou calma.

-Nesse caso, dir-te-ei ainda que o Argemiro é senhor do seu nariz e que nós não temos autoridade, absolutamente, para metermos o bedelho na sua vida. Fará o que muito bem quiser. De mais, que jurou ele a Maria? Não se tornar a casar. Casou? Não. Logo...

-Mas vive como tal...

-Sabes que mais?! Deixa-me trabalhar... lamento-te muito, mas não posso argumentar contigo. 325... parece-me que era este o número...

-Como és frio...

-Sou velho; e tenho juízo.

-Também eu sou velha...

-Mas és mulher, e vives mais do sentimento que da razão... Alimentas a idéia de que tua filha sente, sofre, existe, e exiges que ela ocupe um lugar que infelizmente está bem vazio... Deleitas-te em revolver saudades; fixas-te em pensamentos de que deverias fugir; a morte assusta-te; a idéia do nada apavora-te e crias então um mundo à parte para tua filha, que, se continua a viver, é só no teu cérebro, mais ainda do que no teu coração! Reage contra essa tortura...

-É a minha consolação...

-É o teu desespero!

-Não é... talvez deva ser como dizes... mas eu agarro-me a esta ilusão, para poder suportar a saudade...

-Não chores...

-Sinto-me tão sozinha!

-E eu?

-Fugiste-me...

-Não, minha velha, estou e estarei contigo até a morte. O que te fiz sofrer na mocidade, quero redimir na velhice... Tua mãe, sim, teria razão de queixa contra mim; tu não a tens contra o Argemiro! Nossa filha, repara o que eu digo -nossa filha- gozou enquanto viveu: já foi uma felicidade! Tu esperaste por mim algumas vezes até alta noite... lembra-te! Ela nunca esperou... Fiz-te chorar, do que me arrependo; o Argemiro só a fez sorrir... Foi por causa do teu ciúme de esposa, muito justificado, que escolheste este ermo para viver... Sujeitei-me. Venceste. Hoje, arrependido, vivo cosido ao agasalho das tuas saias e acredita que, se morreres antes de mim... creio que me fecharei vivo no caixão...

O barão dizia estas coisas rindo, mas com os olhos afogados em pranto; a mulher, chorando francamente, aproximou-se e uniu os seus lábios trêmulos aos lábios murchos do marido.

-Vai descansar! -disse-lhe ele, afagando-a.

Ela saiu; ele limpou os olhos, esteve algum tempo a pensar em coisas distantes; depois, com um suspiro, voltou ao seu catálogo: -325...

Os dias passavam lentamente para os dois velhos.

A baronesa não dormia; tinha ao levantar-se o rosto pálido e os olhos vermelhos.

O barão entristecia-se por não lhe saber dar remédio. Que fazer? Deixá-la finar-se... e penar com ela. À proporção que as visitas da filha se prolongavam nas Laranjeiras, Argemiro, ocupadíssimo em novas causas, deixava de aparecer na chácara.

Esse afastamento era também motivo de censura e tristeza.

«O tempo leva tudo consigo, menos a saudade das mães pelos filhos mortos»; pensava a baronesa em silêncio, junto à janela, olhando vagamente para o campo pálido, cortado pelas linhas negras das altas e ramalhudas mangueiras, sob cuja sombra Maria correra em menina, entre a polvilhação de oiro da cabeleira desatada, ou cismara, em mulher, aquelas doces cismas que a idealizavam tanto.

Parecia-lhe que, se procurasse bem, encontraria na terra as pegadas mimosas da filha e que seria ingratidão abandonar aquele lugar em que ela vivera a doce vida da criança e da moça... Em vão o materialismo do marido lhe afirmava que o corpo branco da pobrezinha apodrecera como um lírio cortado, no fundo negro da cova, e que já dele não existia senão um feixe de ossos, tão pequenos, que caberiam todos no seu cofre de lembranças!

Em vão o padre Assunção lhe dizia que a alma bondosa da sua santa estava no céu, longe de tudo e de todos, voltada como uma açucena para os pés do Senhor! O que ela sentia é que sob a roupagem fluídica, a sua Maria estava a seu lado, ora sentada sobre os seus joelhos, como quando tinha dez anos, ora seguindo com o olhar ciumento o Argemiro, como nos tempos de casada; e que existia, que tinha o seu lugar na terra!

O sol desmaiava; as mangueiras com a tarde faziam-se mais negras. Um sabiá cantava, outro mais longe respondia, e a baronesa, dorida, persuadia-se de que a melancolia mais amarga é a dos velhos, porque não têm a suavizá-la nem o mais tênue raio de esperança!

Às vezes Glória, entrando bruscamente na sala, quebrava-lhe o devaneio. Morena, forte, com os cabelos pretos cobrindo-lhe as orelhas em ondas acentuadas, ela afastava a imagem loira e fidalga da mãe para o fundo esfumado do sonho; e, palpitante de vida e de força, vinha lembrar à velha que só se devia consumir por ela.

-De onde vens? Como te sujaste... trazes palhas no cabelo... Olha o vestido rasgado!

-Quando pulei a cerca...

-Pulaste a cerca! muito bonito! Então uma menina pula cercas?!

-Foi para entrar na horta...

-Vem cá... deixa-me abotoar-te... ora... ora...

Os dedos da baronesa prolongavam de propósito a operação, só pelo prazer de estarem em contato com o corpo adorado da neta.

A menina debatia-se por fim, morta por correr para o pomar ou para o jardim.

-Fica quieta...

-Vovó! ande depressa...

-Para quê?

-Ainda não dei couve aos coelhos e quero engordá-los para levar um a d. Alice. Ela disse que...

-Bom. Vai-te embora!

A neta, percebendo tudo, caía-lhe aos beijos nas faces e nos cabelos, rindo, apertando-a nos braços vigorosos.

-Vovozinha do meu coração! Como eu amo esta avó! Como eu adoro esta avó!

Então sentava-se e contava as histórias lá de fora:

O vovô ainda não percebera que as formigas estavam lhe dando no pé de absinto... A mangueira grande do pasto estava com erva de passarinho. Ela já avisara o João... A galinha pedrês aparecera com dez pintinhos nascidos no mato e havia um ninho de pintassilgos na limeira da horta...

A avó sorria, ela incitava-a a sair com ela pela avenida das Mangueiras, até lá abaixo ao portão, para ver uma paineira da estrada toda coberta de flores! Completamente rosada!

A avó, puxada pela neta, arrastava os passos pesados pela aléia deserta e só nesses curtos momentos o seu pensamento tinha repouso.

Segurando na mãozinha da neta, dizia consigo:

-Deixa-me aproveitar bem a companhia dela, antes que ma levem!

Mas lá chegava o sábado, em que a levavam, ou o avô, ou o padre Assunção, que ia às vezes cedo almoçar com os amigos e buscar a pequena. Sem ser anunciado, ele, bom andarilho, vinha a pé desde a estação, uns bons dois quilômetros, até à chácara.

Quando, às vezes, o percebiam, ele já estava dando os bons dias na sala da entrada; outras ocasiões os olhos ansiosos de Glória descortinavam-lhe ao longe a batina negra, destacando-se no fundo luminoso do portão aberto.

A menina corria para ele; e a avó, encostada à janela, via-o aproximar-se, com tristeza...

O padre parecia-lhe então um carrasco, conivente com os projetos criminosos da outra e os atos hipócritas do genro. Não o via sempre pronto a defender a outra e a elogiar a moral severa de Argemiro?

Também ele esquecia essa pobre Maria, também ele traía o cumprimento da sua última vontade! É bem verdade que os mortos vão depressa!...

Num sábado, depois de ter visto Glória entrar no carro com o avô, a caminho da cidade, a baronesa dirigiu-se para a sua saleta de costura, e tentou acabar um avental da neta; mas os dedos preguiçosos pararam no ar e o aventalzinho escarlate caiu-lhe sobre os joelhos tão incompleto, depois de meia hora de manuseado, como estava antes.

Arguía em mente a sua fraqueza e indolência.

Via irem as coisas por água abaixo e não fazia nem sequer um aceno para prendê-las! Não era tempo de tomar uma resolução?

A culpabilidade dos outros atemorizava-a?

O dever das mães não é defender os filhos até a morte?

A sua passividade não era, portanto, um crime, e não seria tempo de pôr em ação o seu desejo, até agora sufocado pelas mãos dos outros, de reaver para a sua Maria o coração de Argemiro e guardá-la lá dentro, como santa única em devoto oratório?!

À força de pensar nisso, materializava as imagens, dava corpo e sangue às suas idéias, pronta a bater-se por elas até o último alento.

Recriminava-se agora da sua altivez, mandando calar-se o negro quando este lhe ia relatar o resultado da sua espionagem... Que tola generosidade fora a sua, e de que desencontrados sentimentos são vítimas as criaturas humanas... Repelira também o alvitre da cartomante, cansada de esperar pela carta anunciada... Vinham-lhe agora tentações de voltar lá, a ver se ao menos encontrava alguém a seu favor! Que falta fazia um braço em que se apoiar!... Certamente que a cartomanate não lhe devia merecer absoluta fé... mas não acertara ela em muitos pontos com a verdade? A inimiga e as suas maquinações não lhe tinham saltado aos olhos logo no princípio da consulta?

Dever-lhe-ia negar o poder da adivinhação? E em vez de negar, não seria prudente recomeçar?

Uma elucidação...

O aventalzinho escarlate caíra para o soalho, e nos resedás da janela um beija-flor destemido batia as asas delirantemente.

Eram três horas da tarde quando a baronesa, muito afogueada, subiu a escadinha íngreme da d. Alexandrina. Como na primeira vez, teve de esperá-la longamente na sala de jantar, entre cromos pregados a goma na parede e aniagens sujas de cortinas. Um cãozinho rateiro rosnava a um canto, de focinho desconfiado erguido para as sedas pretas da velha bem tratada. Depois de uns minutos que se afiguraram longuíssimos à consultante, a portinha do quarto abriu-se e d. Alexandrina apareceu, com o queixinho sumido em um riso largo de boas-vindas.

A baronesa disse, em tom queixoso:

-Não recebi a tal carta anunciada pela senhora...

-Há de recebê-la... as cartas não mentem! Ainda não é tarde... Entre...

Nessa segunda-feira o passeio fora ao Instituto dos Cegos.

Glória voltava com a alma cheia de espanto. Divisando no banco do jardim o padre Assunção, pontual na espera, correu para ele com entusiasmo. Alice acompanhava-a à distância, com um sorriso plácido.

-Adivinhe onde eu fui, padre Assunção!

-A algum lugar muito bonito, porque os teus olhos refletem maravilhas!

-Acertou. Fui ao Instituto dos Cegos!...

-Ah! mas... pareceste-me tão alegre!

-Pois então! eu imaginava que todos os ceguinhos vivessem amargurados... zangados... que no escuro em que vivem não se entretivessem com coisa nenhuma, nem pudessem ler, nem tocar, nem nada... Quando d. Alice me disse: vamos ao Instituto dos Cegos... eu não respondi nada, por vergonha, mas fiquei com medo...

-Os cegos nunca fizeram mal a ninguém...

-Não sei... mas eu tive medo de ficar com pena!

Alice chegava nesse momento; o padre cumprimentou-a e, recebendo a menina, despediu-se dela.

Glória abraçou a moça com frenesi e partiu, em companhia do padre, para o escritório do pai.

No bonde, recomeçou a conversa:

-Então hoje gostaste do passeio...

-Muito! Quando chegamos eu estava aborrecida; mas logo que passei pela primeira sala fiquei interessada. D. Alice ia me mostrando todas as coisas com tanta paciência... tudo muito limpo e as cegas tão risonhas! Havia lá uma menina chamada Rosinha, da minha idade... e mais adiantada do que eu!

-Porque é estudiosa.

-Mas eu vejo!

-É que não basta ver...

-D. Alice levou uns biscoitos para as crianças... se o senhor visse a algazarra que elas fizeram! São conhecidas de d. Alice... Uma tocou piano e um mocinho, violino... Fiquei admirada... nunca imaginei que os cegos pudessem ser felizes.

-São, ali, porque não têm tempo de pensar na sua desgraça, tão ocupadas têm todas as horas. Assististe às aulas?

-Assisti... leram... deram geografia...

-Foste às oficinas?

-Fui. Vi empalhar cadeiras, fazer escovas...

-Aí está: lendo, tocando, enramando vassouras ou fazendo outro qualquer trabalho, eles estão sempre entretidos. É uma casa santa, aquela em que puseste hoje os teus pés. Guarda na memória a lembrança desse passeio, que te servirá de conforto quando ouvires mais tarde falar mal dos homens... Se não houvesse bondade, ninguém iria ao encontro da miséria, nem protegeria os fracos...

-Foram as palavras de d. Alice, quando saímos de lá...

-Ah, ela disse isto mesmo?

-Tal e qual...

-É extraordinário!... que mais te disse?

-Que todos nós devemos conhecer as casas em que se pratica o bem na nossa terra, para as bendizermos e conduzir até a sua porta os necessitados de seu socorro... Disse que o Rio de Janeiro é uma cidade generosa e que nós todos devemos fortificá-la no empenho de agasalhar os infelizes.

-Ela tem razão!

-Quando eu lhe disse que os cegos já não me pareciam desgraçados, ela mostrou-me o mar... o céu... os morros... os barquinhos de vela... e perguntou-me depois se eu não teria pena de não ver tudo aquilo.

«É o exemplo vivo, a comoção aproveitada para o exemplo moral...» -pensou o padre. «Quem teria inoculado naquela mulher esta delicadeza, este tato de educadora, tão raro? Ela conhece as plantas dos jardins e ensina os nomes das nossas árvores; sabe de cor as casas de caridade e chama para elas a simpatia das crianças, interessando-as ao mesmo tempo pela grande família dos infelizes... Sujeita-se a exercer um lugar suspeito, aceitando todas as condições que lhe impõem e revela uma sensibilidade rara em todos os atos em que a podemos apreciar... Será ela na verdade a mulher perigosa, não pelo que calcula e inventa, mas pelo que merece? Não será prudente encobrir, tanto quanto possível, essa feição singular do seu caráter ao Argemiro?... Glória não repetirá ao pai as palavras que me disse, fica-lhe no coração o sentido, mas a memória não as guardará com a mesma fidelidade... Eu serei mudo... Convém ser mudo. Ele quer guardar a sua independência... e nem percebe que já está cativo! Diz que não. É sincero quando o diz... Entretanto, só se alegra quando entra em casa... já não olha com o mesmo olhar saudoso para o retrato de Maria. Se a governanta sai, estando ele em casa, logo se aborrece. É esquisito. Não a ouve... não a vê, mas sente-a! Como acabará tudo, se ela não for o que parece?... Há almas tão complicadas, tão indecifráveis! A desta mulher assusta-me... preciso defender o Argemiro... sou o único amigo em contato com ambos... Ela é difícil... eu, desajeitado. Se eu fosse mais corajoso e ela mais franca... Mentirosa?... não me parece... mas é possível. Minha mãe gostou dela. Mas o coração de minha mãe é propenso à simpatia. O melhor coração da Terra!... Argemiro mudou... está iluminado... Ela envolve-o com um cuidado excessivo... é isso que me faz cismar... Enfim, seja como for, a verdade é que a minha Glória tem aproveitado. Cá embaixo parece outra. Deixa a casca selvagem com a avó, e fica de cetim! Teremos isso de lucro! Porque, afinal, para tudo o mais o remédio é a inércia».

Glória era esperada pelo avô no escritório do pai e, como o velho tivesse pressa, as despedidas foram precipitadas. Só depois deles saírem Assunção reparou na expressão aborrecida do amigo.

-Que novidades temos? Estás com uma cara!

-Imagina: minha sogra vem morar comigo!

-Felicito-te. Terás assim a tua filha sempre a teu lado. Parece-me que já lhe pediste isso mesmo há tempos.

-Quando enviuvei. Então não quis. E agora...

-Quer. É natural.

-Mentes; não achas natural. Tu percebes tudo tão bem como eu.

-Direi mais: acho que faz bem.

-Em espionar-me?!

-Defender-te.

-Quem me ameaça?

-A tua imaginação.

-Vocês são todos uns imbecis!

-Talvez...

-Meteu-se-lhes uma asneira na cabeça e é ali! Eu sempre quero saber que mal fez a pobre moça à minha sogra! E a vocês todos, que a guerreiam... mas guerreiam por quê? Porque traz a minha casa alegre, cheirosa, bonita, limpa; porque economiza o meu dinheiro, fazendo-me passar bem como nunca, e ainda corrige a minha filha de feios vícios de educação! A eterna malícia faz disto um enredo e mete-se-me no caminho para me perturbar. Tu sabes que eu quero muito à minha sogra; depois da morte de Maria redobrou por ela o meu afeto e a minha consideração... Sabes que tenho um grande prazer em vê-la, em estar a seu lado, em chamar-lhe mamãe... como uma criança... como minha mulher fazia... Sabes que sou fiel ao passado e ao juramento que fiz; sabes tudo isso e sabes também que sou profundamente egoísta, que amo a ordem, o silêncio, o sossego, o conforto e a liberdade! A liberdade, sobretudo! Aquela criatura que tenho em casa não é uma mulher; é uma alma, que me não constrange absolutamente em nada. Levanto-me, deito-me, saio, entro, janto, converso, ralho ou rio, sem ter que dar por isso a mínima satisfação a ninguém. Vais ver agora! Minha sogra e ela são incompatíveis...

-Talvez não...

-Sim, com certeza! Abre-se a guerra. A moça sai. O Feliciano readquire o perdido prestígio. Começa o desbarato dos charutos, das camisas engomadas e das gravatas. A mobília ficará com pó; a comida será atirada para os pratos como para os cães. Minha sogra, velha e pesada, não poderá subir e descer as escadas na fiscalização dos quartos. Os retratos de Maria aparecerão rodeados de perpétuas e sempre-vivas, flores da minha especial embirração; aquele perfume suave que me entrou em casa com esta rapariga, desaparecerá com ela; abrirão a porta do galinheiro para o jardim e secarão roupas no gradil do terraço do fundo... Verás! À noite não poderei passear no meu quarto, como costumo fazer, com receio de incomodar a mamãe, que tem sono leve e sofre de enxaquecas; e terei mesmo, para sossegá-la, de apagar a vela muito antes de adormecer, porque tem medo de incêndios!...

Assunção sorriu.

-Que pretexto dá para essa resolução?

-Doença. Está doente e precisa vir morar ao pé dos médicos!...

-Efetivamente, achei-a abatida outro dia...

-A doença dela, sabes qual é? Ciúmes! Vem vigiar-me... pôr obstáculos... fazer cenas... Como se eu me sujeitasse!

-Não...

-Não?! És inocente! Mas eu fujo, invento uma viagem. Parto!

-Para onde?

-Não sei... para o inferno.

-Pobre senhora...

-Eu adoro-a, Assunção! Adoro-a lá, à sombra das suas mangueiras, afundada na sua cadeira de balanço, cheirando a alecrim e dizendo as coisas maternais que sabe dizer. Mas em minha casa atrapalha-me... desarranja-me a vida... altera-me o sossego. Pensa comigo: minha sogra pode viver em companhia de Alice?

-Pode...

-Como?!

-Pedindo-lhe para não se imiscuir em nada na direção da casa...

-Seria bom se ela não viesse já com o propósito de suprimir a outra. Engole-a. Verás que a engole logo na primeira entrevista.

-Exageras...

-Estás convencido disto, tão bem como eu. Não a defendas, nem disfarces!

-Quem te deu essa notícia, o barão?

-Sim. Quando vocês entraram ele acabava justamente de pedir-me que lhe dispensasse um quarto em minha casa. Outra coisa: o meu quarto eu não o dou; e a não ser o meu, o único quarto nas condições de servir-lhes é o que dei à governanta... terei de a desalojar... é desagradável isso, não te parece? Será necessária a tua intervenção. Agora levo em capricho, não quero ver nem falar com aquela moça. Uma sacrificada à brutalidade dos outros.

-De que me incumbes?

-De ir comunicar isso mesmo à coitada e combinar com ela os arranjos do quarto...

-Tua sogra descerá?...

-Amanhã. Ela entra por uma porta e a Alice sairá pela outra; é o que vai acontecer.

-Talvez não...

-Vê se com o teu prestígio de padre e a tua diplomacia consegues conciliar as coisas...

-A baronesa desconfia de mim...

-Ah, já notaste!

-Todavia, procurarei elucidá-la. Ninguém acredita, a não ser os amigos íntimos, que mantenhas no segredo da casa a situação que fazes transparecer cá fora... Não censures tua sogra, pela mesma persuasão, que...

-Persuada-se do que quiser; mas não lhe assiste o direito de impedir a minha vontade e a minha liberdade de homem, de fazer o que eu muito bem entender. Nem a minha mãe seria capaz disto, nesta situação...

-Não te exaltes...

-Meu sogro notou com certeza o meu sorriso amarelo...

-Pobres velhos!

-Só os lamentas a eles! E a mim?...

Assunção não quis dizer a quem mais lamentava, mas a figura pálida de Alice atravessou-lhe o espírito numa auréola de piedade. A sua comissão era muito delicada, e nem sabia por onde começar.

Argemiro passeava agitado pelo escritório, falando entrecortadamente:

-Exatamente agora, que tenho tanto trabalho... aquele doce sossego... ainda ontem escrevi até as duas horas... Qual!... E aquela mania da comida sem sal?!... E eu que aprecio os salgados... Outra coisa que eu abomino... o cheiro do tal mate queimado! E o senhor meu sogro não dispensa o mate!... logo de manhã cedo é cada xícara! O Feliciano vai rejubilar-se! Se me aparecer com a cara alegre, mato-o!... Se não fossem certas considerações... Ah! os meus livros, tão bem arrumadinhos... Hás de crer? Depois que ela está lá em casa nunca achei uma falta e nem uma traça na minha biblioteca! Antes, era um desespero! O Feliciano tinha aquilo em uma desordem... Eu estava agora tão bem... tão bem... Que castigo!

-Tranqüiliza-te... tudo se há de arranjar. Por quanto tempo vêm os teus velhos?

-Tempo indeterminado. Quer dizer, toda a vida!

-Se eles soubessem deste acolhimento...

-Sabem. Presumem! Minha sogra com que fim vem cá para baixo? Com o fim de escangalhar a minha felicidade. Pensa que eu amo, que sou correspondido e vem pôr-se entre os meus beijos e os da pobre rapariga... O que conseguem com isso tudo? Despertar-me a curiosidade e obrigarem-me talvez a apaixonar-me de verdade. E ainda se hão de queixar de mim, quando eu confessar isso! Verás.

Assunção sorriu, dando razão ao amigo, sem, entretanto, se manifestar.

-Envergonho-me antecipadamente do que se vai passar lá em casa...

-Tua sogra é delicadíssima...

-É ciumenta! e os ciumentos chegam a praticar desatinos! Lembras-te de Maria? Um anjo; mas quando lhe dava para ter zelos... perdia a cabeça!

-Tal qual a mãe... Decididamente, eu vou me embora!

-Parece-me prudente conversares hoje com d. Alice.

-Nunca... já agora, não quero!

-Tem paciência, meu velho, fala-lhe tu... és tão bom, tens-te interessado tanto pela minha vida, que não sei já dar um passo sem ti... e quando o dou não sou feliz. Estou a falar-te e a reparar numa coisa: vocês nunca aludem ao nome da minha governanta sem o acompanharem do dona... vejo que ela inspira respeito a toda a gente... deve efetivamente ser uma mulher fina e educada... D. Alice! Pois a d. Alice vai sofrer vexames.

-Não sejas tolo.

-Verás.

-Espera-me hoje para o jantar. Conversarei depois com a... d. Alice. Ela é cordata e conhece o seu lugar. Dás-lhe demasiada importância. Afinal, ela é uma empregada... uma subalterna. Não exageres os melindres e tranqüiliza-te. Que mais ordena, meu príncipe, ao seu mordomo?

-Que me abrace e me perdoe.

Assunção sentiu no abraço do amigo uma ternura intensa.

«Ama-a...» -pensou ele consigo, tristemente. «Ele ainda não o sabe... mas a verdade é que ela já lá está dentro...»

- XV -

Intolerável, o Feliciano, ao servir nessa tarde à mesa. Sem pronunciar uma única palavra e mais empertigado ainda que de costume nuns colarinhos que lhe roçavam as orelhas, percebia-se que no seu mutismo e seriedade ele sufocava de contentamento. Quando o olhar de Argemiro o lobrigava espigado aos cantos, esperando ordens, desviava-se com uma impressão esquisita e que não podia definir. Durante todo o jantar, desgostou-o a figura limpa e correta do negro, aproximando-se e afastando-se maciamente, conforme as exigências do serviço.

Em frente de Argemiro o padre Assunção, encostando os ombros quadrados no alto espaldar da cadeira de couro, dilatava as narinas ao aroma das frescas rosas que alegravam a mesa.

«Para tornar uma hora agradável basta às vezes bem pouca coisa...» -pensava ele consigo. «Uma toalha bem limpa... umas flores orvalhadas... esmaltes de louças reluzindo... e já os olhos e o olfato têm um repasto regalador... Amanhã, as coisas estarão de outra maneira, que é vezo de inimigos contradizerem-se em tudo. E então Argemiro confessará o que ainda pensa ignorar...»

-Acredita, meu velho, estás hoje com a fisionomia diferente! Salvaste com certeza alguma alma do purgatório...

-Talvez... mas talvez sejam também efeitos de um sonho que tive esta madrugada. Imagina: eu estava sentado a um órgão de uma catedral enorme, e de tão peregrina beleza, que nenhuma haverá assim sobre a terra... Por toda a vastidão do templo estendia-se uma luz pálida, de alvorecer ou de luar, desenhando nas naves os rendilhados das rosáceas e as figuras dos vitrais... Eu tocava músicas solenes e de tão concentrado, tão profundo sentimento, que as lágrimas me caíam dos olhos aos pares, quando acordei, e tenho andado todo o dia com a alma cheia de harmonias. Se eu fosse moço, teria corrido ao Instituto de Música a ver se tornaria um dia possível tal ventura... Por que hão de vir tão tarde semelhantes sonhos?!

-Para que se não realizem.

-É isso. Minha mãe, lembras-te? adorava a música e o piano poucos segredos teria para ela. Foi pena que não me tivesse transmitido essa prenda... A arte da música é perfeitamente compatível com o sacerdócio e eu teria uma válvula para as minhas febres...

-Escreve...

-A palavra é indiscreta e arrastaria o meu temperamento, que eu trago fechado à chave...

-Nunca pensei que ele se submetesse a isso. És um forte, Assunção!

-Nunca pensaste, por quê?!

-Porque te conheço desde pequeno. No colégio ou em casa, foste sempre um rebelde. Não posso esquecer-me do dia em que minha mulher, nesta mesma sala, ali, naquele canto, me disse que tu ias tomar ordens.

-Efetivamente, foi ela a primeira pessoa a quem confiei essa resolução!

-Como eu protestasse, indignado contra a idéia (que sempre me foi muito desagradável), ela observou: Tu zangas-te! pois eu estimo... Ele será o meu confessor! -Tudo isso vai longe...

-Para mim não. Parece-me que tudo se passou ontem... No meu sonho, esta madrugada, reviveram essas comoções... As imagens da catedral, todas de mármore branco, tinham, na opacidade da pedra, a expressão humana das criaturas que amei na minha adolescência e na minha mocidade... As melodias gloriosas que eu derramava pela vastidão do templo eram formadas pelas vozes delas, ressuscitadas miraculosamente naquelas endeixas sacras... Não eram só vozes humanas que eu reconhecia nas sonoridades da minha música, eram também outros sons que tenho sempre guardados no ouvido: o ranger da porta do seminário... o badalar do sino para a minha primeira missa... e o rugido das sedas de tua mulher no dia em que me foi fazer a primeira confissão... Nunca me esqueci... foi como um ruflar de asas... Pois a minha alma transportava essas impressões em largos cânticos, vendo as imagens extáticas todas voltadas para a chuva do meu pranto e sentindo a minha alma encher o mundo! Um sonho de artista genial, e em que eu gozei as alegrias fecundas da criação. Não te parece que sejam os artistas os homens mais felizes da Terra?

-Tenho convivido pouco com eles, e como não me basta imaginar... Quem sabe? Olha, toma vinho. Creio que te basta o da missa...

-Pouco mais Que é isso?!

-Nada...

Argemiro tivera um pequeno sobressalto involuntário, vendo a mão negra do Feliciano pegar na porcelana cor de leite do seu prato.

-Nunca te aconteceu, ao ter qualquer impressão, sentir mau ou bom gosto na boca?

-Nunca, respondeu o padre.

-Pois agora foi como se eu tivesse tomado uma colher de sumo de limão!

O olhar de Argemiro acompanhou o vulto do negro, que se dirigia para a copa. Assunção argumentou:

-Está nas tuas mãos o remédio.

-Despedi-lo?

-Pois então?

-Acabo por fazer isso mesmo. Realmente, não há nada como a ignorância para certa gente. Meu sogro fez de um moleque humilde, um homem ruim... Se em vez de o mandar para a escola, com bolsa a tiracolo e sapatinhos de botões, o deixassem na modéstia da cozinha ou da estrebaria, ele não teria agora nem a revolta da sua cor nem a da sua posição... O que o torna mau é a inveja e a sua ignorância mal desbastada.

-Ele não é tão mau assim!

-Defende-o agora!

O Feliciano voltou com a sobremesa, um doce novo, desconhecido de ambos e que o copeiro não teve remédio senão confessar ter sido preparado por d. Alice, receoso de que ela o ouvisse por detrás das portas.

Depois do café, ao entrarem os dois sozinhos para a biblioteca, Argemiro notou:

-Foi o meu último dia de bem-estar. Reparaste? Nada faltou. É uma alegria, uma casa assim! E rara, eu sei, nas minhas condições, raríssima! Perfeita, a minha governanta! Se tem defeitos, nunca os deixa transparecer... Nem é possível que os tenha...

-Estás doido! Ela é uma mulher como muitas; somente cuidadosa de não perder um emprego bem remunerado; mais nada.

-A esta acusas!

-Não. Esclareço-te. Jogaste uma cartada, foste feliz, dá-te por bem pago por estes largos meses de tranqüilidade. Supondo que tua sogra se incompatibilize com a d. Alice, acharás depois outra governanta nas mesmas condições. Esta é tão perfeita como será a outra, desde que tenhas com ela as mesmas exigências que tiveste com esta...

-Pensas então que seja só movida pelo interesse pecuniário que ela tão bem se desempenha de tudo?

-Penso... que isso concorrerá!

-Pensas que só o interesse de agradar e de conservar um emprego mesquinho dite as lições de moral e de desenho que ela dá a Glória?!

-Concorrerá...

-És mau; ou não és sincero! Eu falo com imparcialidade, porque, como sabes, ela para mim não é uma mulher, mas uma alma. Não a vejo, não lhe toco, a sua imagem material é-me tão indiferente como um pedaço de pau ou uma pedra. Para mim, basta-me a sua representação, neste aroma, peculiar dela e que erra sutilmente por toda a minha casa; nesta ordem, que me facilita a vida, e no gosto com que ela embeleza tudo em que toca e em que pousa a vista. É uma educada. Afigura-se-me que ela deve ter estudado à sombra de castanheiros ingleses, entre campos de tulipas e jacintos, tão diversa ela me parece dever ser das outras mulheres. Não me digas que é feia. Já sei que o é; mas deixa-me com esta fantasia, que me sabe bem... Aí vem o Adolfo. São os passos dele. É bom que venha cortar este idílio. Os idílios são como os sonhos: também às vezes vêm tarde!... Foi um lindo sonho, o teu!

«Bom! Ele já tem consciência do perigo...» -pensou consigo Assunção.

Adolfo Caldas apareceu entre os umbrais da porta, com as largas faces rubicundas crestadas de sol. Fora a Paquetá por causa de uma mulher. Não valera o sacrifício...

E o serão, passaram-no a falar de amor, de política e de negócios.

No outro dia, às onze da manhã, um carro conduzia os barões e Glória, da Central para as Laranjeiras. Estava um dia, como dizia Eça, arrepiado. Pequeninas nuvens cinzentas em forma de escamas sobrepunham-se no azul do céu. Nas ruas andava gente agasalhada. Um ventinho úmido filtrava-se por entre as ramas empoeiradas do arvoredo das praças.

O barão sumia-se no assento do fundo, entre as dobras fartas da saia castanha da mulher, que uma expressão de firmeza e resolução animava. No assento da frente, Glória, com um largo chapéu de fitas amarrotadas, observava tudo o que via de relance pelas calçadas. Comentavam a falta de Argemiro. Por que não teria vindo Argemiro à estação?

Feliciano, esse viera, e lá ficara despachando malas e embrulhos para casa. Bem bom rapaz, o Feliciano.

A baronesa preparava o ânimo para conflitos! Bem suspeitava de que o genro não estaria contente, ele que tanto a estimava havia poucos meses! Ia, enfim, ver o focinhozinho dessa d. Alice, que se metia em tudo, estragando a felicidade da família. Era o fermento mau; era a colher de veneno, a gota de azeite rançoso no leite doce e fresco! Como a receberia ela? Como uma criada grave?... Como uma dona de casa? A baronesa preparava-se mentalmente: para tal caso, tal atitude...

O carro ia depressa, abalando o fígado doente do barão, que se submetia a tudo contrariado, e fazendo tremer a papada flácida da baronesa.

A sombra das suas lindas mangueiras, o sossego das suas salas amplas, abertas para o silêncio dos campos ramificados por grossas veias de águas fugitivas, o recorte azul das montanhas afastadas, que lhe era doce contemplar da sua varanda ao pôr do sol, afiguravam-se-lhe bem perdidos para sempre, como se não de bairro, mas para outro país estivesse de mudança!

-Arre! -exclamou o barão, sem poder sofrear uma praga, a um arranco do carro, que lhe abalou todas as vísceras.

-Tem paciência, meu velho! -aconselhou a baronesa, voltando-se para ele não menos abalada.

-O Feliciano escolheu o carro pior que encontrou! Decididamente...

Outro balanço cortou-lhe a frase e o barão suspirou, lamentando de si para si a perdida liberdade da chácara, vigiando as suas plantas, os viveiros de pássaros, os seus estudos de botânica, práticos, gostosamente feitos pelas orvalhadas das madrugadas de maio! Desacostumara-se a olhar para as paredes, odiava a cal.

-O mar! -gritou Glória com alegria.

O carro entrara no cais da Lapa.

A baronesa demorou o olhar sobre a neta. Estava certa de que ela a atrapalharia... era um obstáculo à execução dos seus planos. Depois cerrou as pálpebras, sem querer ver a rua por onde a sua Maria passara rígida, fechada à chave, entre galões de ouro, caminho do Caju...

Desde esse dia que não tornara àquele bairro, em que a sua imaginação teimosa insistia em fazer de Maria o mesmo ser animado e doce que fora em tempos perdidos. Fugira da realidade amarga para o sonho consolador, onde resistia às solicitações da verdade...

Por que não afagar uma ilusão, quando ela suaviza um sofrimento?

-Vovó está doente?!

-Não... vai-me custar...

-A culpa não é minha! -observou o barão.

-Ninguém te acusa; descansa.

-Que é que vai custar, vovó?

-Nada... Filha...

Glória voltara a olhar para a rua, rindo de umas coisas, admirando-se de outras.

Quando o carro parou à porta de Argemiro, a baronesa, dominando a dor em que o seu coração se dissolvia, estendeu a mão ao genro, que descera à rua para ajudá-la a sair da carruagem.

A baronesa atravessou o vestíbulo com passo firme e vagaroso. Argemiro sentia no braço o peso da sua mão gorda alvejando entre as malhas negras da luva de retrós.

-Fez boa viagem? -perguntou-lhe ele carinhosamente.

Mas era pedir muito, pedir-lhe que falasse. Ela não respondeu. Os seus olhos, de um azul turvo, interrogavam a porta do interior da casa, onde Maria vinha recebê-la outrora...

Penetrou na saleta com o mesmo silêncio prudente. As lágrimas estavam-lhe na garganta. Glória embarafustou pela casa, à procuara de d. Alice. O barão sentou-se em frente da mulher e do genro, enxugando a calva, úmida, com movimentos nervosos.

Argemiro esperava...

Cansou-se. O constrangimento dos velhos fez-lhe pena. Começou:

-Esta casa é a mesma de há oito anos, menos, muito menos alegre, mas igualmente sua. O que lhes peço é que se dirijam à governanta, d. Alice, que tem plenos poderes para qualquer determinação, e com ela se entendam sobre tudo o que desejarem. É uma moça distinta e a sua convivência espero que lhes seja tão agradável quanto a sua gerência nesta casa me é útil...

Estas últimas palavras disse-as todas voltado para a sogra, que o ouvia sem pestanejar e muito séria. Ele continuou:

-Como sabem, esta senhora vive nesta casa sem que eu a conheça; e já agora manterei até o fim esta situação que parecerá esquisita a toda a gente, menos aos senhores... É um ponto sobre o qual não desejo insistir e por isso limito-me a pedir-lhes que a tenham na conta mais de uma amiga da família, proveitosa principalmente à minha filha, do que de simples despenseira...

O barão espiava o efeito das palavras do genro no rosto da baronesa. Pálido, mais descaído sobre as peles moles do pescoço, ele alongara-se, emurchecido. As rugas faciais, das narinas ao queixo, cavavam-se fundas, denegrindo a brancura enluarada da pele. A boca fina esquecera a habitual expressão, arqueando-se muda sob o nariz pequenino e afilado. Só os seus olhos aguados, ensombrados por sobrancelhas ainda negras, refletiam contornos movediços de pensamentos dolorosos.

Argemiro articulava as palavaras com propositada clareza; dizia ainda:

-A minha vida é passada na rua. Não esperem nunca por mim. As suas horas serão distribuídas aqui como eram lá em cima. O hóspede sou eu.

O barão esboçou um protesto. A baronesa agradeceu, e a porta escancarou-se para dar passagem ao Feliciano sobraçando embrulhos. Atrás dele o carregador, as malas, a confusão.

Argemiro alegou necessidade de uma entrevista cuja hora se aproximava, e fugiu.

Chegara a hora de ver a outra, a tal d. Alice, que deveriam tratar como pessoa de família!... Se valera a pena vir de tão longe para isso! Pessoa da família... Que heresia e que escárnio! A facilidade com que se dizem certas coisas! Como se uma criatura qualquer pudesse entrar por uma família adentro, como por um hotel, sem cerimônia! Para que tinha vindo? Para verificar um fato já conhecido?... Não estariam ainda a tempo de voltar para trás, para a felicidade silenciosa das suas velhas mangueiras, e das suas águas fugitivas?

Isso seria razoável, se não houvesse a vingar a doce Maria, tão abandonada... Pobre filha, ter o seu lar, o seu lugar, invadido por uma intrusa de má morte... O Rio de Janeiro era, decididamente, a capital da perdição. Quem lhe dera ter nascido e vivido numa vila inculta, sem outros rumores que os dos ribeiros, do vento ou do sino da ermida branca e sossegada! Aquela saleta... sim... A mobília era a mesma... Mas tinha outra disposição... E haviam acrescentado alguns objetos novos... tapetes... quadros... idéias de mulher voluptuosa!

Argemiro, sempre que saía, tocava a campainha elétrica da porta de um modo especial, como um aviso a Alice para que ela pudesse circular à vontade por toda a casa.

Era a única comunicação que lhe fazia diretamente sem perceber que sentia certo contentamento ao executá-la. E a campainha tilintou na casa silenciosa.

Os velhos contemplavam-se interrogativamente, ainda na saleta, ambos tristes e constrangidos, quando Glória entrou na sala pela mão da governanta. O barão levantou-se, a baronesa olhou para a moça com dura frieza.

Ela ali estava em frente, nem submissa nem altiva, um pouco pálida, pela intuição talvez de vir ao encontro de inimigos.

-Vovó! É d. Alice!

Mas a avó de Glória, repreendendo o entusiasmo da neta com um olhar, cumprimentou a moça de um modo quase imperceptível. O barão precipitou-se, para um aperto de mão e para apanhar a bolsinha e o lenço da mulher, pousados no sofá.

-Meu quarto está pronto? -perguntou a baronesa, como se falasse a uma criada.

-Está... sim, minha senhora... Queira seguir-me...

-Não é preciso... Eu sei o caminho; Glória! Vem tu comigo!

A baronesa abriu a porta do corredor e arrastando a neta saiu, acompanhada pelo marido, que levava as mãos cheias de embrulhos, fingindo-se muito atrapalhado com eles.

Alice sorriu. Certamente a vida é às vezes bem amarga e dura de ganhar!... Que deveria ela esperar?... Fosse o que fosse esperaria até o fim!

- XVI -

Padre Assunção morava para os lados da Lapa, numa casa encravada no morro de Santa Teresa, velha e esguia como uma torre, com frente de dois andares para uma rua tranqüila e fundos rentes a um jardinzinho bem cultivado.

Entre o habitante e a habitação havia certas analogias de forma e de caráter. Tinham ambos a silhueta fina e o aspecto melancólico e fatigado. E se as paredes grossas, da velha construção, davam a idéia da firmeza que o vulto ossudo do padre sugeria, as rosas brancas entrelaçadas junto ao telhado, no jardim do morro, fariam lembrar a doçura dos seus sentimentos impregnados de idealidade...

As janelas de guilhotina, dos compartimentos superiores, viviam escancaradas para o azul da baía, tais como os olhos do Assunção para um sonho infinito...

Todo o edifício, da base ao cimo, parecia sossegado; a loja era habitada por um casal de surdos-mudos, cujos gozos e sofrimentos não varavam paredes nem vãos; o primeiro andar pela mãe de Assunção e o andar superior, mais resumido, por ele só, que o enchia com os seus livros e as mobílias antigas do seu quarto.

A paz, se o silêncio é paz, seria só aparente. O casal de mudos era pobre e viviam ambos sob a canga do trabalho, cosendo botinas para as fábricas de calçado.

D. Sofia, a mãe de Assunção, confessava desgostosa não ter criado o filho para Deus, mas para si. Aquela batina preta era o espantalho da sua alegria. Para ela, o misticismo do filho fora uma forma de doença a que não soubera dar remédio, e as maiores queixas voltava-as contra si própria, que o deixara afinal enveredar por aquele caminho de sacrifício.

Ela educara-o para o mundo, para a família, para o amor! Sonhara com outra filha, a mulher dele, que a ajudaria a amimá-lo, e lhe daria meia dúzia de netos fortes e bonitos! O sacerdócio reduzira a cinzas as suas esperanças luminosas. Tudo acabava, tudo morria nele, que se abatera de repente, como uma vela rota no meio do temporal.

De que lhe servira ter-lhe insuflado o amor pela natureza, pela glória, pela pátria; ter-se sacrificado tanto para o tornar física e moralmente um forte, se ele lhe escapara, por entre as mãos frágeis, para o vácuo? Pobres mães, como os seus desígnios saem errados! A quantos sacrifícios ela se sujeitara, quando ele era pequeno, com o pensamento de que mais tarde ela teria de tudo a compensação, vendo o seu filho gozar a vida larga e amplamente!

E ei-lo um concentrado... um padre! Fora o colégio dos padres que lhe inspirara aquilo, ou alguma paixão? Ele nunca o dissera. E que importava a causa, se o efeito ali estava e irremediável!

Amorosa e amiga de crianças, ela lamentara em moça não ter podido dar irmãos ao seu filho, que o alegrassem, arrastando-o em correrias; companheiros de infância, confidentes amigos da mocidade! E era daí também que lhe nascera a visão daquele futuro ruidoso, quando ela já velha visse a sua casa invadida pelo riso e a jovialidade dos netos!

E o filho, desigual no humor, ora tímido, ora arrebatado, cresceu sob a sugestão desse sonho. O que lhe valia a ela era a amizade do Argemiro, que, mais velho um ano que o amigo, lá o entretinha com as alegrias do seu temperamento robusto. Eram vizinhos, estudavam no mesmo colégio, amavam os mesmos poetas, completavam-se pelas suas semelhanças e dessemelhanças.

A amizade de Argemiro foi um alívio para d. Sofia. Bem percebia ela não bastar à felicidade do filho!

Os dois rapazes viviam como irmãos!

Passaram-se anos assim, até que um dia entraram ambos em casa, um radiante, outro constrangido. Que se passara? não o soube nunca; mas por mal dela o constrangido era o filho, que entrou a empalidecer... a não dormir... enquanto o outro prosperava!

-Meu filho! que tens?

-Nada...

-Escondes-me alguma coisa!

-Nada...

-Quero-te alegre!

-Mas eu estou alegre... acredite que estou alegre e que sou feliz.

Era sempre o que ele afirmava.

«Ele mente-me!» -pensava a mãe amargurada. E a sua obra, a alegria, a ambição de glórias que, durante tantos anos se esforçara por implantar no filho, sumia-se, derrocava-se, sem que lhe fosse possível, a ela, ampará-la para a reconstruir!

-Ele mente-me...

Ela queria-o franco, risonho, amigo da vida. Ele retraía-se, tomava ares abstratos, entregava-se a leituras filosóficas e a estudos incompatíveis com a sua idade. Ela não entendia bem daquilo, mas pressentia um perigo sem forças para o combater...

-Ele mente-me...

Era a sua amargura. O filho tornara-se de uma sensibilidade doentia; fugia da sociedade, evitava a própria mãe, que se encolhia chorosa, para o não aborrecer.

Aos vinte e três anos viu-o morto com uma febre. E aos vinte e cinco -padre!

Não o quis contrariar, não se podia opor. Ele lá teria uma razão diferente daquela que alegava e que ela espiara em vão!

Não fora chamado por Deus ao sacerdócio, fora levado por uma causa estranha, mas inabalável.

Sonhar! de que vale o sonho que não frutifica, flor que se esfolha e de que nem o aroma sequer permanece com suave consolação!

Ela sacrificara-se para tornar aquele filho um vencedor, um homem! e ei-lo místico, retraído, isolado do mundo para que o destinara!

Ela pedira-lhe uma nora, ele trouxera-lhe uma batina, e à sua indagação angustiosa:

-Meu filho, que tens?!

Respondia ainda:

-Nada. Eu estou contente... Eu sou feliz!

«Mente-me!» -pensava ela consigo, disfarçando as lágrimas.

O que lhe valia era a amizade do Argemiro. Esse, sim, era um rapaz sólido, prático como ela desejara o seu...

Ah, não se podia esquecer nunca! No dia em que Assunção, pálido e trêmulo, lhe confiara a resolução de ser padre, ela levantara para ele a mão, como no tempo de criança, em que se via forçada a corrigi-lo... Ele estendera-lhe a face, como Cristo; ela retraíra-se, desatando num pranto soluçado.

Negava o seu consentimento; não queria! O homem não nasce para o celibato, mas para a família; a missão ensinada por Deus é a do criador! -afirmava.

E toda aflita:

-Mas, que determinou semelhante idéia, meu filho?

-A vocação...

-Não... não! Tens algum desgosto contigo!

-Não tenho nada. Eu sou feliz...

-Ele mente-me! -gemia sempre a mãe, por dentro, com os olhos extáticos no semblante impassível do filho.

Ele tornava-se de pedra e era em vão que ela se debatia à espera de um milagre que nunca se realizou.

Teve que ceder, mas sem resignação.

O que lhe valia agora era a pobreza. Começou a repartir as suas migalhas com os vizinhos necessitados. Toda a sua atividade empregava-a a bem dos outros. Chamou para casa duas crianças órfãs e entretinha-se a ensiná-las e a vesti-las.

-Quando eu morrer -dizia ela ao padre- tu olharás por elas como se fossem teus filhos!

Forçava-o assim à paternidade; obrigando-o a amá-las, empurrando-as para os seus joelhos, contando-lhe as suas gracinhas, fazendo-o adorado por elas.

Até já achava nas crianças traços da família. Assunção deixava-se assaltar e abria os braços aos pequenos; mas a sua predileção não estava ali. A propósito de tudo falava em Glória. Era a sua preocupação. Uma selvagem!

A mãe não tinha ciúmes. Sorria. Se ele tivesse três filhos amaria os três, mas em verdade se preocuparia mais com a menina! Os de casa eram rapazes, ambos de origem estrangeira, órfãos de italianos desconhecidos. Glória, essa era uma continuação dos entes que mais se prendiam ao seu passado, do Argemiro e daquela suave Maria, que o estimara como irmã.

D. Sofia encontrara a salvação nos pequenos a que se dedicava. O seu espírito carecia do sonho. O filho cortara pela raiz todos os que floresciam nela até o dia em que se fez padre...

Com o correr dos tempos, fora se habituando à batina do filho, mas continuava a freqüentar pouco a igreja, certa de que Deus a ouviria igualmente do seu humilde canto.

Assunção mudara também; perdera a taciturnidade, interessava-se pouco a pouco pela vida.

Mas a salvação de d. Sofia eram os pequerruchos, muito clarinhos e loiros, tais quais ela sonhara os netos. Um começava a falar, o outro já dizia tudo numa meia língua que era uma música deliciosa. Ela, que tinha o espírito criador e era, sobre todas as coisas, amiga da humanidade, toda se desvelava em aperfeiçoar aqueles dois seres, caídos como mercê divina nos seus braços saudosos.

Já decretara: um seria médico, o outro seria engenheiro; e ambos produziriam obras benéficas e se casariam com bondosas mulheres!

Assunção sorria, animando a fantasia da sua querida velha. A experiência de nada serve aos teimosos: e ela era uma obstinada.

Não fora ele acalentado com as mesmas esperanças enganosas, certezas que ficaram em esboço nos dias da mocidade?

Às vezes ainda, interrompendo o silêncio do serão, d. Sofia suspirava:

-Quando me lembro, meu filho...

-Não se lembre; apague da lembrança o que não lhe for agradável! Assim, sou mais seu...

-És de Deus. Eu sou humana e amo a humanidade acima de tudo o mais! Não sei a que fonte foste buscar esse misticismo, que te isolou do mundo para que te criei. A tua profissão obriga-me a respeitar-te, a temer-te quase... Há ocasiões em que deixo de ver em ti o meu filho, sujeito à minha autoridade, para só considerar o sacerdote, o julgador que me há de punir ou absolver...

Às vezes, também, era ele que falava, consolando-a:

-A sua vida conjugal foi curta. Meu pai não lhe deixou senão a impressão da felicidade estonteadora. Períodos longos de casamento desvanecem quase sempre encantos que julgaríamos eternos. Assim, vivo para um ideal que não me pode trazer desilusões... Depois, acredite: se eu não fosse padre, seria igualmente celibatário...

A voz dele era morna, abafada por um desgosto calado, amigo do segredo.

A mãe fingia acreditar naquela inspiração do céu, descida a contentar a alma silenciosa do filho. O fato estava consumado, toda a reação seria loucura; procurava resignar-se. Em vão. A igreja era a sua rival, tirara-lhe o filho dos braços, impusera-lhe o sacrifício por norma e a solidão por dever!

Ainda se ele tivesse um organismo de combatente, de lutador! Se o visse no parlamento... se o lesse nos livros... Mas Assunção talhara-se na forma rústica e acomodada do capelão de aldeia, alma simples em corpo simples, servo humilde dos homens e de Deus.

Por fortuna, ele era muito tolerante: parecia-lhe a ela, às vezes, que ele se vestira de batina por comodidade egoísta, como um meio de fugir às assiduidades dos outros homens e à solicitação das mulheres... Era um meio de viver no mundo fora do mundo, conforme as exigências da sua neurastenia...

Passado um longo período de abatimento e de taciturnidade, Assunção readquiria a calma de outros dias, e foi então que principiou a interessar-se pelas leituras portuguesas, a enriquecer a sua modesta biblioteca de livros clássicos e a jardinar no terreno do morro, para onde abria a porta do seu quarto.

Argemiro enviuvara, e era à influência da sua companhia, muito mais assídua, que d. Sofia atribuía esse milagre.

Agora ele revelava uma preocupação: Glória! A menina era o seu cuidado melhor. Lamentava-se de a ver muito solta, criada sem disciplina, como uma selvagenzinha! A avó era uma santa, dizia ele, mas incompetente para a dirigir.

Depois, a invocação constante que ela fazia da filha morta, chegara a criar em todos de casa como que a ilusão de que de fato ela existia, invisível, vigiando com saudade a sua órfã...

D. Sofia comentava:

-É uma espécie de loucura, a que algumas mulheres são sujeitas; mas não me consta que nenhuma a tivesse levado a esse grau! Os filhos únicos acarretam grandes desequilíbrios aos pais. É mais uma razão para te interessares pela pobre menina. Realmente, os mortos vão depressa... quando não deixam as mães no mundo! Faze por esclarecer a baronesa. Que se resigne à idéia de que, da linda Maria, só existem os ossos...

-Tal afirmação não ficaria bem em minha boca...

-Não estará na tua consciência? Sorris?! pois então, filho, alimenta a fogueira em que a pobre senhora se consome. Levas-lhe achas e fósforos, não te espantes de a veres arder! Se a alma existe, a de Maria trocaria o céu para estar ao pé da filha... Era extremosa! E nesse caso a baronesa tem razão...

Assunção jardinava. De joelhos na terra, podava uma «Príncipe negro» quando a mãe subiu acompanhada de visitas: Alice e Glória.

-É quando eu gosto de o ver de joelhos! -exclamou rindo d. Sofia, apontando para o filho, que levantou os olhos surpreendido.

-Aqui!

-Viemos visitar d. Sofia! -exclamou Glória-. O senhor não merece!... Há dois dias que não vai lá! Vovó está zangada! De mais a mais, papai foi para S. Paulo!

-Han?!

-Foi, sim. No mesmo dia em que viemos da chácara ele foi chamado por um telegrama! Não sabia?

-Não!

Houve uma troca de olhares involuntária entre Alice e Assunção. Que! Pois ela desconfiaria?!...

A moça voltara-se para o terracinho, olhando agora para o mar, muito azul.

Assunção pedia desculpas, tinha as mãos sujas de terra. Correu a lavá-las, enquanto d. Sofia mandava vir cadeiras para o jardim.

-Isto sempre é mais bonito que lá dentro. Casa de uma velha e de um padre não tem alegria. Sentem-se aqui, olhando para o mar... assim. A vista é bonitinha, hein? Com que então, sra d. Maria da Glória, está muito adiantada?

-Qual!

-Não?! Pois é pena: está ficando uma moça! -E voltando-se para Alice:

-Como esta menina cresce! Acho-lhe uma diferença! É o pai!

-Sim... parece-se -confirmou Alice.

Glória não se sujeitou à cadeira, levantou-se para revistar os canteiros e uns caixotinhos que via pregados ao muro. As duas senhoras conversavam e tão entretidas pareciam uma com a outra, que Assunção ao voltar do lavatório, preferiu ir avisar Glória de que não mexesse nos caixotinhos, que eram casas de abelhas e iria perturbá-las.

-Eu já tinha pensado nisso -respondeu a menina-. Ainda ontem d. Alice me explicou, no jardim lá de casa, a vida desses bichinhos. Tudo no mundo tem interesse, não é verdade? Eu tinha raiva das abelhas desde aquele dia, lembra-se?, em que fui picada no pescoço por uma deste tamanho! Tive uma dor! Pois agora já até quero bem às abelhas... O caso é haver quem nos explique as coisas!

-Que te explicou d. Alice a respeito?

-Que as abelhas freqüentam as flores para chupar-lhes o mel, transportando o pólen de umas para as outras e...

-E explicou-te também o que era pólen?

-Certamente! Com uma flor na mão. Uma açucena!

-Conta tudo!

-Numa lição só não se pode aprender muito! Assim mesmo eu percebo bem d. Alice, exatamente porque ela não ensina -conversa. Falou das abelhas... Falou das mariposas, disse histórias que eu não sabia e de que gostei... Prometeu levar-me à Tijuca para ver borboletas azuis muito grandes, que há lá... Mas vovó... Creio que não me deixará ir só com ela... Se o senhor fosse!

-Irei.

Glória bateu palmas com alegria, mas de repente tornou-se séria, olhando para uma roseira completamente coberta de flores.

-Queres um ramo?

-Não. A última vez que fomos ao cemitério encontramos uma porção daquelas rosas no túmulo da mamãe... Foi o senhor! E vovó pensou que tivesse sido papai!...

-Foi teu pai... Levou-as daqui... Mas não lhe digas nada, que ele não gosta que se fale nisso! Olha para o mar!

-O seu jardim é muito pequenino!

-Basta para mim... Olha este rainúnculo...

Enquanto Assunção fazia Glória ver as suas flores, d. Sofia conversava com Alice. Mandara subir os pequenitos. A moça pusera um nos joelhos e anelava os cabelos do outro carinhosamente.

Que se dizia? Menos do que se adivinhava. A simpatia nascera logo entre ambas. Assunção pousou por um instante os olhos nelas e desviou-os para além, para o infinito... Tinha sido aquele o sonho da mãe: uma mulher moça a seu lado, cercada de crianças lindas...

A tarde morria afogada em azul. Já no céu brilhava a meia lua, e uma neblina prateada vinha da barra, cobrindo o mar.

-É tarde, Glória...

-Adeus!

Nessa noite, ao chá, d. Sofia disse ao filho:

-Aconselha Argemiro a casar-se com aquela moça. Ela fará a sua felicidade.

E depois, baixo e num suspiro:

-Já que não pode fazer a tua.

- XVII -

A praia de Botafogo regorgitava; era dia de regatas. Por todo o cais o povo apinhado olhava para o mar coalhado de barcas, palpitante de luz. Nas arquibancadas, à beira de água, as toaletes claras das moças despertavam a idéia de grandes flores variegadas, desabrochadas ao sol, e, na rua, carros e bondes arrastavam-se cheios, vagarosos, por entre a multidão. Mas a beleza era o mar, cuja superfície apenas enrugada de um azul violento, toda se paletava de escaminhas de ouro. Andavam pelo terceiro páreo. Baleeiras velozes, bem remadas, demandavam as balizas na ânsia da vitória; outras, em repouso, deixavam-se balouçar pela água, molemente, enquanto lá no alto as gaivotas espalmavam as asas tranqüilamente.

-Belos rapazes! -observou Adolfo Caldas, olhando com entusiasmo para a tripulação das baleeiras.

Armindo Teles acenou com a cabeça que sim, e chupou com mais força e maior satisfação o seu havana.

Caldas continuava à meia voz:

-Contempla aquele bíceps e cora! Homem da cidade, da manhosa política e das sobrecasacas bem feitas, não te envergonhas dos teus braços diante daqueles?...

-Se eu discutisse a murros...

-Quanto mais vigoroso é o braço, mais franca é a língua!... Digo-te por mim, que as minhas banhas sentem-se humilhadas, ofendidas, por aqueles músculos. A nossa raça salva-se. Ainda bem para os pais de família... Vê o modo enérgico e bem ritmado por que os remos desta baleeira vêm golpeando a água...

Teles soprou a baforada do seu charuto aromático, e respondeu:

-Prefiro olhar para o pavilhão e as arquibancadas... Se os rapazes são fortes, as mulheres são bonitas, e eu guardo para elas, em todos os tempos e lugares, a minha predileção. Hum! Isto hoje está chique... Se as galerias da Câmara tivessem esta sociedade... Eu falaria todos os dias!...

-Vês que as mulheres dão mais apreço ao músculo que ao verbo... Empresta-me o binóculo. Dança-se nas barcas...

-D. Maria Helena está no pavilhão... Também lá estão as Tavares... A Chiquita Maia... A Pedrosa e a filha. Precisamos cumprimentá-las.

-Depois... Deixa-me beber saúde pelos olhos. Faze outro tanto, que precisamos ambos de lavar a alma...

-Chegou agora a Joaninha Mendes...

-E ela? -indagou Adolfo sem desassestar o binóculo da barca, onde se dançava.

-Ainda a não vi... Mas há de vir!

-Lá passam os vermelhos a dianteira!

-Não... Por enquanto ainda são os azuis...

-Os demônios têm força... Agora!

-Bravo!

-Viva!

-Bravo! -gritaram muitas vozes a um tempo, numa explosão de entusiasmo. Ao lado deles um moço gordo berrava, agitando o chapéu. Teles sacudiu a cinza do charuto da lapela da sua sobrecasaca avelã, onde sorria a graça de uma orquídea lilás, e voltou-se todo para o pavilhão.

Sinhá debruçava-se no pavilhão do júri, com as faces afogueadas e o olhar chamejante. A seu lado, a mãe lambiscava bombons e as Moreiras, do Catete, sacudiam os lenços com frenesi:

-É o Boqueirão!

-É o Flamengo!

-Não...

-É!

-Bravo!

-Bravo!

Os nomes dos clubes andavam no ar, como as gaivotas. Afinal, um deles ganhou o páreo. Rompeu a música e a baleeira vitoriosa veio receber as saudações, que rebentavam em palmas por todo o cais, como uma onda. Ao passar pelo pavilhão, Sinhá, toda debruçada, vermelha como uma rosa, atirou-lhe o seu ramo de violetas. Aparou-o no ar um rapaz loiro, batido de sol, de rija musculatura e olhos brilhantes. Trocaram um sorriso luminoso.

-A mocidade!... A mocidade! É isto... Um aroma que atravessa o espaço... Um relâmpago que ilumina a vida, para deixar saudades... Este sim! -comentava Caldas consigo, lembrando-se do Argemiro; e concluiu: -Agora a Sinhá escolheu bem... Isto é, não escolheu, achou. Aquilo é amor! E, dirigindo-se ao Teles: -Vamos agora cumprimentar as senhoras, com escala pelo bufê. Estou com sede.

O deputado acariciava o queixo nu com a mão gorducha, em que rutilava um rubi. Seus olhos vivos, de pestanas curtas, furavam por entre cabeças e ombros, à busca de alguém.

À roda comentavam o páreo. Havia descontentes; moças indignadas, outras quase chorosas, rapazes amuados. Tinham perdido. Mas outros e outras gesticulavam com alegria por aquele triunfo, que dava mais uma medalha ao clube da sua simpatia.

Falava-se alto nas arquibancadas. Os sons da banda de marinheiros no Toureiro da Carmen não permitiam segredos.

Em toda a linha do cais os guarda-sóis de cores diferentes, lembravam uma vegetação movediça de cogumelos fantásticos, desde os pequeninos, das crianças que assistiam à festa sentadas no paredão, com o olhar estúpido para o quadro policromo, até os grandes, protetores de velhos prudentes e amigos da sombra.

Corria uma aragem forte. Agitavam-se no ar os galhardetes vistosos e as bambinelas do pavilhão central, como a acenar a toda a gente que fosse para ali, gozar aquele quadro de luz!

O deputado impacientava-se. Adolfo parecia grudado ao bufê, comendo sanduíches e bebericando cerveja, no meio de um grupo de remadores muito adulados pela admiração dos outros. Trocavam-se brindes apressados; e na alegria, até um velhote pálido e encartolado trauteava a Carmen, acompanhando as sonoridades da banda.

O intervalo acabava-se. Ouviu-se o estampido do sinal de partida.

Voltaram-se para o mar.

-Lá vem ela! -exclamou Teles à meia voz, sobressaltado.

-Um ibisco! -observou Adolfo, olhando para uma lancha que se aproximava do cais.

O ibisco era a madame Senra, toda de escarlate, com os bandós dourados rebrilhando sob as papoulas do chapéu. Ela agitava a sombrinha vermelha, rindo-se para o Teles, que se precipitou alvoroçado e inconveniente para a receber no desembarque, sem atenção aos bigodes retorcidos do Senra e à escolta de moças que a acompanhavam.

Caldas imaginou:

«O patife do Teles vai passar uma hora feliz, uma hora ligeira, dessas que suspendem a vida! Por que será que as mulheres bonitas dão geralmente preferência aos banais? Esta é linda. Uma flor!... Sempre que a vejo sinto os meus pensamentos transformarem-se em abelhas... ela mesma deve sentir-se como que nimbada por um adejo de asas... volúpia dos olhos, tentados pela sua graça... Não se me dava!... Que lhe dirá o idiota do Teles? Sua Excelência alcançará ali o que não alcança na Câmara: chegar ao fim?... Pois é bem boa esta cerveja, e vou tomar mais um copo... Talvez chegue... sim... ela não é rígida... uma flor!»

A Pedrosa vira-o agora. Cumprimentava-o de longe. Que maçada! era preciso ir dizer adeusinho à Pedrosa!

«O amor faz falta», continuava a meditar Adolfo; «desinteressa a gente de tudo... É um abandono, uma estupidez!»

Acotovelando o povo, ele saiu do bufê e entrou no pavilhão central, ao mesmo tempo que uma cesta de flores e uma bandeja de bombons.

-Entrei num momento simpático... -concluiu ele para si. E foi cumprimentar as senhoras. Lá fora renovava-se a cena:

-Bravo!

-Viva Icarahy!

-Viva... Vasco da Gama!

-Viva... a!

Voavam as flâmulas e os galhardetes; outra baleeira veio passear o seu triunfo, beirando o cais, onde a multidão estrondeava em palmas.

Na lindeza do céu, de um azul carregado e límpido, ressaltavam as cores maravilhosamente. Os perfis dos morros, rochosos uns, verdejantes outros, destacavam-se em todas as suas linhas, com surpreendentes minúcias. Nas arquibancadas as linhas das mulheres eram como orlas de flores de matiz viçoso que as ondas tivessem deposto na terra maravilhada.

-O esporte é a alma do Rio -afirmava a Pedrosa a uma amiga, no momento da aproximação de Adolfo-. Veja que entusiasmo! Decididamente, ele veio substituir os bailes... Hoje dança-se pouco. O remo e o futebol roubam os pares às moças... não é verdade, dr. Caldas?

-Protestando contra o título, confirmo, como não podia deixar de confirmar...

-Protesta por modéstia?

-Por consciência...

-Outros o usam com menos justiça... Eu teimarei em chamá-lo doutor... Por que não nos tem aparecido?

Ele desculpou-se, e como se tivessem aconchegado mais as pessoas do grupo, deixou-se ficar, envolvido nos perfumes dos vestidos bonitos que o cercavam. Sinhá, sempre voltada para o mar, não perdia de vista uma baleeira onde um rapaz loiro se condecorara com um ramo de violetas... A mãe falava, falava sempre, semeando sentenças, no seu palavreado animado e imperativo.

O marido não a acompanhara. Lá tinha tempo para se divertir!

Os altos negócios do Estado sufocavam-no; vivia numa rede de conferências, projetos e estudos de responsabilidade. Se todos tivessem a sua sinceridade!

-Faziam-lhe justiça... -observaram.

-Qual! Os sacrifícios eram de tal ordem, que não transpareciam completamente cá fora... Um verdadeiro escravo das suas idéias, o marido! A política é despótica... O que lhe valia era não ter ciúmes... De resto -concluía ela, para dizer algo em ar de sentença: -No amor, quando o ciúme entra pela porta, a confiança salta pela janela! Em todo o sentido -e sublinhava com o olhar a frase-, nunca deixara de confiar no marido.

Cultivava a ilusão, se é que era ilusão, como quem cultivava uma plantinha rara, de flores miraculosas. E assegurava: -Está nisso o segredo da felicidade feminina!

As moças nem a ouviam, inclinadas sobre os peitoris, à espera!

Era agora o páreo do Campeonato. Crescia o entusiasmo. Quem ganharia a taça de ouro?

Soou o tiro, sinal da partida.

Arfavam as bambinelas de renda do pavilhão e as tiras gárrulas das bandeirolas ao sopro salitrado da aragem. Um rosário de marrequinhas desfiou-se no ar com o susto. Nas arquibancadas os leques e as fitas multicores agitavam-se numa palpitação violenta.

-Aceita este raminho de violetas, Sinhá? -disse Caldas com malícia.

-O seu caiu ao mar...

-Aceito, com a condição de poder dar a este o mesmo destino que dei ao outro...

Para tomar as flores da mão de Adolfo, Sinhá voltou-se e relanceou depois o olhar em torno do pavilhão.

-Olhe quem está ali!... -disse ela à mãe, baixinho, apontando com os olhos um certo ponto do cais.

A mãe seguiu-lhe a direção e também Adolfo, que lhe não perdera os movimentos.

Padre Assunção estava de pé, e unida à sua murcha batina preta, Glória esticava o pescoço para ver bem o mar.

A Pedrosa trocou um olhar com a filha e voltou as costas ao padre. Sinhá demorou-se um pouco a contemplar com simpatia o perfil incorreto de Glória e o seu vestidinho de fustão branco sem laços. Depois, voltou-se para a baía: calara-se a música, e as baleeiras cortavam a água céleres, vigiadas pelas barcas e por escaleres admiravelmente tripulados.

«A mãe não se esqueceu... Mas a filha é já indiferente ao Argemiro... Amores novos...»

E já as lanchas guinchavam atordoadoramente, quando Adolfo meteu os ombros por entre a multidão.

- XVIII -

A pouco e pouco, autorizada pela ausência do genro, a baronesa tomara posse da casa.

O marido intervinha às vezes, aconselhando que deixasse à outra todas as determinações, ao que ela respondia -se valera a pena ter saído da chácara para se pôr à tutela da inimiga!

-Não, meu velho, tem paciência, eu estou de sentinela à última vontade de minha filha. Ele jurou: terá de cumprir o juramento. Esta mulher é mais perigosa do que eu pensei, porque é também hipócrita e sabe conquistar pelo jeito toda a gente. Menos a mim! Glória pertence-lhe. Já me tem feito chorar, a filha da minha filha, por quem tanto me desvelei sempre! Até parece que já lhe vou perdendo o amor... Não percebes o cálculo?

-Não percebo nada. A rapariga trata como pode de ganhar a sua vida. O que tu fazes, filha, não é digno de ti. Inventaste uma paixão, onde talvez não exista nem simpatia, e vives a debater-te diante de fantasmas. A moça é fina; não é do estofo comum das governantas, isso é certo... Mas sabes lá, tu que tens vivido sem necessidades, a que sacrifícios obriga a pobreza?

-Não faltam ofícios!

-Mas sobejam concorrentes... Eu sei o que vai por aí! Olha: vou apontar-te um exemplo: o dr. Teobaldo Ribas. Lembras-te? Um engenheiro distinto! Está com um emprego secundário numa companhia de empreitadas; a família habita numa casinhola de porta e janela na Cidade Nova e pode-se adivinhar o que se passa lá dentro, entre oito crianças fracas e o casal sem recursos... Eu, francamente, não sei mesmo como esta pobre moça ainda te atura. Pelas desfeitas que lhe tens feito, se fosse outra...

-Ter-se-ia ido embora. É o que eu digo. Não tem brio. Mas o meu partido está tomado; custe o que custar e seja como for hei de pô-la fora daqui.

-Não faças isso!

-Ora essa! Por que não?

-Não estás em tua casa!

-Estou na casa de minha filha.

-Para o que te deu! Tua filha só existe na tua imaginação. Capacita-te disso, pelo amor de Deus! É um caso de obstinação incompreensível, em ti, que foste sempre tão criteriosa. Acalma-te... e voltemos para a nossa chácara. Eu estou farto de cidade até aqui! -e apontava para a calva.

-Voltaremos... deixa estar... eu também já não posso mais... A minha vida é um inferno... Todos esquecem, todos gozam, só eu vivo acorrentada ao passado, e revendo a todos os instantes a cena horrível da morte de Maria! Está aqui tudo, tudo, estampado em meus olhos, enterrado no meu peito. A minha vida parou naquela hora! Não vejo, não ouço, não sei de mais nada. Os anos e os meses têm corrido para mim ignorados. A minha existência é a existência da minha filha. O coração dela ficou dentro do meu. É o que eu sinto! Hei de defendê-lo até o último extremo! Às vezes, também eu acredito na loucura... Ao princípio, enquanto Glória era só minha, sentia até certa suavidade em conviver assim com a minha morta... Nota que já não digo: a nossa! Mas agora, agora que a inimiga, a intrusa, me rouba também o amor da minha neta, sinto dentro de mim um clamor de choro que não posso sufocar, por mais que me esforce! Sou uma abandonada.

-Glória adora-te como sempre...

-Foge-me... esquiva-se... acha a minha companhia monótona... A outra conta-lhe histórias, mostra-lhe gravuras, saracoteia-se com ela pelas ruas, até já a surpreendi pulando na corda com a menina, como se fossem duas colegas da mesma idade! As crianças gostam de alegria. É natural que a minha Glória a prefira a mim! Tenho ciúmes dela, sim, tenho muitos ciúmes... E ainda queres que a poupe e que me deixe roubar sem um protesto. Nunca!

-Consulta um médico... a tua excitação é doentia...

-Já me tardava! Um médico, e água de flor de laranjeira! A outra também te conquistou a ti. Se te mandar dançar sobre a sepultura de Maria... tu dançarás?

-Talvez!

-Ainda o confessas!

-Mas, filha, que queres que eu faça?! Tenho pena de ti, mas não te posso dar razão. Quiseste vir, vim. Consome-me o sacrifício. Faze o que entenderes, contanto que voltemos depressa para a chácara. Consente, porém, que eu lamente a outra, como tu lhe chamas, e que a ache digna de maiores considerações. Agora deixa-me prevenir-te de que o Argemiro se cansou do desterro e volta amanhã.

-Escreveu-te?

-Telegrafou a d. Alice, pedindo-lhe que mandasse o Feliciano esperá-lo à Central.

-Ora vê tu! Telegrafou à outra, em vez de o fazer a ti, como era natural. Queres mais claro?!

-Eu sou hóspede. É ela quem põe e dispõe aqui.

-É a dona da casa!

-Tal qual.

-E achas isso tolerável?

-Perfeitamente. É paga para isso.

-Ele deve chegar?...

-Amanhã, às oito da manhã!...

-São?...

-Três horas da tarde.

-Tão pouco tempo!

-Achas pouco?! Repara que há um mês e dois dias que ele partiu; e para quem conhece os hábitos do Argemiro, faz espantar tamanha demora...

-Fugiu de nós...

-Já pensei nisso...

-E eu que o amava como filho!

-E ainda lhe queres muito bem.

-Não...

-Lembras-te de ser sogra, quando já não o és...

-Sou.

-Em vida de Maria o teu genro era para ti um deus!

-Porque fazia a sua felicidade. Mas agora traiu-a... Vamos lá para baixo. Onde estará Glória metida? Amanhã... ele volta amanhã... e eu tenho sido tão cobarde... não sei o que me dá, quando vejo aquela mulher! Delambida. E embaixo daquela pele macia ela tem uma alma de ferro. É dura.

-O Argemiro não há de gostar quando souber que nunca a admitimos à nossa mesa...

-Ela ia à dele porventura?

-É diferente.

-Ora...

-Também não lhe agradará a confiança exagerada que dás ao Feliciano...

-É cria de casa...

-É um velhaco.

-Também te desagrada?

-Completamente.

-Pobre rapaz... Prouvera a Deus que a outra fosse tão sincera...

O barão limitou-se a sorrir, com escárnio e tristeza.

Desceram.

A baronesa gritou:

-Feliciano! Onde está minha neta?

-No quarto de d. Alice...

-Vá chamá-la.

E depois, como para si: «A casa não é tão pequenina assim; o diabinho da menina mete-se naquele quarto maldito... para quê?!»

O barão desceu ao jardim, calado, sem disfarçar o seu aborrecimento e um certo pavor. Começava a cena...

Feliciano batia com os nós dos dedos na porta da governanta.

-D. Glória?

-Que é? -respondeu ela de dentro.

-Sua avó está chamando a senhora...

-Diga a vovó que já vou. Estou desenhando!

A baronesa exasperava-se, passeando na sala de jantar. E como a menina não aparecesse logo, ela gritou:

-Feliciano!

-Senhora?...

-Então?

O negro sorriu malevolamente:

-Estão conversando...

-Bata outra vez! Diga que venha já! Desaforo!

Feliciano voltou a bater, maciamente, sem impaciência.

-D. Glória?

-Já vou! Diga a vovó que espere só um bocadinho...

Era demais! Aquilo precisava ter um fim. Até a neta lhe desobedecia! Sim, senhores! A obra da outra estava completa! A não ser o negro, todos conspiravam contra ela. Até o marido... até a filha da sua filha!

Pela porta aberta da saleta ela via na parede fronteira o retrato da filha, muito desbotado, esvaindo-se, cercado por uma moldura de ébano.

«Enquanto eu viver, meu amor, será lembrada a tua última vontade... não me esqueci; eu vivo só para a tua memória!...» -pensou ela. E depois, por entre dentes:

-Parece que ela está fazendo de propósito... mas comigo não se brinca!

Feliciano rondava a cena, disfarçadamente, polindo com um trapo de camurça os trastes já polidos. Fora por manha que entreabrira a porta da sala, quase sempre fechada, bem em frente ao retrato da morta e, sem parecer olhar, ele vigiava todos os movimentos da baronesa. Ela tremia de raiva por não ver chegar a menina.

-Ora já se viu uma coisa assim! Querem maior provocação! -e, apontando para o relógio: -Há mais de cinco minutos! Isto não pode continuar... Está bonito!

E imperativamente, furiosamente:

-Feliciano?!

-Senhora?

Apesar da sua máscara de seriedade, percebia-se que o negro estava por dentro contentíssimo.

-Diga a d. Glória, uma vez por todas, que venha já ou que eu vou buscá-la pelas orelhas!

Feliciano quis prolongar aquele desespero e arrastou os movimentos, calculando o tempo para maior acumulação de ódio; mas a baronesa, impaciente, passou-lhe a dianteira e caminhou pelo corredor para o quarto da governanta.

«É agora!» -pensou o negro, encostando-se a um umbral, para ver.

Glória, já de pé, punha em ordem a sua pasta de desenhos, e Alice cosia perto da janela, quando a baronesa, empurrando com força a porta do quarto, apenas encostada, entrou, lívida de raiva, no aposento.

-Vovó!

Alice levantou-se, perplexa.

-Já, lá para dentro! não ouviu? Há que tempos a mandei chamar e a senhora é assim que obedece às minhas ordens?! Quem manda aqui? Sou eu, ou é aquela mulher? Diga!

-Vovó... eu...

-Nem uma desculpa! Não quero ouvir mais nada! Tudo é mentira! Já; lá para dentro! E não me torne a pôr os pés neste quarto.

-Vovó...

-Cale a boca! ande!... ande!

E, pela primeira vez em sua vida, a baronesa empurrou com as mãos fechadas, brutalmente, o corpo da neta.

-Saia daqui! já disse! Rode depressa, antes que eu perca a cabeça! Fuja! que está-me ficando perdida pelas más companhias!

E, sem interromper o tom de fúria, com os olhos vermelhos, a papada trêmula, voltou-se para Alice:

-Quanto à senhora, não é precisa para nada aqui. Se fosse outra teria compreendido que já é demais. Eu sou suficiente para tomar conta da casa da minha filha. Veja quanto se lhe deve e retire-se hoje mesmo.

Alice, com os olhos engrandecidos pelo espanto e pela lividez nervosa das faces, respondeu, forçando a calma:

-Não conheço a senhora sua filha.

-É demais!

-Considero a casa como do seu genro e só ele poderá dispensar os meus serviços.

-Isso é um atrevimento!

-É uma resposta.

-Bem me diziam que a senhora não era apenas uma criada, mas também a amante de Argemiro!

-Enganaram-na. Nem uma, nem outra coisa.

-Se fosse outra, eu não precisaria dizer tanto, para que já estivesse lá fora! Capacito-me de que realmente a sua companhia é prejudicial à minha neta e não hesito em pô-la na rua. Saia!

Alice não respondeu, fixando os olhos no rosto transtornado da baronesa. E depois, com raiva subjugada:

-E se eu não quiser?...

-Sairá à força. De mais a mais, é cínica!

-Sou honesta. Estou de guarda a um lugar que me confiaram e que defenderei até a morte. Seu genro chega amanhã. Partirei depois dele ter entrado nesta casa. Antes, não! não, não e não!

-Ah, a amaldiçoada! Imagina talvez que Argemiro a prefira a mim! -exclamou a baronesa com uma gargalhada insultuosa.

Alice mordeu os beiços para não responder: todo o corpo lhe tremia, como num acesso de febre.

Glória correra para o quintal. E era como se a casa se desmoronasse sobre a sua cabeça. Que razão teria a avó para querer tanto mal à d. Alice? Que iria suceder?! A quem gritar por socorro?

A voz da baronesa perseguia-a. Sentia nos ombros o peso das suas mãos irritadas. Quem lhe diria... A loucura?! Seria a loucura?! Deveria chorar pela avó, pela sua razão perdida, ou salvar a moça, que ficara sozinha em sua frente? Mas salvar como, se ela tinha medo? Glória atirou-se chorando para o jardim, na ânsia da liberdade e do silêncio. O avô, ao vê-la, compreendeu tudo e correu a ampará-la.

-Que tens, meu amor?!

Animada pela presença do velho, a menina agarrou-o com força.

-Venha, vovô... corra... vovó é injusta... é má... está dizendo coisas terríveis à d. Alice... não sei o que é... Vovó me bateu! pelo amor de Deus... ande depressa!

O avô resistia; mas, ao ouvir-lhe as palavras -«vovó me bateu»- endireitou-se num espanto e olhou de perto para os olhos da neta.

Não! ela não mentia. Os alegres olhos da sua Maria da Glória estavam cheios de lágrimas, em que boiavam uma grande decepção e uma terrível dor.

-Ah, se papai estivesse aqui!

O barão apressou-se, agarrado à neta; mas ao aproximar-se do quarto estacou. Não devia entrar. Em vão a neta o impelia, suplicando-lhe que interviesse.

Ele sabia. A mulher não cederia por nada desta vida. O mal estava feito; para que recomeçá-lo?

Não conseguindo abalar o avô, Glória avançava sozinha para o quarto, afrontando tudo, quando a baronesa saiu, hirta, com os lábios afinados e pálidos, os olhos circulados de roxo. A menina recuou espantada. Nunca a avó lhe parecera tão alta.

-Que estás fazendo aqui? Eu não te disse que não tornasses a pôr os pés neste quarto?! -rugiu ela ao topar com a menina.

-Vovó...

Mas a avó não quis ouvi-la, e agarrando-a por um braço foi-a levando, numa fúria.

O marido, metido num vão de janela, não a interrompeu, temendo exacerbá-la com as suas ponderações. Passado o ofego do desabafo, ela se explicaria.

Apiedava-se de um rumorzinho de choro que lhe parecia perceber agora no quarto de d. Alice. «As mulheres são terríveis» -pensava ele-, «devoram-se umas às outras, como animais de espécie diferente... Até a minha, que foi sempre incapaz de torcer o pescoço a uma galinha, dá-se agora, depois de velha, ao prazer de torturar uma criatura sua semelhante... E, afinal, coitada, quem sofre mais é ela... que não encontra remédio para a sua doença... E ora aqui chegamos ao desfecho que ela tanto ambicionava e eu tanto temia... E agora? Que se teria dito?...»

E nunca a sua chácara cheirosa, os verdes campos macios, cortados de mangueiras e águas remansosas, lhe fizera tão fundas saudades. As suas flores do horto, preparadas para a destilaria, estariam morrendo nos pés e o seu catálogo interrompido, amarelecendo no fundo inerte de uma gaveta. Olhando para as flores do genro, ele via as outras, as suas: o absinto, as marcelas medicinais, o sabugueiro vaporoso, as malvas benfazejas, o limonete perfumado e mil outras, confundindo-se nos tons azulados ou verdes das suas ramagens bem alimentadas.

Olhava para as rosas pensando nas papoilas, quando o Feliciano lhe disse atrás das costas, com uma vozinha ciciada:

-Sá baronesa tá chamando o senhor...

O barão não quis olhar para o negro e subiu para o quarto, abafando um suspiro.

Que mais?

- XIX -

-Assunção!

-Argemiro...

-Fizeste bem em vir esperar-me; estou doido por conversar contigo; disseram-te lá em casa que eu chegaria hoje?

-Naturalmente... eu não poderia adivinhar!... olha a tua mala... Pareces-me magro...

-Um pouco...

-Boa viagem?

-Regular... Como está a minha gente? E tua mãe?

-Dá a mala ao carregador... Conversaremos em caminho.

-Tens razão; e eu estou com pressa de chegar a casa. Decididamente, abomino os hotéis. Que desconforto! que aborrecimento! que noite! Ah! Assunção, nunca o meu cantinho me pareceu tão delicioso como nesta ausência. Isto deve ser velhice... os meus ossos não se afazem a outros colchões, nem a minha cabeça a almofadas que não sejam as costumadas. Hás de acreditar que sofri de insônias em S. Paulo? Depois eu não tinha notícias! Glória escreveu-me duas cartinhas; tu nenhuma... Nenhuma! inacreditável o teu descuido! Meu sogro escreveu-me também, mas só falava na mulher e na neta. É verdade, o Caldas também me escreveu... Referia-se a ti...

-Tiveste então cartas de todos!...

Saíam da Central. Argemiro acenou para um carro.

-De todos... mas incompletas... Só tu me poderias dizer tudo; és íntimo de minha casa, mais íntimo do que eu! Compreendes que eu fugi!

-Por que, homem?!

-Nem sei porque... medo do barulho, da intriga... de não poder conter o meu mau humor. Estava enervado, aborrecido... Depois arrependi-me. Não tinha que fazer; bocejava pelas ruas... o hotel indispunha-me comigo mesmo. Estou como o caracol -não posso sair da minha casa sem perder a vida... Acredita: até do cheiro da minha casa eu tinha saudades! Parece-me incrível que um sujeito de vida bem organizada goste de viajar. Tu nunca viajaste. É uma maçada! Mas que diabo, tu não me dizes nada!

-Não me dás tempo...

-Tens razão; mas estou cheio até a raiz dos cabelos. Mal conversei durante a viagem; estava com a língua entorpecida. Este cocheiro é um lorpa... não toca os animais! De que te ris?! estou morto por beijar minha filha! Muito crescida? Tens ido lá todos os dias? Tens estado sempre com todos?...

-Todos os dias, não... mas quando vou estou com todos...

-Minha sogra ainda se demorará cá por baixo?... Isso é o que me interessa mais saber.

-Ignoro... Eu tenho freqüentado menos a tua casa, receando que os barões achassem importuna a minha assiduidade...

-Estás doido! Sabes que te estimam muito! Bem... e... não houve por lá nenhuma questão...

-Tem paciência, escuta.

-Mau!

-Ontem à noite recebi uma carta de teu sogro, pedindo-me para vir esperar-te hoje à Central e prevenir-te de que a d. Alice só espera por ti para deixar a casa.

Argemiro não respondeu logo, e, arregalando os olhos, voltou-se para o amigo, muito desapontado.

-A notícia não é amável e acredita, Argemiro, que a dou com pena. Mas já agora deixa-me dizer-te que mais uma vez andaste impensadamente... Não deverias ter saído de casa nesta ocasião, tanto mais que já temias qualquer incidente desagradável...

-Não consinto! Ah, eu é que não consinto; e o dono da casa sou eu! Por que sai a d. Alice? Não sabes?... Eu imagino: picuinhas... alfinetadas... tanto a aborreceram, tanto a azedaram, tanto a mordiscaram, que ela não pôde mais! Era o que eu temia, lá longe! Parece que estava adivinhando. Um inferno. Ora o que me esperava! E agora? Dize-me: e agora?!

-Arranja-se outra...

-Estás tolo! Outra! A facilidade com que se dizem asneiras... Nem tu pensas no que estás dizendo. Conheço-te bem; sei qual é a tua opinião a respeito dela... Eu é que fui um asno, um idiota; não devia ter consentido na vinda de minha sogra para casa. Foi ela que escangalhou a minha felicidade com as suas bobagens de velha tonta. Disseste bem, fiz mal em fugir. Fugi por pusilanimidade... pelo eterno prazer do sossego e do bem-estar. Fresco bem-estar, o dos hotéis! E agora, hein?! arranja-se outra! ora, que resposta! Se há outra como aquela!

-Tu nem a conheces...

-Nunca a vi, mas conheço-a, adivinhei-a; abstraí da personalidade. Ela é o meu conforto; a minha segurança, a minha felicidade. Agora explica-me tudo: que lhe fizeram?

-Não sei, filho; mas creio que nada. Teu sogro, temendo a tua decepção, como se se tratasse de uma terrível catástrofe, escreveu-me ontem o que eu já te disse. A minha surpresa foi quase do tamanho da tua. Somente, eu espero conciliar as coias.

-Ah, eu não... Acabou-se. Volto à ignomínia do Feliciano. Não. O Feliciano roda hoje mesmo a pontapés. Cachorro... Outra... outra... onde encontrá-la? Pensas que há muitas mulheres assim, por aí, à espera das minhas ordens? Tu estás bem convencido do contrário... Eu sei que a consideras muito... Já a tens defendido, à minha vista, quando a acusam. Por mim, declaro-te que acabei de conhecê-la nesta ausência... Por acaso, no dia da partida, juntei alguns livros avulsos pelas mesas e meti-os na mala. Em uma das minhas noites de insônia, no hotel, abri um desses livros, e verifiquei com espanto que ele pertencia a d. Alice. Lá estava o seu nome, por sinal com uma letra bem bonita... Era um livro inglês de poesias. A minha governanta lê versos; e de mais a mais em inglês! Folheei o livro com alguma curiosidade... Havia versos sublinhados, notas feitas à margem... Sabes que do meu exame de inglês não me ficou patavina... o livro não me poderia divertir; entretanto, não sei porque, era o único que me interessava! Comprei um dicionário e pude mais ou menos penetrar um pouco no mistério... Compreendes que isso não poderia deixar de impressionar-me...

-Ela é inteligente...

-Muito. Para ter a certeza disso eu não precisava das poesias inglesas; bastava-me a mudança radical de minha filha. Negarás isso?!

-Não...

-Lembras-te? Glória era terrível, intratável, brutinha! E agora? Está dócil, risonha, delicada. A avó perdia-a com os seus mimos e a d. Alice salvou-a. Tens reparado na boa pronúncia francesa de minha filha? Na véspera da minha partida ela leu-me uns exercícios do Método. Fiquei espantado. Um prodígio!... Logo, esta mulher, que ensina francês, lê versos ingleses, faz aquarelas razoáveis e interpreta ao piano trechos clássicos, como já eu ouvi, sem que ela o percebesse... é uma rapariga de fina educação e que não me resigno a perder por caprichos de terceiros! As minhas flores! Porventura tive eu nunca, nem mesmo no tempo de Maria, rosas como tenho agora?! É ou não é verdade que o meu jardim é um dos mais belos do bairro?!

-É...

-E quem o transformou? Ela. Ainda agora, lendo o livro do Shelley, sentindo-lhe o perfume peculiar e que em poucos dias ela espalhou por toda a minha casa, capacitei-me de que a alma dessa mulher é rara e voltada para tudo que torna a vida agradável. Ainda não lhe descobri defeitos...

-Há de tê-los.

-É humana... e portanto, queres dizer que se fosse perfeita seria defeituosa... Talvez seja feia... Sabia-me agora bem o imaginá-la.

-Ocupavas-te nisso?

-Às vezes; é natural: quando eu pegava no livro e sobretudo quando sentia o seu aroma... Qualquer outro faria o mesmo... não te parece?

-Talvez...

-Sou-lhe muito grato. Asseguro-te que nunca me vi tão lisonjeado, tão contente da vida, como agora nestes últimos tempos. Era uma atmosfera amorosa a da minha casa.

-Não há bem que sempre dure...

-Ora que notícia! E eu que vinha morto por senti-la!

Assunção sorriu.

-De que te ris?!

-Da tua expressão.

-É sincera.

-Sei. Mas não desesperes... Realmente, a tua governanta governou demais; mas estou de acordo em que deves procurar guardá-la junto de tua filha; e talvez isso não seja tão difícil como te parece!

-É impossível.

-Tentemos...

-Como se teria dado o rompimento?

-Não sei. A carta de teu sogro é lacônica e sucinta. Deveria mostrar-ta, mas esqueci-a em casa.

-Naturalmente, minha sogra espicaçou-a de tal forma, que a pobre perdeu a paciência e despediu-se. Guerras de mulher. Conheces nada mais indigno? Picadas de alfinetes embebidos em veneno... Eu sei! Estou agora arrependido de ter vindo de carro... O bonde daria mais tempo e conversaríamos melhor. Foi uma cacetada! Conheces nada mais importuno que a velhice? Até cheira mal! E que vai ser de Glória?... Pensará a avó que lhe entrego a neta? pois sim! É minha, de casa não me torna a sair. Afinal, a prejudicada será ela... coitada! Mas com que direito cometeram meus sogros semelhante vilania? Tu não explicas nada!

-Filho, já disse o que tinha a dizer-te! Daqui a pouco estaremos nas Laranjeiras; será então tempo de averiguar o caso. Lembro-te que a baronesa anda adoentada... que é muito sensível, e que toda a sua antipatia por d. Alice se funda no ciúme...

-Tolices!

-Tolices ou não. Supõe que traístes o que prometeste a Maria...

-E que traísse! não era razão!...

-São modos de pensar... Tua sogra arvorou-se em sentinela do teu coração, já o disseste. Ela não quer lá dentro senão a imagem da filha.

-E não existe outra. Está farta de saber que eu não conheço esta mulher. Já enfada dizer e ouvir isto: Nunca a vi! Nunca!

-Mas gostas de senti-la... há pouco o disseste. Avisei-te do perigo, procurei afastar-te... conheço a tua imaginação; mas fui tão fraco que não consegui o que deveria ter conseguido... Não faz mal.

-Em vez de imaginação dize: egoísmo. Aterra-me a idéia de voltar à desordem antiga... aos roubos do negro... à negligência da casa, ao desperdício da despensa. Era um inferno. É só isso que me incomoda... mais o abandono de minha filha... Não terei remédio senão pô-la num colégio... Eu não tenho tempo de me ocupar de tantas coisas e já tenho abusado muito da tua amizade. Estou atarantado... Vê se me salvas! Só tu!

-Antes de mais nada, logo que chegarmos sobe ao teu quarto, com o pretexto do descanso, banho e mudança de roupa. Entretanto eu irei falar a d. Alice. Ela me dirá a verdade... Prepararei o terreno.

-Contas com a sua sinceridade?

-Absolutamente. É uma mulher simples.

-Mais uma virtude... E depois? É natural que meus sogros desejem falar primeiro... Enfim, o que for soará! Péssima recepção!... Maldita a hora em que saí de casa!

-Estás trágico! Mal imaginavas que um anúncio do Jornal do Comércio te trouxesse tantas complicações! O que nós rimos da tua lembrança, naquela noite em que nos declaraste a tua resolução. Tudo podíamos prever, menos isto!

-Ainda vocês negam a força oculta que obriga o indivíduo a executar, às vezes, as mais extravagantes resoluções! Quando eu me lembro do ridículo que vocês me atiraram à cara por causa daquele anúncio! Eu mesmo o escrevi sem esperança, numa hora de raiva contra o Feliciano. Tudo se me afigurava melhor. Quem poderia crer, porém, que fosse tão bom? Parece-me agora que a minha mão, ao escrever aquele pedido de governanta, num anúncio, puxou o fio do destino desta mulher... Lembras-te? Não apareceu mais ninguém! Dar-se-á o caso de só ela o ter lido?

-Não. Eu também o li... o Caldas... tua sogra...

-Já me tardavam as caçoadas. Não tens o direito de rir de um aflito. Estou até com medo de parecer grosseiro e tratar mal os velhos!

-Eles nem terão culpa... sim, é possível que a d. Alice já estivesse resolvida a isto mesmo. Quem nos dirá? Não fez um pacto para toda a vida...

Argemiro calou-se, olhando atônito para o amigo. Quem sabe?

E depois:

-É pena que não me possas dar informações completas... Ela... nunca te fez confidências... não terá intenções?...

-De quê?

-Casar, por exemplo! Que diabo!

-Deve ter. É moça... Não sei. Minha mãe gostou dela...

-Ah! D. Sofia viu-a?

-Levou a Glória a visitar-nos uma tarde, e enquanto eu mostrava as flores e a vista à tua filha, ela entreteve-se com minha mãe.

-E d. Sofia então disse-te?...

-Que aquela moça faria a felicidade do homem com quem se casasse. Sabes a mania casamenteira de minha mãe. Ela julga, como foi feliz, que a única felicidade perfeita na terra é a da família... Quantas vezes a surpreendo com os olhos nublados sobre a minha batina de celibatário! Então, para vê-la sorrir sabes o que eu faço? Carrego ao colo os seus petizes, que estão lindos e nédios como leitõezinhos. E a verdade é que já os amo também, a ambos. O Jorge adormece à noite nos meus braços; enquanto minha mãe cose, embalo-o na cadeira de balanço, até vê-lo pegadinho no sono. Ao princípio eu fazia isso para dar satisfação à minha mãe; mas hoje já o faço por gosto próprio. É bonito o sono de uma criança... E o brutinho não adormece sem que eu lhe cante a

«Senhora Sant'Ana

Passou por aqui...»



Minha mãe conseguiu atar-me a outros seres de mais longo futuro... não morrerá nela o meu interesse pela vida! Chegamos à tua porta. Lá está tua filha no jardim.

Depois de beijar Glória e apertar a mão fina e mole do sogro, que desceu ao vestíbulo a recebê-lo, Argemiro subiu ao seu quarto. A baronesa descansava ainda: não a vira nem de passagem.

Argemiro subiu a escada do quarto, com as narinas dilatadas, farejando o aroma sutil e inconfundível da sua casa. Na saleta, um ramo de La France e de resedá representou-lhe ao espírito a figura desconhecida de Alice, que ele sentia, enfim, naquela ordem e naquele cheiro que lhe alegravam o lar.

O Feliciano fora ao carro buscar a mala, e não merecera resposta ao cumprimento que fizera ao patrão. «O homem vem zangado...» -pensou ele consigo. «Que dirá quando souber!»

Pela primeira vez, Argemiro procurou, através das venezianas do seu quarto, ver se descortinava o vulto ao menos da sua governanta. Chegava-lhe a curiosidade pela sua pessoa. Um desejo de matar saudades de uma desconhecida! Voltou para o interior do quarto. Em cima da sua mesinha estava uma carta fechada, sobrescrita por mulher.

«Quem sabe se será a sua despedida?» -pensou; e abriu-a com presteza. Leu:

«Meu amigo:

Fui pedida em casamento e desejo apresentar-lhe o meu noivo. Estou radiante! Venha.

Sinhá.»

Sinhá... o pavilhão japonês... Fechava-se o pano sobre essa fantasia, cujo interesse se deixara todo para o fim. Estimava a felicidade da moça. Levar-lhe-ia uma prenda que o lembrasse no seu lar, eternamente. Era feliz, essa. Começava. E ele? Estava no fim. Sem destino, aborrecido, cansado... e ansioso!

- XX -

-Feliciano! diga à srª d. Alice que eu desejo falar-lhe...

-Ela está na sala de jantar, com d. Maria da Glória...

-Bem, então não a incomode; eu vou lá.

O barão sumira-se atrás do genro, pela escada acima, e o padre Assunção seguiu pelo corredor.

Glória enfeitava uma cesta de flores e frutas, dirigida pela governanta. Era para o centro da mesa do almoço. Assunção parou entre portas, ouvindo-as sem ser pressentido:

-... Tenha o cuidado, Glória, de combinar as cores, de modo que umas façam ressaltar as outras... por exemplo, sempre que tiver flores escuras, como estas roxas, ponha-as ao lado de brancas ou amarelas... Refresque o musgo com água todos os dias... Não consinta na mesa de seu pai nenhuma falta... você já está uma mocinha... Hoje, por exemplo, ofereça-se para lhe descascar uma laranja, e assim procure servi-lo todos os dias... Não... essa maçã não fica bem aí... repare que é da mesma cor do pêssego... ponha-a antes aqui, entre esta camada de musgo...

Assunção interrompeu-as:

-D. Alice...

Alice voltou-se. Estava pálida, com os olhos pisados de choro.

Glória exclamou:

-Ah! padre Assunção! estou muito triste.

-Já sei; vai brincar um pouco, minha filha, preciso falar com a tua mestra...

-Eu não sou mestra...

-Assisti ainda a um trecho de lição!...

-Conselhos... só...

Glória, entretanto, sussurrava ao ouvido do padrinho:

-Faça com que ela fique cá em casa, sim?!

E saiu correndo.

-Sabe o que a Glória me pediu?

-Adivinho...

-Recebi ontem uma carta do barão, dizendo-me que a senhora quer deixar esta casa...

-Despediram-me.

-Hein?!

-Despediram-me.

Assunção quedou-se atônito diante da moça.

-Não se admire; os meus serviços deixaram de ser precisos, já sou demais aqui.

-Mas...

-Pressenti no senhor um amigo, e sei que me defenderá mais tarde. Isto já é uma compensação! Daqui a duas horas sairei desta casa...

A voz tremeu-lhe, um rubor cobriu-lhe as faces, e concluiu:

-Logo que tenha feito as contas com o dr. Argemiro...

-Supus que a resolução tivesse sido sua, e por isso procurei-a em primeiro lugar, desejando convencê-la a mudar de idéia...

-Enganou-se... Fui posta na rua, e se não fosse corajosa teria abandonado ontem mesmo o meu posto. Não quero que saiba pela minha boca o que se passou. Outros lho dirão. Só lhe peço uma coisa: afirmar que eu sou uma rapariga absolutamente honesta, se acaso ouvir qualquer alusão desairosa...

-Não ouvirei; todos a consideram aqui e eu sei bem quem a senhora é. Estive em sua casa.

-O senhor!

-Mas não disse a ninguém. Descanse. Permita que a deixe, para ir falar à baronesa. Vejo que era a ela que eu me deveria dirigir primeiro... Em todo o caso, prometa-me não sair sem falar com o Argemiro.

-É só por isso que eu espero.

Assunção contemplou-a. Ela fizera-se de novo como um lacre.

-Que tenciona dizer-lhe?

-Prestar-lhe as minhas contas. Tenho tudo em ordem. É questão para vinte minutos...

«Dizem-se num minuto mais de cem palavras» -pensou o padre consigo; «terão tempo de conversar!...»

O Feliciano entrava e saía, remexendo nos talheres, abrindo e fechando gavetas, maciamente.

Sentindo passos na escada, Alice fugiu para o interior. O padre voltou-se. Era o barão.

O velho aproximou-se.

-Então... como recebeu o homem a notícia?

-Mal...

-Hum... foi o diabo!...

-A senhora baronesa?...

-Oh, você sabe, minha mulher não pode tolerar a outra. Aquilo é uma doença. Doença que nem os médicos nem os padres curam... Esgotei todos os argumentos a favor desta pobre rapariga; afinal, compreendi que o melhor seria deixar correr a água ao sabor da corrente. Os fatos brutais resolvem às vezes questões delicadas melhormente do que palavras doces. Depois, esta situação é intolerável e não podia ser prolongada, sob pena de ver a minha mulher no hospício ou na sepultura... Sacrifício por sacrifício, mais vale o da moça... lá terá na própria mocidade consolação para os seus desgostos... se esse nome merece o dissabor do desemprego. Afinal, não devemos exagerar os fatos. Casas não faltam para essa espécie de serviço. Mais lamento eu o Argemiro, que vai voltar aos embaraços antigos logo que tornemos para a chácara... Veja você se conhece alguém nas condições de substituir esta moça... D. Sofia talvez possa indicar.

-D. Alice é insubstituível.

-Ora, ora! também você!

-Eu, mais do que ninguém, posso afirmá-lo. Como sabe, Argemiro pediu-me que tomasse informações da governanta, logo que se decidiu a confiar-lhe a filha... A mim bastava-me vê-la e ouvi-la para perceber que a nossa Glória estava bem entregue... mas a missão era tão delicada, que insisti em levá-la até o fim, mais com o propósito de defender a pobre moça destes ataques previstos, do que por desconfiar dela. O caso ajudou-me. Um amigo de meu pai, o coronel Barredo, que tem a especialidade de saber a crônica de meio mundo, veio ao meu encontro, e por me ter visto a conversar com ela, desandou a falar a seu respeito, poupando-me o trabalho de uma inquirição, para que me faltava o jeito...

-Isso seria vago...

-Era positivo. O Barredo estava ao fato de tudo, conhecia té a fórmula do contrato entre Argemiro e d. Alice! Há desses homens extraordinários, cujas vistas perfuram paredes e desvendam mistérios... Ainda nós não sabemos do que se passa em nosso interior e já eles estão senhores do nosso segredo!

-As informações que ele deu foram então...

-Magníficas. Terei ocasião de repeti-las agora diante da sra. baronesa.

-Pelo amor de Deus, não tente uma reconciliação! Seria recomeçar!

-Não se tratará senão de uma reparação. Mas sempre os conheci justos e amigos do fazer bem.

-Caridade bem entendida por nós mesmos é começada...

-Não se fala agora de caridade, mas de justiça!

-Dir-se-ia discutir-se a saída de um ministro de Estado!...

-Esta é mais sensível e merece maior ponderação.

-Enfim, o que está feito está feito. Parece-me que não vou gora pedir à menina que fique, pelo amor de Deus! Eu fiz muito dirigindo-me a ela e pedindo-lhe desculpa pela forma por que minha mulher a despediu...

-Ah! e ela o que disse?

-Gaguejou umas coisas, fez-se vermelha, eu creio que o estava também, e voltei para o meu quarto mandando ao diabo as mulheres! Ah! Assunção, estou morto pelas minhas mangueiras e o sossego da minha casa. Passou-me a idade das fantasias, mas não me posso coibir de lamentar minha mulher. Ela está doente, levanta-se de noite, não dorme sem o retrato de Maria embaixo do travesseiro... É o seu fanatismo. A sua religião! O amor de mãe desvaira-a... Que sofrimento! A mim, já me quer mal por eu defender o Argemiro, quando alude à probabilidade de outros amores! Veja só...

Assunção não respondeu; olhava maquinalmente para o jardim bem relvado, fresco das regas e iluminado pelo fulgor dos ibiscos vermelhos e os cachos roxos das viuvinhas. Aqui e ali, roseiras de qualidade vergavam as hastes moles ao peso de grandes rosas perfumadas. Embaixo da janela, num heliotropo florido, palpitavam borboletinhas brancas...

O barão interrogou o padre sobre o último fato político. Assunção respondeu apenas. Mal entendia disso, apesar dos esforços da mãe com o sentido de o interessar pela vida... A ambição pessoal dos homens fazia-lhe mal aos nervos...

Feliciano passou assobiando pela porta do quarto de Alice. Fora um desafogo à alegria que lhe alvoroçava a alma; mas conteve-se antes de entrar na sala, onde o esperava um olhar de censura do padre.

Pouco lhe importou. Alma de negro não é alma de cão. Senão, veriam daí por diante quem mandaria ali!

Quando Argemiro desceu para o almoço, foi avisado de que a sogra o esperava na sala de visitas. A conversa precisava discrição -imaginou logo do que se tratava. Ia ser bonita, a história! Onde se teria metido a Alice? Vinha-lhe agora uma curiosidade doida de a ver!

Na sala encontrou os sogros e Assunção, com um ar de solenidade que o desorientou.

A baronesa derramava pelo sofá as dobras de sua saia, em frente ao retrato da filha, suspenso sobre um guéridon, entre dois grandes jarrões cheios de rosas brancas. «Só faltam as velas!...» -pensou consigo Argemiro, dando com a vista naquela espécie de oratório.

A sogra, emagrecida e pálida, chamou-o para seu lado, e antes mesmo de qualquer cumprimento, foi-lhe dizendo:

-Meu filho, de acordo com a última vontade daquela que está ali, despedi ontem a sua governanta. Sei que lhe dou um desgosto com isto e lamento-o; mas a minha consciência impunha-me este ato de salvação para a sua alma e de paz para o espírito amoroso da nossa pobre Maria!

-Eu não compreendo... mamãe!

-Argemiro! a minha convivência nesta casa com essa mulher provou-me que as minhas suspeitas tinham fundamento. Ela ama-o.

Argemiro não conteve um movimento de surpresa:

-É impossível!

-Antes eu tinha a intuição disso; tive depois as provas, toda a certeza. Encontrei-a muitas vezes aqui, olhando para o seu retrato; vejo a ternura com que ela aperta nos braços sua filha, o desvelo exagerado com que trata tudo que diz respeito à sua pessoa e como enrubesce ao pronunciar o seu nome. Afirmo-lhe que o ama. Eu nunca me enganei. Certa desta verdade, deliberei despedi-la antes da sua chegada, do que não me arrependo, porque era tempo de acabar a comédia, que não podia ser presenciada por minha neta.

-Minha senhora!

-Ah! já não diz minha mãe!... Era ainda... Enfim! peço-lhe desculpa se o ofendi.

-Falemos com calma. Não sei em que língua hei de dizer, para fazer-me entendido: que nem sequer sei a cor dos olhos dessa senhora, cujas feições ignoro e cuja voz mal tenho ouvido à distância! É bonita ou feia? Que me importa! Nunca a vi. Não quero vê-la. Para mim ela não é uma mulher, é uma alma apenas, que me enche a casa de perfumes, de conforto, de doçura, como nunca tive em minha vida.

-Nem no tempo de Maria?! Era o que faltava ouvir!

-Mas não falemos do passado, pelo amor de Deus!

-Como não, se a ele está você preso por um juramento?! Nega ter jurado à minha filha, na hora da morte, fidelidade eterna?!

-Não deixei ainda de cumprir tal promessa; mas não teria escrúpulo em fazê-lo se as condições da minha vida o exigissem. Esse juramento foi sincero, mas mesmo sem sinceridade eu o faria naquele transe, para adoçar o passamento de minha mulher...

-Quer você dizer com isso que romperá tal juramento...?!

-Sem escrúpulo, já disse.

-A religião proíbe-o que o faça!

-Eu não sou religioso.

-Ah! vêem? ele também a ama! Minha pobre filha! Minha pobre filha!

A baronesa estava trêmula, ameaçadora. Crescera de estatura, passavam-lhe pelos olhos fulgores de mocidade e de ódio.

-Se a religião não lhe impõe o cumprimento do dever, apelo ao menos para a sua honra. Não a terá também?!

-A minha honra obriga-me antes a defender essa pobre moça caluniada, do que a manter um voto que já produziu o seu efeito e de que nesta hora me liberto.

A baronesa recuara espavorida, com olhos de assombro. O marido sumia-se, encolhendo-se todo para dentro de si mesmo. A velha voltou-se aflita para Assunção, como a pedir socorro. Seria possível que ele, padre, testemunha de tudo, não viesse em seu auxílio?!

Ele compreendeu-a e encheu-se de dó, ao mesmo tempo que dizia:

-Argemiro tem razão; a sua honra obriga-o a defender essa moça, muito mais digna de consideração que de desconfiança. Foi ainda por paixões terrenas que sua filha exigiu do marido essa promessa. Desprendida do mundo, a sua alma tornou-se toda tolerância e doçura, e seria ofendê-la imaginar que os sacrifícios daqueles a quem amou lhe sejam caros...

-Sacrifícios!

-Ao contrário; no céu, só será completo o seu gozo se na terra vir felizes aqueles que a choraram. Creia, minha amiga, a pessoa que a senhora condena com tamanha injustiça é de uma perfeiçào moral difícil de atingir. Eu respondo por ela como se fora minha irmã.

-Detesto-a!

-Há de estimá-la um dia.

-Nunca!

-Bastará que eu lhe conte isto:

A baronesa abandonava-se, com desânimo, sentindo-se muito só. Os outros esperavam, voltados para Assunção. Ele começou:

-Esta moça, que toda a gente recebeu com certa malignidade, de que eu não fui isento, exerce o cargo de governanta desta casa para manter uma velha paralítica e um velho cego, verdadeiros cacos humanos, que ela visita todas as quartas-feiras piedosamente e de quem é o amparo. Filha única de um advogado brasileiro, Constantino Galba e neta materna do General Vitalino Ortiz, logo que perdeu a mãe, foi mandada a educar num dos melhores colégios da França, onde viveu até que, por morte do pai, ficando quase reduzida à miséria, voltou ao Brasil. Aqui, por toda a família viu-se entre dois criados, uma velha que já fora ama do pai, e o marido, antigo camarada do avô. Bens, só tinha uma casinhola velha em que se acomodou com o casal dos derradeiros amigos. Encararam os três a vida com ânimo. O homem trabalhava ainda e viveram quase sete anos dos recursos desse trabalho e de outros, incertos, de d. Alice: costuras... pinturas... bordados... Afinal lá chegou um dia em que o velho teve de sair de cena. Cegou. Trabalhara demais. Com o desgosto e outras fadigas da idade, fica-lhe a mulher paralítica; e eis a nossa d. Alice entre esses dois seres de redobrado peso. Redobrou também ela de atividade nos trabalhos manuais... propôs-se a dar lições... mas não lhe apareciam discípulos; os trabalhos, mal remunerados, não matavam a fome aos seus velhos... Foi por essa ocasião que apareceu no Jornal do Comércio um anúncio oferecendo um bom ordenado a uma senhora para governar a casa de um viúvo. Ela não hesitou. Os seus velhos teriam pão, ela um pouco mais de descanso... A filha do advogado, a neta do general, sujeitou-se a esse emprego para matar a fome aos seus criados.

A baronesa olhava para Assunção, interrogativamente. Seria verdade tudo aquilo?...

Ele continuava:

-A pobreza apura os dotes naturais da criatura; ela trouxe para aqui a experiência do sacrifício... Ouçam agora: quando leva dinheiro para casa, o velho, zeloso, apalpa-lhe o pescoço, os pulsos, os dedos, a ver se ela tem jóias... A velha acha tudo pouco! Ele prega-lhe moral... desconfia... a outra queixa-se de necessidades... Ela sossega a um, promete à outra e volta para os sarcasmos desta situação e para as pirracinhas do Feliciano. Senhora baronesa! Isto que eu lhe digo é verdade. Eu vi.

A baronesa nem pestanejava. Sumira-se-lhe a cor dos beiços. Estava lívida.

Argemiro curvou-se todo para o amigo:

-Viste?

-Vi! Um dia fui chamado a levar socorros espirituais a um doente. Era a paralítica. Foi junto à sua cadeira de rodas, que o marido me contou toda a história de d. Alice. Conheciam-me de nome e preferiram-me a outro padre qualquer, exatamente para me falarem dela, e pediram-me que a protegesse! O velho tinha medo; conhecia as tentações do mundo e a fraqueza das mulheres... queria ouvir da minha boca palavras que o sossegassem. Sosseguei-o. No dia seguinte voltei, a saber da paralítica; tinha melhorado. Estava eu lá, quando, percebendo os passos de d. Alice, os velhos suplicaram-me que me ocultasse. Ela ficaria vexada se me visse ali; ocultei-me. Foi no meu esconderijo que assisti à cena de humilhações a que me referi. Não tinham bastado as minhas afirmações; o cego apalpou nervosamente os dedos, os pulsos, as orelhas da moça, à procura da jóia comprometedora... A paralítica pediu-lhe guloseimas. Enjoara tudo. Morria de fraqueza... Agora, senhora baronesa, creio que não preciso dizer mais nada...

O barão levantou-se:

-Luiza, não te parece que devemos pedir perdão a essa senhora?

Mas a mulher não respondeu. Parecia petrificada no seu lugar, com os olhos fitos no retrato mudo da filha.

- XXI -

Chegara a hora da prestação de contas. Argemiro escrevia à secretária, quando Alice entrou na sala. Como da primeira vez que se falaram, ela ficara contra a claridade, encolhida no seu vestido de lã barata, escura, e com o véu descido até o queixo.

Estava pronta para sair; esperava ordens...

Argemiro remexeu nos papéis. Abriu um caderninho dos assentamentos do mês, que ela lhe mandara somado e com saldo.

Sem saber porquê, Argemiro sentia-se embaraçado, e foi com certa timidez que convidou a moça a sentar-se.

-Estou bem...

-Não; sente-se.

-Obrigada...

Ela parecia querer ficar em pé, pronta para fugir!

Ele gaguejou:

-Então...

Evidentemente não sabia como principiar.

De repente:

-Os seus cadernos estão numa ordem admirável. Realmente eu nunca imaginei que uma senhora entendesse tanto de contas... é um guarda-livros! Contudo... parece-me encontrar aqui um pequeno engano...

Alice aproximou-se, com um arrepiozinho de susto.

Ele, indicando-lhe uma cadeira, a seu lado:

-Tenha a bondade de somar...

Ofereceu-lhe a pena, que ela mesma molhou no tinteiro.

Estavam sós. A casa em silêncio.

Alice sentou-se, com aflita curiosidade, e levantando o véu baixou os olhos para o caderno, recomeçando a somar parcelas indicadas. Entretanto, ele contemplava-a pela primeira vez. Era mais bonita do que pensava; tinha a pele suave, os olhos pestanudos e o cabelo escuro e abundante...

A mão esguia, branca, movia-se sobre o papel num leve tremor nervoso.

Argemiro pensava:

«Fui um estúpido; eu deveria ter apressado este instante. Ela é deliciosa!» E aspirava num deleite o aroma que vinha dela, aquele cheiro de cidrilha, de malva, ou flor de fruta e que constituía já uma das suas necessidades.

Alice corava intensamente. Não atinava com o erro!

-Não acho... -confessou por fim.

-Entretanto, ele não é pequeno...

Alice levantou com espanto os olhos para Argemiro; ele fixou-os com ternura. Estremeceram ambos.

Ela tornou a baixar a vista para o caderno. Letras e cifras dançavam estonteadoramente. Argemiro percebeu-lhe a comoção. Bem dissera a sogra! E com alegria:

-Quer que lhe aponte o engano?

-Se faz favor...

-Está aqui!

Argemiro apontou para a verba que representava o ordenado da moça, apressando-se em continuar:

-A senhora reduziu esta quantia...

-Foi o que nós combinamos!...

-Combinamos o dobro.

-Afirmo-lhe que não.

-Devo-lhe muito...

-Não me deve nada.

-Tê-la-ei ofendido?

-Não...

Estava ele outra vez encalhado. Nem para trás nem para diante, sem saber que dizer, todo olhos para o rosto, que já desaparecia sob o véuzinho bordado.

-D. Alice!

A moça respondeu com um olhar tímido.

Ele calou-se. Parecia-lhe impossível aquela estupidez!

-Então a senhora vai-se mesmo embora...

-É preciso.

-Se Glória lhe pedisse para ficar... Ela é tão sua amiga...

-Nem assim...

Argemiro levantou-se e disse com voz grave e resoluta:

-Tem razão. O seu lugar não é aqui, agora que a vi e a conheço. Só lhe peço uma coisa: que me consinta ir amanhã à sua casa, em companhia de minha filha... pedir-lhe perdão...

Alice esboçou um gesto de protesto. Receava chorar se falasse.

Ele aproximou-se e ficaram ambos calados, adivinhando-se através do silêncio, até que Maria da Glória gritou da porta:

-D. Alice! o Feliciano já levou a sua mala!

Dois meses depois, numa linda manhã, os barões assistiram ao casamento de Argemiro e de Alice, feito por Assunção, testemunhado por Adolfo Caldas, Teles e d. Sofia.

A cerimônia foi simples e sem lágrimas. A baronesa conteve-se. Muito pálida, dentre as sedas negras do vestido, ela adquirira pelo esforço enérgico da vontade uma rigidez de estátua. Nem um músculo das faces lhe tremia. Com as mãos pousadas nos ombros da neta, ela parecia olhar para tudo como do alto de uma torre, imperturbavelmente.

À tarde Assunção foi visitá-la. Tinham voltado à chácara do subúrbio. Glória correu a recebê-lo no portão. Estava decidido que ela viveria ali uns meses, para consolar a avó. Achava agora tudo tão bonito! O avô lá andava no horto, verificando o estado das suas plantas, alegre como um patinho na água! Ela estava por ali à cata de mangas maduras...

Assunção acariciou-lhe a cabeça e entrou sozinho na saleta da baronesa. Ela ali estava no seu cantinho costumado, febril, com o corpo alquebrado, descaído, os olhos avermelhados entre as pálpebras empapuçadas. Vendo-o, chamou-o a si; e segurando-lhe as mãos, numa queixa soluçada:

-Minha filha tornou a morrer hoje, Assunção; agora está só comigo e eu vou perdendo as forças para chorar...

-Não a chorará sozinha... -murmurou ele quase em segredo, corando.

Ela voltou-se, e contemplou-o num misto de esperança e de assombro.

-Você?...

Ele olhou silenciosamente para a batina, como para explicar tudo.

Transfigurada, num movimento inconsciente, alegre, ela apertou-o nos braços e exclamou:

-Meu filho!