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Lúcidas falenas

Raul Antelo



«All'idea che la storia sia stata scritta una volta per tutte si oppone la scrittura, che scrive la storia, questa e quella storia, sempre di nuovo. Solo interrompendo il continuum storico, sarà possibile come aveva detto Benjamin sprigionare l'istante della redenzione dal cuore della sua impossibilità. Solo declinando l'apocalisse al presente, e cioè solo se il presente è luogo di rivelazione, senso e non senso come direbbe invece Kermode potranno fare irruzione nel tempo dell'uomo. Ma è la scrittura che fa saltare il continuum storico, è la scrittura che precipita l'apocalisse nell'istante, tanto che ogni istante può essere quello in cui si decide del senso o del non senso dell'essere. Scrittura versus filosofia della storia. Da una parte le infinite storie possibili. Dall' altra la sola storia vera. Perché sarà pur vero che hegelianamente la filosofia (della storia) non é altro che il proprio tempo appreso per mezzo del concetto. Ma il proprio tempo non può essere appreso concettualmente se non a partire dalla fine e cioè come tempo compiuto, tempo definitivo: tempo che ha manifestato compiutamente la sua verità. E dove il tempo ha manifestato la sua verità, c'è verità, sicuramente, ma non c'è piú tempo. Se invece si vuole, come vuole Blumenberg, che la verità e prima ancora il senso e il non senso siano cosa temporale, non resta che sciogliere i conceti in storie anziché le storie (e prima ancora la storia) nei concetti come appunto Blumenberg propone fin dal titolo del suo libro -fino a opporre la scrittura alla filosofia della storia. È la scrittura il punto di resistenza alle pretese di ogni filosofia della storia: che la storia vera sia quella, soltanto quella, e non altra. Nella scrittura il mondo della vita si fa mondo. Trova la via d'accesso alle simulazioni di senso. Senza che nessuna possa esaurirne la smisurata potenza».


(Sergio Givone, Il bibliotecario di Leibniz: filosofia e romanzo)                






Uma das consequências mais contundentes das leituras de que Machado de Assis (1839-1908) vem sendo objeto, nos últimos anos, consiste em vê-lo como um modernista. Roberto Schwarz derrubou o mito de que o modernismo, no Brasil, coincide com a Semana. Se acatarmos sua leitura de Machado de Assis, centrada no problema da forma ideológica, concluiríamos, ao contrário, que o modernismo foi a forma assumida pelo formalismo em sua tentativa de dar uma resposta à modernidade, resposta essa, certamente, tão enfática quanto extravagante, já que obedecia a dois vetores contrapostos. Ora a ordem formal era nele jogada, e até mesmo fetichizada, em primeiro plano, quase como uma pré-condição ou imposição necessária de uma série de modelos prêt-à-porter, feitos à máquina, ora essa mesma forma era empurrada em direção ao vazio ou à justaposição aleatória de seus elementos, justaposição que sempre se revela no limiar da mais absoluta arbitrariedade. De sorte que a forma, não só em Machado mas em todos os autores modernistas, aparece, via de regra, situada no meio do caminho entre a pura repetição e a pura diferença. A forma, nos mostra Schwarz, reiteradamente, obedece, assim, aos dois grandes princípios que deram seu caráter inconfundível à modernidade: de um lado, a regularidade e acachapante uniformidade da máquina; de outro, a profunda aleatoriedade e esvaziamento do mundo social. Ambos, entretanto, mancomunados, é que lhe conferem ao modernismo seu caráter problemático que, conforme essa tradição crítica, é algo a ser resolvido dialéticamente1.

Mas o modernismo interessava-se, a rigor, menos pelas ideologias do que pelos meios de representação da modernidade, ciente, contudo, de duas grandes fantasias que percorrem o moderno. A primeira propunha que o mundo se tornava gradativamente moderno na medida em que se transformava em um espaço habitado por sujeitos individuais livres, cada um deles vivendo de suas mediações sensoriais particulares. A segunda, que na prática, era difícil de se discriminar da anterior, afirmava que o mundo, cada vez mais um reino de racionalidade técnica, em função de ter sido mecanizado e estandardizado, ficou gradativamente mais transparente para os sujeitos individuais, sendo que se encaminhava, porém, já então, a uma absoluta lucidez material, uma lucidez, um brilho, a rigor, quase luciferinos. No fim desse percurso, porém, o mundo acabou se tornando um espaço mais de relações do que de entidades, de trocas mais que de objetos e, em última análise, um espaço virtual de gerenciamento de imagens mais do que um espaço estruturado de funções, constituído por corpos voltados à domesticação da necessidade.

Outro adorniano como Schwarz, o crítico de arte T. J. Clark, diz que o modernismo, na prática, foi amiúde uma forma de agonia ou anomia, com a ressalva, porém, de que a agonia, na modernidade, não pode ser separada do gozo. Ambos caminham pari passu, de sorte que as formas ideológicas do alto modernismo conciliariam, portanto, duas forças antagônicas: um momento de interiorização, que significa a retirada para a forma, como um abrigo contra a modernidade, embora essa modernidade sempre retorne como desafio, já que o modernismo teima em nos apresentar um mundo em vias de se tornar um simples reino de aparências e semblantes, constituído de fragmentos, colchas de retalhos de experiências vividas ou quadros oníricos feitos de fantasmas desconexos. Há nele pois agonia, mas essa agonia não pode ser separada de uma certa extravagância estética. Mesmo recuando para o território da forma, é inegável que a forma estética do modernismo era, para críticos como Clark, um teste de pureza -a sublimação modernista- concebido como um abismo que sugava todos os dados confiáveis e confortáveis da cultura, para depois triturá-los e cuspi-los fora2.

Mas, nesse ponto, exatamente, coloca-se a questão, melhor dizendo, o paradoxo que gostaria de apontar no caso de Machado de Assis. De um lado, ele é unânimemente apontado como modelo do escritor nacional, preterindo-se até, em pesquisa recente, a figura de Guimarães Rosa para um discreto segundo plano. Em poucas palavras, Machado ainda exprime a comunidade nacional como ninguém. Machado é, assim, o munus brasileiro, que é como em Roma se designava a obra pública, o espetáculo, daí derivando o cum-munus. Mas, de outro lado, sua obra talvez mais modernista e experimental, Memórias póstumas de Braz Cubas, confessa ter sido escrita com a pena da galhofa e a tinta da melancolia. Ou seja que o caráter paradigmáticamente comunitário de Machado proviria, no entanto, da atitude melancólica com que o escritor contemplava o Brasil.

Com efeito, Braz Cubas compreende, de maneira lancinante, que a vida é devorar e ser devorado, dura biopolítica em que se balançam «o alvor do dia, a melancolia da tarde, a quietação da noite». Capta, resignado, que o homem, tornado «orador, mecânico, filósofo, corria a face do globo, descia ao ventre da terra, subia à esfera das nuvens, colaborando assim na obra misteriosa, com que entretinha a necessidade da vida e a melancolia do desamparo». Mesmo seu amigo Lobo Neves lhe diz que «a vida política era um tecido de invejas, despeitos, intrigas, perfídias, interesses, vaidades», o que, a critério de Braz, revelava tão somente «uma crise de melancolia». Já no fim do relato, no capítulo 116, o da «Filosofia das folhas velhas», o narrador decide «purgar o espírito da melancolia», que empapa a obra, mas compreende ser já tarde. Até Quincas Borba lhe adverte então para o perigo final, o de ir «escorregando na ladeira fatal da melancolia». Cabe, por isso, a pergunta: podem, por acaso, caminhar lado a lado comunidade e melancolia? È possível ser um representante do munus se a galhofa, sempre fragmentária, frustra toda representação ou ambição de representação da totalidade?

O comum, o comunitário é, como sabemos, a ausência do próprio ou específico. Não é, entretanto, uma coisa. Roberto Espósito nos relembra que ele não é res e muito menos Res publica. Comunidade e República, portanto, em teoria política, não se equivalem. No Leviatã, Hobbes detectou a melancolia -madness, melancholy, dejection ou grief, que é palavra que provém do latim, gravare, no duplo sentido de causar aflição mas também de sulcar a matéria, provocar uma fenda- e a definiu como um princípio de matança disseminada, graças ao qual a vida se torna sacrificável. Em sua esteira, a vida passa a ser definida como luto e é assim que Freud, em Totem e tabu, compensa a culpa pelo crime originário, através do repasto totêmico e a instituição retrospectiva da lei. Por sua vez, Heidegger, em O ser e o tempo, nos dá a leitura contemporânea do problema. Há duas melancolias. A melancolia é ora negativa, como tristitia ou acédia, ora positiva, como consciência da finitude, o que permite situar a primeira na esfera do inautêntico e o impróprio, ao passo que a segunda se encontraria na esfera da vida autêntica. Em sua «Mensagem ao antropófago desconhecido (da França Antártica)», um herdeiro de Machado, Oswald de Andrade, matará, de hábito, a charada: «A vida autêntica de Heidegger é a vida do antropófago que resiste no homem vestido». A melancolia negativa é, portanto, a metonímia infinita: passa de um desejo a outro, sem poder satisfazer nenhum. È solidária com o mercado. A melancolia positiva, pelo contrário, nos propõe um limite ao gozo. Nos confronta, através da angústia, com o real irredutível e, portanto, impossível de simbolizar3.

Se aceitarmos essa redefinição da melancolia, o que é a comunidade, enfim? Não é um lugar ao que se deva retornar, como argumentaria Rousseau, nem uma aspiração a ser construída, como sonhava Kant. Não é também algo a ser destruído, como bradava Hobbes. Ela não é origem nem fim, não é arkhé nem telos, não é um pressuposto nem um destino. A comunidade é tão somente a condição singular-plural de nossa existência finita. Mas, neste ponto paradoxal, que é o munus originário que, em última análise, nos agrupa, a melancolia se torna outra coisa e, nesse sentido, diríamos que também a modernidade se torna outra, diversa da tradição precedente. Mais do que tentar defini-la então enquanto forma, cabe-nos pensá-la como força.

Se aceitarem minha proposta, concordarão comigo que isto acarreta consequências no modo de ler Machado de Assis. Diríamos, assim, que, no interior da comunidade brasileira, o próprio Machado não passa de uma mosca azul, uma singularidade-plural que combina, em suas asas, ouro e granada da heterogeneidade social. Ele, tal qual a mosca, «zumbia, e voava, e voava, e zumbia», num «refulgir, que mais parece um sonho». Esse brilho da mosca azul era a vida, enquanto «padrão da eterna meninice», que fazia com que qualquer um, ao contemplá-la, ficasse «deslembrado de tudo / Sem comparar, nem refletir». Só o tosco olhar disciplinador do biopoder aspirava a isolá-la, imune a todo contato, e:


«Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil».



Em outras palavras, a melancolia positiva, isto é, a vida do antropófago ainda ativo no homem contemporâneo, que outra coisa não é senão consciência da biopolítica em irresistível ascensão, essa melancolia, digo, é a atitude que lhe abre ao modernista Machado a compreensão da vida como algo a mais do que matéria administrável. A instável mosca azul de sua fantasia nos apresenta, a rigor, a realidade enquanto imagem. Ela, a comunidade, não passa de um phasma. Essa fantasmagoria concentra em si a luz diurna, que permite ver as coisas, o regozijo ou gozo (phaos, phôs), e a luz noturna, que os torna inapreensíveis -esse brilho branquecino, emblema da geração, phalos, marca, mesmo assim, de tudo quanto é próprio dos fenômenos, que se mostram, brilham, anunciam e prefiguram ausências, como diz o verbo phainestai, e portanto, são sintomas da fantasia e do fantasma, da aparência e da aparição. Se a imagem é a realidade, isto quer dizer que a realidade é inconstante e, tal como a imagem, ela aparece e desaparece, cintila descontínua, de sorte que, mesmo ausente, ela está presente em seus vestígios e ruínas. Mais ainda: se os atributos da escrita se equivalem aos da imagem, isso significa que não há história sem a interrupção da história, assim como não há imagem sem a interrupção da imagem4.

Uma tal compreensão descontínua do tempo e da escrita nos permite também concluir que Machado escreve, na linearidade contínua da prosa do mundo, as intermitências características da sua sensibilidade singular, ou seja, da poesia, como eterna hesitação entre som e sentido, como queria Valéry, obrigando o leitor comum a um corte, a uma parada rearticuladora do sentido comunitário, que não é mais um atributo das coisas, e portanto, não se representa nem se capta, fenomenológicamente, através do olhar ingênuo, mas é agora produto das complexas relações que as aparências mantêm com as aparições. Nesse sentido, o procedimento poético captura implicitamente o prosaico, produzindo uma suspensão, uma interrupção do pensamento, com a consequente reversão do munus acumulado.

Como já apontou Agamben e como foi detectado, aliás, por leitores agudos do presente, como Alberto Pucheu, Machado imita o efeito do enjambement poético na linearidade de sua prosa, que passa, implicitamente, a conter possibilidades do poema -tal o caso das reticências, que são muito mais do que uma mera técnica formal ou experimental vanguardista, já que fantasmagorizam a própria continuidade do epos- e, assim sendo, à maneira do que Agamben diz do cinema de Guy Debord, caberia afirmar que tais opções de Machado não são uma paragem, no sentido de uma pausa, de caráter cronológico, linear ou sucessivo, na história. Elas são antes, e acima de tudo, uma potência de paragem, que trabalha o lugar comum, de forma anacrônica, tal como um passo de dança5.

As dançarinas inspiradas por Isadora Duncan eram legião em 1900. João do Rio elogia o borboletar de Maud Allan ou Tamara Karsavina («Apologia da dança», Sésamo, 1917). Arthur Azevedo, autor cujo centenário também se comemorou em 2008, descreve, já em 1894, a estréia de Emilie D'Armoy, discípula e imitadora de Loie Fuller, quem, embrulhada em panos, entrava em cena para «os raios de luz elétrica a ilumina(re)m de verde, azul, amarelo e roxo, no seu amplo vestido, que se estende quando ela se agita, fazendo ondulações na serpentina, vagas no açafate, azas na borboleta». Alguns anos depois, o mesmo Arthur confessaria ter assistido o Animatógrafo Super Lumière, até ficar entontecido pelas imagens, sobre tudo, «as coloridas, que reproduzem, com uma precisão extraordinária, as danças serpentinas da Loie Fuller, ou do diabo por ela» (O Paiz, Rio de Janeiro, 24 dez. 1897). E outro tanto ainda se lê, em 1904, na elegante -e visual- revista Kosmos, quando, enfim, da visita da autêntica Loie Fuller. Um dos sucessos da dançarina norte-americana era «Entre as borboletas», quando ela dançava como uma falena, encantando platéias por toda a América latina, como atesta Gómez Carrillo, que lhe dedica um retrato em O livro das mulheres (1919)6.

A imagem-borboleta7. Ora, não em vão, bem antes disso, em 1870, Machado intitulou seu volume de poemas Falenas, aludindo às borboletas noturnas que, sugadas pela luz, aparecem e desaparecem, esplendem e se ofuscam. Falena é palavra da mesma familia de phasma, phantasma, phantasia. Na estrofe 45 de «Pálida Elvira», uma das Falenas, lemos:


«Tinha mágoas o moço?
A causa delas? Nenhuma causa; fantasia apenas;
O eterno devanear das almas belas,
Quando as dominam férvidas camenas;
Uma ambição de conquistar estrelas,
Como se colhem lúcidas falenas;
Um desejo de entrar na eterna lida,
Um querer mais do que nos cede a vida».



Lúcidas falenas. Não apenas borboletas portadoras da luz mas um Iluminismo que cintila e oscila, que hesita e, frequentemente, fecha os olhos para a vida abjeta que o cerca. Nessa metamorfose8, nesse «querer mais do que nos cede a vida», que é um querer arrebatar-lhe à vida algo que, sem cessar, ela nos recusa, em outras palavras, nesse saber daquilo que está, como a mosca ou a falena, prestes a morrer, a perecer, nesse arrebatamento, enfim, de um saber ex perire, que é o saber da experiência, creio eu que se esconde a vida autêntica, a força da escrita de Machado.





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