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A alma encantadora das ruas

João do Rio

This is a sensible book. This is a book to improve your mind. I do not tell you all I know, because I do not want to swamp you with knowledge...

Jerome K. Jerome

A
João Ribeiro
Profunda admiração

João do Rio

Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia -o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.

A rua! Que é a rua? Um cançonetista de Montmartre fá-la dizer:

Je suís la rue, femme êternellement verte,

je n'ai jamais trouvé d'autre carrière ouverte

sinon d'être la rue, et, de tout temps, depuis

que ce pénible monde est monde, je la suis...



A verdade e o trocadilho! Os dicionários dizem: «Rua, do latim ruga, sulco. Espaço entre as casas e as povoações por onde se anda e passeia». E Domingos Vieira, citando as Ordenações: «Estradas e rua pruvicas antiguamente usadas e os rios navegantes se som cabedaes que correm continuamente e de todo o tempo pero que o uso assy das estradas e ruas pruvicas». A obscuridade da gramática e da lei! Os dicionários só são considerados fontes fáceis de completo saber pelos que nunca os folhearam. Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei in-folios especiais de curiosidade. A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas por onde se anda nas povoações.

Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! Em Benares ou em Amsterdão, em Londres ou Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. Não paga ao Tamagno para ouvir berros atenorados de leão avaro, nem à velha Patti para admitir um fio de voz velho, fraco e legendário. Bate, em compensação, palmas aos saltimbancos que, sem voz, rouquejam com fome para alegrá-la e para comer. A rua é generosa. O crime, o delírio, a miséria não os denuncia ela. A rua é a transformadora das línguas. Os Cândido de Figueiredo do universo estafam-se em juntar regrinhas para enclausurar expressões; os prosadores bradam contra os Cândido. A rua continua, matando substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários as palavras que inventa, criando o calão que é o patrimônio clássico dos léxicons futuros. A rua resume para o animal civilizado todo o conforto humano. Dá-lhe luz, luxo, bem-estar, comodidade e até impressões selvagens no adejar das árvores e no trinar dos pássaros.

A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopéia tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. A rua criou todas as blagues todos os lugares-comuns. Foi ela que fez a majestade dos rifões, dos brocardos, dos anexins, e foi também ela que batizou o imortal Calino. Sem o consentimento da rua não passam os sábios, e os charlatães, que a lisonjeiam lhe resumem a banalidade, são da primeira ocasião desfeitos e soprados como bolas de sabão. A rua é a eterna imagem da ingenuidade. Comete crimes, desvaria à noite, treme com a febre dos delírios, para ela como para as crianças a aurora é sempre formosa, para ela não há o despertar triste, quando o sol desponta e ela abre os olhos esquecida das próprias ações, é, no encanto da vida renovada, no chilrear do passaredo, no embalo nostálgico dos pregões -tão modesta, tão lavada, tão risonha, que parece papaguear com o céu e com os anjos...

A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que vive em cada aspecto urbano, em cada detalhe, em cada praça, tipo diabólico que tem dos gnomos e dos silfos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos e de lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de abandono e de inédita filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de felino e risos de navalha, o prodígio de uma criança mais sabida e cética que os velhos de setenta invernos, mas cuja ingenuidade é perpétua, voz que dá o apelido fatal aos potentados e nunca teve preocupações, criatura que pede como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e pode rir, francamente, depois de ter conhecido todos os males da cidade, poeira d'ouro que se faz lama e torna a ser poeira -a rua criou o garoto!

Essas qualidades nós as conhecemos vagamente. Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza o calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes -a arte de flanar. É fatigante o exercício?

Para os iniciados sempre foi grande regalo. A musa de Horácio, a pé, não fez outra coisa nos quarteirões de Roma. Sterne e Hoffmann proclamavam-lhe a profunda virtude, e Balzac fez todos os seus preciosos achados flanando. Flanar! Aí está um verbo universal sem entrada nos dicionários, que não pertence a nenhuma língua! Que significa flanar? Flanar é ser vagabundo e refletir, é ser basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem. Flanar é ir por aí, de manhã, de dia, à noite, meter-se nas rodas da populaça, admirar o menino da gaitinha ali à esquina, seguir com os garotos o lutador do Cassino vestido de turco, gozar nas praças os ajuntamentos defronte das lanternas mágicas, conversar com os cantores de modinha das alfurjas da Saúde, depois de ter ouvido dilettanti de casaca aplaudirem o maior tenor do Lírico numa ópera velha e má; é ver os bonecos pintados a giz nos muros das casas, após ter acompanhado um pintor afamado até a sua grande tela paga pelo Estado; é estar sem fazer nada e achar absolutamente necessário ir até um sítio lôbrego, para deixar de lá ir, levado pela primeira impressão, por um dito que faz sorrir, um perfil que interessa, um par jovem cujo riso de amor causa inveja.

É vagabundagem? Talvez. Flanar é a distinção de perambular com inteligência. Nada como o inútil para ser artístico. Daí o desocupado flâneur ter sempre na mente dez mil coisas necessárias, imprescindíveis, que podem ficar eternamente adiadas. Do alto de uma janela como Paul Adam, admira o caleidoscópio da vida no epítome delirante que é a rua; à porta do café, como Poe no Homem da Multidões, dedica-se ao exercício de adivinhar as profissões, as preocupações e até os crimes dos transeuntes. É uma espécie de secreta à maneira de Sherlock Holmes, sem os inconvenientes dos secretas nacionais. Haveis de encontrá-lo numa bela noite numa noite muito feia. Não vos saberá dizer donde vem, que está a fazer, para onde vai. Pensareis decerto estar diante de um sujeito fatal? Coitado! O flâneur é o bonhomme possuidor de uma alma igualitária e risonha, falando aos notáveis e aos humildes com doçura, porque de ambos conhece a face misteriosa e cada vez mais se convence da inutilidade da cólera e da necessidade do perdão.

O flâneur é ingênuo quase sempre. Pára diante dos rolos, é o eterno «convidado do sereno» de todos os bailes, quer saber a história dos boleiros, admira-se simplesmente, e conhecendo cada rua, cada beco, cada viela, sabendo-lhe um pedaço da história, como se sabe a história dos amigos (quase sempre mal), acaba com a vaga idéia de que todo o espetáculo da cidade foi feito especialmente para seu gozo próprio. O balão que sobe ao meio-dia no Castelo, sobe para seu prazer; as bandas de música tocam nas praças para alegrá-lo; se num beco perdido há uma serenata com violões chorosos, a serenata e os violões estão ali para diverti-lo. E de tanto ver que os outros quase não podem entrever, o flâneur reflete. As observaçõs foram guardadas na placa sensível do cérebro; as frases, os ditos, as cenas vibram-lhe no cortical. Quando o flâneur deduz, ei-lo a concluir uma lei magnífica por ser para seu uso exclusivo, ei-lo a psicologar, ei-lo a pintar os pensamentos, a fisionomia, a alma das ruas. E é então que haveis de pasmar da futilidade do mundo e da inconcebível futilidade dos pedestres da poesia de observação...

Eu fui um pouco esse tipo complexo, e, talvez por isso, cada rua é para mim um ser vivo e imóvel.

Balzac dizia que as ruas de Paris nos dão impressões humanas. São assim as ruas de todas as cidades, com vida e destinos iguais aos do homem.

Por que nascem elas? Da necessidade de alargamento das grandes colmeias sociais, de interesses comerciais, dizem. Mas ninguém o sabe. Um belo dia, alinha-se um tarrascal, corta-se um trecho de chácara, aterra-se lameiro, e aí está: nasceu mais uma rua. Nasceu para evoluir, para ensaiar primeiros passos, para balbuciar, crescer, criar uma individualidade. Os homens têm no cérebro a sensação dessa semelhança, e assim como dizem de um rapagão:

-Quem há de pensar que vi este menino a engatinhar!

Murmuram:

-Quem há de dizer que esta rua há dez anos só tinha uma casa!

Um cavalheiro notável, ao entrar comigo certa vez na Rua Senador Dantas, não se conteve:

-É impossível passar por aqui sem lembrar que a velhice começa a chegar. Quando vim da província esta rua tinha apenas duas casas no antigo jardim do Convento, e eu tomava chopps no Guarda Velha a três vinténs!

Eu sorria, mas o pobre sujeito importante dizia isso como se recordasse os dois primeiros dentes de um homenzarrão, com uma dentadura capaz atualmente de morder as algibeiras de uma sociedade inteira. Era a recordação, a saudade do passado começo. Há nada mais enternecedor que o princípio de uma rua? É ir vê-lo nos arrabaldes. A princípio capim, um braço a ligar duas artérias. Percorre-o sem pensar meia dúzia de criaturas. Um dia cercam à beira um lote de terreno. Surgem em seguida os alicerces de uma casa. Depois de outra e mais outra. Um combustor tremeluz indicando que ela já se não deita com as primeiras sombras. Três ou quatro habitantes proclamam a sua salubridade ou o seu sossego. Os vendedores ambulantes entram por ali como por terreno novo a conquistar. Aparece a primeira reclamação nos jornais contra a lama ou o capim. É o batismo. As notas policiais contam que os gatunos deram num dos seus quintais. É a estréia na celebridade, que exige o calçamento ou o prolongamento da linha de bondes. E insensivelmente, há na memória da produção, bem nítida, bem pessoal, uma individualidade topográfica a mais, uma individualidade que tem fisionomia e alma.

Algumas dão para malandras, outras para austeras; umas são pretensiosas, outras riem aos transeuntes e o destino as conduz como conduz o homem, misteriosamente, fazendo-as nascer sob uma boa estrela ou sob um signo mau, dando-lhes glórias e sofrimentos, matando-as ao cabo de um certo tempo.

Oh! Sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue...

Vede a Rua do Ouvidor. É a fanfarronada em pessoa, exagerando, mentindo, tomando parte em tudo, mas desertando, correndo os taipais das montras1 à mais leve sombra de perigo. Esse beco inferno de pose, de vaidade, de inveja, tem a especialidade da bravata. E fatalmente oposicionista, criou o boato, o «diz-se...» aterrador e o «fecha-fecha» prudente. Começou por chamar-se Desvio do Mar. Por ela continua a passar para todos os desvios muita gente boa. No tempo em que os seus melhores prédios se alugavam modestamente por dez mil réis, era a Rua do Gadelha. Podia ser ainda hoje a Rua dos Gadelhas, atendendo ao número prodigioso de poetas nefelibatas que a infestam de cabelos e de versos. Um dia resolveu chamar-se do Ouvidor sem que o senado da câmara fosse ouvido. Chamou-se como calunia, e elogia, como insulta e aplaude, porque era preciso denominar o lugar em que todos falam de lugar do que ouve; e parece que cada nome usado foi como a antecipação moral de um dos aspectos atuais dessa irresponsável artéria da futilidade.

A Rua da Misericórdia, ao contrário, com as suas hospedarias lôbregas, a miséria, a desgraça das casas velhas e a cair, os corredores bafientos, é perpetuamente lamentável. Foi a primeira rua do Rio. Dela partimos todos nós, nela passaram os vice-reis malandros, os gananciosos, os escravos nus, os senhores em redes; nela vicejou a imundície, nela desabotoou a flor da influência jesuítica. Índios batidos, negros presos a ferros, domínio ignorante e bestial, o primeiro balbucio da cidade foi um grito de misericórdia, foi um estertor, um ai! Tremendo atirado aos céus. Dela brotou a cidade no antigo esplendor do Largo do Paço, dela decorreram, como de um corpo que sangra, os becos humildes e os coalhos de sangue, que são as praças, ribeirinhas do mar. Mas, soluço de espancado, primeiro esforço de uma porção de infelizes, ela continuou pelos séculos afora sempre lamentável, e tão augustiosa e franca e verdadeira na sua dor que os patriotas lisonjeiros e os governos, ninguém, ninguém se lembrou nunca de lhe tirar das esquinas aquela muda prece, aquele grito de mendiga velha: -Misericórdia!

Há ruas que mudam de lugar, cortam morros, vão acabar em certos pontos que ninguém dantes imaginara -a Rua dos Ourives; há ruas que, pouco honestas no passado, acabaram tomando vergonha- a da Quitanda. Essa tinha mesmo a mania de mudar de nome. Chamou-se do Açougue Velho, do Inácio Castanheira, do Sucusarrará, do Tomé da Silva, que sei eu? Até mesmo Canto do Tabaqueiro. Acabou Quitanda do Marisco, mas, como certos indivíduos que organizam o nome conforme a posição que ocupam, cortou o marisco e ficou só Quitanda. Há ruas, guardas tradicionais da fidalguia, que deslizam como matronas conservadoras -a das Laranjeiras; há ruas lúgubres, por onde passais com um arrepio, sentindo o perigo da morte- o Largo do Moura por exemplo. Foi sempre assim. Lá existiu o Necrotério e antes do Necrotério lá se erguia a Forca. Antes da autópsia, o enforcamento. O velho largo macabro, com a alma de Tropmann e de Jack, depois de matar, avaramente guardou anos e anos, para escalpelá-los, para chamá-los, para gozá-los, todos os corpos dos desgraçados que se suicidam ou morrem assassinados. Tresanda a crime, assusta. A Prainha também. Mesmo hoje, aberta, alargada com prédios novos e a trepidação contínua do comércio, há de vos dar uma impressão de vago horror. À noite são mais densas as sombras, as luzes mais vermelhas, as figuras maiores. Por que terá essa rua um aspecto assim? Oh! Porque foi sempre má, porque foi sempre ali o Aljube, ali padeceram os negros dos três primeiros trapiches do sal, porque também ali a forca espalhou a morte!

Há entretanto outras ruas, que nascem íntimas, familiares, incapazes de dar um passo sem que todas as vizinhas não saibam. As ruas de Santa Teresa estão nestas condições. Um cavalheiro salta no Curvelo, vai a pé até o França, e quando volta já todas as ruas perguntam que deseja ele, se as suas tenções são puras e outras impertinências íntimas. Em geral, procura-se o mistério da montanha para esconder um passeio mais ou menos amoroso. As ruas de Santa Teresa, é descobrir o par e é deitar a rir proclamando aos quatro ventos o acontecimento. Uma das ruas, mesmo, mais leviana e tagarela do que as outras, resolveu chamar-se logo Rua do Amor, e a Rua do Amor lá está na freguesia de S. José. Será exatamente um lugar escolhido pelo Amor, deus decadente? Talvez não. Há também na freguesia do Engenho Velho uma rua intitulada Feliz Lembrança e parece que não a teve, segundo a opinião respeitável da poesia anônima:

Na Rua Feliz Lembrança

eu escapei por um triz

de ser mandado à tábua.

Ai! que lembrança infeliz

tal nome pôr nesta rua!



Há ruas que têm as blandícias de Goriot e de Shylock para vos emprestar a juro, para esconder quem pede e paga o explorador com ar humilde. Não vos lembrais da Rua do Sacramento, da rua dos penhores? Uma aragem fina e suave encantava sempre o ar. Defronte à igreja, casas velhas guardavam pessoas tradicionais. No Tesouro, por entre as grades de ferro, uma ou outra cara desocupada. E era ali que se empenhavam as jóias, que pobres entes angustiados iam levar os derradeiros valores com a alma estrangulada de soluços; era ali que refluíam todas as paixões e todas as tristezas, cujo lenitivo dependesse de dinheiro...

Há ruas oradoras, ruas de meeting -o Largo do Capim que assim foi sempre, o Largo de S. Francisco; ruas de calma alegria burguesa, que parecem sorrir com honestidade- a Rua de Haddock Lobo; ruas em que não se arrisca a gente sem volver os olhos para trás a ver se nos vêem -a Travessa da Barreira; ruas melancólicas, da tristeza dos poetas; ruas de prazer suspeito próximo do centro urbano e como que dele muito afastadas; ruas de paixão romântica, que pedem virgens loiras e luar.

Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as idéias de cada bairro?

A alma da rua só é inteiramente sensível a horas tardias. Há trechos em que a gente passa como se fosse empurrada, perseguida, corrida -são as ruas em que os passos reboam, repercutem, parecem crescer, clamam, ecoam e, em breve, são outros tantos passos ao nosso encalço. Outras que se envolvem no mistério logo que as sombras descem -o Largo de Paço. Foi esse largo o primeiro esplendor da cidade. Por ali passaram, na pompa dos pálios e dos baldaquins d'ouro e púrpura, as procissões do Enterro, do Triunfo, do Senhor dos Passos; por ali, ao lado da Praia do Peixe, simples vegetação de palhoças, o comércio agitava as suas primeiras elegâncias e as suas ambições mais fortes. O largo, apesar das reformas, parece guardar a tradição de dormir cedo. À noite, nada o reanima, nada o levanta. Uma grande revolução morre no seu bojo como um suspiro; a luz leva a lutar com a treva; os próprios revérberos parece dormitarem, e as sombras que por ali deslizam são trapos da existência almejando o fim próximo, ladrões sem pousada, imigrantes esfaimados... Deixai esse largo, ide às ruelas da Misericórdia, trechos da cidade que lembram o Amsterdão sombrio de Rembrandt. Há homens em esteiras, dormindo na rua como se estivessem em casa. Não nos admiremos. Somos reflexos. O Beco da Música ou o Beco da Fidalga reproduzem a alma das ruas de Nápoles, de Florença, das ruas de Portugal, das ruas da África, e até, se acreditarmos na fantasia de Heródoto, das ruas do antigo Egito. E por quê? Porque são ruas da proximidade do mar, ruas viajadas, com a visão de outros horizontes. Abri uma dessas pocilgas que são a parte do seu organismo. Haveis de ver chineses bêbados de ópio, marinheiros embrutecidos pelo álcool, feiticeiras ululando canções sinistras, toda a estranha vida dos portos de mar. E esses becos, essas betesgas têm a perfídia dos oceanos, a miséria das imigrações, e o vício, o grande vício do mar e das colônias...

Se as ruas são entes vivos, as ruas pensam, têm idéias, filosofia e religião. Há ruas inteiramente católicas, ruas protestantes, ruas livres-pensadoras e até ruas sem religião. Trafalgar Square, dizia o mestre humorista Jerome, não tem uma opinião teológica definitiva. O mesmo se pode dizer da Praça da Concórdia de Paris ou da Praça Tiradentes. Há criatura mais sem miolos que o Largo do Rocio? Devia ser respeitável e austero. Lá, Pedro I, trepado num belo cavalo e com um belo gesto, mostra aos povos a carta da independência, fingindo dar um grito que nunca deu. Pois bem: não há sujeito mais pândego e menos sério do que o velho ex-Largo do Rocio. Os seus sentimentos religiosos oscilam entre a depravação e a roleta. Felizmente, outras redimem a sociedade de pedra e cal, pelo seu culto e o seu fervor. A Rua Benjamin Constant está neste caso, é entre nós um tremendo exemplo de confusão religiosa. Solene, grave, guarda três templos, e parece dizer com circunspecção e o ar compenetrado de certos senhores de todos nós conhecidos:

-Faço as obras do Coração de Jesus, creio em Deus, nas orações, nos bentinhos e só não sou positivista porque é tarde para mudar de crença. Mas respeito muito e admiro Teixeira Mendes...

Nós, os homens nervosos, temos de quando em vez alucinações parciais da pele, dores fulgurantes, a sensação de um contacto que não existe, a certeza de que chamam por nós. As ruas têm os rolos, as casas mal assombradas, e há até ruas possessas, com o diabo no corpo. Em S. Luís do Maranhão há uma rua sonâmbula muito menos cacete que a ópera célebre do mesmo nome. Essa rua é a Rua de Santa Ana, a lady Macbeth da topografia. Deu-se lá um crime horrível. Às dez horas, a rua cai em estado sonambúlico e é só gritos, clamores: sangue! sangue!

Ruas assim ainda mostram o que pensam. Talvez as outras tenham maiores delírios, mas são como os homens normais -guardam dentro do cérebro todos os pensamentos extravagantes. Quem se atreveria a resumir o que num minuto pensa de mal, de inconfessável, o mais honesto cidadão? Entre as ruas existem também as falsas, as hipócritas, com a alma de Tartufo e de Iago. Por isso os grandes mágicos do interior da África Central, que dos sertões adustos levavam às cidades inglesas do litoral sacos d'ouro em pó e grandes macacos tremendos, têm uma cantiga estranha que vale por uma sentença breve de Catão:

O di ti a uê, chê

F'u, a uá ny

Odé, odá, bi ejô

Sa lo dê



Sentença que em eubá2, o esperanto das hordas selvagens, quer dizer apenas isto: rua foi feita para ajuntamentos. Rua é como cobra. Tem veneno. Foge da rua!

Mas o importante, o grave, é ser a rua a causa fundamental da diversidade dos tipos urbanos. Não sei se lestes um curioso livro de E. Demolins, Comment la route crée le type social. É uma revolução no ensino da Geografia. «A causa primeira e decisiva da diversidade das raças, diz ele, é a estrada, o caminho que os homens seguirem. Foi a estrada que criou a raça e o tipo social. Os grandes caminhos do globo foram, de qualquer forma, os alambiques poderosos que transformaram os povos. Os caminhos das grandes estepes asiáticas, das tundras siberianas, das savanas da América ou das florestas africanas insensivelmente e fatalmente criaram o tipo tártaro-mongol, o lapão-esquimó, o pele-vermelha, o índio, o negro».

A rua é a civilização da estrada. Onde morre o grande caminho começa a rua, e, por isso, ela está para a grande cidade como a estrada está para o mundo. Em embrião, é o princípio, a causa dos pequenos agrupamentos de uma raça idêntica. Daí, em muitos sítios da terra as aldeias terem o único nome de rua. Quando aumentam e crescem depois, ou pela devoção da maioria dos habitantes ou por uma impressão de local, acrescentam ao substantivo rua o complemento que das outras as deve diferençar. Em Portugal esse fato é comum. Há uma aldeia de 700 habitantes no Minho que se chama modestamente Rua de S. Jorge, uma outra no Douro que é a Rua da Lapela, e existem até uma Rua de Cima e uma Rua de Baixo.

Nas grandes cidades a rua passa a criar o seu tipo, a plasmar o moral dos seus habitantes, a inocular-lhes misteriosamente gostos, costumes, hábitos, modos, opiniões políticas. Vós todos deveis ter ouvido ou dito aquela frase:

-Como estas meninas cheiram a Cidade Nova!

Não é só a Cidade Nova, sejam louvados os deuses! Há meninas que cheiram a Botafogo, a Haddock Lobo, a Vila Isabel, como há velhas em idênticas condições, como há homens também. A rua fatalmente cria o seu tipo urbano como a estrada criou o tipo social. Todos nós conhecemos o tipo do rapaz do Largo do Machado: cabelo à americana, roupas amplas à inglesa, lencinho minúsculo no punho largo, bengala de volta, pretensões às línguas estrangeiras, calças dobradas como Eduardo VII e toda a snobopolis do universo. Esse mesmo rapaz, dadas idênticas posições, é no Largo do Estácio inteiramente diverso. As botas são de bico fino, os fatos em geral justos, o lenço no bolso de dentro do casaco, o cabelo à meia cabeleira com muito óleo. Se formos ao Largo do Depósito, esse mesmo rapaz usará lenço de seda preta, forro na gola do paletot, casaquinho curto e calças obedecendo ao molde corrente na navegação aérea - alças à balão.

Esses três rapazes da mesma idade, filhos da mesma gente honrada, às vezes até parentes, não há escolas, não há contactos passageiros, não há academias que lhes tranformem o gosto por certa cor de gravatas, a maneira de comer, as expressões, as idéias -porque cada rua tem um stock especial de expressões, de idéias e de gostos. A gente de Botafogo vai às «primeiras» do Lírico, mesmo sem ter dinheiro. A gente de Haddock Lobo tem dinheiro mas raramente vai ao Lírico. Os moradores da Tijuca aplaudem Sarah Bernhardt como um prodígio. Os moradores da Saúde amam enternecidamente o Dias Braga. As meninas das Laranjeiras valsam ao som das valsas de Strauss e de Berger, que lembram os cassinos da Riviera e o esplendor dos kursaals3. As meninas dos bailes de Catumbi só conhecem as novidades do senhor Aurélio Cavalcante. As conversas variam, o amor varia, os ideais são inteiramente outros, e até o namoro, essa encantadora primeira fase do eclipse do casamento, essa meia ação da simpatia que se funde em desejo, é abolutamente diverso. Em Botafogo, à sombra das árvores do parque ou no grande portão, Julieta espera Romeu, elegante e solitária; em Haddock Lobo, Julieta garruleia em bandos pela calçada; e nas casas humildes da Cidade Nova, Julieta, que trabalhou todo o dia pensando nessa hora fugace, pende à janela o seu busto formoso...

Oh! Sim, a rua faz o indivíduo, nós bem o sentimos. Um cidadão que tenha passado metade da existência na Rua do Pau Ferro não se habitua jamais à Rua Marquês de Abrantes! Os intelectuais sentem esse tremendo efeito do ambiente, menos violentamente, mas sentem. Eu conheci um elegante barão da monarquia, diplomata em perpétua disponibilidade, que a necessidade forçara a aceitar de certo proprietário o quarto de um cortiço da Rua Bom Jardim. O pobre homem, com as suas poses à Brummell, sempre de monóculo entalado, era o escândalo da rua. Por mais que saudasse as damas e cumprimentasse os homens, nunca ninguém se lembrava de o tratar senão com desconfiança assustada. O barão sentia-se desesperado e resumira a vida num gozo único: sempre que podia, tomava o bonde de Botafogo, acendia um charuto, e ia por ali altivo, airoso, com a velha redingote4 abotoada, a «caramela» de cristal cintilante... Estava no seu bairro. Até parece, dizia ele, que as pedras me conhecem!

As pedras! As pedras são a couraça da rua, a resistência que elas apresentam ao novo transeunte. Refleti que nunca pisastes pela primeira vez uma rua de arrabalde sem que o vosso passo fosse hesitante como que, inconscientemente, se habituando ao terreno; refleti nessas coisas sutis que a vida cria, e haveis de compreender então a razão por que os humildes limitam todo o seu mundo à rua onde moram, e por que certos tipos, os tipos populares, só o são realmente em determinados quarteirões.

As ruas são tão humanas, vivem tanto e formam de tal maneira os seus habitantes, que há até ruas em conflito com outras. Os malandros e os garotos de uma olham para os de outra como para inimigos. Em 1805, há um século, era assim: os capoeiras da Praia não podiam passar por Santa Luzia. No tempo das eleições mais à navalha que à pena, o Largo do Machadinho e a Rua Pedro Américo eram inimigos irreconciliáveis. Atualmente a sugestão é tal que eles se intitulam povo. Há o povo da Rua do Senado, o povo da Travessa do mesmo nome, o povo de Catumbi. Haveis de ouvir, à noite, um grupo de pequenos valentes armados de vara:

-Vamos embora! O povo da Travessa está conosco.

É a Rua do Senado que, aliada à Travessa, vai sovar a Rua Frei Caneca...

Como outrora os homens, mais ou menos notáveis, tomavam o nome da cidade onde tinham nascido -Tales de Mileto, Luciano de Samosata, Epicarmo de Alexandria- os chefes da capadoçagem5 juntam hoje ao nome de batismo o nome da sua rua. Há o José do Senado, o Juca da Harmonia, o Lindinho do Castelo, e ultimamente, nos fatos do crime, tornaram-se célebres dois homens, Carlito e Cardosinho, só temidos em toda a cidade, cheia de Cardosinhos e de Carlitos, porque eram o Carlito e o Cardosinho da Saúde. Direis que é uma observação puramente local? Não, cem vezes não! Em Paris, a Ville-Lumière, os bandos de assassinos tomam freqüentemente o nome da rua onde se organizaram; em Londres há ruas dos bairros trágicos com esse predomínio, e na própria história de Bizâncio haveis de encontrar ruas tão guerreiras que os seus habitantes as juntavam ao nome como um distintivo.

E assim os tipos populares.

Tive o prazer de conhecer dois desses tipos, em que mais vivamente se exteriorizava a influência psicológica da rua: o Pai da Criança e a Perereca.

O Pai da Criança estava deslocado, na decadência. Esse ser repugnante nascera como uma depravação da Rua do Ouvidor. Quando o vi doente, nas tascas da Rua Frei Caneca, como já não estava na sua rua, não era mais notável. Os garotos já não riam dele, ninguém o seguia, e o nojento sujeito conversava nas bodegas, como qualquer mortal, da gatunice dos governos. Só fui descobrir a sua celebridade quando o vi em plena Ouvidor, cheio de fitas, vaiado, cuspindo insolências, inconcebível de descaro e de náusea. A Perereca, ao contrário. Na Rua do Ouvidor seria apenas uma preta velha. Na Rua Frei Caneca era o regalo, o delírio, a extravagância. Os malandrins corriam-lhe ao encalço atirando-lhe pedras, os negociantes chegavam às portas, todas as janelas iluminavam-se de gargalhadas. E por quê? Porque esses tipos são o riso das ruas e assim como não há duas pessoas que riam do mesmo modo não há duas ruas cujo riso seja o mesmo.

Se a rua é para o homem urbano o que a estrada foi para o homem social, é claro que a preocupação maior, a associada a todas as outras idéias do ser das cidades, é a rua. Nós pensamos sempre na rua. Desde os mais tenros anos ela resume para o homem todos os ideais, os mais confusos, os mais antagônicos, os mais estranhos, desde a noção de liberdade e de difamação - idéias gerais - até a aspiração de dinheiro, de alegria e de amor, idéias particulares. Instintivamente, quando a criança começa a engatinhar, só tem um desejo: ir para a rua! Ainda não fala e já a assustam: se você for para a rua encontra o bicho! Se você sair apanha palmadas! Qual! Não há nada! É pilhar um portão aberto que o petiz não se lembra mais de bichos nem de pancadas!

Sair só é a única preocupação das crianças até uma certa idade. Depois continuar a sair só. E quando já para nós esse prazer se usou, a rua é a nossa própria existência. Nela se fazem negócios, nela se fala mal do próximo, nela mudam as idéias e as convicções, nela surgem as dores e os desgostos, nela sente o homem a maior emoção.

Quando se encontra o amor

Na rua, sem o saber...


-Ponho-o no olho da rua! brada o pai ao filho no auge da fúria.

Aí está a rua como expressão da maior calamidade.

-Você está em casa, venha para a rua se é gente!

Aí temos a rua indicando sítio livre para a valentia a substituir o campo de torneio medieval.

-É mais deslavado que as pedras da rua!

Frase em que se exprime uma sem-vergonhice inconcebível.

-É mais velho que uma rua!

Conceito talvez errado porque há ruas que morrem moças.

Às vezes até a rua é a arma que fere e serve de elogio conforme a opinião que dela se tem.

-Ah! Minha amiga! Meu filho é muito comportado. Já vai à rua sozinho...

-Ah! Meninas, o filho de d. Alice está perdido! Pois se até anda sozinho na rua!

E a rua, impassível, é o mistério, o escândalo, o terror...

Os políticos vivem no meio da rua aqui, na China, em Tombuctu, na França; os presidentes de república, os reis, os papas, no pavor de uma surpresa da rua -a bomba, a revolta; os chefes de polícia são os alucinados permanentes das ruas; todos quantos querem subir, galgar a inútil e movediça montanha da glória, anseiam pelo juízo da rua, pela aprovação da via pública, e há na patologia nervosa uma vasta parte em que se trata apenas das moléstias produzidas pela rua, desde a neurastenia até à loucura furiosa. E que a rua chega a ser a obsessão em que se condensam todas as nossas ambições. O homem, no desejo de ganhar a vida com mais abundância ou maior celebridade, precisava interessar à rua. Começou pois fazendo discursos em plena ágora6, discursos que, desde os tempos mais remotos aos meetings contemporâneos da estátua de José Bonifácio, falam sempre de coisas altivas, generosas e nobres. Um belo dia, a rua proclamou a excelente verdade: que as palavras leva-as o vento. Logo, nós assustados, imaginamos o homem-sandwich, o cartaz ambulante; mandamos pregar-lhe, enquanto dorme, com muita goma e muita ingenuidade, os cartazes proclamando a melhor conserva, o doce mais gostoso, o ideal político mais austero, o vinho mais generoso, não só em letras impressas mas com figuras alegóricas, para poupar-lhe o trabalho de ler, para acariciar-lhe a ignorância, para alegrá-la. Como se não bastassem o cartaz, a lanterna mágica, o homem-sandwich, desveladamente, aos poucos, resolvemos compor-lhe a história e fizemos o jornal -esse formidável folhetim-romance permanente, composto de verdades, mentiras, lisonjas, insultos e da fantasia dos Gaboriau7 que somos todos nós...

Há uma estética da rua, afirmou Bulls. Sim. Há. Porque as atrizes de fama, os oradores mais populares, os hércules mais cheios de força, os produtos mais evidentes dos blocos comerciais, vivem de procurar agradá-la. Desse orgulho transitório surgiu para a rua a glória policroma da arte. O temor de serem esquecidos criou para cada uma a roupagem variada, encheu-as como Melusinas de pedra, como fadas cruéis que se teme e se satisfaz, de vestidos múltiplos, de cores variegadas, de fanfreluches 8 de papel, da ardência fulgurante das montras de cambiantes luzentes; deu-lhes uma perpétua apoteose de sacrifício à espera do milagre do lucro ou da popularidade. A estética, a ornamentação das ruas, é o resultado do respeito e do medo que lhes temos...

No espírito humano a rua chega a ser uma imagem que se liga a todos os sentimentos e serve para todas as comparações. Basta percorrer a poesia anônima para constatar a flagrante verdade. É quase sempre na rua que se fala mal do próximo. Folheemos uma coleção de fados. Lá está a idéia:

Adeus, ó Rua Direita

ó Rua da Murmuração.

Onde se faz audiência

sem juiz nem escrivão.



Aliás muito tímida, como devendo ser cantada por quem tem culpa no cartório. Mas, se um apaixonado quer descrever o seu peito, só encontra uma comparação perfeita.

O meu peito é uma rua

onde o meu bem nunca passa,

é a rua da amargura

onde passeia a desgraça.



Se sente o apetite de descrever, os espécimens são sem conta.

Na rua do meu amor

não se pode namorar:

de dia, velhas à porta,

de noite, cães a ladrar.



E é suave lembrar aquele sonhador que, defronte da janela da amada e desejando realizar o impossível para lhe ser agradável, só pôde sussurrar esta vontade meiga:

Se esta rua fosse minha

eu mandava ladrilhar

de pedrinhas de brilhante

para meu bem passar.



O povo observa também, e diz mais numa quadra do que todos nós a armar o efeito de períodos brilhantes. Sempre recordarei um tocador de violão a cantar com lágrimas na voz como diante do inexorável destino:

Vista Alegre é rua morta

a Formosa é feia e brava

a Rua Direita é torta

a do Sabão não se lava...



Toda a psicologia das construções e do alinhamento em quatro versos! A rua chega a preocupar os loucos. Nos hospícios, onde esses cavalheiros andam doidos por se ver cá fora, encontrei planos de ruas ideais, cantores de rua, e um deles mesmo chegou a entregar-me um longo poema que começava assim:

A rua...

Cumprida, cumprida, atua...

Olê! complicada, complicada, alua

      A rua

      Nua!



Essa idéia reflete-se nas religiões, nos livros sagrados, na arte de todos os tempos, cada vez mais afiada, cada vez mais sensível. Na literatura atual a rua é a inspiração dos grandes artistas, desde Victor Hugo, Balzac e Dickens, até às epopéias de Zola, desde o funambulismo de Banville até o humorismo de Mark Twain. Não há um escritor moderno que não tenha cantado a rua. Os sonhadores levam mesmo a exagerá-la, e hoje, devido certamente à corrente socialista, há toda uma literatura em que a alma das ruas soluça. Os poetas refinados levam a mórbida inspiração a cantar os aspectos parciais da rua. Como os românticos cantavam os pés, os olhos, a boca e outras partes do corpo das apaixonadas, eles cantam o semblante das casas vazias, os revérberos de gás como Rodenbach:

Le dimanche, en semaine, et par tous les temps

l'un est debout, un autre, il semble, s'agenouille.

Et chacun se sent seul comme dans une foule.

Les revérbéres des banlieues

sont des cages oú des oiseaux déplient leurs queues.



Os pregões, as calçadas, e houve até um -Mário Pederneiras- que nos deu a sutilíssima e admirável psicologia das árvores urbanas:

Com que magoado encanto

com que triste saudade

sobre mim atua

esta estranha feição das árvores da rua.

E elas são, entretanto,

a única ilusão rural de uma cidade!

As árvores urbanas

são, em geral, conselheiras e frias

sem as grandes expansões e as grandes alegrias

das provincianas.

Não têm sequer os plácidos carinhos

dessas largas manhãs provinciais e enxutas.

Nem a orquestra dos ninhos

Nem a graça vegetal das frutas.



Os artistas modernos já não se limitam a exprimir os aspectos proteiformes da rua, a analisar traço por traço o perfil físico e moral de cada rua. Vão mais longe, sonham a rua ideal, como sonharam um mundo melhor. Williams Morris, por exemplo, imaginou nas Novelas de parte alguma a rua socialista e rara, com edifícios magníficos, sem mendigos e sem dinheiro. Rimbaud, nas Illuminations, teve a idéia da rua babélica, reproduzindo nos edifícios, sob o céu cinzento, todas as maravilhas clássicas da arquitetura. Bellamy, no Locking Bockward, já sonhava o agrupamento dos grandes armazéns; e hoje, entre essas ruas de sonho, que Gustavo Khan considera as ruas utópicas e que talvez se tornem realidade um dia, é o estranho e infernal sulco descrito por Wells na História dos tempos futuros, rua em que tudo dependerá de sindicatos formidáveis, em que tudo será elétrico, em que os homens, escravos de meia dúzia, serão como os elos de uma mesma corrente arrastados pelo trabalho através dos casarões.

Mas, a quem não fará sonhar a rua? A sua influência é fatal na palheta dos pintores, na alma dos poetas, no cérebro das multidões. Quem criou o reclamo? A rua! Quem inventou a caricatura! A rua! Onde a expansão de todos os sentimentos da cidade? Na rua! Por isso para dar a expressão da dor funda, o grande poeta Bilac fez um dia:

A Avenida assombrada e triste da saudade

onde vem passear a procissão chorosa

dos órfãos do carinho e da felicidade.


E certo poeta árabe, reconhecendo com a presciência dos vates que só a rua nos pode dar a expressão do sofrimento absoluto como da alegria completa, escreveu a celebrada Praça do riso ao nascer da aurora; o riso de cristal das crianças, o riso perlado das mulheres, o riso grave dos homens a formar um conjunto de tanta harmonia que as árvores também riam no canto dos pássaros, e a própria umbela azul do céu se estriava d'ouro no imenso riso do sol...

Neste elogio, talvez fútil, considerei a rua um ser vivo, tão poderoso que consegue modificar o homem insensivelmente e fazê-lo o seu perpétuo escravo delirante, e mostrei mesmo que a rua é o motivo emocional da arte urbana mais forte e mais intenso. A rua tem ainda um valor de sangue e de sofrimento: criou um símbolo universal. Há ainda uma rua, construída na imaginação e na dor, rua abjeta e má, detestável e detestada, cuja travessia se faz contra a nossa vontade, cujo trânsito é um doloroso arrastar pelo enxurro de uma cidade e de um povo. Todos acotovelam-se e vociferam aí, todos, vindos da Rua da Alegria ou da Rua da Paz, atravessando as betesgas9 do Saco do Alferes ou descendo de automóvel dos bairros civilizados, encontram-se aí e aí se arrastam, em lamentações, em soluços, em ódio à vida e ao Mundo. No traçado das cidades ela não se ostenta com as suas imprecações e os seus rancores. É uma rua esconsa e negra, perdida na treva, com palácios de dor e choupanas de pranto, cuja existência se conhece não por um letreiro à esquina, mas por uma vaga apreensão, um irredutível sentimento de angústia, cuja travessia não se pode jamais evitar. Correi os mapas de Atenas, de Roma, de Nínive ou de Babilônia, o mapa das cidades mortas. Termas, canais, fontes, jardins suspensos, lugares onde se fez negócio, onde se amou, lugares onde se se cultuaram os deuses -tudo desapareceu. Olhai o mapa das cidades modernas. De século em século a transformação é quase radical. As ruas são perecíveis como os homens. A outra, porém, essa horrível rua de todos conhecida e odiada, pela qual diariamente passamos, essa é eterna como o medo, a infâmia, a inveja. Quando Jerusalém fulgia no seu máximo esplendor, já ela lá existia. Enquanto em Atenas artistas e guerreiros recebiam ovações, enquanto em Roma a multidão aplaudia os gladiadores triunfais e os césares devassos, na rua aflitiva cuspinhava o opróbrio e chorava a inocência. Cartago tinha uma rua assim, e ainda hoje Paris, New York, Berlim a têm, cortando a sua alegria, empanando o seu brilho, enegrecendo todos os triunfos e todas as belezas. Qual de vós não quebrou, inesperadamente, o ângulo em arestas dessa rua? Se chorastes, se sofrestes a calúnia, se vos sentistes ferido pela maledicência, podereis ter a certeza de que entrastes na obscura via! Ah! Não procureis evita-la! Jamais o conseguireis. Quanto mais se procura dela sair mais dentro dela se sofre. E não espereis nunca que o mundo melhore enquanto ela existir. Não é uma rua onde sofrem apenas alguns entes, é a rua interminável, que atravessa cidades, países, continentes, vai de pólo a pólo; em que se alanceiam todos os ideais, em que se insultam todas as verdades, onde sofreu Epaminondas e pela qual Jesus passou. Talvez que extinto o mundo, apagados todos os astros, feito o universo treva, talvez ela ainda exista, e os seus soluços sinistramente ecoem na total ruína, rua das lágrimas, rua do desespero -interminável rua da Amargura.

O que se vê nas ruas

Pequenas profissões

O cigano aproximou-se do catraieiro10. No céu, muito azul, o sol derramava toda a sua luz dourada. Do cais via-se para os lados do mar, cortado de lanchas, de velas brancas, o desenho multiforme das ilhas verdejantes, dos navios, das fortalezas. Pelos boulevards sucessivos que vão dar ao cais, a vida tumultuária da cidade vibrava num rumor de apoteose, e era ainda mais intensa, mais brutal, mais gritada, naquele trecho do Mercado, naquele pedaço da rampa, viscoso de imundícies e de vícios. O cigano, de frack e chapéu mole, já falara a dois carroceiros moços e fortes, já se animara a entrar numa taberna de freguesia retumbante. Agora, pelos seus gestos duros, pelo brilho do olhar, bem se percebia que o catraieiro seria a vítima, a vítima definitiva, que ele talvez procurasse desde manhã, como um milhafre11 esfomeado.

Eduardo e eu caminhamos para a rampa, na aragem fina da tarde que se embebia de todos aqueles cheiros de maresia, de gordura, de aves presas, de verduras. O catraieiro batia negativamente com a cabeça.

-Uma calça, apenas uma, em muito bom estado.

-Mas eu não quero.

-Ninguém lhe vende mais barato, palavra de honra. E a fazenda? Veja a fazenda.

Desenrolou com cuidado um embrulho de jornal. De dentro surgiu um pedaço de calça cor de castanha.

-Para o serviço! Dois mil réis, só dois!... Eu tenho família, mãe, esposa, quatro filhos menores. Ainda não comi hoje! Olhe, tenho aqui uns anéis... não gosta de anéis?

O catraieiro ficara, sem saber como, com o embrulho das calças, e o seu gesto fraco de negativa bem anunciava que iria ficar também com um dos anéis. O cigano desabotoara o frack, cheio de súbito receio.

-É um anel de ouro que eu achei, ouro legítimo. Vendo barato: oito mil réis apenas. Tudo dez mil réis, conta redonda!

O catraieiro sorria, o cigano era presa de uma agitação estranha, agarrando a vítima pelo braço, pela camisa, dando pulos, para lhe cochichar ao ouvido palavras de maior tentação; ninguém naquele perpétuo tumulto, ninguém no rumor do estômago da cidade, olhava sequer para o negócio desesperado de cigano. Eduardo, que nessa tarde passeava comigo, arrastou-me pelo ex-Largo do Paço, costeando o cais até a velha estação das barcas.

-Admiraste aquele negociante ambulante?

-Admirei um refinado «vigarista»...

-Oh! Meu amigo, a moral é uma questão de ponto de vista. Aquele cigano faz parte de um exército de infelizes, a que as condições da vida ou do próprio temperamento, a fatalidade, enfim, arrasta muita gente. Lembras-te de La romera de Santiago, de Velez de Guevara? Há lá uns versos que bem exprimem o que são essas criaturas:

Estos son algunos hombres

de obligaciones, que pasan

necesidad, y procuran

de esta suerte remediarla

saliendose a los caminos...



É quanto basta como moral. Não sejamos excessivos para os humildes.

O Rio tem também as suas pequenas profissões exóticas, produto da miséria ligada às fábricas importantes, aos adelos, ao baixo comércio; o Rio, como todas as grandes cidades, esmiúça no próprio monturo a vida dos desgraçados. Aquelas calças do cigano, deram-lhas ou apanhou-as ele no monturo, mas como o cigano não faz outra coisa na sua vida senão vender calçar velhas e anéis de plaquet12, aí tens tu uma profissão da miséria, ou se quiseres, da malandrice - que é sempre a pior das misérias. Muito pobre diabo por aí pelas praças parece sem ofício, sem ocupação. Entretanto, coitados! o ofício, as ocupações, não lhes faltam, e honestos, trabalhosos, inglórios, exigindo o faro dos cães e a argúcia dos reporters.

Todos esses pobres seres vivos tristes vivem do cisco, do que cai nas sarjetas, dos ratos, dos magros gatos dos telhados, são os heróis da utilidade, os que apanham o inútil para viver, os inconscientes aplicadores à vida das cidades daquele axioma de Lavoisier: nada se perde na natureza. A polícia não os prende, e, na boêmia das ruas, os desgraçados são ainda explorados pelos adelos13, pelos ferros-velhos, pelos proprietários das fábricas...

-As pequenas profissões!... É curioso!

As profissões ignoradas. Decerto não conheces os trapeiros sabidos, os apanha-rótulos, os selistas, os caçadores, as ledoras de buena dicha. Se não fossem o nosso horror, a Diretoria de Higiene e as blagues das revistas de ano, nem os ratoeiros seriam conhecidos.

-Mas, senhor Deus! É uma infinidade, uma infinidade de profissões sem academia! Até parece que não estamos no Rio de Janeiro...

-Coitados! Andam todos na dolorosa academia da miséria, e, vê tu, até nisso há vocações! Os trapeiros, por exemplo, dividem-se em duas especialidades -a dos trapos limpos e a de todos os trapos. Ainda há os cursos suplementares dos apanhadores de papéis, de cavacos e de chumbo. Alguns envergonham-se de contar a existência esforçada. Outros abundam em pormenores e são um mundo de velhos desiludidos, de mulheres gastas, de garotos e de crianças, filhos de família, que saem, por ordem dos pais, com um saco às costas, para cavar a vida nas horas da limpeza das ruas.

De todas essas pequenas profissões a mais rara e a mais parisiense é a dos caçadores, que formam o sindicato das goteiras e dos jardins. São os apanhadores de gatos para matar e levar aos restaurants, já sem pele, onde passam por coelho. Cada gato vale dez tostões no máximo. Uma só das costelas que os fregueses rendosos trincam, à noite, nas salas iluminadas dos hotéis, vale muito mais. As outras profissões são comuns. Os trapeiros existem desde que nós possuímos fábricas de papel e fábricas de móveis. Os primeiros apanham trapos, todos os trapos encontrados na rua, remexem o lixo, arrancam da poeira e do esterco os pedaços de pano, que serão em pouco alvo papel; os outros têm o serviço mais especial de procurar panos limpos, trapos em perfeito estado, para vender aos lustradores das fábricas de móveis. As grandes casas desse gênero compram em porção a traparia limpa. A uns não prejudica a intempérie, aos segundos a chuva causa prejuízos enormes. Imagina essa pobre gente, quando chove, quando não há sol, com o céu aberto em cataratas e, em cada rua, uma inundação!

-Falaste, entretanto, dos sabidos?

-Ah! Os sabidos dedicam-se a pesquisar nos montes de cisco as botas e os sapatos velhos, e batem-se por duas botas iguais com fúria, porque em geral só se encontra uma desirmanada. Esses infelizes têm preço fixo para o trabalho, uma tarifa geral combinada entre os compradores, os italianos remendões. Um par de botas, por exemplo, custa 400 réis, um par de sapatos 200 réis. As classes pobres preferem as botas aos sapatos. Uma bota só, porém, não se vende por mais de 100 réis.

-Mas é bem pago!

-Bem pago? Os italianos vendem as botas, depois de consertadas, por seis e sete mil réis! E o mesmo que acontece aos molambeiros ambulantes como o cigano que acabamos de ver -os belchiores compram as roupas para vendê-las com quatrocentos por cento de lucro. Há ainda os selistas e os ratoeiros. Os selistas não são os mais esquadrinhadores, os agentes sem lucro do desfalque para o cofre público e da falsificação para o burguês incauto. Passam o dia perto das charutarias pesquisando as sarjetas e as calçadas à cata de selos de maços de cigarros e selos com anéis e os rótulos de charutos. Um cento de selos em perfeito estado vende-se por 200 réis. Os das carteiras de cigarros têm mais um tostão. Os anéis dos charutos servem para vender uma marca por outra nas charutarias e são pagos cem por 200 réis. Imagina uns cem selistas à cata de selos intactos das carteirinhas e dos charutos; avalia em 5% os selos perfeitos de todos os maços de cigarros e de todos os charutos comprados neste país de fumantes; e calcula, após este pequeno trabalho de estatística, em quanto é defraudada a fazenda nacional diariamente só por uma das pequenas profissões ignoradas.

-Gente pobre a morrer de fome, coitados...

-Oh! Não. O pessoal que se dedica ao ofício não se compõe apenas do doloroso bando de pés descalços, da agonia risonha dos pequenos mendigos. Trabalham também na profissão os malandros de gravata e roupa alheia, cuja vida passa em parte nos botequins e à porta das charutarias.

-E é rendoso?

-Rendoso, propriamente, não; mas os selistas contam com o natural sentimento de todos os seres que, em vez de romper, preferem retirar o selo do charuto e rasgar a parte selada das carteirinhas sem estragar o selo.

-Mas os anéis dos charutos?

-Oh! Isso então é de primeiríssima. Os selistas têm lugar certo para vender os rótulos dos charutos Bismarck -em Niterói, na Travessa do Senado. Há casas que passam caixas e caixas de charutos que nunca foram dessa marca. A mais nova, porém, dessas profissões, que saltam dos ralos, dos buracos, do cisco da grande cidade, é a dos ratoeiros, o agente de ratos, o entreposto entre as ratoeiras das estalagens e a Diretoria de Saúde. Ratoeiro não é um cavador -é um negociante. Passeia pela Gamboa, pelas estalagens da Cidade Nova, pelos cortiços e bibocas da parte velha da urbs, vai até ao subúrbio, tocando um cornetinha com a lata na mão. Quando está muito cansado, senta-se na calçada e espera tranqüilamente a freguesia, soprando de espaço a espaço no cornetim.

Não espera muito. Das rótulas há quem os chame; à porta das estalagens afluem mulheres e crianças.

-Ó ratoeiro, aqui tem dez ratos!

-Quanto quer?

-Meia pataca.

-Até logo!

-Mas, ô diabo, olhe que você recebe mais do que isso por um só lá na Higiene.

-E o meu trabalho?

-Uma figa! Eu cá não vou na história de micróbio no pêlo do rato.

-Nem eu. Dou dez tostões por tudo. Serve?

-Heim?

-Serve?

-Rua!

-Mais fica!

E quando o ratoeiro volta, traz o seu dia fartamente ganho...

Tínhamos parado à esquina da Rua Fresca. A vida redobrava aí de intensidade, não de trabalho, mas de deboche.

Nos botequins, fonógrafos roufenhos esganiçavam canções picarescas; numa taberna escura com turcos e fuzileiros navais, dois violões e um cavaquinho repinicavam. Pelas calçadas, paradas às esquinas, à beira do quiosque, meretrizes de galho de arruda atrás da orelha e chinelinho na ponta do pé, carregadores espapaçados14, rapazes de camisa de meia e calça branca bombacha com o corpo flexível dos birbantes15, marinheiros, bombeiros, túnicas vermelhas e fuzileiros -uma confusão, uma mistura de cores, de tipos, de vozes, onde a luxúria crescia.

De repente o meu amigo estacou. Alguns metros adiante, na Rua Fresca, um rapaz doceiro arriara a caixa, e sentado num portal, entregava o braço aos exercícios de um petiz da altura de um metro. Junto ao grupo, o cigano, com outro embrulho, falava.

-Vês? Aquele pequeno é marcador, faz tatuagens, ganha a sua vida com três agulhas e um pouco de graxa, metendo coroas, nomes e corações nos braços dos vendedores ociosos. O cigano molambeiro aproveita o estado de semi-dor e semi-inércia do rapaz para lhe impingir qualquer um dos seus trapos... um psicólogo, como todos os da sua raça, psicólogo como as suas irmãs que lêem a buena dicha por um tostão e amam por dez com consentimento deles.

Oh! Essas pequenas profissões ignoradas, que são partes integrantes do mecanismo das grandes cidades!

O Rio pode conhecer muito bem a vida do burguês de Londres, as peças de Paris, a geografia da Manchúria e o patriotismo japonês. A apostar, porém, que não conhece nem a sua própria planta, nem a vida de toda essa sociedade, de todos esses meios estranhos e exóticos, de todas as profissões que constituem o progresso, a dor, a miséria da vasta Babel que se transforma. E entretanto, meu caro, quanto soluço, quanta ambição, quanto horror e também quanta compensação na vida humilde que estamos a ver.

Estos son algunos hombres

de obligaciones, que pasan

necesidad, y procuran

de esta suerte remediarla

saliendose a los caminos...


Mas o meu amigo não continuou o fio luminoso de sua filosofia. O catraieiro apareceu rubro de cólera, e sutilmente cosia-se com as paredes, ao aproximar-se do cigano.

De repente deu um pulo e caiu-lhe em cima de chofre.

-Apanhei-te, gatuno!

O cigano voltara-se lívido. Ao grito do catraieiro acudiam, numa sarabanda de chinelas, fúfias, rufiões, soldados, ociosos, vendedores ambulantes.

-Gatuno! Então vendes como ouro um anel de plaquet? Espera que te vou quebrar os queixos. Sacudiu-o, atirou-o no ar para apanhá-lo com uma bofetada. O cigano porém caiu num bolo, distendeu-se e partiu como um raio por entre a aglomeração da gentalha, que ria. O catraieiro, mais corpulento, mais pesado, precipitou-se também.

Os vagabundos, com o selvagem instinto da caça, que persiste no homem -acompanharam-no. E pelos boulevards, onde se acendiam os primeiros revérberos, à disparada entre os squares sucessivos, a ralé dos botequins, aos gritos, deitou na perseguição do pobre cigano molambeiro, da pobre profissão ignorada, que, como todas as profissões, tem também malandros.

Então Eduardo sentenciou.

-Tu não conhecias as pequenas profissões do Rio. A vida de um pobre sujeito deu-te todos esses úteis conhecimentos. Mas, se esse pobre sujeito não fosse um malandro, não conhecerias da profissão até mesmo os birbantes.

A moral é uma questão de ponto de vista. Para julgar os homens basta a gente defini-los segundo os seus sucessivos estados. Se te aprouver definir os profissionais humildes pela tua última impressão, emprega os mesmos versos de Guevara com uma pequena modificação:

Estos son algunos hombres

de obligaciones, que pasan

necesidad, y procuran

de esta suerte remediarla

corriendo por los caminos...



Os tatuadores

-Quer marcar?

Era um petiz de doze anos talvez. A roupa em frangalhos, os pés nus, as mãos pouco limpas e um certo ar de dignidade na pergunta. O interlocutor, um rapazola louro, com uma dourada carne de adolescente, sentado a uma porta, indagou:

-Por quanto?

-É conforme, continuou o petiz. É inicial ou coroa?

-É um coração!

-Com nome dentro?

O rapaz hesitou. Depois:

-Sim, com nome: Maria Josefina.

-Fica tudo por uns seis mil réis.

Houve um momento em que se discutiu o preço, e o petiz estava inflexível, quando vindo do quiosque da esquina um outro se acercou.

-Ó moço, faço eu; não escute embromações!

-Pagará o que quiser, moço.

O rapazola sorria. Afinal resignou-se, arregaçou a manga da camisa de meia, pondo em relevo a musculatura do braço. O petiz tirou do bolso três agulhas amarradas, um pé de cálix com fuligem e começou o trabalho. Era na Rua Clapp, perto do cais, no século XX... A tatuagem! Será então verdade a frase de Gautier: «o mais bruto homem sente que o ornamento traça uma linha indelével de separação entre ele e o animal, e quando não pode enfeitar as próprias roupas recama a pele»?

A palavra tatuagem é relativamente recente. Toda a gente sabe que foi o navegador Loocks que a introduziu no ocidente, e esse escrevia tattou, termo da Polinésia de tatou ou to tahou, desenho. Muitos dizem mesmo que a palavra surgiu no ruído perceptível da agulha da pele: tac, tac. Mas como é ela antiga! O primeiro homem, decerto, ao perder o pêlo, descobriu a tatuagem.

Desde os mais remotos tempos vêmo-la a transformar-se: distintivo honorífico entre uns homens, ferrete de ignomínia entre outros, meio de assustar o adversário para os bretões, marca de uma classe para selvagens das ilhas Marquesas, vestimenta moralizadora para os íncolas da Oceânia, sinal de amor, de desprezo, de ódio, bárbara tortura do Oriente, baixa usança do Ocidente. Na Nova Zelândia é um enfeite; a Inglaterra universaliza o adorno dos selvagens que colhem o phormium tenax para lhe aumentar a renda, e Eduardo com a âncora e o dragão no braço esquerdo é só por si um problema de psicologia e de atavismo.

Da tatuagem no Rio faz-se o mais variado estudo da crendice. Por ele se reconstrói a vida amorosa e social de toda a classe humilde, a classe dos ganhadores, dos viciados, das fúfias16 de porta aberta, cuja alegria e cujas dores se desdobram no estreito espaço das alfurjas17 e das chombergas18, cujas tragédias de amor morrem nos cochicholos sem ar, numa praga que se faz de lágrimas. A tatuagem é a inviolabilidade do corpo e a história das paixões. Esses riscos nas peles dos homens e das mulheres dizem as suas aspirações, as suas horas de ócio e a fantasia da sua arte e a crença na eternidade dos sentimentos -são a exteriorização da alma de quem os traz.

Há três casos de tatuagem no Rio, completamente diversos na sua significação moral: os negros, os turcos com o fundo religioso e o bando das meretrizes, dos rufiões e dos humildes, que se marcam por crime ou por ociosidade. Os negros guardam a forma fetiche; além dos golpes sarados com o pó preservativo do mau olhado, usam figuras complicadas. Alguns, como o Romão da Rua do Hospício, têm tatuagens feitas há cerca de vinte anos, que se conservam nítidas, apesar da sua cor -com que se confunde a tinta empregada.

Quase todos os negros têm um crucificado. O feiticeiro Ononenê, morador à Rua do Alcântara, tem do lado esquerdo do peito as armas de Xangô, e Felismina de Oxum a figura complicada da santa d'água doce. Esses negros explicam ingenuamente a razão das tatuagens. Na coroa imperial hesitam, coçam a carapinha e murmuram, num arranco de toda a raça, num arranco mil vezes secular de servilismo inconsciente:

-Eh! Eh! Pedro II não era o dono?

E não se fotografam com um pavor surdo, como se fosse crime usar essas marcas simbólicas.

Os turcos são muçulmanos, maronitas, cismáticos, judeus, e nestas religiões diversas não há gente mais cheia de abusões, de receios, de medos. Nas casas da Rua da Alfândega, Núncio e Senhor dos Passos, existem, sob o soalho, feitiçarias estranhas, e a tatuagem forra a pele dos homens como amuletos. Os maronitas pintam iniciais, corações; os cismáticos têm verdadeiros eikones19 primitivos nos peitos e nos braços; os outros trazem para o corpo pedaços de paramentos sagrados. É por exemplo muito comum turco com as mãos franjadas de azul, cinco franjas nas costas da mão, correspondendo aos cinco dedos. Essas cinco franjas são a simbolização das franjas da taleth20, vestimenta dos Khasan, nas quais está entrançado a fio de ouro o grande nome de Ihaveh21.

A outra camada é a mais numerosa, é toda a classe baixa do Rio -os vendedores ambulantes, os operários, os soldados, os criminosos, os rufiões, as meretrizes. Para marcar tanta gente a tatuagem tornou-se uma indústria com chefes, subchefes e praticantes.

Quase sempre as primeiras lições vieram das horas de inatividade na cadeia, na penitenciária e nos quartéis; mas eu contei só na Rua Barão de S. Félix, perto do Arsenal de Marinha, e nas ruelas da Saúde, cerca de trinta marcadores. Há pequenos de dez, doze anos, que saem de manhã para o trabalho, encontram os carregadores, os doceiros sentados nos portais.

-Quer marcar? perguntam; e tiram logo do bolso um vidro de tinta e três agulhas.

Muitos portugueses, cujos braços musculosos guardam coroas da sua terra e o seu nome por extenso, deixaram-se marcar porque não tinham que fazer.

-Que quer V.S.? O pequeno estava a arreliar. Marca, moço, marca! E tanto pediu que pôs pra aí os risquinhos.

Os pequenos, os outros marcadores ambulantes, têm um chefe, o Madruga, que só no mês de abril deste ano fez trezentas e dezenove marcações. Madruga é o exemplo da versatilidade e da significação miriônima22 da tatuagem. Tem estado na cadeia várias vezes por questões e barulhos, vive nas Ruas da Conceição e S. Jorge, tem amantes, compõe modinhas satíricas e é poeta. É dele este primor, que julga verso:

Venha quanto antes d. Elisa

enquanto o Chico Passos não atiça

fogo na cidade...



Homem tão interessante guarda no corpo a síntese dos emblemas das marcações -um Cristo no peito, uma cobra na perna, o signo de Salomão, as cinco chagas, a sereia, e no braço esquerdo o campo das próprias conquistas. Esse braço é o prolongamento ideográfico do seu monte de Vênus onde a quiromancia vê as batalhas do amor. Quando a mulher lhe desagrada e acaba com a chelpa, Madruga emprega leite de mulher e sal de azedas, fura de novo a pele, fica com o braço inchado, mas arranca de lá a cor do nome.

Enquanto andou a fornecer-me o seu profundo saber, Madruga teve três dessas senhoras -a Jandira, a Josefa e a Maria. A primeira a figurar debaixo de um coração foi a Jandira. Um belo dia a Jandira desaparecia, dando lugar à Josefa, que triunfava em cima, entre as chamas. Um mês depois a letra J sumira-se e um M dominava no meio do coração.

Os marcadores têm uma tabela especial, o preço fixo do trabalho. As cinco chagas custam 1$000, uma rosa 2$000, o signo de Salomão, o mais comum e o menos compreendido porque nem um só dos que interroguei o soube explicar, 3$000, as armas da Monarquia e da República 6$ a 8$, e há Cristos para todos os preços.

Os tatuadores têm várias maneiras de tatuar: por picadas, incisão, por queimadura subepidérmica. As conhecidas entre nós são incisivas nos negros que trouxeram a tradição da África e, principalmente, as por picadas que se fazem com três agulhas amarradas e embebidas em graxa, tinta, anil ou fuligem, pólvora, acompanhando o desenho prévio. O marcador trabalha como as senhoras bordam.

Lombroso diz que a religião, a imitação, o ócio, a vontade, o espírito de corpo ou de seita, as paixões nobres, as paixões eróticas e o atavismo são as causas mantenedoras dessa usança. Há uma outra -a sugestão do ambiente. Hoje toda a classe baixa da cidade é tatuada -tatuam-se marinheiros, e em alguns corpos há o romance imageográfico de inversões dramáticas; tatuam-se soldados, vagabundos, criminosos, barregãs, mas também portugueses chegados da aldeia com a pele sem mancha, que influência do meio obriga a incrustar no braço coroas do seu país.

Andei com o Madruga três longos meses pelos meios mais primitivos, entre os atrasados morais, e nesses atrasados a camada que trabalha braçalmente, os carroceiros, os carregadores, os filhos dos carroceiros deixaram-se tatuar porque era bonito, e são no fundo incapazes de ir parar na cadeia por qualquer crime. A outra, a perdida, a maior, o oceano malandragem e da prostituição é que me proporcionou o ensejo de estudar ao ar livre o que se pode estudar na abafada atmosfera das prisões. A tatuagem tem nesse meio a significação do amor, do desprezo, do amuleto, posse, do preservativo, das idéias patrióticas do indivíduo, da sua qualidade primordial.

Quase todos os rufiões e os rufistas do Rio têm na mão direita entre o polegar e o indicador, cinco sinais que significam as chagas. Não há nenhum que não acredite derrubar o adversário dando-lhe uma bofetada com a mão assim marcada. O marinheiro Joaquim tem um Senhor cruficificado no peito e uma cruz negra nas costas. Mandou fazer esse símbolo por esperteza. Quando sofre castigos, os guardiões sentem-se apavorados e sem coragem de sová-lo.

-Parece que estão dando em Jesus!

A sereia dá lábia, a cobra atração, o peixe significa ligeireza na água, a âncora e a estrela o homem do mar, as armas da República ou da Monarquia a sua compreensão política. Pelo número de coroas da Monarquia que eu vi, quase todo esse pessoal é monarquista.

Os lugares preferidos são as costas, as pernas, as coxas, os braços, as mãos. Nos braços estão em geral os nomes das amantes, frases inteiras, como por exemplo esta frase de um soldado de um regimento de cavalaria: viva o marechal de ferro!... desenhos sensuais, corações. O tronco é guardado para as coisas importantes, de saudade, de luxúria ou de religião. Hei de lembrar sempre o Madruga tatuando um funileiro, desejoso de lhe deixar uma estrela no peito.

-No peito não! Cuspiu o mulato, no peito eu quero Nossa Senhora!

A sociedade, obedecendo à corrente das modernas idéias criminalistas, olha com desconfiança a tatuagem. O curioso é que -e esses estranhos problemas de psicologia talvez não sejam nunca explicados- o curioso é que os que se deixam tatuar por não terem mais que fazer, em geral, o elemento puro das aldeias portuguesas, o único quase incontaminável da baixa classe do Rio, mostram sem o menor receio os braços, enquanto os criminosos, os assassinos, os que já deixaram a ficha no gabinete de antropometria, fazem o possível para ocultá-los e escondem os desenhos do corpo como um crime. Por quê? Receio de que sejam sinais por onde se faça o seu reconhecimento? Isso com os da polícia talvez. Mas mesmo com pessoas, cujos intentos conhecem, o receio persiste, porque decerto eles consideram aquilo a marca de fogo da sociedade, de cuja tentação foram incapazes de fugir, levados pela inexorável fatalidade.

Há tatuagens religiosas, de amor, de nomes, de vingança, de desprezo, de profissão, de beleza, de raça, e tatuagens obscenas.

A vida no seu feroz egoísmo é o que mais nitidamente ideografa a tatuagem.

As meretrizes e os criminosos nesse meio de becos e de facadas têm indeléveis idéias de perversidade e de amor. Um corpo desses, nu, é um estudo social. As mulheres mandam marcar corações com o nome dos amantes, brigam, desmancham a tatuagem pelo processo do Madruga, e marcam o mesmo nome no pé, no calcanhar.

-Olha, não venhas com presepadas, meu macacuano. Tenho-te aqui, desgraça! E mostram ao malandro, batendo com o chinelo, o seu nome odiado.

É a maior das ofensas: nome no calcanhar, roçando a poeira, amassado por todo o peso da mulher...

Há ainda a vaidade imitativa. As barregãs das vielas baratas têm sempre um sinalzinho azul na face. É a pacholice23, o grain de beauté, a gracinha, principalmente para as mulatas e as negras fulas que o consideram o seu maior atrativo. Quando envelhecem, as pobres mulheres mandam apagar os sinais -porque querem ir limpas para o outro mundo, e a Florinda, há pouco falecida, que rolara quarenta anos nos bordéis de S. Jorge e da Conceição, dizia-me antes de morrer:

-Ai, meu senhor, isto é para os homens! Quando se fica velho arranca-se, porque a terra não vê e Deus não perdoa.

Grande parte desses homens e dessas mulheres têm o delírio mais sensual, fazem os nomes queridos em partes melindrosas, marcam os membros delicados com punhais, lâmpadas e outros símbolos. Neste caso eu tenho o Antônio Doceiro, um lindo rapazito que foi bombeiro depois de ter rolado pelo mundo, e a Anita Pau. Ambos têm desenhos curiosos por todo o corpo, e a pobre Anita mostra no calcanhar por extenso o nome do pai seus filhos e traz em cada seio a inicial dos dois pequenos como numa oferenda -a sua única oferenda de mãe aos desgraçados perdidos...

Num meio de tão fraca ilusão, onde as miçangas substituem os pendentifs d'arte e a vida ruge entre o desejo e o crime, depois de muito os pobres entes marcados como uma cavalhada -a cavalhada da luxúria e do assassínio-, começa a gente a sentir uma concentrada emoção e a imaginar com inveja o prazer humano, o prazer carnal, que eles terão ao sentir um nome e uma figura debaixo da pele, inalteráveis e para todo o sempre.

Aquele pequeno impressionou-me de novo na sua profissão estranha. Indaguei:

-Quanto fizeste hoje?

-Hoje fiz doze mil réis.

E eu compreendi que afinal tatuador deve ser uma profissão muito mais interessante que a de amanuense de secretaria...

-Que está você a vender?

-Orações, sim senhor.

-Novas?

-Uma nova, sim -a oração dos nove.

Era num canto de rua, por uma tarde de chuva. O pobre garoto, muito magro, com o pescoço muito comprido, sobraçava o maço de orações, a sorrir.

-Mas, criatura, a oração dos nove foi desmoralizada!

-E agora é que se vende mais. Olhe, eu hoje vendi quatrocentos folhetos. Só de oração dos nove, trezentos e vinte cinco.

Eu acredito nos prodígios. É uma opinião individual mas definitiva. Se a oração dos nove, depois de assustar toda a cidade e de incomodar o arcebispo, ainda continuava com um tão grande número de crentes, era porque tinha prodigiosas virtudes. Comprei a oração e estuguei o passo. Que é afinal uma oração? É um levantamento da alma a Deus com o desejo de o servir e gozar, e S. João de Damasco já a definia um pedido de coisas convenientes, com medo de que os fiéis pedissem também inconveniências. Aquele menino magro, naquela esquina de rua, era um dos insignificantes agentes desse tremendo micróbio da alma.

Si I'on en croit les savants

pour qui toute la Nature

n'est qu'un bouillon de culture

mortel aux pauvres vivants.


Quantas orações andam por aí impressas em folhetinhos maus, vendidas nas grandes livrarias e nos alfarrabistas, exportadas para a província em grossos maços, ou simplesmente manuscritas, de mão em mão, amarradas ao pescoço dos mortais em forma de breve! Há nessa estranha literatura edições raras, exemplares únicos que se compram a peso de ouro; orações árabes dos negros muçulmins, cuja tradução não se vende nem por cinqüenta mil réis; orações de pragas africanas, para dizer três vezes com um obi24 na boca; orações para todas as coisas possíveis e impossíveis. O homem é o animal que acredita - principalmente no absurdo. Levei muito tempo a colecionar essas súplicas bizarras. Há mais de mil: de S. Bento, de Santa Luzia, de Santa Helena, Monserrate, S. João Batista, Milagre de Jesus Cristo, Maria Eterna, Santa Bárbara, Menino Deus, Santa Catarina, Senhora do Socorro, Santa Teresa, S. Antônio, S. Jorge, Nossa Senhora da Guia, S. Marcos, S. Benedito, Santo Sepulcro, Nossa Senhora do Rosário, Magnificat, Anjo Custódio, S. Lourenço, S. Joaquim, S. Estevão, Bom Parto, Anunciação para defumar a casa, Santa Filomena, Conceição, S. Roque, S. Sebastião, S. Anastácio, S. Simão, Menino Deus contra o sol e o mar salgado, Maria Madalena, Dores, S. Pedro e S. Paulo, S. Emídio, S. Tiago pelos agonizantes, Sonhos de Nossa Senhora, Juízo Divinal, Perdão Eterno, Senhor dos Passos, S. Cosme e S. Damião, Nossa Senhora da Glória, que sei eu? Há até orações a santos que o Papa desconhece e nunca foram canonizados, como a oração de S. Gurmim, boa para a dor de calos, e a de S. Puiúna, infalível nas nevralgias. Os homens vivem no mistério das palavras conciliadoras.

Antes de nascer tem logo a oração do Bom Parto, em que se suplica à Virgem, apelando para o nascimento de Jesus, um bom sucesso. Toda a mulher que trouxer consigo esta oração no pescoço, rezando todos os dias 7 ave-marias, e uma salve-rainha, 7 dias antes de parir, terá sempre junto a seu leito a Virgem Santíssima do Bom Parto.

Acompanham-na a oração para a dentição e a de Nossa Senhora dos Remédios, logo depois de nascido. Quando já fala, decora a oração para ao deitar na cama: «Nesta cama me deito, desta cama me levanto, a Virgem Nossa Senhora me cubra com o seu manto. Se eu coberto com ele for não terei medo nem pavor, nem coisa que deste ou outro mundo for» e a oração para levantar da cama, que se pronuncia mesmo ao ruminar os mais horrendos delitos.

Depois começam os contratos extravagantes, as rezas covardes em que se lisonjeia os santos para obter deles altos favores e até clamorosas maldades. Têm a forma de padre-nossos, são às vezes assinadas por homenzinhos que as precedem de palavras contando o milagre do seu achado. Não há em todo esse baixo mundo de crença uma oração inteiramente altruística ou desfeita dos egoísmos terrenos. Só duas existem defendendo apenas a Igreja -a de S. Pedro e S. Paulo e a de S. Miguel, que por sinal começa neste violento estilo:

Ó arcanjo S. Miguel, meu poderoso protetor, a quem Deus onipotente encarregou a defesa geral de todos os homens, apesar de terem o Anjo da Guarda, e que sois capitão dos nove casos angélicos, cuja prerrogativa me animo a suplicar-vos que me perdoeis o atrevimento com que vos falo apontando-vos a relaxação, atrevimento, altivez e desenvoltura, falta de religião e vícios de que estão possuídos os corações cristãos...


As outras pedem pelo menos o céu, e estão neste caso modesto a do Rosário e a de São Benedito. Os autores, porém, prudentemente, numa nota à parte, comunicam aos crentes os bens de tais rezas:

Quem usar desta oração e rezar com viva fé, ao menos uma vez por semana, não será mordido por cão danado; se for à guerra não morrerá nem será vencido, não se afogará nem morrerá queimado, sua casa estará em paz, tudo lhe irá bem, os invejosos, os maus olhos, os mal intencionados, nem os que usam de maléficos e feitiçarias lhe farão dano algum.


E ainda por cima, se rezar umas ave-marias, terá indulgências.

As outras são verdadeiros requerimentos ou cartas de empenho.

O sujeito reza como vai ao ministro do Interior pedir um lugar de guarda-civil. A bajulação é quase idêntica. Diante do altar, a humanidade trata de viver da mesma maneira por que vive diante dos césares, dos senhores feudais ou do chefe de polícia.

Ó incomparável Senhora da Conceição Aparecida, mãe de meu Deus, Rainha dos Anjos, Advogada dos Pecadores. Refúgio e Consolação dos Aflitos e dos Atribulados ó Virgem Santíssima cheia de bondade, lançai sobre nós um olhar favorável.


E como um poeta sem emprego diante de um oligarca estadual:

Lembrai-vos, Clementíssima Mãe Aparecida, não constar de todos que a vós têm recorrido e implorado vossa singular proteção, fosse por vós algum abandonado. Animado por esta confiança, a vós recorro e vos tomo de hoje para sempre por minha mãe, minha protetora, minha consolação, meu guia...


Algumas, talvez duvidando do poder dos santos no ócio perpétuo do paraíso, vão diretamente a Deus, levando-os como simples advogados. Há, por exemplo, a oração de São Elesbão e Santa Efigênia reunidas não sei por quê. Pois bem. A oração começa assim:

Atendei, ó Deus onipotente, às nossas súplicas, e porque nos confessar réus de muitos pecados, permiti que sejamos absolvidos deles pelas intercessões dos gloriosos mártires S. Elesbão e Santa Efigênia e que o precioso sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo fiquemos lavado e relavado das nossas culpas; limpo e puro mais do que quando nascemos.


Esta petição é um modelo de lisonjearia, de adulação, de humildade postiça, de engrossamento ao velho potentado de todos os tempos, infinitamente multiplicado nesta democrática época de potentados! É o supra-sumo do rés-do-chão, é a flor perfeita da maneira de pedir!

Não são, entretanto, Santa Efigênia e São Elesbão os únicos atirados ao secundário papel de advogados, S. Jerônimo, advogado contra os tremores subterrâneos, também o é, tendo como compensação um hino.

Jerônimo santo, máximo penitente,

rogai por nós a Deus eficazmente.

Jerônimo santo, sábio e forte,

Assiste-nos agora e na hora da morte.



E S. Simão, que livra do raio, não faz outra coisa senão pedir a Deus que fulmine apenas os pára-raios, e Santa Bárbara, coitada, logo que começa a trovejar tem que pedir a Deus menos barulho para não ouvir este hino fantástico:

Salve, virgem gloriosa

e Bárbara generosa

do paraíso fresca rosa

Lírio de castidade

salve ó virgem toda formosa

lavada na fonte da castidade.



Mas as orações são antes de tudo um meio de remediar o mal. Que faz a oração de São Luís Gonzaga, praticada pelas meninas do Rio desde o tempo em que a Rua Teófilo Otoni era musicalmente a Rua das Violas? Remedeia os males de amor. Quando uma rapariga cai de joelhos e soluça:

Ó Luis santo, adorado de angélicos costumes, eu, indigníssima devota vossa, vos recomendo singularmente a castidade da minha alma e do meu corpo. Rogo por vossa angélica pureza que intercedais por mim ante o cordeiro imaculado Cristo Jesus e sua mãe Santíssima Virgem e que me preserveis de todo o passado grave, não permitindo que eu saia manchada com alguma nódoa de impureza...


Podeis ter a certeza, ó mortais, que a tentação anda no coração da donzela de tal forma que S. Luís, apesar de angélico e de santo, chegará fatalmente tarde para a salvar. E assim uma velha senhora solteira que recitar convictamente a oração de S. Lourenço:

Onipotente Deus, que ao Vosso bem-aventurado mártir S. Lourenço destes esforço para triunfar dos incêndios e dos seus tormentos, concedei que se extinga em nós o fogo...

Ah! Deus de bondade! esta pobre senhora, assim velha e assim solteira, está muito mal!

S. Luis e S. Lourenço, entretanto, gozam da relativa liberdade de vir quando querem. Santo Onofre porém, pequeno e barbadinho, vive estrangulado no cós das saias das senhoras para ouvir todas as manhãs esta suprema ironia súplice:

Meu glorioso Santo Onofre bispo, confessor de meu senhor Jesus Cristo, em Roma fostes aos pés do padre santo vos ajoelhar, pedistes pão para as solteiras, pão para as casadas, pão para as viúvas, pão para as donzelas. Pedi para mim também que sou sua inquilina. Meu glorioso Santo Onofre, vos peço que me deis comida para comer, roupa para vestir, dinheiro para gastar e graça para vos servir. Amém!


E Santo Onofre não protesta, não grita, não foge, como S. Silvestre, educado na humildade evangélica, tolera este lamentável pedido:

Valha-me o senhor S. Silvestre, pelas três camisas que veste, no ano de trinta e sete, matastes e feristes e abrandastes os corações dos mouros, as bocas das serpentes. Assim eu abrandarei o coração dos meus inimigos que venham ajoelhar-se aos meus pés, porque Deus que é Deus pode e acaba com tudo que quer, traga teu coração debaixo de teu pé esquerdo...


Que diz o venerável Santo a esse coração sem concordância pronominal metido miseravelmente debaixo de um pé? Talvez nem saiba a mísera crendice, e ande lá por cima no azul, esquecido da maldade humana... As almas, apesar de benditas, porém, já por aqui andaram, já sentiram o amor, o ciúme e o medo, e a oração que as incensa é também velhaca e cheia de sandices:

Minhas almas santas benditas, aquelas que são do mesmo senhor Jesus Cristo, por aquelas que morreram enforcadas, por aquelas três almas que morreram degoladas, por aquelas três almas que morreram a ferro frio, juntas todas três, todas seis a todas nove, para darem três pancadas no coração dos inimigos, que eles ficarão humildes a mim debaixo de paz e consolação, a ponto de terem olhos e não me ver, pernas e não me alcançarem, braços e não me agarrarem -para sempre e sem fim.


Os homens, à solta, no recato das alcovas deliram calmamente. Há gente que antes de sair reza a oração de S. Jorge, para não ser ofendida pelos seus inimigos, e a de Santa Catarina para alcançar o perdão dos pecados; há senhoras que aspergem os cantos da casa com água benta, dizendo a oração da bênção das casas, que consta de 382 palavras, e a oração de Santo Anastácio contra os demônios; há seres pensantes que trazem ao pescoço a oração de S. Roberto contra os feitiços, oração que, segundo o editor, estava junto a uma «milagrosa carta, achada em um lugar três léguas distante de S. Marcos, escrita com letras de ouro e pela mão de Deus Nosso Senhor, Filho da Virgem Maria»!

É pois natural que as almas não se ofendam com um mau pedido e que S. Marcos -pobre santo! sorria quando ouvia à meia-noite esta tremenda oração brava, que lembra as cenas de enfeitiçamento medievo:

Chamo S. Marcos e S. Manços e seu confidente o anjo mau em meu auxílio para se apoderar do meu espírito e vida, juntamente com a pessoa que desejo fazer o mal, ou bem e com o dedo polegar da mão esquerda faço três vezes o Sinal da Cruz e com uma faca de ponta espetada na porta da rua ou mesa, com um lenço ou guardanapo bem alvo direi as seguintes palavras: Cristo morreu, Cristo sofreu, Cristo padeceu: assim peço-vos meu glorioso São Marcos e São Manços que sofra e padeça os maiores tormentos e torturas deste mundo a pessoa que eu quero para mim e pegando na faca com toda a fé e coragem que me dá esta Oração darei quatro golpes na porta, ou mesa e pela quarta vez chamarei São Marcos e São Manços e o anjo mau, para me dar força e coragem de dizer: «Credo em Cruz» em círculo onde se acha a faca! Amém.»


Oh! O poder da palavra pronunciada misteriosamente! Os homens de todos os países, de todas as terras têm-lhe um terror sagrado. Essas orações ainda guardam um sentido mais ou menos claro. A maior parte porém é apenas um estranho jogo de disparates, uma trapalhada alucinante. Há uma oração contra o sol, que ao lê-la sente a gente a vertigem do desequilíbrio:

Deus quando pelo mundo andou muito sol e calor apanhou, encontrou com Nossa Senhora com que o sol se tiraria com um guardanapo de olhos e copo d'água fria. Sim, como falo verdade torna o sol a seu lugar, vai esta senhora pelo mar abaixo com o copinho de água fria, o mal que ela tem no corpo e na cabeça tire de Deus e da Virgem Maria.


É exatamente a maneira rítmica, o disparate deduzido dos literatos do Hospício e até hoje, se eu percebi que tais palavras são contra o calor, não me foi possível ainda saber o que quer dizer esta formidável oração do mar sagrado:

Mar sagrado, eu te venho salvar, a tua água te venho pedir para fortuna por Deus para minha casa levar; para que me dê ouro para guardar e prata para gastar, cobre para dar aos pobres.


Como exemplo de estilo desvairado há, entretanto, outras quase tão lindas como as poesias nefelibatas, pela sua dolorosa e obtusa ingenuidade. Está neste caso «O Perdão Eterno.»

S. José que caminhava com a Virgem Maria

tanto caminha de noite como de dia

abre a porta porteiro

que aqui está a Virgem Maria

não quis parir na cama

nem na cortina.

Pariu na manjedoura

onde o bento boi comia.

Desceram os anjos dos céus, cantando Ave Maria

subiu para o céu rezando Santa Maria.

o eterno lhe perguntou, como ficou a parida?

Ficou coberto de ouro o seu bento filho

e o berço em que ele embalava era de ouro e latão

aqui se acaba esta santa oração.

Quem esta oração rezar 7 sexta-feira, da paixão,

e outras tantas carnais,

tem cem anos de perdão,

se for seu pai, sua mãe, mais toda a sua geração.


Há na Ilíada um trecho muito citado e rico de verdades. Homero fala das orações e diz «As orações são filhas do grande Zeus, filho de Cronos. Capengas, zarolhas, feiarronas ocupam-se em seguir a fatalidade. A fatalidade é robusta e ágil. Vai muito adiante fazendo aos homens um mal que as orações remedeiam.» É destino do homem rezar, pedir o auxílio do desconhecido para o bem e para o mal, é sina deste pobre animal, mais carregado de trabalhos que qualquer outro bicho da terra ou do mar, ter medo e desconfiar das próprias forças. A fatalidade o vai conduzindo por caminhos que são despenhadeiros às vezes e campos de risos raramente. O homem chora, ergue os olhos para o azul do céu, a menor das suas ilusões povoa-o de forças invisíveis e fala, e pede, e suplica. Que importa que diga tolices ou frases lapidares, horrores ou pensamentos suaves? É preciso remediar a fatalidade.

E é por isso que enquanto existir na terra um farrapo de humanidade, esse farrapo será um moinho de orações.

É por isso, talvez, que os vendedores de orações acabam mais ou menos supersticiosos dessa superstição teimosa que acredita apesar de tudo; é por isso que um pobrezinho vendedor dessas fantasias do pavor ignorante não sai de casa sem recitar à estrela dos pastores estas precavidas frases:

      Desta casa me

      aparto em boa

      paz boa viagem.

      Deus adiante, a

bela cruz atrás eu no meio, altos e
montes para mim sejam. Oremos
bocas de cães e lobos sejam fecha-
das, tenham olhos e não me vejam,
tenham pernas e não me sigam
tenham boca e não me falem,

       tenham braços

       e não me pe-

       guem, tão guar-

       dado me vejam

       como a Virgem

       Maria guardou

       o seu amado

       filho desde as

       portas de Be-

       lém até Jeru-

       salém. -

       Amén...



-Estou esperando!

-Não quero!

-Deixá-lo passar!

-Naufragou!

Eu vinha vindo com o frescor da manhã por aquele trecho da praia de Santa Luzia, tão suave e tão formoso, onde se amontoam as coisas lúgubres da cidade -a Santa Casa, o Necrotério, o serviço de enterramentos. Entre as árvores fronteiras ao hospital vendedores ambulantes vociferavam os pregões de canjica, de mingau, de pães doces; dos bondes pejados de gente saltavam criaturas doentes, paralíticas algumas, de óculos outras. Pelas escadas de pedra lavada formigava constantemente a turba doente, mostrando as mazelas, como um insulto e uma afronta aos que estavam sãos, entre os enfermeiros do hospital, de calça de zuarte azul e dólmã pardo, nédios25 e sadios. Eu vinha precisamente pensando como gozam saúde os enfermeiros, e aquelas frases maçônicas fizeram-me mal. Parei, consultei o relógio. Os quatro tipos não se ralavam mais com a minha presença. Dois olhavam com avidez os bondes que vinham da Rua do Passeio; dois estavam totalmente voltados para o lado da Faculdade. Ao aparecer um bonde, um magrinho bradou:

-Largo!

Prestei atenção. Do tramway em movimento saltou um cavalheiro defronte do Necrotério.

-De cima! bradou outro tipo.

-Última! regougou o terceiro.

E cercaram o cavalheiro.

-V. S.ª há de aceitar um cartãozinho da nossa casa. Não precisa de se incomodar. Tratamos de tudo! Faça negócio comigo!

A um tempo falavam todos, e o cavalheiro, coberto de luto, com o lenço empapado de suor e de lágrimas, murmurava, como se estivesse a receber pêsames:

-Muito obrigado! Muito obrigado!

Aproximei-me de um dos funcionários do serviço mortuário.

-Que espécie de gente é essa?

-Oh! não conhece? São os urubus!

-Urubus?

-Sim, os corvos... É o nome pelo qual são conhecidos aqui agenciadores de coroas e fazendas para luto. Não é muito numerosa a classe, mas que faro, que atividade!

Totalmente interessado, tive uma dessas exclamações de pasmo que lisonjeiam sempre os informantes e nada exprimem de definitivo. E sorriu, tossiu e falou. Foi prodigioso.

-Os agenciadores de coroas levantam-se de madrugada e compram todos os jornais para ver quais os homens importantes falecidos na véspera. Defunto pobre não precisa de luxo, e coroa é luxo. Logo que tomam as notas disparam para a casa do morto e propõem adiantar o que for necessário para o enterro, com a condição de se lhes comprarem as coroas. Algumas casas têm mesmo nos cartões os seguintes dizeres - encarregam-se de tratar de enterros sem cobrar comissão de espécie alguma. E os títulos dessas casas davam para um tratado de psicologia recreativa. Há os poéticos os delicados, os floridos, os babosos, os fúnebres - «Tributo da Saudade, «Coroa de Violetas», «Flor de Lis», «Bogari», «A Jardineira», «Coroa de Rosas»...

-Mas... e estes homens aqui?

-Estes homens são os urubus de Santa Luzia, serviço especial e maçônico. Três ficam à entrada principal da Santa Casa. Quando avistam um tipo, brada o primeiro: estou esperando!

Se o tipo não tem cara de enterro: não quero! Deixá-lo passar. Se o homem vem de tílburi26, correm até aqui a acompanhá-lo... Se o tílburi segue, bradam: naufragou! E voltam ao lugar donde não saíram os outros. É interessante ouvir-lhes o diálogo. Tu é que não correste! Conheço o homem; antes fosse, era meu o negócio...

-Mas é horrível!

-É a vida, meu caro. Aqui estacionam sete agentes; o assalto ao freguês vai pela vez, como aos sábados, nos barbeiros. Quatro oferecem grinaldas aos passageiros que saltam dos bondes; três aos que vêm a pé. Ao ver o bando ao longe há a frase: De cima! que é o sinal. Do lado de lá! quando ele salta do lado oposto. Última! quando salta no Necrotério. um dos urubus acerta, grita: Estou empregado! E feito o negócio o outro avança, dizendo: Grinalda! para obter como resposta: A tua é minha...

Quando aparece por acaso algum freguês conhecido de um agenciadores dá-se o «combate». Os três que ficaram «desempregados», desejando «furar» o agenciador amigo, quando não conseguem convencê-lo arranjam meio de o cacetear até que o negócio não se realize. Nessa ocasião assistimos a cenas calorosas, a conflitos sérios, em que se faz sentir a intervenção da polícia. Mas à noite, graças aos deuses, acabado o trabalho, vão todos para a venda do Antônio, à Rua da Misericórdia, beber cerveja.

-São estes então? fiz, voltando-me.

-Estes só, não. Há outros, os que fazem ponto no Largo da Batalha e rendem estes à hora do almoço e que só têm o posto depois de ter todas as notas dos tipos que estão na secretaria e tratar de enterros.

-Como os agentes de polícia?

-Tal qual. E terminam sempre com a nota policial: quarenta anos presumíveis.

Rimos ambos. O sol está brilhante e o céu, inteiramente azul, dá-nos desejos de viver e de compreender a vida pelos seus mais ridentes aspectos.

-Os urubus devem ter nome?

-Têm, são urubus urbanos. Vê o senhor aquele? É o Chico Basílio. Há cerca de 30 anos exerce a profissão. Está vendo aquele grupo? Encontra lá o Brasilino, o Caranguejo, o Bilu, o Espanhol da Saúde, o Mangonga. Os outros são o Joaquim, o Tatuí, o Paulino, o Cá e Lá, o Buriti, o Manduca.

Neste momento um mocinho de lápis e linguado de papel na mão indagou, entrando:

-Alguma coisa de novo?

-Sim, pode entrar.

O mocinho desapareceu. O complacente informante sorria.

-Outro urubu.

-Outro?

-São os que parecem reporters. Vêm para a secretaria da Santa Casa munidos de tiras de almaço para copiar dos livros os nomes e residências das pessoas mortas, isto é, só copiam os daquelas cujo enterro custar mais de 100$. Saem daqui para o lugar indicado e ficam às portas à espera que o corpo saia, um, dois, cinco às vezes. Quando o cadáver sai e a família ainda está aos soluços, embarafustam com as amostras de luto. Contaram-me que chegam à concorrência, a ver quem faz o luto em 24 horas mais em conta. Neste serviço conheço o Ferraz, o Saul, o Guedes, o Matos, o Araújo, o Campos, o Mesquita.

Eu ouvia o meu informante um pouco melancólico. Que diabo! Por que urubus, naquele pedaço da cidade que cheira a cadáveres e a morte?

Não há terra onde prospere como nesta a flora dos sem-ofício e dos parasitas que não trabalham. Esses sujeitinhos vestem bem, dormem bem, chegam a ter opiniões, sistema moral, idéias políticas. Ninguém lhes pergunta a fonte inexplicável do seu dinheiro. Aqueles pobres rapazes, lutando pela vida, naquele ambiente atroz da morte, vestindo a libré das pompas fúnebres, impingindo com um sorriso à tristeza coroas e crepes, só para ganhar honestamente a vida, eram dignos de respeito. Por que urubus? Maçonaria da má sorte, pelotão dos tristes, seres sem o conforto de uma simpatia, no limite do nada, encarregados de fornecer os símbolos de uma dor que cada vez a humanidade sente menos.

Despedi-me, comecei a andar devagar. Um dos urubus aproximou-se.

-Estiveram contando coisas a nosso respeito?

-Não, absolutamente.

-Que se há de fazer? A comissão é tão pequena! Quando quiser uma coroa...

-Deus queira que não! fiz assustado.

E apertei a mão do homem urubu com um tremor de superstição e de susto.

Os mercadores de livros e a leitura das ruas

Exatamente na esquina do teatro S. Pedro, há dez anos, Arcanjo, italiano, analfabeto, vende jornais e livros. É gordo, desconfiado e pançudo. Ao parar outro dia ali, tive curiosidade de ver os volumes dessa biblioteca popular. Havia algumas patriotadas, a Questão da Bandeira, o Holocausto, a d. Carmen de B. Lopes, a Vida do Mercador e de Antônio de Pádua, o Evangelho de um Triste e os Desafogos Líricos. Estavam em exposição, cheios de pó, com as capas entortadas pelo sol.

-Vende-se tudo isso?

-Oh! Não. Há quase um ano que os tenho. Os outros sim -modinhas, orações, livros de sonhos, a História da Princesa Magalona, o Carlos Magno, os testamentos dos bichos.

Levantei as mãos para o céu como pedindo testemunho do alto. As obras vendáveis ao povo deste começo de século eram as mesmas devoradas pelo povo dos meados do século passado!

-Mas não é possível...

-Pode perguntar aos outros vendedores.

Atirei-me a esse inquérito psicológico. Os vendedores de livros são uma chusma incontável que todas as manhãs se espalha pela cidade, entra nas casas comerciais, sobe aos morros, percorre os subúrbios, estaciona nos lugares de movimento. Há alguns anos, esses vendedores não passavam de meia dúzia de africanos, espapaçados preguiçosamente como o João Brandão na Praça do Mercado. Hoje, há de todas as cores, de todos os feitios, desde os velhos maníacos aos rapazolas indolentes e aos propagandistas da fé. A venda não é franca senão em alguns pontos onde se exibem os tabuleiros com as edições falsificadas do Melro de Junqueiro e da Noite na Taverna. Os outros batem a cidade, oferecendo as obras. E há então toda uma gama de maneiras para passar a fazenda. Os mais atilados, os mais argutos, os mais incansáveis são os vendedores de Bíblias protestantes, com os bolsos das velhas sobrecasacas ajoujados de brochuras edificantes.

-Ó rapaz, por que não fica com esta Bíblia? Dou-lha por dez tostões. É o livro de Deus, onde estão as eternas verdades. E se ficar com ela, vai mais este volume de quebra sobre as feras que devoram o homem, as feras morais...

Os outros não pairam em regiões tão espirituais. Há os solenes -o velho Maia, que aprecia as encadernações vermelhas; foi guarda-livros e virou para a infelicidade quando, um dia, se lembrou de decorar todo o dicionário latino de Saraiva. Há os que têm apelido -Espelho de Psyché, pobre homem, negociante, que a má sorte faz andar agora de cesta ao braço, com uma fita verde no chapelinho. Há os escandalosos relapsos -o Conegundes, negralhão de cavanhaque, gritador. Há os que durante o trabalho percorrem as tabernas, e para impingir aos caixeiros um dos volumes ingerem em cada uma dois da branca -o Artur. Há os que têm admirações literárias -o Camões, zanaga27, que vos recita o I Canto dos Lusíadas de cor. Há os alegres, um turbilhão deles, que apregoam dois dias na semana para descansar os outros cinco. Há os que têm a arte do pregão e, longe de ir com um embrulhinho perguntar à casa do comprador se quer ficar com a História de Carlos Magno, soltam a voz em gorjeios estentóricos, como o Noite Sonorosa:

Meu Deus, que noite sonorosa!

O céu está todo estrelado.

Eu com o cavaquinho na mão

e a morena ao lado.



Isto em pleno dia.

Cada sujeito desses pode passar a vida bem. As livrarias vendem baratíssimo os livrecos procurados. Em cada um, os vendedores ganham, no mínimo, seiscentos por cento. Há alguns que, trabalhando com vontade e sabendo lançar - as orações, as modinhas ou a inefável História da Donzela Teodora, arranjam uma diária de dez mil réis, sem grande esforço. Daí, todo dia aumentar o número de camelots de livros, vir começando a formar-se essa próspera profissão da miséria que todas as cidades têm, ávida e lamentável, num arregimentar de pobres propagandistas do Evangelho e do Espiritismo, de homens que a sorte deixou de proteger, de malandros cínicos, de rapazes vadios.

Os livros, porém, de grande venda ficam sempre os mesmos.

Nós não gostamos de mudar em coisa nenhuma, nem no teatro, nem na paisagem, nem na literatura. É provável que o divórcio tenha caído por esse inveterado e extraordinário amor de não mudar, que nos obceca. Desde 1840, o fundo das livrarias ambulantes, as obras de venda dos camelots têm sido a Princesa Magalona, a Donzela Teodora, a História de Carlos Magno, a Despedida de João Brandão e a Conversaçâo do Pai Manuel com o Pai José -ao todo uns vinte folhetos sarrabulhentos28 de crimes e de sandices. Como esforço de invenção e permanente êxito, apareceram, exportados de Portugal, os testamentos dos bichos, o Conselheiro dos Amantes e uma sonolenta Disputa divertida das grandes bulhas que teve um homem com sua mulher por não lhe querer deitar uns fundilhos nos calções velhos.

Essa literatura, vorazmente lida na detenção, nos centros de vadiagem, por homens primitivos, balbuciada à luz dos candeeiros de querosene nos casebres humildes, piegas, hipócrita e mal feita, é a sugestionadora de crimes, o impulso à exploração de degenerações sopitadas, o abismo para a gentalha. Contam na Penitenciária que o Carlito da Saúde, preso a primeira vez por desordens, ao chegar ao cubículo, mergulhou na leitura do Carlos Magno. Sobreveio-lhe uma agitação violenta. Ao terminar a leitura anunciou que mataria um homem ao deixar a detenção. E no dia da saída, alguns passos adiante, esfaqueou um tipo inteiramente desconhecido. Só esse Carlos Magno tem causado mais mortes que um batalhão em guerra. A leitura de todos os folhetos deixa, entretanto, a mesma impressão de sangue, de crime, de julgamento, de tribunal. Há, por exemplo, uma obra cuja tiragem deixa numa retaguarda lamentável as consecutivas edições do Cyrano de Bergerac. Intitula-se Maria José, ou a filha que assassinou, degolou e esquartejou sua própria mãe, Matilde do Rosário da Luz, e começa como nas feiras: -«Atendei, e vereis um crime espantoso, um crime novo, o maior de todos os crimes!» Essa Maria ainda era só a matar uma só pessoa. No Carlos Magno um tal Reinaldos, ensanduichado em frases de louvor a Nosso Senhor, mete-se num rolo doido com os turcos, e o livro louva-o por ir degolando a cada passo um homem.

Tudo quanto é inferior -a calúnia, o falso testemunho, o ódio- serve de entrecho a esses romances mal escritos. Quando a coisa é em verso, toma proporções de puff29 carnavalesco. A Despedida do João Brandão à sua mulher, filhos e colegas, com um apêndice em que se convence o leitor de que João podia ser um herói cristão, é lida nos cortiços com temor e pena. A primeira quadra da despedida é assim:

Andando eu a passear,

com amiga do coração.

Dois passos à retaguarda:

estais preso, João Brandão.


Que se há de fazer diante destes quatro versos nefelibatas30? A Despedida tem quarenta e nove quadras, fora a resposta da esposa. Uma mistura paranóica de remorso, de tolices de religião, saudade e covardia, faz destas quadras o supra-sumo da estética emotiva da turba -cujos sentimentos oscilam entre o temor e a ambição. João Brandão soluça:

Adeus, João Brandão,

espelho de eu me vestir,

tu mataste o menino

que para ti se ficou a rir.

Agora vou degredado,

a paixão é que me mata;

adeus, Carolina Augusta,



Já não vale a tua prata.

Para alegrar os leitores, esses criminosos anônimos cultivaram o testamento dos bichos. Já testamento é uma idéia inteiramente lúgubre. O testamento da pulga, do mosquito ou da saracura, não seria para fazer rebentar de riso os mortais, nem mesmo agora, neste mortal período de desinfecções e higiene à outrance. Mas que pensam os senhores dessas quadrinhas, das quais já se venderam mais de cem mil folhetos, das quais diariamente e perpetuamente se vendem mais volumes que da Canaã de Graça Aranha? Os testamentos são uma lamentável relação de legados, sem uma graça, sem uma piada, sem um riso.

O galo leva quarenta quadras a deixar coisas; a saracura diz que levava, prazenteira, a cantar todo o dia dentro do brejo; o macaco fala de hora extrema sem uma careta. Só no testamento do papagaio há esta observação pessoal, sempre aplicável às câmaras:

Há no mundo papagaios

que falam todos os dias

e nunca sofrem desmaios

comendo grossas maquias31.

estes são de Pernambuco,

falam muito, são mitrados;

eu falei, mas fui maluco,

logo paguei meus pecados.



E falam do veneno da literatura francesa, que perde o cérebro das meninas nervosas e aumenta o nosso crescido número de poetas! Que se dirá dessa literatura - pasto mental dos caixeiros de botequim, dos rapazes do povo, dos vadios, do grosso, enfim, da população? Que se dirá desses homens que vão inconscientemente ministrando em grandes doses aos cérebros dos simples a admiração pelo esfaqueamento e o respeito da tolice?

Como eu clamasse contra essa teimosa mania de não mudar as suas predileções, um dos vendedores ambulantes, o cantante Meu Deus que noite sonorosa, esticou a perna e disse-me:

-Talvez fosse para pior.

Parei convencido, o curso das interrogações. Já outro filósofo seu rival, Montaigne, assegurava que mudar é quase sempre uma probabilidade para o pior. Os vendedores de testamentos passaram a vendê-los como palpites do jogo do bicho, transformando a saracura em avestruz e a mosca em borboleta. Os jogadores não lêem, mas arruínam as algibeiras. E de qualquer forma o mal continua a florescer neste baixo mundo, na literatura e fora dela, como o mais gostoso dos bens. Se nas obras populares aparecer alguma coisa de novo, com certeza teremos tolices maiores que as anteriores...

A pintura das ruas

Há duas coisas no mundo verdadeiramente fatigantes: ouvir um tenor célebre e conversar com pessoas notáveis. Eu tenho medo de pessoas notáveis. Se a notabilidade reside num cavalheiro dado à poesia, ele e Lecomte de Lisle, ele e Baudelaire, ele e Apolonius de Rodes desprezam a crítica e o Sr. José Veríssimo; se o sucesso acompanha o indivíduo dado à crítica, este país é uma cavalariça sem palafreneiros; e se por acaso a fama, que os romanos sábios confundiam com o falso boato, louva os trabalhos de um pintor, ele como Mantegna, ele como Leonardo Da Vinci, ele como todos os grandes, tem uma vida de tormentos, de sacrifícios, de ataque aos seus processos; e jamais se julga recompensado pelo governo, pelo país, pelos contemporâneos, de ter nascido numa terra de bugres e numa época de revoltante mercantilismo. É fatigante e talvez pouco útil. Um homem absoluta, totalmente notável só é aceitável através do cartão-postal -porque afinal fala de si, mas fala pouco. Foi, pois, com susto que ontem, domingo, recebi a proposta de um amigo:

-Vamos ver as grandes decorações dos pintores da cidade?

-Heim? Estás decididamente desvairando. As grandes decorações? Uma visita aos ateliers?

-Não; a outros locais.

-E havemos de encontrar celebridades?

-Pois está claro. Não há cidade no mundo onde haja mais gente célebre que a cidade de S. Sebastião. Mas não penses que te arrasto a ver algum Vítor Meireles, alguns Castagnetto apócrifos ou os trabalhos aclamados pelos jornais. Não! Não é isso. Vamos ver, levemente e sem custo, os pintores anônimos, os pintores da rua, os heróis da tabuleta, os artistas da arte prática. É curiosíssimo. Há lições de filosofia nos borrões sem perspectiva e nas «botas» sem desenho. Encontrarás a confusão da populaça, os germes de todos os gêneros, todas as escolas e, por fim, muito menos vaidade que na arte privilegiada.

Era domingo, dia em que o trabalho é castigar o corpo com as diversões menos divertidas. Saí, devagar e a pé, a visitar bodegas reles, lugares bizarros, botequins inconcebíveis, e vim arrasado de confusão cerebral e de encanto. Quantos pintores pensa a cidade que possui? A estatística da Escola é falsíssima. Em cada canto de rua depara a gente com a obra de um pintor, cuja existência é ignorada por toda a gente.

O meu amigo começou por pequenas amostras da arte popular, que eu vira sempre sem prestar atenção: os macacos trepados em pipas de parati, homens de olho esbugalhado mostrando, sob o verde das parreiras, a excelência de um quinto de vinho, umas mulheres com molhos de trigo na mão apainelando interiores de padarias e talvez recordando Ceres, a fecunda. Depois iniciou a parte segunda:

-Vamos entrar agora nas composições das marinhas. Os pintores populares afirmam a sua individualidade pintando a Guanabara e a praia de Icaraí. Por essas pinturas é que se vê quanto o «ponto de vista» influi. Há o Pão de Açúcar redondo como uma bola, no Estácio; há o Pão de Açúcar do feitio de uma valise no Andaraí; e encontras o mesmo Pão, comprido e fino, em S. Cristóvão. O povo tem uma alta noção dos nossos destinos navais; a sua opinião é exatamente a mesma que a do ministro da marinha -rumo ao mar! Por isso, não há Guanabara pintada pelos cenógrafos da calçada que não tenha à entrada da barra um vaso de guerra. A parreira como o bêbado tem uma conclusão fatal: carga ao mar!

-E depois?

-Depois entramos nas grandes telas, as grandes telas que a cidade ignora.

Estávamos na Rua do Núncio. O meu excelente amigo fez-me entrar num botequim da esquina da Rua de S. Pedro e os meus olhos logo se pregaram na parede da casa, alheio ao ruído, ao vozear, ao estrépito da gente que entrava e saía. Eu estava diante de uma grande pintura mural comemorativa. O pintor, naturalmente agitado pelo orgulho que se apossou de todos nós ao vermos a Avenida Central, resolveu pintá-la, torná-la imorredoura, da Rua do Ouvidor à Prainha. A concepção era grandiosa, o assunto era vasto-o advento do nosso progresso estatelava-se ali para todo o sempre, enquanto não se demolir a Rua do Núncio. Reparei que a Casa Colombo e o Primeiro Barateiro eram de uma nitidez de primeiro plano e que aos poucos, em tal arejamento, os prédios iam fugindo numa confusão precipitada.

Talvez esse grande trabalho tivesse defeitos. Os dos «salões» de toda a parte do mundo também os têm. Mas quantos artigos admiráveis um crítico poderia escrever a respeito! Havia decerto naquele deboche de casaria o início da pintura moral, da pintura intuitiva, da pintura política, da pintura alegórica... Indaguei, rouco:

-Quem fez isto?

-O Paiva, pintor cuja fama é extraordinária entre os colegas.

Voltei-me e de novo fiquei maravilhado. Aquele café não era café, era uma catedral dos grandes fatos. Na parede fronteira, entre ondas tremendas de um mar muito cinzento rendado de branco, alguns destroyers rasgavam o azul denso do céu com projeções de holofotes colossais.

-Há coisas piores nos museus.

-Mas isto é digno de uma pinacoteca naval.

O amador, que é o dono do botequim, e o artista cheio de imaginação, que é o Paiva, não se haviam contentado, porém, com essas duas visões do progresso: a avenida e o holofote. Na outra parede havia mais uma verdadeira orgia de paisagem: grutas, cascatas, rios marginados de flores vermelhas, palmas emaranhadas, um pandemônio de cores.

Quando me viu inteiramente assombrado, esse excelente amigo levou-me ao café Paraíso, na Avenida Floriano.

-Já viste a arte-reclamo, a arte social. Vamos ver a arte patriótica.

-E depois?

-Depois ainda hás de ver os artistas que se repetem, a arte romântica e infernal.

A arte patriótica, ou antes regional, dos pintores da calçada é o desejo, aliás louvável, de reproduzir nas paredes trechos de aldeia, trechos do estado, trechos da terra em que o proprietário da casa, ou o pintor, viu a luz. No café Paraíso, o artista, que se chama Viana, pintou a cidade de Lourenço Marques, vista em conjunto, mas, como qualquer sentimento de amor naquela elaboração difícil brotasse de súbito no seu coração, Viana colocou à entrada de Lourenço Marques um couraçado desfraldando ao vento africano o pavilhão do Brasil. Dessas pinturas há uma infinidade -e eu vi não sei quantas pontes metálicas do Douro ao atravessar algumas ruas.

-Entremos neste botequim, aqui à esquina da Rua da Conceição. Vais conhecer o Colon, pintor espanhol. Colon tem estilo: este painel é um exemplo. Que vês? Uma paisagem campestre, arvoredo muito verde, e lá ao fundo um castelo com a bandeira da nacionalidade do dono da casa. É sempre assim. Há outros mais curiosos. O Oliveira completa os trabalhos sempre com cortinas iguais às que se usavam nos antigos panos de boca dos teatros. O trabalho é o abuso do azul, desde o azul claro ao azul negro.

-Mas estás a contar os tiques de grandes pintores.

-São parecidos. Eu conheço muitos mais: o velho Marcelino, que tem a especialidade de pintar os homens no pifão; o Henrique da Gama, o primeiro dos nossos fingidores, que faz um metro de mármore em cada cinco minutos; o Francisco de Paula, que adora os papagaios e faz caricaturas; o Malheiros, que reúne gatos, cachorros, cascatas e caboclos em cada tela. É o ideal da arte! São eles os autores dos estandartes dos cordões; são eles que enriquecem! Já entraste num desses ateliers, no Cunha dos PP, no Garcia Fernandes da Rua do Senhor dos Passos? Pois é como um desses studios da Flandres antiga, em que os grandes artistas assinavam os trabalhos dos discípulos, é como se entrasse na grande manufatura da pintura assinada. Vamos ao Cunha.

-Não, não, por hoje basta.

-Mas pelo menos vem admirar na Rua Frei Caneca 1660 famoso trabalho do Xavier.

-O famoso trabalho?

Se os outros, que não eram famosos e não eram de Xavier, tanta admiração me haviam causado, imaginem esse, sendo de Xavier e sendo famoso. Precipitei-me num bonde, saltei comovido como se me assegurassem que eu iria ver a Joconda de Da Vinci, e, quando os meus olhos sôfregos pousaram na criação do pintor, uma exclamação abriu-me os lábios e os braços. Era simplesmente um incêndio, o incêndio de uma cidade inteira, a chama ardente, o fogo queimando, torcendo, destruindo, desmoronando a cidade do vício. Tudo desaparecia numa violentação rubra de fornalha candente. Seria o fogo sagrado, a purificar como em Gomorra, ou o fogo da luxúria, o símbolo devastador das paixões carnais, a reprodução alegórica de como a licença dos instintos devora e queima a vida?

Xavier fora mais longe. Aquele mar de incêndio, aquele braseiro desesperado e perene era a fixação do fogo maldito da luxúria, era o fogo de Satanás, porque Satanás, em pessoa, no primeiro plano, completamente cor de pitanga, com as pernas tortas e o ar furioso, abatia a seus pés, vestida de azul celeste, uma pobre senhora.

Esse último painel punha-me inteiramente tonto. Mas não é uma das grandes preocupações da Arte comover os mortais, comovê-los até mais não poder? Xavier comovia, eu estava comovido. Nem sempre é possível obter tanta coisa nas exposições anuais. O meu amigo levou o excesso a apresentar-me o ilustre artista.

-Aqui está o Xavier.

Voltei-me.

-Os meus sinceros cumprimentos. Há sopro romântico, há imaginação, há ardência nesta decoração, fiz com o ar dogmático dos críticos ignorantes de pintura.

Ingenuamente, Xavier olhou para mim e, primeiro homem que não se julga célebre neste país, balbuciou:

-Eu não sei nada... Isso está para aí... Se soubesse fazer alguma coisa de valor até ficava triste - só com a idéia de que um dia talvez a levassem do meu país...

Foi um poeta que considerou as tabuletas - os brasões da rua. As tabuletas não eram para a sua visão apurada um encanto, uma faceirice, que a necessidade e o reclamo incrustaram na via pública; eram os escudos de uma complicada heráldica urbana, do armorial da democracia e do agudo arrivismo dos séculos. Desde que um homem realiza a sua obra -a terminação de uma epopéia ou a abertura de uma casa comercial- imediatamente o homem batiza-a. No começo da vida, por instinto, guiado pelos deuses, a sua idéia foi logo a tabuleta. Quem inventou a tabuleta? Niguém sabe.

É o mesmo que perguntar quem ensinou a criança a gritar quando tem fome. Já no Oriente elas existiam, já em Atenas, já em Roma, simples, modestas, mas sempre reclamistas. Depois, como era de prever, evoluíram: evoluíram de acordo com a evolução do homem, e hoje, que se fazem concursos de tabuletas e há tabuletas compostas por artistas célebres, hoje, na época em que o reclamo domina o asfalto, as tabuletas são como reflexos de almas, são todo um tratado de psicologia urbana. Que desejamos todos nós? Aparecer, vender, ganhar.

A doença tomou proporções tremendas, cresceu, alastrou-se, infeccionou todos os meios, como um poder corrosivo e fatal. Os próprios doentes também a exploram numa fúria convulsiva de contaminação. Reparai nos jornais e nas revistas. Andam repletos de fotogravuras e de nomes -nomes e caras, muitos nomes e muitas caras! A geração faz por conta própria a sua identificação antropométrica para o futuro. Mas o curioso é ver como a publicação desses nomes é pedida, é implorada nas salas das redações. Todos os pretextos são plausíveis, desde a festa a que se não foi até à moléstia inconveniente de que foi operada com feliz êxito a esposa. O interessante é observar como se almeja um retrato nas folhas, desde as escuras alamedas do jardim do crime até às garden-parties de caridade, desde os criminosos às almas angélicas que só pensam no bem. Aparecer! Aparecer!

E na rua, que se vê? O senhor do mundo, o reclamo. Em cada praça onde demoramos os nossos passos, nas janelas do alto dos telhados, em mudos jogos de luz, os cinematógrafos e as lanternas mágicas gritam através do écran de um pano qualquer o reclamo de melhor alfaiate, do melhor livreiro, do melhor revólver. Basta levantar a cabeça. As tabuletas contam a nossa vida. E nessa babel de apelos à atenção, ressaltam, chocam, vivem estranhamente os reclamos, extravagantes, as tabuletas disparatadas. Quantas haverá no Rio? Mil, duas mil, que nos fazem rir. Vai um homem num bonde e vê de repente, encimando duas portas em grossas letras estas palavras: Armazém Teoria.

Teoria de que, senhor Deus? Há um outro tão bizarro quanto este: Casa Tamoio, Grande Armazém de líquidos comestíveis e miudezas. Como saber que líquidos serão esses comestíveis, de que a falta de uma vírgula fez um assombro? Faltou a esse pintor o esmero da padaria do mesmo nome que fez a sua tabuleta em letras de antigo missal para mostrar como se esmera, ou talvez o descaro deste outro: o maduro cura infalivelmente todas as moléstias nervosas...

Mas as tabuletas extravagantes são as do pequeno comércio, sem a influência de Paris, a importação direta e caixeiros elegantes de lenço no punho: as vendas, esta criação nacional, os botequins baratos, os açougues, os bazares, as hospedarias... Na Rua do Catete há uma venda que se intitula O Leão na Gruta. Por quê? Que tem a batata com o leão que nem ao menos é conhecido de Daniel? Defronte dessa venda há, entretanto, um café que é apenas Café de Ambos Mundos. E se não vos bastar um café tão completo, aí temos um mais modesto, na Rua da Saúde o Café B.T.Q. E sabem que vem a ser o B.T.Q., segundo o proprietário? Botequim pelas iniciais! Essa nevrose das abreviações não atacou felizmente o dono da casa de pasto da Rua de S. Cristóvão, que encheu a parede com as seguintes palavras: Restaurant dos Dois Irmãos Unidos Por...

Unidos por... Pelo quê? Pelo amor, pelo ódio, pela vitória? Não! Unidos Portugueses. Apenas faltou a parede e ficou só o por -para atestar que havia boa vontade. A questão, às vezes, é de haver muita coisa na parede. Assim é que uma casa da Rua do Senhor dos Passos tem este anúncio: Depósito de aves de penas. É pouco? Um outro assegura: Depósito de galinhas, ovos e outras aves de penas -o que é, evidentemente, muito mais. Tal excesso chega a prejudicar, e andasse a higiene a olhar tabuletas, ofício de vadiagem incorrigível, mandaria fechar uma casa de frutas da Rua Sete, que pespegou esta inconveniência: Grande sortimento de frutas verdes e secas.

A origem desses títulos é sempre curiosa. Uma casa chama-se Príncipe da Beira porque o seu proprietário é da Beira, uma venda de Campo Grande tem o título feroz de Grande Cabaceíro porque perto há uma plantação de cabaças; há açougue Aliança e Fidelidade porque é um hábito pôr aliança como título com duas mãos apertadas e fidelidade com um cachorro de língua de fora, bem no meio da parede. Muitos tomam o título de peças de teatro: Colchoaria Rio Nu, Casa Guanabarina, venda Cabana do Pai Tomás. A coisa, porém, toma proporções assombrosas quando o proprietário é pernóstico. Assim, na Rua Visconde do Rio Branco há um armazém Planeta Provisório, e noutra rua Planeta dos Dois Destinos, um título ocultista sibilino; no Catete, um Açougue Celestial. Essa dependência do firmamento na terra produz um péssimo efeito e os anjos têm cada braço de meter medo a uma legião da polícia. Outro, porém, é o Açougue Despique dos Invejosos, e há na Rua da Constituição uma casa de bilhetes intitulada Casa Idealista, naturalmente porque quem compra bilhetes vive no mundo da lua, e há uma casa de coroas, o Lírio Impermeável e uma outra, Ao Vulcão das 49 Flores. Não é só. Uns madeireiros puseram no seu depósito este letreiro filosófico, que naturalmente incomodará o arcebispado: Madeireiros e Materialistas; e há uma taberna muito ordinária, centro de malandrões, em Sapopemba, que se apossou de um título exclusivamente nefelibata: A Tebaida32...

E os afrancesados que denominam as casas de Au Bijou de la Mode; Au Dernier Chic, Queima Chefe, Maison Moderne da Cidade Nova? E os patrióticos que fazem questão da casa de pasto ser 1º de Dezembro, do açougue ser 1º de Janeiro? do restaurante ser Luís de Camões ou Fagundes Varela? E os engrossadores33 que intitulam as casas de Afonso Pena durante quatro anos? E os engraçados, os da laracha34 boa, que fazem as tabuletas propositalmente erradas, como um negociante da Rua Chile: Colxoaria de primera Colxães contra purgas e precevejos?

Mas as tabuletas têm uma estranha filosofia; as tabuletas fazem pensar. Há, por exemplo, na Rua Senador Eusébio, perto da ex-ponte dos Marinheiros, uma hospedaria com este título: Hotel Livre Câmbio. Quanta coisa pensa a gente conhecendo o negócio e olhando a tabuleta!

A série é nesse ramo curiosíssima. Há o Locomotora, que é naturalmente rápido; há Os Dois Destinos, há a Lua de Prata, há o irônico Fidelidade, tendo pintado uma senhora a pender dos lábios de um senhor... Quantos!

Na Rua Dr. João Ricardo há um restaurante com este título: Restauração da Vitória.

-Por que «restauração da vitória»? indagamos do proprietário, o Sr. Colaço.

-Eu explico, diz ele. Há cerca de 30 anos, os espanhóis invadiram a ilha Terceira. Como eram poucos os soldados para repelirem o castelhano, os lavradores soltaram todos os touros bravos na praia da Vitória e dessa maneira os espanhóis fugiram. Os paraguaios resistiram também tanto tempo por causa dos touros importados da Argentina.

-Tudo tem uma explicação neste mundo!

-All right!

All right, sim! Os títulos das casas, por mais absurdos, como Filhos do Céu, por exemplo, têm uma explicação que convence. Há os nefelibatas, os patrióticos 19 de Janeiro, d. Carlos; o diplomático União Ibérica, os que engrossam uma certa classe, e até um, na Rua Frei Caneca, pertencente ao riquíssimo Pinho, cujo título é uma profunda lição filosófica. O hotel intitula-se Comércio e Arte...

Os pintores desse gênero criaram uma especialidade: são os moralistas da decadência e usam também tabuletas. Um mesmo, talvez por ter sofrido muito de cara alegre, pôs na Rua de S. Pedro este anúncio: Fulano de Tal, Pintor de Fingimentos. E realmente eles aturam tanto dos proprietários! Um deles, rapazito inteligente, era encarregado de fazer a fachada da Casa do Pinto. Fez as letras e pintou um pintainho. O proprietário enfureceu:

-Que tolice é esta?

-Um pinto.

-E que tenho eu com isso?

-O senhor não é Pinto?

-O meu nome é Pinto, mas eu sou galo, muito galo.

Pinte-me aí um galo às direitas!

E outro, encarregado de fazer as letras de uma casa de móveis, vendem-se móveis quando o negociante veio a ele:

-Você está maluco ou a mangar comigo!

-Por quê?

-Que plural é esse? Vendem-se, vendem-se... Quem vende sou eu e sem sócios, ouviu? Corte o m, ande!

As letras custam dinheiro, custam aos pobres pintores... O rapaz ficou sem o m que fizera com tanta perícia. Mas também, por que estragar? Em S. Cristóvão havia uma Pharmacia S. Cristóvão. Desapareceu. Foi a primeira que fez isso na terra, desde que há farmácias. Foram para lá outros negociantes. Como aproveitar algumas letras? Lembraram foco, e, como a Academia não chega os seus cuidados ortográficos às tabuletas, arrumaram Phoco de S. Cristóvão. Estava uma tabuleta nova só com três letras novas.

Os pintores de tabuletas resignam-se. Eles, os escritores desse grande livro colorido da cidade, têm a paciência lendária dos iluministas medievos, eles fazem parte da grande massa para que o Reclamo foi criado -são pobres. Talvez por isso, um mais ousado, de acordo com certo açougueiro antigo da Praça da Aclamação, pintando uma vez o letreiro Açougue Pai dos Pobres, pôs bem no meio uma cabeça de boi colossal, arregalando os olhos, que Homero achava belos, como o símbolo de todas as resignações...

E é decerto este o lado mais triste das tabuletas - brasões da democracia, escudos bizarros da cidade.

Visões d'ópio

-Os comedores de ópio?

Era às seis da tarde, defronte do mar. Já o sol morrera e os espaços eram pálidos e azuis. As linhas da cidade se adoçavam na claridade de opala da tarde maravilhosa. Ao longe, a bruma envolvia as fortalezas, escalava os céus, cortava o horizonte numa longa barra cor de malva e, emergindo dessa agonia de cores, mais negros ou mais vagos, os montes, o Pão de Açúcar, S. Bento, o Castelo apareciam num tranqüilo esplendor. Nós estávamos em Santa Luzia, defronte da Misericórdia, onde tínhamos ido ver um pobre rapaz eterômano, encontrado à noite com o crânio partido numa rua qualquer. A aragem rumorejava em cima a trama das grandes mangueiras folhudas, dos tamarindeiros e dos flamboyants, e a paisagem tinha um ar de sonho. Não era a praia dos pescadores e dos vagabundos tão nossa conhecida, era um trecho de Argel, de Nice, um panorama de visão sob as estrelas doiradas.

-Sim, dizia-me o amigo com quem eu estava, o éter é um vício que nos evola, um vício de aristocracia. Eu conheço outros mais brutais - o ópio, o desespero do ópio.

-Mas aqui!

-Aqui. Nunca freqüentou os chins35 das ruas da cidade velha, nunca conversou com essas caras cor de goma que param detrás do Necrotério e são perseguidos, a pedrada, pelos ciganos exploradores? Os senhores não conhecem esta grande cidade que Estácio de Sá defendeu um dia dos franceses. O Rio é o porto de mar, é cosmópolis num caleidoscópio, é a praia com a vaza que o oceano lhe traz.

Há de tudo -vícios, horrores, gente de variados matizes, niilistas36 rumaicos37, professores russos na miséria, anarquistas espanhóis, ciganos debochados. Todas as raças trazem qualidades que aqui desabrocham numa seiva delirante. Porto de mar, meu caro! Os chineses são o resto da famosa imigração, vendem peixe na praia e vivem entre a Rua da Misericórdia e a Rua d. Manuel. As 5 da tarde deixam o trabalho e metem-se em casa para as tremendas fumeries38. Quer vê-los agora?

Não resisti. O meu amigo, a pé, num passo calmo, ia sentenciando:

-Tenho a indicação de quatro ou cinco casas. Nós entramos como fornecedores de ópio. Você veio de Londres, tem um quilo, cerca de 600 gramas de ópio de Bombaim. Eu levo as amostras.

Caminhávamos pela Rua da Misericórdia àquela hora cheia de um movimento febril, nos corredores das hospedarias, à porta dos botequins, nas furnas das estalagens, à entrada dos velhos prédios em ruínas.

O meu amigo dobrou uma esquina. Estávamos no Beco dos Ferreiros, uma ruela de cinco palmos de largura, com casas de dois andares, velhas e a cair. A população desse beco mora em magotes em cada quarto e pendura a roupa lavada em bambus nas janelas, de modo que a gente tem a perene impressão de chitas festivas a flamular no alto. Há portas de hospedarias sempre fechadas, linhas de fachadas tombando, e a miséria besunta de sujo e de gordura as antigas pinturas. Um cheiro nauseabundo paira nessa ruela desconhecida.

O meu amigo pára no n.º 19, uma rótula, bate. Há uma complicação de vozes no interior, e, passados instantes, ouve-se alguém gritar:

-Que quer?

-João, João está aí?

João e Afonso são dois nomes habituais entre os chins ocidentalizados.

João não mora mais...

-Venha abrir, brada o meu guia com autoridade.

Imediatamente a rótula39 descerra-se e aparece, como tapando a fenda, uma figura amarela, cor de gema de ovo batida, com um riso idiota na face, um riso de pavor que lhe deixa ver a dentuça suja e negra.

-Que quer, senhor?

Tomamos um ar de bonomia e falando como a querer enterrar as palavras naquele crânio já trabucado.

-Chego de Londres, com um quilo de ópio, bom ópio.

-Ópio?... Nós compramos em farmácia... Rua S. Pedro...

-Vendo barato.

Os olhos do celeste arregalam-se amarelos, na amarelidão da face.

-Não compreende.

-Decida, homem...

-Dinheiro, não tem dinheiro.

Desconfiará ele de nós, não acreditará nas nossas palavras? O mesmo sorriso de medo lhe escancara a boca e lá dentro há cochichos, vozes lívidas... O meu amigo bate-lhe no ombro.

-Deixa ver a casa.

Ele recua trêmulo, agarrando a rótula com as duas mãos, dispara para dentro um fluxo cuspinhado de palavrinhas rápidas. Outras palavrinhas em tonalidades esquisitas respondem como pizzicati de instrumentos de madeira, e a cara reaparece com o sorriso emplastrado:

-Pode entrar, meu senhor.

Entramos de esguelha, e logo a rótula se fecha num quadro inédito. O n.º 19 do Beco dos Ferreiros é a visão oriental das lôbregas bodegas de Xangai. Há uma vasta sala estreita e comprida, inteiramente em treva. A atmosfera pesada, oleosa, quase sufoca. Dois renques de mesas, com as cabeceiras coladas às paredes, estendem-se até o fundo cobertas de esteirinhas. Em cada uma dessas mesas, do lado esquerdo, tremeluz a chama de uma candeia de azeite ou de álcool.

A custo, os nossos olhos acostumam-se à escuridão, acompanham a candelária de luzes até ao fim, até uma alta parede encardida, e descobrem em cada mesa um cachimbo grande e um corpo amarelo, nu da cintura para cima, corpo que se levanta assustado, contorcionando os braços moles. Há chins magros, chins gordos, de cabelo branco, de caras despeladas, chins trigueiros, com a pele cor de manga, chins cor de oca, chins com a amarelidão da cera nos círios.

As lâmpadas tremem, esticam-se na ânsia de queimar o narcótico mortal. Ao fundo um velho idiota, com as pernas cruzadas em torno de um balde, atira com dois pauzinhos arroz à boca. O ambiente tem um cheiro inenarrável, os corpos movem-se como larvas de um pesadelo e essas quinze caras estúpidas, arrancadas ao bálsamo que lhes cicatriza a alma, olham-nos com o susto covarde de coolies40 espancados. E todos murmuram medrosamente, com os pés nus, as mãos sujas:

-Não tem dinheiro... não tem dinheiro... faz mal!

Há um mistério de explorações e de horrores nesse pavor dos pobres celestes41. O meu amigo interroga um que parece ter vinte e parece ter sessenta anos, a cara cheia de pregas, como papel de arroz machucado.

-Como se chama você?

-Tchang... Afonso.

-Quanto pode fumar de ópio?

-Só fuma em casa... um bocadinho só... faz mal! Quanto pode fumar? Duzentas gramas, pouquinho... Não tem dinheiro.

Sinto náuseas e ao mesmo tempo uma nevrose de crime. A treva da sala torna-se lívida, com tons azulados. Há na escuridão uma nuvem de fumo e as bolinhas pardas, queimadas à chama das candeias, põem uma tontura na furna, dão-me a imperiosa vontade de apertar todos aqueles pescoços nus e exangues, pescoços viscosos de cadáver onde o veneno gota a gota dessora.

E as caras continuam emplastradas pelo mesmo sorriso de susto e de súplica, multiplicado em quinze beiços amarelos, em quinze dentaduras nojentas, em quinze olhos de tormento!

-Senhor, pode ir, pode ir? Nós vamos deitar; pode ir? -suplica Tchang.

Arrasto o guia, fujo ao horror do quadro. A rótula fecha-se sem rumor. Estamos outra vez num beco infecto de cidade ocidental. Os chins pelas persianas espiam-nos. O meu amigo consulta o relógio.

-Este é o primeiro quadro, o começo. Os chins preparam-se para a intoxicação. Nenhum deles tinha uma hora de cachimbo. Agora, porém, em outros lugares devem ter chegado ao embrutecimento, à excitação e ao sonho. Tenho duas casas no meu booknotes, uma na Rua da Misericórdia, onde os celestes se espancam, jogando o monte42 com os beiços rubros de mastigar folhas de bétel43, e à Rua d. Manuel n.º 72, onde as fumeries tomam proporções infernais.

Ouço com assombro, duvidando intimamente desse fervilhar de vício, de ninguém ainda suspeitado. Mas acompanho-o.

A Rua d. Manuel parece a rua de um bairro afastado. O Necrotério com um capinzal cercado de arame, por trás do qual os ciganos confabulam, tem um ar de subúrbio. Parece que se chegou, nas pedras irregulares do mau calçamento, olhando os pardieiros seculares, ao fim da cidade. Nas esquinas, onde larápios, de lenço no pescoço e andar gingante, estragam o tempo com rameiras de galho de arruda na carapinha, vêem-se pequenas ruas, nascidas dos socalcos do Castelo, estreitas e sem luz. A noite, na opala do crepúsculo, vai apagando em treva o velho casaredo.

-É aqui.

O 72 é uma casa em ruína, estridentemente caiada, pendendo para o lado. Tem dois pavimentos. Subimos os degraus gastos do primeiro, uns degraus quase oblíquos, caminhamos por um corredor em que o soalho balança e range, vamos até uma espécie de caverna fedorenta, donde um italiano fazedor de botas mastiga explicações entre duas crianças que parecem fetos saídos de frascos de álcool. Voltamos à primeira porta, junto á escada, entramos num quarto forrado imoralmente com um esfarripado tapete de padrão rubro. Aí, um homenzinho, em mangas de camisa, indaga com a voz aflautada e sibilosa:

-Os moços desejam?

-É você o encarregado?

-Para servir os moços.

-Desejamos os chins.

-Ah! isso, lá em cima, sala da frente. Os porcos estão se opiando.

Vamos aos porcos. Subimos uma outra escada que se divide em dois lances, um para o nascente outro para o poente. A escada dá num corredor que termina ao fundo numa porta, com pedaços de pano branco, à guisa de cortina. A atmosfera é esmagadora. Antes de entrar é violenta a minha repulsa, mas não é possível recuar. Uma voz alegre indaga:

-Quem está aí?

O guia suspende a cortina e nós entramos numa sala quadrada, em que cerca de dez chins, reclinados em esteirinhas diante das lâmpadas acesas, se narcotizam com o veneno das dormideiras.

A cena é de um lúgubre exotismo. Os chins estão inteiramente nus, as lâmpadas estrelam a escuridão de olhos sangrentos, das paredes pendem pedaços de ganga44 rubra com sentenças filosóficas rabiscadas a nanquim. O chão está atravancado de bancos e roupas, e os chins mergulham a plenos estos45 na estufa dos delírios.

A intoxicação já os transforma. Um deles, a cabeça pendente, a língua roxa, as pálpebras apertadas, ronca estirado, e o seu pescoço amarelo e longo, quebrado pela ponta da mesa, mostra a papeira mole, como a espera da lâmina de uma faca. Outro, de cócoras, mastigando pedaços de massa cor de azinhavre, enraivece um cão gordo, sem cauda, um cão que mostra os dentes, espumando. E há mais: um com as pernas cruzadas, lambendo o ópio líquido na ponta do cachimbo; dois outros deitados, queimando na chama das candeias as porções do sumo enervante. Estes tentam erguer-se, ao ver-nos, com um idêntico esforço, o semblante transfigurado.

-Não se levantem, à vontade!

Sussurram palavras de encanto, tombam indiferentes, esticam com o mesmo movimento a mão cadavérica para a lâmpada e fios de névoa azul sobem ao teto em espirais tênues.

Três, porém, deste bando estão no período da excitação alegre, em que todas as franquezas são permitidas. Um deles passeia agitado como um homem de negócio. É magro, seco, duro.

-Vem vender ópio? Bom, muito bom... Compro. Ópio bom que não seja de Bengala46. Compro.

Logo outro salta, enfiando uma camisola:

-Ah! ah! Traz ópio? Donde?

-Da Sonda47...

Os três grupam-se ameaçadoramente em torno de nós, estendendo os braços tão estranhos e tão molemente mexidos naquele ambiente que eu recuo como se os tentáculos de um polvo estivessem movendo na escuridão de uma caverna. Mas do outro lado ouve-se o soluço intercortado de um dos opiados. A sua voz chora palavras vagas.

-Sapan... sapan... Hanoi... tahi...

O chin magro revira os olhos:

-Ele está sonhando. Affal está sonhando. Ópio sonho... terra da gente namorada... bonito! bonito!... Deixa ver amostra.

O meu amigo recua, um corpo baqueia -o do chinês adormecido- e os outros bradam:

-Amostra... você traz amostra!

Sem perder a calma, esse meu esquisito guia mete a mão no bolso da calça, tira um pedaço de massa envolvido em folhas de dormideira, desdobra-o. Então o delírio propaga-se. O magro chin ajoelha, os outros também, raspando a massa com as unhas, mergulhando os dedos nas bocas escuras, num queixume de miséria.

-Dá a amostra... não tem dinheiro... deixa a amostra!

Miseravelmente o clamor de súplica enche o quarto na névoa parda estrelejada de hóstias sangrentas. Os chins curvam o dorso, mostram os pescoços compridos, como se os entregassem ao cutelo, e os braços sem músculos raspam o chão, pegando-nos os pés, implorando a dádiva tremenda. Não posso mais. Cãimbras de estômago fazem-me um enorme desejo de vomitar. Só o cheiro do veneno desnorteia. Vejo-me nas ruas de Tien-Tsin, à porta das cagnas48, perseguido pela guarda imperial, tremendo de medo; vejo-me nas bodegas de Cingapura, com os corpos dos celestes arrastados em djinrickchas49, entre malaios loucos brandindo kriss50 assassinos! Oh! o veneno sutil, lágrima do sono, resumo do paraíso, grande matador do oriente! Como eu o ia encontrar num pardieiro de Cosmópolis, estraçalhando uns pobres trapos das províncias da China!

Apertei a cabeça entre as mãos, abri a boca numa ânsia.

-Vamos, ou eu morro!

O meu amigo, então, empurrou os três chins, atirou-se à janela, abriu-a. Uma lufada de ar entrou, as lâmpadas tremeram, a nuvem de ópio oscilou, fendeu, esgueirou-se, e eu caí de bruços, a tremer diante dos chins apavorados e nus.

Fora, as estrelas recamavam de ouro o céu de verão...

Músicos ambulantes

Músicos ambulantes! Um momento houve em que todos desapareceram, arrastados por uma súbita voragem. Os cafés viviam sem as harpas clássicas e nas ruas, de raro em raro, um realejo aparecia. Por quê? Teriam sido absorvidos pelos cafés-cantantes, dominados pelos prodígios do gramofone51 -essa maravilha do século XIX, que não deixa de ser uma calamidade para o século XX? Não. Fora apenas uma súbita pausa tão comum na circulação das cidades.

Apesar dos gramofones nos hotéis, nos botequins, nas lojas de calçados, apesar da intensa multiplicação dos pianos, eles foram voltando, um a um ou em bandos, como as andorinhas imigrantes, e, de novo, as tascas52, as baiúcas53, os cafés, os hotéis baratos, encheram-se de canções, de vozes de violão e de guitarra e, de novo, pelas ruas os realejos, os violinos, as gaitas, recomeçaram o seu triunfo.

Há já alguns meses mesmo, uma banda alemã, com instrumentos, estantes e desafinações, atormenta as grandes praças, e eu lobriguei outro dia ainda um bicho lendário por mim julgado tão desaparecido como o megatério54 -o homem dos sete instrumentos! E esse homem, cheio de instrumentos, ia por aí fora, satisfeito e corado, como se tivesse realizado uma agradável receita.

Os músicos vieram todos! Não perde a cidade os seus foros de musical -o Rio, onde tudo é música, desde a poética música dos beijos à decisiva música de pancadaria.

Novamente à beira das calçadas a Valsa dos Sinos e O Guarani se desarticulam em velhos pianos; novamente sujeitos, que parecem cegos, rodam a manivela dos realejos, estendendo a mão súplice, numa ânsia de miséria; novamente, depois de alguns trechos da sonante Boêmia, um piresinho de metal se vos oferecerá, desejoso de níqueis. E todos vós, que sois bons, e todos vós, que gostais de música, haveis de deplorar os coitados que alegram os outros para viver na miséria, com a alma varada de dor, e todos vós sofrereis a crise de harmonia. Oh! a música!

Elle mouille comme la pluie, Elle brûle comme le feu.

Uma sanfona faria Harpagon generoso e Lady Macbeth boa.

Esta cidade é essencialmente musical; era impossível passar sem os músicos ambulantes. A música preside à nossa vida, a música auxilia até a gestação, e, consista apenas na voz como diz Sócrates, consista, pretende Aristoxeno, na voz e nos movimentos do corpo, ou reúna à voz os movimentos da alma e do corpo como pensa Teofrasto, tem os caracteres da divindade e comove as almas. Pitágoras, para que a sua alma constantemente estivesse penetrada de divindade, tocava cítara antes de dormir e logo ao acordar de novo à cítara se apegava. Asclepíades, médico, acalmava os espíritos frenéticos empregando a sinfonia, e Herófilo pretendia que as pulsações das veias se fazem de acordo com o ritmo musical. Os músicos ambulantes são os descendentes dos tocadores da flauta, caros aos deuses da Hélade.

Não pensemos, porém, romanticamente, que todos os músicos morrem de fome ao cair das ilusões. Antes pelo contrário. A biografia de cada um serve de assunto a todo o boêmio desejoso de ser feliz. Quem conhece o Saldanha, um velho português baixo, gordo e cego, que viola há mais de vinte anos com um negro também cego da ilha da Madeira, flautista emérito? Esses dois cegos eram acompanhados por um guitarrista escovado, que tocava, fazia a cobrança e ainda por cima era poeta, compunha as cançonetas. Um momento a cidade inteira cantou a sua célebre quadra:

Zás-trás, zás-trás

Malagueta no cabaz

com jeito tudo se arranja

com jeito tudo se faz



o que não o recomenda muito ao senso estético do Rio. Quando os cegos e esse zás-trás amolavam muito, lá havia sempre algum para gritar:

-Ó Lírico ambulante!

E o Saldanha, pançudo, grave, imperturbável:

-Obrigado pelo elogio!

Pois todo o pessoal enriqueceu. O negro casou em Portugal, o Zás-trás conseguiu tudo com jeito, e eu fui encontrar o Saldanha aposentado, considerado como um velho artista diante de um copo de cerveja.

-Fizemos várias tournées, disse-me ele, percorremos o Brasil, do Rio Grande ao Pará. Ajuntamos alguma coisa...

E não se trata de um caso esporádico. O resultado é geral. O José, italiano capenga, que chegou ao Rio em 1875, alugou, para não trabalhar, um piano de manivela. Em seguida, o seu espírito inventivo foi até comprar um realejo com bonecos mecânicos, entre os quais havia um de mão estendida, que engolia as moedas e punha fora outra qualquer coisa. Esse boneco, a valsa dos Sinos de Corneville, o Caballero de Gracia e o Bendengó deram-lhe uma fortuna. E José resolveu jogar, à farta, jogar forte.

Jogou tanto que teve de arranjar um sócio, personagem fantástico, que dá pela alcunha de Cavalière Midaglia.

O Cavalière gosta também da batota e principalmente do bicho. Até duas horas, dinheiro para o avestruz; nas primeiras horas da noite, cervejinha na fábrica Santa-Maria; depois, la mare dos baralhos e dados. Parece incrível que um realejo, moendo os sinos, dê dinheiro para tantos vícios. Pois José tem ainda dinheiro para ir à Itália ver Nápoles e depois voltar. Já lá foi mais de vinte vezes.

Está claro que a música, tendo por fim adoçar os costumes, não arrasta todos os seus cultores aos desvarios do monte e da roleta. Há realejos que sustentam numerosas famílias, como o do Vicente, italiano falsamente cego, que desconfia dos filhos, joga a bisca a milho nos botequins das Ruas Formosa e do Areal e já adquiriu alguns prédios; há realejos escravizadores, como o do Antônio Capenga, da estação do Mangue, que espanca os dois pequenos cobradores se por acaso deixam passar um bonde sem lhes dar nada, embora o bonde vá vazio -porque Antônio tem amantes e, à custa de sons que na sua algibeira retinem em moedas, resolveu a vida epicuristamente55 nos três princípios fundamentais: mulheres, jogo e vinho; há realejos solteiros malandros, realejos virgens prontos para a fuga.

A música chega mesmo em certos casos a harmonizar dissabores num acorde feliz. É o caso do Amaral carpinteiro. Este Amaral cortou certa vez a mão com uma enxó56. Meteu a dita mão em ataduras e resolveu nunca mais trabalhar. Ao contrário do pastor Jacó, sete anos levantou de papo para o ar compondo versinhos; dedicou-se em seguida a vender modinhas -era o Araruama. E nesse serviço descobriu-se vocações musicais.

Hoje é sumidade, é o Caruso das Ruas de S. Jorge e Conceição e não há botequim de café a três vinténs a xícara, onde a sua voz não requebre o

Olé lé lé

Candonga Sinhá.


Nas mesmas condições está o Miguel de Brito. Apesar de português, foi inferior do exército. Quando deu baixa, comprou um Gramofone para ganhar, como dizia, a vida na roça. Partiu para o Rio Bonito, alugou um salão e estava exatamente pregando um cartaz à porta, quando ouviu na casa fronteira tocar um gramofone muito mais aperfeiçoado que o seu. Era a musa da música decerto que o prevenia, desejosa de evitar um confronto desagradável. Brito arrancou o cartaz, vendeu o Gramofone, agradeceu à musa e só com sua garganta veio triunfar nas bodegas do Rio.

As bodegas, como os botequins do tom, toleram de vez em quando os músicos, com a condição de não lhes pagar nada. Em geral são sempre três -os tercetos célebres. Há na Rua do Senhor dos Passas o do Amadeu com as duas irmãs, que, por sinal, já fugiram; na Avenida Passos chefiado pelo Barradas, cego -terceto famoso, por ter percorrido todas as cidades de Espanha, de Portugal, do Chile, do Uruguai, da Argentina e do Brasil; o da fábrica de cerveja Oriente, o da cervejaria Minerva, cujo chefe, o Antônio rabequista, gosta de ser acompanhado de canto. A cervejaria enche-se de trabalhadores atraídos pela alegria dos sons. Sempre uma canção melancólica abre um hiato sentimental entre os fandangos57 e os cakewalks58.

Tanto penar, tanto sofrer.

Amor me mata,

amor me mata.

Eu vou morrer.



Ninguém morre, e um português do Minho que lá passa a noite, brada:

-Eu cá dinheiro não dou, mas se tocar a cana-verde59 pago a cerveja!

E a cana-verde conclui a canção melancólica.

Oh! Eu conheci nessas baiúcas rumorejantes, onde a populaça vive atraída pela música, até um globe-trotter! Era um veneziano de vinte e três anos, Rafael Angelo, tenor. Nos botequins em que os proprietários eram portugueses cantava o rebola a bola, nos estabelecimentos espanhóis, o caballero di gracia me llaman, e, lindo, conquistador, com olhares mortos para as mulheres, era uma delícia ouvi-lo, derreando os braços para os lados, como cansado de abraçar, a cantar:

Fra le donne tu sei la piú bella

fra le rose tu sei la piú fina

e nel cielo brillante stella

nella terra sei nata regina.



A segunda vez que me viu entre os carregadores descalços, Rafael inaugurou o seu mais belo gesto e disse-me:

-Noto a V. Exa. que isto é apenas uma extravagância boêmia. Resolvi percorrer o mundo em quatros anos, sem ter um vintém de capital. Já estive em Londres, em New York, em Chicago... Estou no Rio de Janeiro há um mês. Che bellezza.

Era o Phileas Fogg60 da cançoneta e arranjava dez a quinze mil réis diários, fora as paixões das damas.

Quase todos esses músicos ambulantes e aventureiros ganham rios de dinheiro, vivendo uma vida quase lamentável. No forro dos casacos velhos há maços de notas, nos cinturões sebentos, vales ao portador. O público pára, olha aquela tristeza, imagina no automatismo dos gestos, na face que pede, no sorriso postiço, a fome dos artistas, a miséria dos deserdados da sorte, e sonha as agonias, como nas óperas, em que os tenores morrem ao sol, sob um céu lindo, cantando.

Por trás dessa fachada há tanto interesse como no negociante mais avaro e tanta vaidade como num artista lírico mais vaidoso -porque esses músicos ambulantes, humanos como todos nós, nascidos neste mesmo século de vaidade, regulam os seus ideais entre a pretensão, o alto juízo do próprio valor e o número de moedas da coleta. Oh! a música, as árias perdidas no ruído das ruas... Alguém já assegurou que a alma do homem conhece sua natureza pelo canto. Cheguemos à suave conclusão de que conhece a natureza e o resto. De que serviria um realejo senão assegurasse ao seu possuidor, além do conhecimento da própria alma, a satisfação do estômago? Há talvez em outras terras, mais gastas e mais frias, a miséria dos músicos ambulantes, sem fogo, sem pão, caindo sob a neve, depois de uma dolorosa vida. Aqui não; os músicos prosperam, o realejo é uma instituição, e do alto azul, a harmonia bondosa da natureza, musa da vida e da alegria, derrama o consolo incomparável do calor e da luz.

Velhos cocheiros

Outro dia, ao saltar de um tílburi no antigo Largo do Paço, vi na boléia de um vis-à-vis61 pré-histórico a ventripotência colossal de um velho cocheiro. As duas mãos gorduchas à altura do peito como quem vai rezar, enfiado numa roupa esverdinhada, o automedonte62 roncava. Seria uma recordação literária ou a memória de uma fisionomia de infância? Seria o cocheiro da Safo, o irmão mais velho de Simeon, ou simplesmente um velho cocheiro que eu tivesse visto na doce idade em que todas as emoções são novas? Era difícil adivinhar. Para os cérebros cheios de literatura, a verdade obumbra-se tanto que é sempre preciso perguntar por ela como o fez Poncius Pilatos diante de Deus.

Fui para perto do vis-à-vis, bati na perna do velho. Estava feio. O ventre, um ventre fabuloso, parecia uma talha que lhe tivessem entalhado ao tronco; as pernas, sem movimento, pendiam como traves; os braços, extremamente desenvolvidos, eram quase maiores que as pernas; e a caraça vermelha, com tons violáceos, lembrava os carões alegres do Carnaval. Abriu, entretanto, uma das pálpebras com mau humor e resmungou:

-Pronto!

-Então você não me conhece mais?

-Eu não, senhor.

-Pois eu conheço a você desde menino.

Ele abriu de todo as pálpebras pesadas, um sorriso de alegre bondade passou-lhe pelo lábio.

-Saiba vossa senhoria que bem pode ser! Toda essa gente importante de hoje eu conheci meninos de colégio!

Não sei por que estava meio emocionado.

-E já fez ponto na Estrada de Ferro?

-Há vinte anos, eu e o Bamba.

Encostei-me à boléia do antigo vis-à-vis. Havia vinte anos sim, havia vinte anos que no passar pela estação de carros os meus olhos de criança se fixaram curiosamente na fisionomia jocunda63 de um velho, que já naquele tempo era velho e já naquele tempo gravemente roncava na boléia de um carro! Havia vinte anos.

É como lhe digo, afirmava ele. Conhece a filha do barão de Cotegipe? Eu vi aquela santa criatura menina. Conhece o filho do grande ministro João Alfredo? É meu amigo, dá-me dinheiro sempre que vem ao Rio. Olhe, há de conhecer o Dr. Fernando Mendes de Almeida e mais o irmão Dr. Cândido. Pois quando eu servia o pai, eles eram meninos de colégio. Há meses eu disse ao Dr. Fernando tudo isso e ele foi dar um passeio no meu carro e deu-me doces, vinho do Porto, dinheiro. Estava admirado e ria...

-Como se chama você?

-Braga, eu sou o Braga.

Pobre velho cocheiro a quem se dá como às crianças doces de confeitaria! Eu continuava encostado ao vis-à-vis, imensamente triste e com a mesma curiosidade de criança.

-Trabalho neste ofício desde 1870. Tinha vinte anos, quando comecei. Toda a minha mocidade foi acabada aqui.

-E não estás rico?!

-Rico?

Soltou uma gargalhada sonora que lhe balançou o ventre e envermelheceu mais. Os seus olhos pequenos olhavam-me da boléia com superioridade compassiva. É difícil encontrar um cocheiro de carro que tenha feito fortuna. Enriquecem os de carroça, os de caminhões. De carro, se citam dois ou três em trinta anos. O ofício, longe de tornar ágeis os corpos, faz lesões cardíacas, atrofia as pernas, hipertrofia os braços, de modo que quinze anos de boléia, de visão elevada do mundo, ao sol e à chuva, estragam e usam um homem como a ferrugem estraga o aço mais fino. O Braga era um velho trapo encharcado. Tanto ádipo64 dava-me a impressão de que o pobre velho devia ter água nos tecidos.

Eu continuava a ouvi-lo. Naquela boléia falava um cultor do quietismo, um renanista que tivesse compreendido o nirvana. Nem uma ambição, nem um ódio: apenas um sorriso de quem não se rala com a vida e vem para a rua almejando não encontrar fregueses, para dormir mais à vontade.

-Ah! Este carro! murmurei. Quanta história podia você contar. Quantas cenas de amor, quantos beijos, quantas angústias e quantos crimes!

-Este carro não; outros, ou antes, eu. Fui de cocheira, fui de casa particular e trabalhei por minha conta. Quando caiu o ministério João Alfredo fui eu quem o levou ao Paço. Agora essas coisas de beijos -noutro tempo era nas berlindas65.

-Tinha vontade de saber a sua opinião.

Ele arregalou muito os olhos.

-A respeito de beijos? Sei lá!

-Não, a respeito da Monarquia e da República.

Ele sorriu, pensou.

-A Monarquia tinha as suas vantagens. Era mais bonito, era mais solene. Não vá talvez pensar que eu sou inimigo da República. Mas recorde por exemplo um dia de audiência pública do imperador. Que bonito! Até era um garbo levar os fregueses lá. Ó Braga, onde estiveste? Fui à Boa Vista! Hoje todo o mundo entra no palácio do Catete. Não tem importância... É verdade que o Obá66 entrava no Paço. Mas era príncipe. E então para conhecer homens importantes! Não precisava saber-lhes o nome. Os ministros tinham uma farda bonita, o imperador saía de papo de tucano. Bom tempo aquele! Hoje a gente tem de suar para conhecer um ministro. Parecem-se todos com os outros homens.

-Talvez não sejam, Braga.

-Quanto às capacidades não digo nada... Mas veja. Por estar perto da secretaria é que conheço o Müller, um magro, que reforma a cidade. E de todo o ministério só ele. Se isso era possível em 1880! Depois, quer saber? A República trouxe a Bolsa, uma porção de cocheiros estrangeiros, uns gringos e ingleses de cara raspada, com uns carros que até nem eu lhes sabia o nome!

Despegou as mãos de sobre o peito.

-E vão morrendo todas as pessoas notáveis, já não há mais ninguém notável. Só restam o sr. visconde de Barbacena, o sr. marquês de Paranaguá e mais dois outros.

Houve uma longa pausa. Como este cocheiro estava do outro lado da vida! Quinze anos apenas tinham levado o seu mundo e o seu carro para a velha poeira da história! Ele falava como um eco, e estava ali, olhando o boulevard reformado, pensando nos bons tempos das missas na catedral e das moradas reais, hoje ocupadas pela burocracia republicana...

-O Braga é o mais velho cocheiro do Rio?

-Não senhor; é o Bamba, que começou em 1864.

Neste momento, outros cocheiros moços, limpos, de grandes calças abombachadas foram aproximando os carros, com vontade de saber o que retinha um cavalheiro tanto tempo a prosar com o velho. Logo se fez um barulho de rodas e de vozes.

-Ó Braga, ó velho, despacha o freguês! tem aqui um carro bom, vossa senhoria! O Braga, posso servir?

Braga cruzou outra vez as mãos no peito, com um sereno olhar indiferente. Que dor o havia de trespassar! Murmurei com pena:

-Bom, adeus, meu Braga. E onde pára o Bamba?

-Na Estrada, pára na Estrada. Às ordens do menino, respondeu ele do alto.

Já agora era impossível deixar de ver o outro, de conhecer o mais antigo cocheiro do Rio! Tomei um bonde da Central. A tarde morria em lento e vermelho crepúsculo. No céu brilhava a primeira estrela trêmula e luminosa, e os combustores acendiam a sua luz azul quando saltei na Praça da Aclamação. E foi um grande trabalho. Eu ia de carro em carro.

-Pode informar onde pára o Bamba?

Uns diziam que o Bamba caíra e fora para o hospital, outros, os moços, riam de que se fosse procurar um cocheiro inútil como o Bamba, outros asseguravam que o velho não trabalhava mais. Afinal, quase defronte da porta do Quartel, encontrei um landau67 empoeirado, desses que parecem arcas e acomodam à vontade seis pessoas.

Da boléia um mulato velho falava para um gordo ancião, muito gordo, muito estragado...

-Sabe você dizer quem é e onde está o Bamba?

O mulato riu.

-É este, patrão...

O gorduchão abriu a boca, onde faltavam os dentes.

-Já não trabalho de noite: tenho 70 anos. Não vejo. Desde 1864 que estou no serviço. Outro dia quase morro; caí da boléia. Tenho as pernas duras.

-Bamba, meu velho...

-Sou o primeiro cocheiro, o mais velho, não há nenhum mais velho...

Eu voltei-me para o mulato, interroguei-o quase em segredo:

-Mas que diabo vem ele fazer aqui, assim?

O mulato sorriu com tristeza.

-Sei lá! É o cheiro, vossa senhoria, é o cheiro! Quando a gente começa nesta vida, não pode viver sem ela... É o cheiro.

A praça vibrava numa estrepitosa animação, os combustores reverberavam em iluminações fantásticas, e, só, no céu calmo, como uma hóstia de tristeza, a velha lua esticava a triste foice do seu crescente.

Deus vos salve casa santa

onde Deus fez a morada

onde mora o bento cálix

e a hóstia consagrada.



Que sabemos nós da Epifania68? Homens de leve erudição e de fé sem vigor, andamos a sutilizar velhos textos e antigos costumes, e tanto sutilizamos que a dúvida acomete o nosso espírito e a confusão perturba a viagem dos três Reis com os vestígios das saturnais e das bodas de Caná. Nem os sacerdotes nos altares nem os eruditos em livros fartos, ninguém hoje conseguirá explicar claramente a suave aparição e a festa simples que o povo realiza, fazendo vir de alta montanha, guiados por uma estrela loira, Gaspar, Melchior e Baltasar com a oferenda de ouro, incenso e mirra para o menino que Herodes perseguirá.

Há os versículos de Mateus: «Jesus nasceu em Belém de Judá, nos tempos do rei Herodes. Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo»; sabe-se que presepe significa etimologicamente estrebaria ou jaula. Os gnósticos69 vêm, com esses dois elementos, simbólicos, confusos; os sábios indagam de mais e, enquanto estes esterilmente escrevem páginas estéreis, os povos criam a legenda suave, e a legenda perdura, cresce, aumenta, esplende numa doce apoteose de perfumes e de bem.

Os presepes são uma criação popular. Antes dos artistas de Paris e Viena, que expõem nos salões do Campo de Marte e no Kunstlerhaus, o povo criou nos presepes o anacronismo religioso, o anacronismo que, segundo la Sizeranne, é a fé; pôs, como Breughel nos Peregrinos de Emaús e Beraud na Madalena entre os Fariseus, homens de hoje nas cenas do Velho Testamento.

Os presepes, como as telas do Renascimento, são as reconstituições religiosas com a cor local contemporânea. Os psicólogos podem psicologar num reisado a alma nacional e a intensidade da crença. Cristo para os homens simples está sempre, é a perene luz salvadora. Por isso cada presepe é um mundo onde homens e animais de todas as épocas renovam anualmente a admiração de um suave milagre.

Fui ver numa das últimas noites de chuva alguns desses mundos de religião e de tradição.

É impossível para os que viram o bumba-meu-boi realizado pelo venerável Melo Morais e o belicoso Dr. Silvio Romero, quase como uma reconstituição de costumes, imaginar o número de presepes que este ano tem o Rio. Há para mais de quarenta.

Começamos pelo presepe da Rua Frei Caneca, o Centro Pastoril, que tem uma diretoria composta dos Srs. Liberato Serra, presidente honorário; Manuel Novela, presidente; mais dos Srs. Pedro Hugo, Faria, Alfredo Belfort, Manuel de Macedo, Francisco de Paula Azevedo e Raul Machado. Os ensaios do reisado realizaram-se na Rua Formosa e os diretores alugaram a sala e a primeira alcova da casa da Rua Frei Caneca apenas para que a festa redobrasse de brilho.

A sala está toda enfeitada, com dois pequenos estrados feitos de madeira, onde devem sentar a polícia e os reporters, um defronte da outro, sempre juntos e sempre adulados.

Ao fundo ergue-se o presente que toma a alcova. O céu deste ameaça chuva; grossas nuvens algodoam a sua celestial vastidão. As estrelas, entretanto, mais o sol e mais a lua, numa doce confraternização, atravessam nuvens e azul com o brilho fulgurante das malacachetas e das velas -porque são de malacachetas as estrelas, e têm por trás uma vela providencial tanto a lua como o sol.

Da montanha a pico, por caminhos aspérrimos, vêm descendo os três reis lendários com um ar açodado de beduínos em fuga, e nessa descida, os seus olhos pintados vão vendo chalets suíços, animais no pasto, militares posteriores ao império do Tetrarca70, mulherinhas gordas de avental e a luz da estrela que os guia escorrendo do céu em dois grossos fios de prata. Embaixo, no primeiro plano, há um grande movimento. De um lado, ardendo na sombra do milagre e de alguns copinhos coloridos, está o estábulo, onde se dá o mistério do nascimento de Deus; de outro, uma fachada de papel de seda, em que eu imagino ver Jerusalém, cujas portas caíram ao som das trombetas.

O Centro Pastoril tem um reisado em 3 atos, interpretado pela sras. Irma Serra, Georgina do Nascimento, Maria Fernandes, Elvira de Almeida, Elisa, Adelina, Esmeralda, Constança, Lauriana e outras meninas. Esse reisado é exatamente um auto como os fazia mestre Gil Vicente. Os personagens são o Guia, o Pastor Mestre, o Pastor, a Cigana, Diana Pastorinha, Galeguinho, Galego e Galega. O Natal é apenas o motivo da cena. Trepado na gaiola destinada à imprensa ausente, diante de gaiola policial deserta, apreciei com sabor a evolução do auto e, batendo palmas, parecia à minha alma que remontáramos quatrocentos anos, ao tempo em que d. Manuel oferecia ao Papa elefantes brancos ajaezados d'ouro e o povo acreditava com temor em Deus.

No primeiro ato trata-se da chegada dos pastores e há o canto do dia:

Salve estrela radiante

doce infante de alegria,

salve infante, salve aos homens,

e a doce Virgem Maria.



Depois a Cigana, no 2.º ato, tem o papel preponderante: esmola, pede, abre a sacola para que as oferendas caiam, entre as graçolas do Galeguinho, e no fim ficam os pastores todos sabendo que Jesus nasceu.

Mas ouço por estes montes

brandas vozes a cantar

já daqui não me vou

sem estes sons escutar.



Aí, no Centro Pastoril, a diretoria indica outros presepes. Há muitos: na Rua Frei Caneca mais dois; na Rua de Santana três, os n.os 130 e 27; na Rua Bom Jardim mais dois, em S. Diogo três, e ainda em S. Clemente, em S. Cristovão, no Estácio, em Itapagipe, em Catumbi -pobres, humildes, cheios de pompa, modestos, numa diversidade curiosa e estranha. Conto numa noite só mais de quarenta.

O reisado faz-se em geral aos sábados, mas os proprietários, que têm Deus na sala, conservam as casas abertas e iluminadas.

-Dá-me licença?

-É a casa de Deus, pode entrar.

Em alguns, senhoras e crianças olham, sonolentas, o presepe ao fundo, em outros a sala está inteiramente vazia ou os vigilantes dormem na crepitação das velas. Oh! A estética dos presepes! Que assombroso charivari71 de datas, que fonte de idéias e de observações! Em S. Clemente vem ao estábulo um batalhão francês, no da Rua de Santana, 130, há um lago com repuxo e peixes do tamanho dos reis magos, no da Rua da Imperatriz alguns caçadores e um padre conversam com S. José; em Itapagipe encontrei uma montanha suíça com uma vaqueira perto do rei Gaspar.

-Por que fazem presepes? indago.

Uns respondem que por promessa, outros sorriem e não dizem palavra. São os mais numerosos. E a galeria continua a desfilar -presepes que parecem pombais, feitos de arminho e penas de aves; presepes todos de bolas de prata com bonequinhos de biscuit; presepes armados com folhas de latão, castiçais com velas acesas e fotografias contemporâneas, tendo por lagos, pedaços de espelho e o burro da Virgem com um selim à moderna; presepes em que no meio do capim há casas de dois andares com venezianas e caras de raparigas à janela- uma infinidade inacreditável.

O mais interessante, porém, fui encontrar na praia Formosa, centro de um cordão carnavalesco de negros baianos. Essas criaturas dão-me a honra da sua amizade. O presepe está armado no quarto da sala de visitas.É inaudito, todo verde com lantejoulas de prata.

O céu, pintado por um artista espontâneo, tem, entre nuvens, sol com uma cara raspada de americano truster72, a lua, maior que o sol, a imagem da Virgem Mãe. Dois raios de filó prata bambamente pendem do azul sob o estábulo divino, iluminado a giorno. Descendo a montanha, montados em camelos, vêm os três reis magos, vestidos à turca e o rei apressado é Baltasar, o preto. Pela encosta do monte as majestades lendárias encontram, sem pasmo, ânimos imperiais quase atuais: Napoleão na trágica atitude de Santa Helena, a defunta imperatriz do Brasil, Bismarck com a sua focinheira de molosso desacorrentado, uma bailarina com a perna no ar, e um boneco de cacete, calças abombachadas e chapéu ao alto... Iluminando a agradável confusão, velas de estearina morrem em castiçais de cobre.

O grupo carnavalesco chama-se Rei de Ouros. Logo que eu apareço e das janelas escancaradas a tropa me vê, entoa a canção da entrada:

Tu-tu-tu quem bate à porta

menina vai ver quem é

é o triunfo Rei de Ouros

com a sua pastora ao pé.



Dentro move-se, numa alegria carnavalesca, o bando de capoeiras perigosos da Rua da Conceição, de S. Jorge e da Saúde. A sala tem cadeiras em roda, ornamentadas de cetim vermelho, cortinas de renda com laçarotes estridentes. As matronas espapaçam-se73 nas cadeiras, suando, e, em movimentos nervosos, agitam-se à sua vista mulatinhas de saiote vermelho, brutamontes de sapatos de entrada baixa e calção de fantasia de velho e de rei dos diabos. Há um cheiro impertinente de suor e éter floral.

-Uma calamistrança pra seu doutô! brada o Dudu, um magro, conhecido por inventar nomes engraçados, o Bruant da populaça

E a gente do reisado logo batendo palmas, pandeiros e berimbaus:

Ora venha ver o que temos di dá

garrafas de vinho, doce de araçá.



A manifestação satisfaz. Dudu leva-me quase à força para um lugar de honra e eu vejo uma mulatinha com o cabelo à Cléo de Merod, enfiada numa confusa roupagem rubra.

-Quem é aquela?

-É Etelvina. Tá servindo de porta-bandeira...

Não era necessária a explicação. O pessoal, quebrando todo em saracoteios exóticos, cantava com as veias do pescoço saltadas:

Porta-bandeira deu siná,

Deu siná no Humaitá,

porta-bandeira deu siná,

Deu síná tulou, tulou!



Aproveito a consideração do Dudu para compreender o presepe:

-Por que diabo põem vocês o retrato da imperatriz ali?

-A imperatriz era mãe dos brasileiros e está no céu.

-Mas Napoleão, homem, Napoleão?

-Então, gente, ele não foi rei do mundo? Tudo está ali para honrar o menino Deus.

-A bailarina também?

-A bailarina é enfeite.

-Guardo religiosamente esta profunda resposta.

Os do reisado cantam agora uma certa marcha que faz cócegas. Os versinhos são errados, mas íntimos e, sibilizados por aquela gente ingenuamente feroz, dão impressões de carícias:

Sussu sossega

vai dromi teu sono

está com medo diga,

quer dinheiro, tome!



Que tem Sussu com a Epifania? Nada. Essas canções, porém, são toda a psicologia de um povo, e cada uma delas bastaria para lhe contar o servilismo, a carícia temerosa, o instinto da fatalidade que o amolece, e a ironia, a despreocupada ironia do malandro nacional.

-Mas por que, continuo eu curioso, põem vocês junto do rei Baltasar aquele boneco de cacete?

-Aquele é o rei da capoeiragem. Está perto do Rei Baltasar porque deve estar. Rei preto também viu a estrela. Deus não esqueceu a gente. Ora não sei se V. S.ª conhece que Baltasar é pai da raça preta. Os negros da Angola quando vieram para a Bahia trouxeram uma dança chamada cungu, em que se ensinava a brigar. Cungu com o tempo virou mandinga e S. Bento.

-Mas que tem tudo isso?...

-Isso, gente, são nomes antigos da capoeiragem. Jogar capoeira é o mesmo que jogar mandinga.

Rei da capoeiragem tem seu lugar junto de Baltasar. Capoeiragem tem sua religião.

Abri os olhos pasmados. O negro riu.

-V. S.ª não conhece a arte? Hoje está por baixo. Valente de verdade só há mesmo uns dez: João da Sé, Tito da Praia, Chico Bolivar, Marinho da Silva, Manuel Piquira, Ludgero da Praia, Manuel Tolo, Moisés, Mariano da Piedade, Cândido Baianinho, outros... Esses «cabras» sabiam jogar mandinga como homens...

-Então os capoeiras estão nos presepes para acabar com as presepadas...

-Sim senhor. Capoeiragem é uma arte, cada movimento tem um nome. É mesmo como sorte de jogo. Eu agacho, prendo V. S.ª pelas pernas e viro - V. S.ª virou balão e eu entrei debaixo. Se eu cair virei boi. Se eu lançar uma tesoura eu sou um porco, porque tesoura não se usa mais. Mas posso arrastar-lhe uma tarrafa mestra.

-Tarrafa?

-É uma rasteira com força. Ou esperar o degas de galho, assim duro, com os braços para o ar e se for rapaz da luta, passar-lhe o tronco na queda, ou, se for arara, arrumar-lhe mesmo o bauú, pontapé na pança. Ah! V. S.ª não imagina que porção de nomes tem o jogo. Só rasteira, quando é deitada, chama-se banda, quando com força tarrafa, quando no ar para bater na cara do cabra meia-lua.

-Mas é um jogo bonito! fiz para contentá-lo.

-Vai até o auô, salto mortal, que se inventou na Bahia.

Para aquela lição tão intempestiva, já se havia formado um grupo de temperamentos bélicos. Um rapazola falou.

-E a encruzilhada?

-É verdade, não disseste nada de encruzilhada?

E a discussão cresceu. Parecia que iam brigar.

Fora, a chuva jorrava torrencial. Um relógio pôs-se a bater preguiçosamente meia-noite. As mulatinhas cantavam tristes:

Meu rei de Ouros quem te matou?

Foi um pobre caçadô.



Mas Dudu saltou para o meio da sala. Houve um choque de palmas. E diante do quarto, onde se confundia o mundo em adoração a Deus, o negro cantou, acompanhado pelo coro:

Já deu meia-noite

o sol está pendente

um quilo de carne

para tanta gente!



Oh! Suave ironia dos malandros! Na baiúca havia alegria, parati, álcool, fantasia, talvez o amor nascido de todas aquelas danças e do insuportável cheiro do éter floral.

Não havia, porém, com que comer. Diante de Jesus, que só lhes dera o dia de amanhã, a queixa se desfazia num quase riso. Um quilo de carne para tanta gente!

Talvez nem isso! Saí, deixei o último presepe.

De longe, a casinhola com as suas iluminações tinha um ar de sonho sob a chuva, um ar de milagre, o milagre da crença, sempre eterna e vivaz, saudando o natal de Deus através da ingenuidade dos pobres. Como seria bom dar-lhes de comer, ó Deus poderoso!

Como lhes daria eu um farto jantar se, como eles, não tivesse apenas a esperança de amanhã obter um quilo de carne só para mim!

Como se ouve a Missa do «Galo»

A missa do «galo» não começa precisamente à meia-noite e não tem a obrigação de acabar antes de uma da manhã. A missa só, sem galo, o divino sacrifício de que os casuístas74 espanhóis do século XIII faziam a anatomia -talvez tivesse em tempos remotos uma hora precisa, exata, confirmada pelo dogma. O galo, porém, varia e canta, ou adiantado ou com atraso. Ora, o chamar a missa do Natal de Cristo missa do galo é ainda um costume latino. Os romanos contavam as horas com uma certa poesia. Logo depois da media nocte, chamavam eles ao tempo gallicinium, hora em que o galo começa a cantar. A missa realizada, assim, após a media nocte, ficou sendo a missa do galo, e é ainda o velho e desusado gallicinium que se recorda quando os sacerdotes levantam a hóstia nos altares, e de capoeira em capoeira, sonoro e glorioso, se propaga o diálogo dos galos: Cristo nasceu! Onde? Em Belém...

Eu estava exatamente defronte da igreja de Santana, dispondo de um automóvel possante. Era a mais que alegre hora da meia-noite que alguns temperamentos românticos ainda julgam sinistra. Aquele trecho da cidade tinha um aspecto festivo, um estranho aspecto de anormalidade. Das ruas laterais vindo em fila famílias da Cidade Nova, primeiro as crianças, depois as mocinhas, às vezes ladeadas de mancebos amáveis, depois as matronas agasalhadas em fichus75; vinham marchando como quem vai para a ceifa, grossos machacares, de chapelão e casaco grosso; vinham gingando negrinhas de vestido gomado; «cabras» de calça bombacha, velhas pretas embrulhadas em xales. Era como uma série de procissões em que as irmandades se separavam segundo as classes. No adro, repleto, havia uma mistura de populaça em festa. Grupos de rapazes berravam graças, bondes paravam despejando gente, vendedores ambulantes apregoavam doces e comestíveis; todos os rostos abriam-se em fraterna alegria, e naquela sarabanda humana, naquele vozear estonteante, uma nota predominava -a do namoro. Os rapazes estavam ali para namorar, para aproveitar a ocasião. Os encontros tinham sido de antemão combinados. Quando um grupo familiar encontrava um rapaz o -Oh! Seu Antenor! Também por aqui! a resposta: Oh! D. Belinha, então também veio! - Soavam como quem diz: Oh! Não faltaste... Havia de resto pares de braço dado, meninas que murmuravam frases ao lado dos mocetões, sob o olhar protetor das mamães... A missa era um alegre pretexto e, se na classe burguesa o namoro tinha uma cor tão suave, nas outras irmandades o entusiasmo era maior. Entrei no templo atrás de um grupo de mocinhos entusiasmados, um dos quais teimava que havia de apertar, enquanto outro, com uma carta de alfinetes, asseverava estar disposto a pregar alguns pares. O grupo ria, a igreja estava repleta, quente, ardendo na nave de humanidade pouco crente, ardendo de doçura superior nas velas dos altares. Mocinhas irrequietas, rindo, abriam passagem; rapazes lamentavelmente espirituosos estabeleciam o arrocho, empurrando o corpo como quem vai dançar o cakewalk e pretalhões de pastinhas76, erguendo alto os chapéus de palha, violentavam a massa com os cotovelos para chegar ao altar-mor. No ar parado um sino bateu. Houve uma interjeição prolongada da multidão, ia começar a missa. Era a missa do galo nos bairros...

Saí suando, tomei o automóvel, nervoso. Ao lado da máquina, na aglomeração, uma voz de mulher fez de repente:

-Ai!

-Que é? Que foi? bradou um vozeirão formidável.

-Cocoricó! cantou um gaiato.

E entre as gargalhadas de mofa escandalosa, o automóvel rodou.

Parei na catedral. A enchente era tão colossal que havia gente até na rua.

O templo ardia em luzes. De fora viam-se os sacerdotes de sobrepeliz77 dourada, a candelária luminosa, os santos, e toda a igreja vibrava das graves harmonias do órgão, realçadas por um coro abaritonado. A turba tinha outro aspecto. Senhoras de chapéu, cavalheiros sempre com esse amável ar conquistador que o homem se arroga nas festas públicas, de mistura com fuzileiros navais, marinheiros alcoolizados, caixeirinhos do comércio de roupa nova e com os olhos cheios de sono.

Toda essa gente conseguia entrar e sair, fazer como um torvelinho à porta, onde duas senhoras vestidas de negro, esticando uma sacola, diziam maquinalmente: -Para a cera! Para a cera! Ninguém dava, ninguém se ralava. O sopro de excitação dos sentidos parecia recrudescido pelo sopro musical do orgão. Figuras que saíam da igreja vinham algumas congestas; as que entravam tinham uma violência aguçada no olhar. Na rua, como que farejando, sujeitos iam e vinham entre os grupos de malandros ébrios, de negros de capa no braço com um ar de copeiros de casa rica, de mulheres conversadeiras. Encontro um repórter de jornal.

-Oh! Tu também! Que pândega, filho! Mas espera...

Indagou com o olhar a rua, sorriu, apertou-me o braço, apressado:

-Até logo.

Dou de frente com um bando de gente de teatro. Uma das atrizes assegura:

-Estou com os braços doendo...

E logo depois, deixando a atriz, encontro o protetor.

-Viste-a por aí? Olha só aquela família com crianças. Só nesta terra! Eu não! Ceei com meus filhos: às dez horas tudo na cama, e às onze deixei de ser pai-de-família.

-Muito bem.

Era a missa do galo na cidade... Que tinha eu? Desgosto? Tristeza? Dor de cabeça? Sei lá! Despedi-me do ex-pai-de-família, tomei de novo o automóvel que logo deslizou pela Rua da Assembléia para cair numa vertiginosa carreira pela Avenida Central.

-Que é aquilo?

-É a missa do convento da Ajuda.

Saltei. A rua estava negra de gente. Os focos elétricos da Avenida mais de sombra enchiam aquele canto -a porta tão triste onde a turba se acotovelava.

Um sujeito valente pisou três ou quatro pés, barafustou. Acompanhei-o. Era a missa lá dentro imersa em tristeza infinda. Até os altares pareciam mais agourentos, até as imagens guardavam na face uma dor mais amarga. E a missa trespassava a alma, porque, enquanto o sacerdote ia e vinha no altar, por trás, na sombra, perpetuamente na sombra, morta, enterrada, perdida para o mundo, a voz das monjas varava o ar como o som de um cristal quebrado, retorcia-se no sacrifício do louvor do deus que nascera de um seio humano, espiralava como uma contorção histérica, soluçava cantando...

Ia mais adiante, mas na minha frente um latagão bocejou:

-Que cacetada!

-É verdade, vamo-nos, respondeu a companheira.

-Ainda temos tempo de ir a Copacabana.

Consultou o relógio e começou a sair, imprimindo tal movimento à massa de gente, que eu, com outros mais, de recuar tanto, me achei de novo na porta triste e humilde.

-Ó José, vamos a Copacabana?

-Anda daí.

Copacabana devia ser divertido. Tomei de novo o automóvel e disse ao chauffeur:

-Para Copacabana.

Naquele delicioso percurso da Avenida Beira-Mar, toda ensopada de luz elétrica, outros automóveis de toldo arriado, outros carros, outras conduções corriam na mesma direção. Homens espapaçados nas almofadas davam vivas, mulheres de grandes chapéus estralejavam risos, era uma estrepitosa e inédita corrida para Cítera78. Quando, no fim da avenida, os automóveis seguiram pelas antigas ruas, cada encontro de bonde era uma catástofre. Os tramways, apesar de comboiarem três carros, iam com gente até aos tejadilhos79, e essa gente furiosa, numa fúria que lembrava bem a vertigem de Dionísios, berrava, apostrofava, atirava bengaladas num despejo de corpos e de conveniências. Entretanto, pelas mesmas ruas, a corrida aumentava e era uma disparada louca entre vociferações, sons de corneta, tren-ten-tens de bondes, estalar de chicote. Quando passamos o túnel num fracasso de metralha e demos nos campos de Copacabana, a velocidade foi vertiginosa, e era apenas vagamente que se divisavam, fugindo à sanha dos fon-fons, ao estrépito das rodas, a linha de fiéis da redondeza marginando o capinzal e, à esquerda, num diadema de estrelas, a iluminação da Igrejinha. Recostei-me. O automóvel saltava como um orango ébrio, no piso mau. De repente fez uma curva e entrou numa rua cheia de gente, de carros, de outros automóveis. Estávamos no grande sítio.

-É aqui?

-É.

Cerca de três mil pessoas -pessoas de todas as classes, desde a mais alta e a mais rica à mais pobre e à mais baixa, enchia aquele trecho, subia promontório acima. E o aspecto era edificante. Grupos de rapazes apostavam em altos berros subir à igreja pela rocha; mulheres em desvario galgavam a correr por outro lado, patinhando a lama viscosa. Todos os trajes, todas as cores se confundiam num amálgama formidável, todos os temperamentos, todas as taras, todos os excessos, todas as perversões se entrelaçavam. Quis notar o elemento predominante. Num trecho havia mais pretas com soldados. Adiante logo, o domínio era de gente de serviço braçal, um pouco mais longe a tropa se fazia de rapazelhos do comércio e, se dávamos um passo, outro grupo de mocinhas com senhores conquistadores se nos antolhava. Todo esse pessoal gritava.

Logo na subida encontrei um meninote engolindo uns restos de vinho do Porto pelo gargalo da garrafa. Em meio do caminho um grupo do Clube dos Democráticos, de guarda-chuva branco e preto, tocava guitarras e assobios.

De todos os lados partiam cantos de galo. Os cocoricós clássicos vinham finos, grossos, roufenhos, em falsete: -Cocoricó! Cocoricô!

-Já ouviste cantar o galo?

-Pois hoje não é a missa dele?

-Cocoricó! pega ele pra capar!

-Pega!

A igrejinha estava toda iluminada exteriormente à luz elétrica. Defronte de sua fachada lateral haviam armado um botequim. A turba arfava aí, presa entre a bodega e o templo. Quando eu passei, porém, a bodega fora devorada e bebida. Os caixeiros tinham trepado para os balcões no desejo de apreciar a cena. Fiz um violento esforço para entrar na igreja. À porta havia uma verdadeira luta e dentro ninguém se podia mexer. Divisei apenas como indicação humilde do dia -um presepe no lado esquerdo, um presepe com pano de fundo representando fielmente um trecho de Cascadura, e estava assim embebido, quando de repente estalou o rolo, o rolo rápido e habitual. Um sujeito apanhara uma bengalada, levantara o guarda-chuva, uma menina gritara: -Nunca mais venho à missa! E no roldão da turba medrosa, de novo caí na ladeira, ouvindo os cocoricós, as chufas, as graças sórdidas:

-Pega pra capar! Cocoricó! Já ouviste o galo?

No céu cor de chumbo, ameaçador de temporais, espocavam girândolas de foguetes. E todo aquele trecho, mais aquecido, mais feroz, mais cheio de gente redobrava de deboche, de frenesi pândego, de loucura, quebrando copos, cantando, assobiando, praguejando, ganindo.

Atirei-me dentro do automóvel, exausto. A máquina disparou outra vez, lutando agora contra a massa dos carros, dos automóveis, dos tramways que chegavam.

-Onde é a Lapa do Desterro?

-Quer ir lá? É uma igreja de gente pobre. E na Lapa.

-Pois vamos lá.

O automóvel quebrou pela Rua da Lapa, parou defronte da velha igreja. Eram duas horas da manhã. Havia à porta a mesma matula de homens endomingados à espera da conquista, a mesma sarabanda de sirigaitas. Entrei. O tapete do templo, velho, esfarripado, tinha por cima, em alguns trechos, folhas de mangueira. No altar-mor, dos lados, entre panos azuis, ardiam dois bicos auer, e aquela luz azul como transfigurava o rebátulo, os acessórios, os ouros despolidos. A concorrência era menor, na nave, mulheres de xale formavam roda conversando. Andei por ali tristemente. Ao sair, porém, vi de joelhos um homem.

De joelhos? Na missa do galo? Deus! Quem seria aquele pobre coitado? Aproximei-me. Era um rapaz -teria no máximo vinte anos. Ao lado o seu chapelão de coco repousava junto à grossa bengala. No seu corpo ajustava-se demais um grosso fato de inverno aldeão. De mãos postas, a face ingênua voltada para o altar, esse ser, numa noite báquica, era tão anormal, tão extraordinário, que eu cheguei bem perto, olhei bem, fui ao ponto de curvar-me para lhe espiar os olhos. O pobre sobressaltou-se.

-Meu senhor!

-Que está você a fazer aí?

-Que estava? Ah? Perdão... Estava a rezar, estava a pedir ao Menino Deus que dê saúdinha aos pais lá na terra e que me proteja.

-Donde é você?

-Saberá V. S.ª que do Douro, sim senhor.

Falava de joelhos, a sorrir para mim; pobre alma ingênua e pura de aldeia, pobre alma que se ia putrefazer na grande cidade, único coração que adorara Deus entre as dez mil pessoas vistas por mim!

Oh! Tive um ímpeto, o desejo de abraçá-lo, a sensação de quem, após uma longa desilusão, sente viva no abismo fundo a flor maravilhosa. Mas já em torno se fazia roda de ociosos, já um sujeito surgira com um riso de troça.

-Pois faz muito bem. Adeus.

-Adeus, meu senhor!

-E continuou -ó coisa incrível!- de joelhos, voltado para Deus, lembrando a sua aldeia, lembrando os paizinhos, pedindo o bem -enquanto pela cidade inteira as ceatas e as pândegas desencadeavam os ímpetos desaçaimados80...

Oh! Abre ala!

Que eu quero passá

Estrela d'Alva

Do Carnavá!



Era em plena Rua do Ouvidor. Não se podia andar. A multidão apertava-se, sufocada. Havia sujeitos congestos, forçando a passagem com os cotovelos, mulheres afogueadas, crianças a gritar, tipos que berravam pilhérias. A pletora da alegria punha desvarios em todas as faces. Era provável que do Largo de S. Francisco à Rua Direita dançassem vinte cordões e quarenta grupos, rufassem duzentos tambores, zabumbassem cem bombos, gritassem cinqüenta mil pessoas. A rua convulsionava-se como se fosse fender, rebentar de luxúria e de barulho. A atmosfera pesava como chumbo. No alto, arcos de gás besuntavam de uma luz de açafrão as fachadas dos prédios. Nos estabelecimentos comerciais, nas redações dos jornais, as lâmpadas elétricas despejavam sobre a multidão uma luz ácida e galvânica, que enlividescia e parecia convulsionar os movimentos da turba, sob o panejamento multicolor das bandeiras que adejavam sob o esfarelar constante dos confetti, que, como um irisamento do ar, caíam, voavam, rodopiavam. Essa iluminação violenta era ainda aquecida pelos braços de luz auer, pelas vermelhidões de incêndio e as súbitas explosões azuis e verdes dos fogos de Bengala; era como que arrepiada pela corrida diabólica e incessante dos archotes e das pequenas lâmpadas portáteis. Serpentinas riscavam o ar; homens passavam empapados d'água, cheios de confetti; mulheres de chapéu de papel curvavam as nucas à etila81 dos lança-perfumes, frases rugiam cabeludas, entre gargalhadas, risos, berros, uivos, guinchos. Um cheiro estranho, misto de perfume barato, fartum82, poeira, álcool, aquecia ainda mais o baixo instinto de promiscuidade. A rua personalizava-se, tornava-se uma e parecia, toda ela policromada de serpentinas e confetti, arlequinar o pincho da loucura e do deboche. Nós íamos indo, eu e o meu amigo, nesse pandemônio. Atrás de nós, sem colarinho, de pijama, bufando, um grupo de rapazes acadêmicos, futuros diplomatas e futuras glórias nacionais, berrava furioso a cantiga do dia, essas cantigas que só aparecem no Carnaval:

Há duas coisa

que me faz chorá

é nó nas tripa

e bataião navá!


De repente, numa esquina, surgira o pavoroso abre-alas, enquanto, acompanhado de urros, de pandeiros, de xequerês83, um outro cordão surgia.

Sou eu! Sou eu!

Sou eu que cheguei aqui

sou eu Mina de Ouro

trazendo nosso Bogari.


Era intimativo, definitivo. Havia porém outro. E esse cantava adulçorado:

Meu beija-flor

pediu para não contar

o meu segredo

a Iaiá.

Só conto particular.

Iaiá me deixe descansar

Rema, rema, meu amor

Eu sou o rei do pescador.


Na turba compacta o alarma correu. O cordão vinha assustador. A frente um grupo desenfreado de quatro ou cinco caboclos adolescentes com os sapatos desfeitos e grandes arcos pontudos corria abrindo as bocas em berros roucos. Depois um negralhão todo de penas, com a face lustrosa como piche, a gotejar suor, estendia o braço musculoso e nu sustentando o tacape de ferro. Em seguida gargolejava o grupo vestido de vermelho e amarelo com lantejoulas d'ouro a chispar no dorso das casacas e grandes cabeleiras de cachos, que se confundiam com a epiderme num empastamento nauseabundo. Ladeando o bolo, homens em tamancos ou de pés nus iam por ali, tropeçando, erguendo archotes, carregando serpentes vivas sem os dentes, lagartos enfeitados, jabutis aterradores com grandes gritos roufenhos.

Abriguei-me a uma porta. Sob a chuva de confetti, o meu companheiro esforçava-se por alcançar-me.

-Por que foges?

-Oh! Estes cordões! Odeio o cordão.

-Não é possível.

-Sério!

Ele parou, sorriu:

-Mas que pensas tu? O cordão é o carnaval, o cordão é vida delirante, o cordão é o último elo das religiões pagãs. Cada um desses pretos ululantes tem por sob a belbutina84 e o reflexo discrômico das lantejoulas, tradições milenares; cada preta bêbada, desconjuntando nas tarlatanas85 amarfanhadas os quadris largos, recorda o delírio das procissões em Biblos pela época da primavera e a fúria rábida das bacantes. Eu tenho vontade, quando os vejo passar zabumbando, chocalhando, berrando, arrastando a apoteose incomensurável do rumor, de os respeitar, entoando em seu louvor a «prosódia» clássica com as frases de Píndaro -salve grupos floridos, ramos floridos da vida...

Parei a uma porta, estendo as mãos.

-É a loucura, não tem dúvida, é a loucura. Pois é possível louvar o agente embrutecedor das cefalgias e do horror?

-Eu adoro o horror. É a única feição verdadeira da humanidade. E por isso adoro os cordões, a vida paroxismada, todos os sentimentos tendidos, todas as cóleras a rebentar, todas as ternuras ávidas de torturas.

Achas tu que haveria carnaval se não houvesse os cordões? Achas tu que bastariam os préstitos idiotas de meia dúzia de senhores que se julgam engraçadíssimos ou esse pesadelo dos três dias gordos intitulado -máscaras de espírito? Mas o Carnaval teria desaparecido, seria hoje menos que a festa da Glória ou o «bumba-meu-boi» se não fosse o entusiasmo dos grupos da Gamboa, do Saco, da Saúde, de S. Diogo, da Cidade Nova, esse entusiasmo ardente, que meses antes dos três dias vem queimando como pequenas fogueiras crepitantes para acabar no formidável e total incêndio que envolve e estorce a cidade inteira. Há em todas as sociedades, em todos os meios, em todos os prazeres, um núcleo dos mais persistentes, que através do tempo guarda a chama pura do entusiasmo. Os outros são mariposas, aumentam as sombras, fazem os efeitos.

Os cordões são os núcleos irredutíveis da folia carioca, brotam como um fulgor mais vivo e são antes de tudo bem do povo, bem da terra, bem da alma encantadora e bárbara do Rio.

Quantos cordões julgas que há da Urca ao Caju? Mais de duzentos! E todos, mais de duas centenas de grupos, são inconscientemente os sacrários da tradição religiosa da dança, de um costume histórico e de um hábito infiltrado em todo o Brasil.

-Explica-te! bradei eu, fugindo para outra porta, sob uma avalanche de confetti e velhas serpentinas varridas de uma sacada.

Atrás de mim, todo sujo, com fitas de papel velho pelos ombros, o meu companheiro continuou:

-Eu explico. A dança foi sempre uma manifestação cultual. Não há danças novas; há lentas transformações de antigas atitudes de culto religioso. O bailado clássico das bailarinas do Scala e da Ópera tem uma série de passos do culto bramânico, o minueto é uma degenerescência da reverência sacerdotal, e o cakewalk e o maxixe86, danças delirantes, têm o seu nascedouro nas correrias de Dionísios e no pavor dos orixalás da África. A dança saiu dos templos; em todos os templos se dançou, mesmo nos católicos.

O meu amigo falava intercortado, gesticulando. Começava desconfiar da sua razão. Ele, entretanto, esticando o dedo, bradava no torvelinho da rua:

-O Carnaval é uma festa religiosa, é o misto dos dias sagrados de Afrodita e Dionísios, vem coroado de pâmpanos87 e cheirando a luxúria. As mulheres entregam-se; os homens abrem-se; os instrumentos rugem; estes três dias ardentes, coruscantes são como uma enorme sangria na congestão dos maus instintos. Os cordões saíram dos templos! Ignoras a origem dos cordões? Pois eles vêm da festa de N. Sª do Rosário, ainda nos tempos coloniais. Não sei por que os pretos gostam da N. Sª do Rosário... Já naquele tempo gostavam e saíam pelas ruas vestidos de reis, de bichos, pajens, de guardas, tocando instrumentos africanos, e paravam em frente à casa do vice-rei a dançar e cantar. De uma feita, pediram ao vice-rei um dos escravos para fazer de rei. O homem recusou a lisonja que dignificava o servo, mas permitiu os folguedos. E estes folguedos ainda subsistem com simulacros de batalha, e quase transformados, nas cidades do interior. Havia uma certa conexão nas frases do cavalheiro que me acompanhava; mas, cada vez mais receoso da apologia, eu andava agora quase a correr. Tive, porém, de parar. Era o «Grêmio Carnavalesco Destemidos do lnferno», arrastando seis estandartes cobertos de coroas de louro. Os homens e as mulheres, vestidos de preto, amarelo e encarnado, pingando suor, zé-pereiravam88:

Os roxinóis estão a cantar

por cima do carramanchão

os Destemidos do Inferno

tenho por eles paixão.



E logo vinha a chula:

Como és tão linda!

Como és formosa!

Olha os destemidos

no galho da rosa.



-Como é idiota!

-É admirável. Os poetas simbolistas são ainda mais obscuros. Ora escuta este, aqui ao lado.

Vinte e sete bombos e tambores rufavam em torno de nós com a fúria macabra de nos desparafusar os tímpanos. Voltei-me para onde me guiava o dedo conhecedor do Píndaro daquele desespero e vi que cerca de quarenta seres humanos cantavam com o lábio grosso, úmido de cuspo, estes versos:

Três vezes nove

vinte e sete

bela morena

me empresta seu leque

eu quero conhecer

quem é o treme terra?

No campo de batalha

repentinos dá sinal da guerra.



Entretanto, os Destemidos tinham parado também. Vinham em sentido contrário, fazendo letras complicadas pela rua forrada de papel policromo, sob a ardência das lâmpadas e dos arcos, o grupo da «Rainha do Mar» e o grupo dos «Filhos do Relâmpago do Mundo Novo». Os da Rainha cantavam em bamboleios de onda:

Moreninha bela

hei de te amar

sonhando contigo

nas ondas do mar.



Os do Relâmpago, chocalhando chocalhos, riscando xequedês, berravam mais apressados:

No triná das ave

vem rompendo a aurora

ela de saudades

suspirando chora.

Sou o Ferramenta

vim de Portugá

o meu balão

Chama Nacioná.



Senhor Deus! Era a loucura, o pandemônio do barulho e da sandice. O fragor porém aumentava, como se concentrando naquele ponto, e, esticando os pés, eu vi por trás da «Rainha do Mar» uma serenata, uma autêntica serenata com cavaquinhos, violões, vozes em ritornelo89 sustentando fermatas90 langorosas. Era a «Papoula do Japão»:

Toda a gente pressurosa

procura flor em botão

é uma flor recém-nascida

a papoula do Japão

docemente se beijava

uma... rola

atraída pelo aroma

da... papoula...



-Vamos embora. Acabo tendo uma vertigem.

-Admira a confusão, o caos ululante. Todos os sentimentos todos os fatos do ano reviravolteiam, esperneiam, enlanguescem, revivem nessas quadras feitas apenas para acertar com a toada da cantiga. Entretanto, homem frio, é o povo que fala. Vê o que é para ele a maior parte dos acontecimentos.

-Quantos cordões haverá nesta rua?

-Sei lá -quarenta, oitenta, cem, dançando em frente à redação dos jornais. Mas, caramba! olha o brilho dos grupos, louva-lhes a prosperidade. O cordão da Senhora do Rosário passou ao cordão de Velhos. Depois dos Velhos os Cucumbis. Depois dos Cucumbis os Vassourinhas. Hoje são duzentos.

-É verdade, com a feição feroz da ironia que esfaqueia os deuses e os céus -fiz eu recordando a frase apologista.

-Sim, porque a origem dos cordões é o Afoxé91 africano, em que se debocha a religião.

-O Afoxé? insisti, pasmado.

-Sim, o Afoxé. É preciso ver nesses bandos mais do que uma correria alegre -a psicologia de um povo. O cordão tem antes de tudo o sentimento da hierarquia e da ordem.

-A ordem na desordem?

-É um lema nacional. Cada cordão tem uma diretoria. Para as danças há dois fiscais, dois mestres-sala, um mestre de canto, dois porta-machados, um achinagú ou homem da frente, vestido ricamente. Aos títulos dos cordões pode-se aplicar uma das leis de filosofia primeira e concluir daí todas as idéias dominantes na populaça. Há uma infinidade que são caprichosos e outros teimosos. Perfeitamente pessoal da lira: -Agora é capricho! Quando eu teimo, teimo mesmo!

Nota depois a preocupação de maravilhar, com ouro, com prata, com diamantes, que infundem o respeito da riqueza -Caju de Ouro, Chuveiro de Ouro, Chuva de Prata, Rosa de Diamantes, e às vezes coisas excepcionais e únicas- Relâmpago do Mundo Novo. Mas o da grossa população é a flor da gente, tendo da harmonia a constante impressão das gaitas, cavaquinhos, dos violões, desconhecendo a palavra, talvez apenas sentindo-a como certos animais que entendem discursos e sofrem a ação dos sons. Há quase tantos cordões intitulados Flor e Harmonia, como há Teimosos e Caprichosos. Um mesmo chama-se Flor da Harmonia, como há outro intitulador Flor do Café.

-Não te parece? Vai-se aos poucos detalhando a alma nacional nos estandartes dos cordões. Oliveira Gomes, esse ironista sutil, foi mais longe, estudou-lhes a zoologia. Mas, se há Flores, Teimosos, Caprichosos e Harmonias, os que querem espantar com riquezas e festas nunca vistas, há também os preocupados com as vitórias e os triunfos, os que antes de sair já são Filhos do Triunfo da Glória, Vitoriosos das Chamas, Vitória das Belas, Triunfo das Morenas.

-Acho gentil essa preocupação de deixar vencer as mulheres.

-A morena é uma preocupação fundamental da canalha. E há ainda mais, meu amigo, nenhum desses grupos intitula-se republicano, Republicanos da Saúde, por exemplo. E sabe por quê? Porque a massa é monarquista. Em compensação abundam os reis, as rainhas, os vassalos, reis de ouro, vassalos da aurora, rainhas do mar, há patriotas tremendos e a ode ao Brasil vibra infinita.

Neste momento tínhamos chegado a uma esquina atulhada de gente. Era impossível passar. Dançando e como que rebentando as fachadas com uma «pancadaria» formidável, estavam os do «Prazer da Pedra Encantada» e cantavam:

Tanta folia, Nenê!

Tanto namoro;

a «Pedra Encantada», ai! ai!

Coberta de ouro!



E o coro, furioso:

Chegou o povo, Nenê Floreada

É o pessoal, ai! ai!

Da «Pedra Encantada».



Mas a multidão, sufocada, ficava em derredor da «Pedra» entaipada por outros quatro cordões que se encontravam numa confluência perigosa. Apesar do calor, corria um frio de medo; as batalhas de confetti cessavam; os gritos, os risos, as piadas apagavam-se, e só, convulsionando a rua, como que sacudindo as casas, como que subindo ao céus, o batuque confuso, epiléptico, dos atabaques, «xequedés», pandeiros e tambores, os pancadões dos bombos, os urros das cantigas berradas para dominar os rivais, entre trilos de apitos, sinais misteriosos cortando a zabumbada delirante como a chamar cada um dos tipos à realidade de um compromisso anterior. Eram a «Rosa Branca», negros lantejoulantes da Rua dos Cajueiros, os «Destemidos das Chamas», os «Amantes do Sereno» e os «Amantes do Beijaflor»! Os negros da «Rosa», abrindo muito as mandíbulas, cantavam:

No Largo de S. Francisco

quando a corneta tocou

era o triunfo «Rosa Branca»

pela Rua do Ouvidô.



Os «Destemidos», em contraposição, eram patriotas:

Rapaziada, bate,

bate com maneira

vamos dar um viva

à bandeira brasileira


Os «Amantes do Sereno», dengosos, suavizavam:

Aonde vais, Sereno

aonde vais, com teu amor?

Vou ao Campo de Santana

ver a batalha de flô.



E no meio daquela balbúrdia infernal, como uma nota ácida de turba que chora as suas desgraças divertindo-se, que soluça cantando, que se mata sem compreender, este soluço mascarado, esta careta d'Arlequim choroso elevava-se do «Beija-Flor»:

A 21 de janeiro

o «Aquidabã» incendiou

explodiu o paiol de pólvora

com toda gente naufragou



E o coro:

Os filhinhos choram

pelos pais queridos.

as viúvas soluçam

pelos seus maridos.



Era horrível. Fixei bem a face intumescida dos cantores. Nem um deles sentia ou sequer compreendia a sacrílega menipéia92 desvairada do ambiente, Só a alma da turba consegue o prodígio de ligar o sofrimento e o gozo na mesma lei de fatalidade, só o povo diverte-se não esquecendo as suas chagas, só a populaça desta terra de sol encara sem pavor a morte nos sambas macabros do Carnaval.

-Estás atristado pelos versos do «Beija-Flor»? Há uma porção de grupos que comentam a catástofre. Ainda há instantes passou a «Mina de Ouro». Sabes qual é a marcha dessa sociedade? Esta sandice tétrica:

Corremos, corremos

povo brasileiro

para salvar do «Aquidabâ»

os patriotas marinheiros.



Isto no carnaval quando todos nós sentimos irreparável a desgraça. Mas o cordão perderia a sua superioridade de vivo reflexo da turba se não fosse esse misto indecifrável de dor e pesar. Todos os anos as suas cantigas comemoram as fatalidades culminantes.

Neste momento, porém, os «Amantes de Sereno» resolveram voltar. Houve um trilo de apito, a turba fendeu-se. Dois rapazinhos vestidos de belbutina começaram a fazer «letra» com grandes espadas de pau prateado, dando pulos quebrando o corpo. Depois, o achinagú ou homem da frente, todo coberto de lantejoulas, deu uma volta sob a luz clara da luz elétrica e o bolo todo golfou -diabos, palhaços, mulheres, os pobres que não tinham conseguido fantasias e carregavam os archotes, os fogos de bengala, as lâmpadas de querosene. A multidão aproveitou o vazio e precipitou-se. Eu e meu amigo caímos na corrente impetuosa.

Oh! sim! ele tinha razão! O cordão é o carnaval, é o último elo das religiões pagãs, é bem o conservador do sagrado dia do deboche ritual; o cordão é a nossa alma ardente, luxuriosa, triste, meio escrava e revoltosa, babando lascívia pelas mulheres e querendo maravilhar, fanfarrona, meiga, bárbara, lamentável...

Toda a rua rebentava no estridor dos bombos. Outras canções se ouviam. E, agarrado ao braço do meu amigo, arrastado pela impetuosa corrente aberta pela passagem dos «Amantes do Sereno», eu continuei rua abaixo, amarrado ao triunfo e à fúria do cordão!...

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