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Três aspectos da miséria

As mariposas do luxo

-Olha, Maria...

-É verdade! Que bonito!

As duas raparigas curvam-se para a montra, com os olhos ávidos, um vinco estranho nos lábios.

Por trás do vidro polido, arrumados com arte, entre estatuetas que apresentam pratos com bugingangas de fantasia e a fantasia policroma de coleções de leques, os desdobramentos das sedas, das plumas, das guipures93, das rendas.

É a hora indecisa em que o dia parece acabar e o movimento febril da Rua do Ouvidor relaxa-se, de súbito, como um delirante a gozar os minutos de uma breve acalmia. Ainda não acenderam os combustores, ainda não ardem a sua luz galvânica os focos elétricos. Os relógios acabaram de bater, apressadamente, seis horas. Na artéria estreita cai a luz acinzentada das primeiras sombras -uma luz muito triste, de saudade e de mágoa. Em algumas casas correm com fragor as cortinas de ferro. No alto, como o teto custoso do beco interminável, o céu, de uma pureza admirável, parecendo feito de esmaltes translúcidos superpostos, rebrilha, como uma jóia em que se tivessem fundido o azul de Nápoles, o verde perverso de Veneza, os ouros e as pérolas do Oriente.

Já passaram as professional beauties, cujos nomes os jornais citam; já voltaram da sua hora de costureiro ou de joalheiro as damas do alto tom; e os nomes condecorados da finança e os condes do Vaticano e os rapazes elegantes e os deliciosos vestidos claros airosamente ondulantes já se sumiram, levados pelos «autos», pelas parelhas fidalgas, pelos bondes burgueses. A rua tem de tudo isso uma vaga impressão, como se estivesse sob o domínio da alucinação, vendo passar um préstito que já passou. Há um hiato na feira das vaidades: sem literatos, sem poses, sem flirts. Passam apenas trabalhadores de volta da faina e operárias que mourejaram todo o dia.

Os operários vêm talvez mal-arranjados, com a lata do almoço presa ao dedo mínimo. Alguns vêm de tamancos. Como são feios os operários ao lado dos mocinhos bonitos de ainda há pouco! Vão conversando uns com os outros, ou calados, metidos com o próprio eu. As raparigas ao contrário: vêm devagar, muito devagar, quase sempre duas a duas, parando de montra em montra, olhando, discutindo, vendo.

-Repara só, Jesuína.

-Ah! minha filha. Que lindo!...

Ninguém as conhece e ninguém nelas repara, a não ser um ou outro caixeiro em mal de amor ou algum pícaro94 sacerdote de conquistas.

Elas, coitaditas! passam todos os dias a essa hora indecisa, parecem sempre pássaros assustados, tontos de luxo, inebriados de olhar. Que lhes destina no seu mistério a vida cruel? Trabalho, trabalho; a perdição, que é a mais fácil das hipóteses; a tuberculose ou o alquebramento numa ninhada de filhos. Aquela rua não as conhecerá jamais. Aquele luxo será sempre a sua quimera.

São mulheres. Apanham as migalhas da feira. São as anônimas, as fulanitas do gozo, que não gozam nunca. E então, todo dia, quando céu se rocalha de ouro e já andam os relógios pelas seis horas, haveis vê-las passar, algumas loiras, outras morenas, quase todas mestiças. A idade dá-lhes a elasticidade dos gestos, o jeito bonito do andar e essa beleza passageira que chamam -do diabo. Os vestidos são pobres: saias escura sempre as mesmas; blusa de chitinha rala. Nos dias de chuva um parágua95 e a indefectível pelerine. Mas essa miséria é limpa, escovada. As botas brilham, a saia não tem uma poeira, as mãos foram cuidadas. Há nos lóbulos de algumas orelhas brincos simples, fechando as blusas lavadinhas, broches «montana», donde escorre o fio de uma chatelaine96.

Há mesmo anéis -correntinhas de ouro, pedras que custam barato; coralinas, lápis-lazúli, turquesas falsas. Quantos sacrifícios essa limpeza não representa? Quantas concessões não atestam, talvez, os modestos pechisbeques97!

Elas acordaram cedo, foram trabalhar. Voltam para o lar semconforto, com todas as ardências e os desejos indomáveis dos vinte anos.

A rua não lhes apresenta só o amor, o namoro, o desvio... Apresenta-lhes o luxo. E cada montra é a hipnose e cada rayon98 de modas é o foco em torno do qual reviravolteiram e anseiam as pobres mariposas.

-Ali no fundo, aquele chapéu...

-O que tem uma pluma?

-Sim, uma pluma verde... Deve ser caro, não achas?

São duas raparigas, ambas morenas. A mais alta alisa instintivamente os bandós, sem chapéu, apenas com pentes de ouro falso. A montra reflete-lhe o perfil entre as plumas, as rendas de dentro; e enquanto a outra afunda o olhar nos veludos que realçam toda a espetaculização do luxo, enquanto a outra sofre aquela tortura de Tântalo99, ela mira-se, afina com as duas mãos a cintura, parece pensar coisas graves. Chegam, porém, mais duas. A pobreza feminina não gosta dos flagrantes de curiosidade invejosa. O par que chega, por último, pára hesitante. A rapariga alta agarra o braço da outra:

-Anda daí! Pareces criança.

-Que véus, menina! Que véus!...

-Vamos. Já escurece.

Param, passos adiante, em frente às enormes vitrinas de uma grande casa de modas. As montras estão todas de branco, de rosa, de azul; desdobram-se em sinfonias de cores suaves e claras, dessas cores que alegram a alma. E os tecidos são todos leves -irlandas, guipures, pongées, rendas. Duas bonecas de tamanho natural- as deusas do «Chiffon» nos altares da frivolidade - vestem com uma elegância sem par; uma de branco, robe Empire; outra de rosa, com um chapéu cuja pluma negra deve custar talvez duzentos mil réis.

Quanta coisa! quanta coisa rica! Elas vão para a casa acanhada jantar, aturar as rabugices dos velhos, despir a blusa de chita -a mesma que hão de vestir amanhã... E estão tristes. São os pássaros sombrios no caminho das tentações. Morde-lhes a alma a grande vontade de possuir, de ter o esplendor que se lhes nega na polidez espelhante dos vidros.

Por que pobres, se são bonitas, se nasceram também para gozar, para viver?

Há outros pares gárrulos100, alegres, doidivanas, que riem, apontam, esticam o dedo, comentam alto, divertem-se, talvez mais felizes e sempre mais acompanhadas. O par alegre entontece diante de uma casa de flores, vendo as grandes corbeilles, o arranjo sutil das avencas, dos cravos, das angélicas, a graça ornamental dos copos de leite, o horror atraente das parasitas raras.

-Sessenta mil réis aquela cesta! Que caro! Não é para enterro, pois não?

-Aquilo é para as mesas. Olhe aquela florzinha. Só uma, por vinte mil réis.

-Você acha que comprem?

-Ora, para essa moças... os homens são malucos.

As duas raparigas alegres encontram-se com as duas tristes defronte de uma casa de objetos de luxo, porcelanas, tapeçarias. Nas montras, com as mesmas atitudes, as estátuas de bronze, de prata, de terracota, as cerâmicas de cores mais variadas repousam entre tapetes estranhos, tapetes nunca vistos, que parecem feitos de plumas de chapéu. Que engraçado! Como deve ser bom pôr os pés na maciez daquela plumagem! As quatro trocam idéias.

-De que será?

A mais pequena lembra perguntar ao caixeiro, muito importante, à porta. As outras tremem.

-Não vá dar uma resposta má...

-Que tem?

Hesita, sorri, indaga:

-O senhor faz favor de dizer... Aqueles tapetes?...

O caixeiro ergue os olhos irônicos.

-Bonitos, não é? São de cauda de avestruz. Foram precisos quarenta avestruzes para fazer o menor. A senhora deseja comprar?

Ela fica envergonhadíssima; as outras também. Todas riem tapando os lábios com o lenço, muito coradas e muito nervosas.

Comprar! Não ter dinheiro para aquele tapete extravagante parece-lhes ao mesmo tempo humilhante e engraçado.

-Não, senhor, foi só para saber. Desculpe...

E partem. Seguem como que enleadas naquele enovelamento de coisas capitosas -montras de rendas, montras de perfumes, montras toilettes, montras de flores- a chamá-las, a tentá-las, a entontecê-las com corrosivo desejo de gozar. Afinal, param nas montras dos ourives.

Toda a atmosfera já tomou um tom de cinza escuro. Só o céu de verão, no alto, parece um dossel de paraíso, com o azul translúcido a palpitar uma luz misteriosa. Já começaram a acender os combustores na rua, já as estrelas de ouro ardem no alto. A rua vai de novo precipitar-se no delírio.

Elas fixam a atenção. Nenhuma das quatro pensa em sorrir. A jóia é a suprema tentação. A alma da mulher exterioriza-se irresistivelmente diante dos adereços. Os olhos cravam-se ansiosos, numa atenção comovida que guarda e quer conservar as minúcias mais insignificantes. A prudência das crianças pobres fá-las reservadas.

-Oh! Aquelas pedras negras!

-Três contos!

Depois, como se ao lado um príncipe invisível estivesse a querer recompensar a mais modesta, comentam as jóias baratas, os objetos de prata, as bolsinhas, os broches com corações, os anéis insignificantes.

-Ah! Se eu pudesse comprar aquele!

-É só quarenta e cinco! E aquele reloginho, vês? de ouro...

Mas, lá dentro, o joalheiro abre a comunicação elétrica, e de súbito, a vitrina, que morria na penumbra, acende violenta, crua, brutalmente, fazendo faiscar os ouros, cintilar os brilhantes, coriscar os rubis, explodir a luz veludosa das safiras, o verde das esmeraldas, as opalas, os esmaltes, o azul das turquesas. Toda a montra é um tesouro no brilho cegador e alucinante das pedrarias.

Elas olham sérias, o peito a arfar. Olham muito tempo e, ali, naquele trecho de rua civilizada, as pedras preciosas operam, nas sedas dos escrínios101, os sortilégios cruéis dos antigos ocultistas. As mãozinhas bonitas apertam o cabo da sombrinha como querendo guardar um pouco de tanto fulgor; os lábios pendem no esforço da atenção; um vinco ávido acentua os semblantes. Onde estará o príncipe encantador? Onde estará o velho d. João?

Um suspiro mais forte -a coragem da que se libertou da hipnose- fá-las despegar-se do lugar. É noite. A rua delira de novo. À porta dos cafés e das confeitarias, homens, homens, um estridor, uma vozeria. Já se divisam perfeitamente as pessoas no Largo de S. Francisco -onde estão os bondes para a Cidade Nova, para a Rua da América, para o Saco. Elas tomam um ar honesto. Os tacões das botinas batem no asfalto. Vão como quem tem pressa, como quem perdeu muito tempo.

Da Avenida Uruguaiana para diante não olham mais nada, caladas, sem comentários.

Afinal chegam ao Largo. Um adeus, dois beijos, «até amanhã!»

Até amanhã! Sim, elas voltarão amanhã, elas voltam todo dia, elas conhecem nas suas particularidades todas as montras da feira das tentações; elas continuarão a passar, à hora do desfalecimento da artéria, mendigas do luxo, eternas fulanitas da vaidade, sempre com a ambição enganadora de poder gozar as jóias, as plumas, as rendas, as flores.

Elas hão de voltar, pobrezinhas -porque a esta hora, no canto do bonde, tendo talvez ao lado o conquistador de sempre, arfa-lhes o peito e têm as mãos frias com a idéia desse luxo corrosivo. Hão de voltar, caminho da casa, parando aqui, parando acolá, na embriaguez da tentação -porque a sorte as fez mulheres e as fez pobres, porque a sorte não lhes dá, nesta vida de engano, senão a miragem do esplendor para perdê-las mais depressa.

E haveis então de vê-las passar, as mariposas do luxo, no seu passinho modesto, duas a duas, em pequenos grupos, algumas loiras, outras morenas...

Os trabalhadores de estiva

Às 5 da manhã ouvia-se um grito de máquina rasgando o ar. Já o cais, na claridade pálida da madrugada, regurgitava num vai-e-vem de carregadores, catraieiros, homens de bote e vagabundos maldormidos à beira dos quiosques. Abriam-se devagar os botequins ainda com os bicos de gás acesos; no interior os caixeiros, preguiçosos, erguiam os braços com bocejos largos. Das ruas que vazavam na calçada rebentada do cais, afluía gente, sem cessar, gente que surgia do nevoeiro, com as mãos nos bolsos, tremendo, gente que se metia pelas bodegas e parava à beira do quiosque numa grande azáfama. Para o cais da alfândega, ao lado, um grupo de ociosos olhava através das frinchas de um tapume, rindo a perder; um carregador, encostado aos umbrais de uma porta, lia, de óculos, o jornal, e todos gritavam, falavam, riam, agitavam-se na frialdade daquele acordar, enquanto dos botes policrômicos homens de camisa de meia ofereciam, aos berros, um passeiozinho pela baía. Na curva do horizonte o sol de maio punha manchas sangrentas e a luz da manhã abria, como desabrocha um lírio, no céu pálido.

Eu resolvera passar o dia com os trabalhadores da estiva e, naquela confusão, via-os vir chegando a balançar o corpo, com a comida debaixo do braço, muito modestos. Em pouco, a beira do cais ficou coalhada. Durante a última gréve, um delegado de polícia dissera-me:

-São criaturas ferozes! Nem a tiro.

Eu via, porém, essas fisionomias resignadas à luz do sol e elas me impressionavam de maneira bem diversa. Homens de excessivo desenvolvimento muscular, eram todos pálidos -de um pálido embaciado como se lhes tivessem pregado à epiderme um papel amarelo, e assim, encolhidos, com as mãos nos bolsos, pareciam um baixo-relevo de desilusão, uma frisa de angústia.

Acerquei-me do primeiro, estendi-lhe a mão:

-Posso ir com vocês, para ver?

Ele estendeu também a mão, mão degenerada pelo trabalho, com as falanges recurvas e a palma calosa e partida.

-Por que não? Vai ver apenas o trabalho, fez com amarga voz.

E quedou-se, outra vez, fumando.

-É agora a partida?

-É.

Entre os botes, dois saveiros enormes, rebocados por uma lancha, esperavam. Metade dos trabalhadores, aos pulos, bruscamente, saltou para os fardos. Saltei também. Acostumados, indiferentes à travessia, eles sentaram-se calados, a fumar. Um vento frio cortava a baía. Todo um mundo de embarcações movia-se, coalhava o mar, riscava a superfície das ondas; lanchas oficiais em disparada, com a bandeira ao vento; botes, chatas102, saveiros, rebocadores. Passamos perto de uma chata parada e inteiramente coberta de oleados. Um homem, no alto, estirou o braço, saudando.

-Quem é aquele?

-É o José. É chateiro-vigia. Passou todo o dia ali para guardar a mercadoria dos patrões. Os ladrões são muitos. Então, fica um responsável por tudo, toda a noite, sem dormir, e ganha seis mil réis. As vezes, os ladrões atacam os vigias acordados e o homem, só, tem que se defender a revólver.

Civilizado, tive este comentário frio:

-Deve estar com sono, o José.

-Qual! Esse é dos que dobra dias e dias. Com mulher e oito filhos precisa trabalhar. Ah! Meu senhor, há homens, por este mar afora cujos filhos de seis meses ainda os não conhecem. Saem de madrugada de casa. O José está à espera que a alfândega tire o termo da carga, que não é estrangeira.

Outras chatas perdiam-se paradas na claridade do sol. Nós passávamos entre as lanchas. Ao longe, bandos de gaivotas riscavam o azul do céu e o Cais dos Mineiros já se perdia distante da névoa vaga. Mas nós avistávamos um outro cais com um armazém ao fundo. À beira desse cais, saveiros enormes esperavam mercadorias; e, em cima, formando um círculo ininterrupto, homens de braços nus saíam a correr de dentro da casa, atiravam o saco no saveiro, davam a volta à disparada, tornavam a sair a galope com outro saco, sem cessar, contínuos como a correia de uma grande máquina. Eram sessenta, oitenta, cem, talvez duzentos. Não os podia contar. A cara escorrendo suor. Os pobres surgiam do armazém como flechas, como flechas voltavam. Um clamor subia aos céus apregoando o serviço:

-Um, dois, três, vinte e sete; cinco, vinte, dez, trinta!

E a ronda continuava diabólica.

-Aquela gente não cansa?

-Qual! Trabalham assim horas a fio. Cada saco daqueles tem sessenta quilos e para transportá-lo ao saveiro pagam 60 réis. Alguns pagam menos -dão só 30 réis, mas, assim mesmo, há quem tire dezesseis mil réis por dia.

O trabalho da estiva é complexo, variado; há a estiva da aguardente, do bacalhau, dos cereais, do algodão; cada uma tem os seus servidores, e homens há que só servem a certas e determinadas estivas, sendo por isso apontados.

-É muito, fiz.

-Passam dias, porém, sem ter trabalho e imagine quantas corridas são necessárias para ganhar a quantia fabulosa.

A lancha fizera-se ao largo. Caminhávamos para o poço onde o navio que devia sair naquela noite fundeava, todo de branco. Era o começo do dia. A bordo ficou um terno de homens, e eu com eles. O terno divide-se assim: um no guincho, quatro na embarcação, oito no porão e quatro no convés. Isso quando a carga é seca. Carregava café o vapor.

Logo que o saveiro atracou, eles treparam pelas escadas, rápidos; oito homens desapareceram na face aberta do porão, despiram-se, enquanto os outros rodeavam o guincho e as correntes de ferro começavam a ir e vir do porão para o saveiro, do saveiro para o porão, carregadas de sacas de café. Era regular, matemático, a oscilação de um lento e formidável relógio.

Aqueles seres ligavam-se aos guinchos; eram parte da máquina; agiam inconscientemente. Quinze minutos depois de iniciado o trabalho, suavam arrancando as camisas. Só os negros trabalhavam de tamancos. E não falavam, não tinham palavras inúteis. Quando a ruma103 estava feita, erguiam a cabeça e esperavam a nova carga. Que fazer? Aquilo tinha que ser até às 5 da tarde!

Desci ao porão. Uma atmosfera de caldeira sufocava. Era as correntes caírem do braço de ferro um dos oito homens precipitava-se, alargava-as, os outros puxavam os sacos.

-Eh! Lá!

De novo havia um rolar de ferros no convés, as correntes subiam enquanto eles arrastavam os sacos. Do alto a claridade caía fazendo uma bolha de luz, que se apagava nas trevas dos cantos. E a gente, olhando para cima, via encostados cavalheiros de pijama e bonezinho, com ar de quem descansa do banho a apreciar a faina alheia. Às vezes, as correntes ficavam um pouco alto. Eles agarravam-se às paredes de ferro com os passos vacilantes entre os sacos e, estendendo o tronco nu e suarento, as suas mãos preênseis puxavam a carga em esforços titânicos.

-Eh! Lá!

Na embarcação, fora, os mesmos movimentos, o mesmo gasto de forças e de tal forma regular que em pouco eram movimentos correspondentes, regulados pela trepidação do guincho, os esforços dos que se esfalfavam no porão e dos que se queimavam ao sol.

Até horas tardes da manhã trabalharam assim, indiferentes aos botes, às lanchas, à animação especial do navio. Quando chegou a vez da comida, não se reuniram. Os do porão ficaram por lá mesmo, com a respiração intercortada, resfolegando, engolindo o pão, sem vontade.

Decerto pela minha face eles compreenderam que eu os deplorava. Vagamente, o primeiro falou; outro disse-me qualquer coisa e eu ouvi as idéias daqueles corpos que o trabalho rebenta. A principal preocupação desses entes são as firmas dos estivadores. Eles as têm de cor, citam de seguida, sem errar uma: Carlos Wallace, Melo e François, Bernardino Correia Albino, Empresa Estivadora, Picasso e C., Romão Conde e C., Wilson, Sons, José Viegas Vaz, Lloyd Brasileiro, Capton Jones. Em cada uma dessas casas o terno varia de número e até de vencimentos, como por exemplo -o Lloyd, que paga sempre menos que qualquer outra empresa.

Os homens com quem falava têm uma força de vontade incrível. Fizeram com o próprio esforço uma classe, impuseram-na. Há doze anos não havia malandro que, pegado na Gamboa, não se desse logo como trabalhador de estiva. Nesse tempo não havia a associação, não havia o sentimento de classe e os pobres estrangeiros pegados na Marítima trabalhavam por três mil réis dez horas de sol a sol. Os operários reuniram-se. Depois da revolta, começou a se fazer sentir o elemento brasileiro e, desde então, foi uma longa e pertinaz conquista. Um homem preso, que se diga da estiva, é, horas depois, confrontado com um sócio da União, tem que apresentar o seu recibo de mês. Hoje, estão todos ligados, exercendo uma mútua policia para a moralização da classe. A União dos Operários Estivadores consegue, com uns estatutos que a defendem habilmente, o seu nobre fim. Os defeitos da raça, as disputas, as rusgas são consideradas penas; a extinção dos tais pequenos roubos, que antigamente eram comuns, merece um cuidado extremado da União, e todos os sócios, tendo como diretores Bento José Machado, Antônio da Cruz, Santos Valença, Mateus do Nascimento, Jerônimo Duval, Miguel Rosso e Ricardo Silva, esforçam-se, estudam, sacrificam-se pelo bem geral.

Que querem eles? Apenas ser considerados homens dignificados pelo esforço e a diminuição das horas de trabalho, para descansar e para viver. Um deles, magro, de barba inculta, partindo um pão empapado de suor que lhe gotejava da fronte, falou-me, num grito de franqueza:

-O problema social não tem razão de ser aqui? Os senhores não sabem que este país é rico, mas que se morre de fome? É mais fácil estourar um trabalhador que um larápio? O capital está nas mãos de grupo restrito e há gente demais absolutamente sem trabalho. Não acredite que nos baste o discurso de alguns senhores que querem ser deputados Vemos claro e, desde que se começa a ver claro, o problema surge complexo e terrível. A greve, o senhor acha que não fizemos bem na greve? Eram nove horas de trabalho. De toda a parte do mundo os embarcadiços diziam que trabalho da estiva era só de sete!

Fizemos mal? Pois ainda não temos o que desejamos.

A máquina, no convés, recomeçara a trabalhar.

-Os patrões não querem saber se ficamos inúteis pelo excesso de serviço. Olhe, vá à Marítima, ao Mercado. Encontrará muitos dos nossos arrebentados, esmolando, apanhando os restos de comida. Quando se aproximam das casas às quais deram toda a vida correm-nos!

Que foi fazer lá? Trabalhou? Pagaram-no; rua! Toda a fraternidade universal se cifra neste horror!

Do alto caíram cinco sacas de café mal presas à corrente. Ele sorriu, amargurado, precipitou-se, e, de novo, ouviu-se o pavor do guincho sacudindo as correntes donde pendiam dezoito homens estrompados. Até à tarde, encostado aos sacos, eu vi encher a vastidão do porão bafioso e escuro. Eles não pararam. Quando deu cinco horas um de barba negra tocou-me no braço:

-Por que não se vai? Estão tocando a sineta. Nós ficamos para o serão à noite... Trabalhar até à meia-noite.

Subi. Os ferros retiniam sempre a música sinistra. Encostados à amurada, damas roçagando sedas e cavalheiros estrangeiros de smoking, debochavam, em inglês, as belezas da nossa baía; no bar, literalmente cheio, ao estourar do champagne, um moço vermelho de álcool e de calor levantava um copo dizendo:

-Saudemos o nosso caro amigo que Paris receberá...

Em derredor do paquete, lanchas, malas, cargas, imprecações, gente querendo empurrar as bagagens, carregadores, assobios, um brouhaha104 formidável.

Um cavalheiro cheio de brilhantes, no portaló105, perguntou-me se eu não vira a Lola. Desci, meti-me num bote, fiz dar a volta para ver mais uma vez aquela morte lenta entre os pesos. A tarde caíra completamente. Ritmados pelo arrastar das correntes, os quatro homens, dirigidos do convés do steamer106, carregavam, tiravam sempre de dentro do saveiro mais sacas, sempre sacas, com as mãos disformes, as unhas roxas, suando, arrebentando de fadiga.

Um deles, porém, rapaz, quando o meu bote passava por perto do saveiro, curvou-se, com a fisionomia angustiada, golfando sangue.

-Oh! diabo! fez o outro, voltando-se. O José que não pode mais!

A Fome Negra

De madrugada, escuro ainda, ouviu-se o sinal de acordar. Raros ergueram-se. Tinha havido serão até a meia-noite. Então, o feitor, um homem magro, corcovado, de tamancos e beiços finos, o feitor, que ganha duzentos mil réis e acha a vida um paraíso, o sr. Correia, entrou pelo barracão onde a manada de homens dormia com a roupa suja e ainda empapada do suor da noite passada.

-Eh! Lá! Rapazes, acorda! Quem não quiser, roda. Eh lá! Fora!

Houve um rebuliço na furna sem ar. Uns sacudiam os outros amedrontados, com os olhos só a brilhar na face cor de ferrugem; outros, prostrados, nada ouviam, com a boca aberta, babando.

-Ó João, olha o café.

-Olha o café e olha o trabalho! Ai, raios me partam! Era capaz de dormir até amanhã.

Mas, já na luz incerta daquele quadrilátero, eles levantavam-se, impelidos pela necessidade como as feras de uma ménagerie ao chicote do domador. Não lavaram o rosto, não descansaram. Ainda estremunhados, sorviam uma água quente, da cor do pó que lhes impregnava a pele, partindo o pão com escaras da mesma fuligem metálica, e poucos eram os que se sentavam, com as pernas em compasso, tristes.

Estávamos na ilha da Conceição, no trecho hoje denominado -a Fome Negra. Há ali um grande depósito de manganês e, do outro lado da pedreira que separa a ilha, um depósito de carvão. Defronte, a algumas braçadas de remo, fica a Ponta da Areia com a Cantareira, as obras do porto fechando um largo trecho coalhado de barcos. Para além, no mar tranqüilo, outras ilhas surgem, onde o trabalho escorcha e esmaga centenas de homens.

Logo depois do café, os pobres seres saem do barracão e vão para a parte norte da ilha, onde a pedreira refulge. Há grandes pilhas de blocos de manganês e montes de piquiri em pó, em lascas finas. No solo, coberto de uma poeira negra com reflexos de bronze, há rails107 para conduzir os vagonetes do minério até ao lugar da descarga. O manganês, que a lnglaterra cada vez mais compra ao Brasil, vem de Minas até à Marítima em estrada de ferro; daí é conduzido em batelões108 e saveiros até às ilhas Bárbaras e da Conceição, onde fica em depósito.

Quando chega vapor, de novo removem o pedregulho para os saveiros e de lá para o porão dos navios. Esse trabalho é contínuo, não tem descanso. Os depósitos cheios, sem trabalho de carga para os navios, os trabalhadores atiram-se à pedreira, à rocha viva. Trabalha-se dez horas por dia com pequenos intervalos para as refeições, e ganha-se cinco mil réis. Há, além disso, o desconto da comida, do barracão onde dormem, mil e quinhentos; de modo que o ordenado da totalidade é de oito mil réis, Os homens gananciosos aproveitam então o serviço da noite, que é pago até de manhã por três mil e quinhentos e até meia-noite pela metade disso, tendo naturalmente, o desconto do pão, da carne e do café servido durante o labor,

É uma espécie de gente essa que serve às descargas do carvão e do minério e povoa as ilhas industriais de baía, seres embrutecidos, apanhados a dedo, incapazes de ter idéias. São quase todos portugueses e espanhóis que chegam da aldeia, ingênuos. Alguns saltam da proa do navio para o saveiro do trabalho tremendo, outros aparecem pela Marítima sem saber o que fazer e são arrebanhados pelos agentes. Só têm um instinto: juntar dinheiro, a ambição voraz que os arrebenta de encontro às pedras inutilmente. Uma vez apanhados pelo mecanismo de aços, ferros e carne humana, uma vez utensílio apropriado ao andamento da máquina, tornam-se autômatos com a teimosia de objetos movidos a vapor. Não têm nervos, têm molas; não têm cérebros, têm músculos hipertrofiados. O superintende do serviço berra, de vez em quando:

-Isto é para quem quer! Tudo aqui é livre! As coisas estão muito ruins, sujeitemo-nos. Quem não quiser é livre!

Eles vieram de uma vida de geórgicas109 paupérrimas. Têm a saudade das vinhas, dos pratos suaves, o pavor de voltar pobres e, o que é mais, ignoram absolutamente a cidade, o Rio; limitam o Brasil às ilhas do trabalho, quando muito aos recantos primitivos de Niterói. Há homens que, anos depois de desembarcar, nunca pisaram no Rio e outros que, quase uma existência na ilha, voltaram para a terra com algum dinheiro e a certeza da morte.

Vivem quase nus. No máximo, uma calça em frangalhos e camisa de meia. Os seus conhecimentos reduzem-se à marreta, à pá, ao dinheiro; o dinheiro que a pá levanta para o bem-estar dos capitalistas poderosos; o dinheiro, que os recurva em esforços desesperados, lavados de suor, para que os patrões tenham carros e bem-estar. Dias inteiros de bote, estudando a engrenagem dessa vida esfalfante, saltando nos paióis ardentes navios e nas ilhas inúmeras, esses pobres entes fizeram-me pensar num pesadelo de Wells110, a realidade da História dos Tempos Futuros, o pobre a trabalhar para os sindicatos, máquina incapaz de poder viver de outro modo, aproveitada e esgotada. Quando um deles é despedido, com a lenta preparação das palavras sórdidas dos feitores, sente um tão grande vácuo, vê-se de tal forma só, que vai rogar outra vez para que o admitam.

À proporção que eu os interrogava e o sol acendia labaredas por toda a ilha, a minha sentimentalidade ia fenecendo. Parte dos trabalhadores atirou-se à pedreira, rebentando as pedras. As marretas caíam descompassadamente em retintins metálicos nos blocos enormes. Os outros perdiam-se nas rumas de manganês, agarrando os pedregulhos pesados com as mãos. As pás raspavam o chão, o piquiri caía pesadamente nos vagonetes, outros puxavam-nos até a beira d'água, onde as tinas de bronze os esvaziavam nos saveiros.

Durante horas, esse trabalho continuou com uma regularidade alucinante. Não se distinguiam bem os seres das pedras do manganês: o raspar das pás replicava ao bater das marretas, e ninguém conversava, ninguém falava! A certa hora do dia veio a comida. Atiraram-se aos pratos de folha, onde, em água quente, boiavam vagas batatas e vagos pedaços de carne, e um momento só se ouviu o sôfrego sorver e o mastigar esfomeado.

Acerquei-me de um rapaz.

-O teu nome?

-O meu nome para quê? Não digo a ninguém.

Era a desconfiança incutida pelo gerente, que passeava ao lado, abrindo a chaga do lábio num sorriso sórdido.

-Que tal achas a sopa?

-Bem boa. Cá uma pessoa come. O corpo está acostumado, tem três pães por dia e três vezes por semana bacalhau.

Engasgou-se com um osso. Meteu a mão na goela e eu vi que essa negra mão rebentava em sangue, rachava, porejando um líquido amarelado.

-Estás ferido?

-É do trabalho. As mãos racham. Eu estou só há três meses. Ainda não acostumei.

-Vais ficar rico?

Os seus olhos brilhavam de ódio, um ódio de escravo e de animal sovado.

-Até já nem chegam os baús para guardar o ouro. Depois, numa franqueza: ganha-se uma miséria. O trabalho faz-se, o mestre diz que não há... Mas, o dinheiro mal chega, homem, vai-se todo no vinho que se manda buscar.

Era horrendo. Fui para outro e ofereci-lhe uma moeda de prata.

-Isso é para mim?

-E, mas se falares a verdade.

-Ai! Que falo, meu senhor...

Tinha um olhar verde, perturbado, um olhar de vício secreto.

-Há quanto tempo aqui?

-Vai para dois anos.

-E a cidade não conheces?

-Nunca lá fui, que a perdição anda pelos ares...

Este também se queixa da falta de dinheiro porque manda buscar sempre outro almoço. Quanto ao trabalho, estão convencidos que neste país não há melhor. Vieram para ganhar dinheiro, é preciso ou morrer ou fazer fortuna. Enquanto falavam, olhavam de soslaio para o Correia e o Correia torcia o cigarro, à espreita, arrastando os sacos no pó carbonífero.

-Deixe que vá tratar do meu serviço, segredavam eles quando o feitor se aproximava. Ai! que não me adianta nada estar a contar-lhe a minha vida.

O trabalho recomeçou. O Correia, cozido ao sol, bamboleava a perna, feliz. Como a vida é banal! Esse Correia é um tipo que existe desde que na sociedade organizada há o intermediário entre o patrão e o servo, Existirá eternamente, vivendo de migalhas de autoridade contra a vida e independência dos companheiros de classe.

Às 2 horas da tarde, nessa ilha negra, onde se armazenam o carvão, o manganês e a pedra, o sol queimava. Vinha do mar, como infestado de luz, um sopro de brasa; ao longe, nas outras ilhas, o trabalho curvava centenas de corpos, a pele ardia, os pobres homens encobreados, com olhos injetados, esfalfavam-se, e mestre Correia, dançarinando o seu passinho:

-Vamos gente! Eh! Nada de perder tempo. V. S.ª não imagina. Ninguém os prende e a ilha está cheia. Vida boa!

Foram assim até a tarde, parando minutos para logo continuar. Quando escureceu de todo, acenderam-se as candeias e a cena deu no macabro.

Do alto, o céu coruscava, incrustado de estrelas, um vento glacial passava, fogo-fatuando a chama tênue das candeias e, na sombra, sombras vagas, de olhar incendido, raspavam o ferro, arrancando da alma gemidos de esforço. Como se estivesse junto do cabo e um batelão largasse saltei nele com um punhado de homens.

Íamos a um vapor que partia de madrugada. No mar, a treva mais intensa envolvia o steamer, um transporte inglês com a carga especial do minério. O comandante fora ao Casino; alguns boys pouco limpos pendiam da murada com um cozinheiro chinês, de óculos. Uma luz mortiça iluminava o convés. Tudo parecia dormir. O batelão, porém, atracava, fincavam-se as candeias; quatro homens ficavam de um lado, quatro de outro, dirigidos um preto que corria pelas bordas do barco, de tamancos, dando gritos guturais. Os homens nus, suando apesar do vento, começavam a encher enormes tinas de bronze que o braço de ferro levantava num barulho de trovoada, despejava, deixava cair outra vez.

Entre a subida e a descida da tina fatal, eu os ouvia:

-O minério! É o mais pesado de todos os trabalhos. Cada pedra pesa quilos. Depois de se lidar algum tempo com isso, sentem-se os pés e as mãos frios; e o sangue, quando a gente se corta, aparece amarelo... É a morte.

-De que nacionalidade são vocês?

-Portugueses... Na ilha há poucos espanhóis e homens de cor. Somos nós os fortes.

O fraco, deviam dizer; o fraco dessa lenta agonia de rapazes, de velhos, de pais de famílias numerosas.

Para os contentar, perguntei:

-Por que não pedem a diminuição das horas de trabalho?

As pás caíram bruscas. Alguns não compreendiam, outros tinham um risinho de descrença:

-Para que, se quase todos se sujeitam?

Mas, um homem de barbas ruivas, tisnado e velho, trepou pelo monte de pedras e estendeu as mãos:

-Há de chegar o dia, o grande dia!

E rebentou como um doido, aos soluços, diante dos companheiros atônitos.

Os delegados de polícia são de vez em quando uns homens amáveis. Esses cavalheiros chegam mesmo, ao cabo de certo tempo, a conhecer um pouco da sua profissão e um pouco do trágico horror que a miséria tece na sombra da noite por essa misteriosa cidade. Um delegado, outro dia, conversando dos aspectos sórdidos do Rio, teve a amabilidade de dizer:

-Quer vir comigo visitar esses círculos infernais?

Não sei se o delegado quis dar-me apenas a nota mundana de visitar a miséria, ou se realmente, como Virgílio, o seu desejo era guiar-me através de uns tantos círculos de pavor, que fossem outros tantos ensinamentos. Lembrei-me que Oscar Wilde também visitara as hospedarias de má fama e que Jean Lorrain se fazia passar aos olhos dos ingênuos como tendo acompanhado os grão-duques russos nas peregrinações perigosas que Goron guiava.

Era tudo quanto há de mais literário e de mais batido. Nas peças francesas há dez anos já aparece o jornalista que conduz a gente chique aos lugares macabros; em Paris os repórteres do Journal andam acompanhados de um apache111 autêntico. Eu repetiria apenas um gesto que era quase uma lei. Aceitei.

À hora da noite quando cheguei à delegacia, a autoridade ordenara uma caça aos pivettes, pobres garotos sem teto, e preparava-se para a excursão com dois amigos, um bacharel e um adido de legação, tagarela e ingênuo.

O bacharel estava comovido. O adido assegurava que a miséria só na Europa - porque a miséria é proporcional à civilização. Ambos de casaca davam ao reles interior do posto um aspecto estranho. O delegado sorria, preparando com o interesse de um maítre-hôtel o cardápio das nossas sensações.

Afinal ergueu a bengala.

-Em marcha!

Descemos todos, acompanhados de um cabo de policia e de dois agentes secretos - um dos quais zanaga, com o rosto grosso de calabrês. É perigoso entrar só nos covis horrendos, nos trágicos asilos da miséria. Íamos caminhando pela Rua da Misericórdia, hesitantes ainda diante das lanternas com vidros vermelhos. Às esquinas, grupos de vagabundos e desordeiros desapareciam ao nosso apontar e, afundando o olhar pelos becos estreitos em que a rua parece vazar a sua imundície, por aquela rede de becos, víamos outras lanternas em forma de foice, alumiando portas equívocas. Havia casas de um pavimento só, de dois, de três; negras, fechadas, hermeticamente fechadas, pegadas uma à outra, fronteiras, confundindo a luz das lanternas e a sombra dos balcões. Os nossos passos ressoavam num desencontro nos lajedos quebrados. A rua, mal iluminada, tinha candeeiros quebrados, sem a capa Auer, de modo que a brancura de uns focos envermelhecia mais a chama pisca dos outros. Os prédios antigos pareciam ampararem-se mutuamente, com as fachadas esborcinadas112, arrebentadas algumas. De repente porta abria, tragando, num som cavo, algum retardatário.

Trechos inteiros da calçada, imersos na escuridão, encobrian cafajestes de bombacha branca, gingando, e constantemente o monótono apito do guarda noturno trilava, corria como um arrepio na artéria do susto para logo outro responder mais longe e mais longe ainda outro ecoar o seu áspero trilo. No alto, o céu era misericordiosamente estrelado e uma doce tranqüilidade parecia escorrer do infinito.

-Há muitos desses covis espalhados pela cidade? indagou advogado, abotoando o mac-farlane113.

-Em todas as zonas, meu caro.

-Em cinco noites, visitando-os depressa, informou o agente, V. S.ª não dá cabo deles. É por aqui, pela Gamboa, nas ruas centrais, nos bairros pobres. Só na Cidade Nova, que quantidade! Isso não contando as casas particulares, em que moram vinte e mais pessoas, e não querendo falar das hospedarias só de gatunos, os «zungas».

-«Zungas»? fez o adido de legação, curioso.

-As hospedarias baratas têm esse nome... Dorme-se até por cem réis. Saiba V. S.ª que a vídinha dava para uma história.

Mas debaixo de uma das foices de luz, o delegado parara. Estacamos também.

O soldado bateu à porta com a mão espalmada. Houve um longo silêncio. O soldado tornou a bater. De dentro então uma voz sonolenta indagou:

-Quem é?

-Abra! É a polícia! Abra!

O silêncio continuou. Nervoso, o delegado atirou a bengala à porta.

-Abra já! É o dr. delegado! Abra já!

A porta abriu-se. Barafustamos na meia-luz de um corredor com areia no soalho. O homem que viera abrir, corpulento, de camisa de meia, esfregou os olhos, deu força ao bico de gás, encostou-se à mesa forrada de jornais, onde se alinhavam castiçais.

-É o proprietário? indagou o delegado.

-Saiba V. S.ª que não. Sou o encarregado.

-Muita gente?

-Não há mais lugares.

-Deixe ver o livro.

O livro é uma formalidade cômica. A autoridade virou-lhe as páginas, rápido, enquanto os secretas descansavam as bengalas. O mau cheiro era intenso.

-Mostre-nos isso! fez a autoridade, minutos depois.

-Não há acusação contra a casa, há sr. doutor?

-Não sei, ande.

O encarregado, trêmulo, seguiu à frente, erguendo o castiçal. Abriu uma porta de ferro, fechou-a de novo, após a nossa passagem. E começamos a ver o rés-do-chão, salas com camas enfileiradas como nos quartéis, tarimbas com lençóis encardidos, em que dormiam de beiço aberto, babando, marinheiros, soldados, trabalhadores de face barbuda. Uns cobriam-se até o pescoço. Outros espapaçavam-se completamente nus.

A mando da autoridade superior, os agentes chegavam a vela bem perto das caras, passavam a luz por baixo das camas, sacudiam os homens do pesado dormir. Não havia surpresa. Os pobres entes acordavam e respondiam, quase a roncar outra vez, a razão por que estavam ali, lamentavelmente. O bacharel estava varado, o adido tinha um ar desprendido. Não tivesse ele visitado a miséria de Londres e principalmente a de Paris! O delegado, entretanto, gozava aquele espetáculo.

-Subamos! murmurou.

Trepamos todos por uma escada íngreme. O mau cheiro aumentava. Parecia que o ar rareava, e, parando um instante, ouvimos a respiração de todo aquele mundo como o afastado resfolegar de uma grande máquina. Era a seção dos quartos reservados e a sala das esteiras. Os quartos estreitos, asfixiantes, com camas largas antigas e lençóis por onde corriam percevejos. A respiração tornava-se difícil.

Quando as camas rangiam muito e custavam a abrir, o agente mais forte empurrava a porta, e, à luz da vela, encontrávamos quatro e cinco criaturas, emborcadas, suando, de língua de fora; homens furiosos, cobrindo com o lençol a nudez, mulheres tapando o rosto, marinheiros «que haviam perdido o bote», um mundo vário e sombrio, gargulejando desculpas, com a garganta seca. Alguns desses quartos, as dormidas de luxo, tinham entrada pela sala das esteiras, em que se dorme por oitocentos réis, e essas quatro paredes impressionavam como um pesadelo.

Completamente nua, a sala podia conter trinta pessoas, à vontade, e tinha pelo menos oitenta nas velhas esteiras atiradas ao soalho.

Os fregueses dormiam todos -uns de barriga para o ar, outros de costas, com o lábio no chão negro, outros de lado, recurvados como arcos de pipa. Estavam alguns vestidos. A maioria inteiramente nua, fizera dos andrajos travesseiros. Erguendo a vela, o encarregado explicava que ali o pessoal estava muito bem, e no palor em halo da luz que ele erguia, eu via pés disformes, mãos de dedos recurvos, troncos suarentos, cabeças numa estranha lassidão -galeria trágica de cabeças embrutecidas, congestas, bufando de boca aberta... De vez em quando um braço erguia-se no espaço, tombava; faces, em que mais de perto o raio de luz batia, tinham tremores súbitos -e todos roncavam, afogados em sono.

Um dos agentes sacudiu um rapazola.

-Hein? Já quatro horas? fez o rapaz acordando.

-Que faz aqui?

-Espero a hora do bote para a ilha. Sou carvoeiro, sim senhor... Ai! Minha mãe! Vão levar-me preso!

Subitamente, porém, apalpou as algibeiras, olhou-nos ansioso. Tinha sido roubado! Houve um rebuliço. Como por encanto, homens, havia ainda minutos, a dormir profundamente, acordavam-se. O sr. delegado, alteando a voz, deu ordem para não deixar sair ninguém sem ser revistado. O encarregado, com perdão do sr. delegado e das outras senhorias, descompunha o pequeno.

-Trouxe dinheiro, maricas? Já não lhe tenho dito que entregue? É lá possível ter confiança nesta súcia. E a minha casa agora, e eu? Besta de uma figa, que não sei onde estou...

Os agentes faziam levantar a canalha, arreliada com o incidente e na luz vaga os perfis patibulares emergiam com gestos cínicos de espreguiçamento.

Tanto o bacharel como o adido mostravam na face um leve susto. O delegado contemplava-os.

-Que lhes dizia eu? Uma sensação, meus caros, admirável. Subamos ao último andar!

Havia com efeito mais um andar, mas quase não se podia chegar, estando a escada cheia de corpos, gente enfiada em trapos, se estirava nos degraus, gente que se agarrava aos balaústres do corrimão -mulheres receosas da promiscuidade, de saias enrodilhadas. Os agentes abriam caminho, acordando a canalha com a ponta dos cacetes. Eu tapava o nariz. A atmosfera sufocava. Mais um pavimento e arrebentaríamos. Parecia que todas as respirações subiam, envenenando as escada e o cheiro, o fedor, um fedor fulminante, impregnava-se nas nossas próprias mãos, desprendia-se das paredes, do assoalho carcomido, do teto, dos corpos sem limpeza. Em cima, então, era a vertigem. A sala estava cheia. Já não havia divisões, tabiques, não se podia andar sem esmagar um corpo vivo. A metade daquele gado humano trabalhava; rebentava nas descargas dos vapores, enchendo paióis de carvão, carregando fardos. Mais uma hora e acordaria para esperar no cais os batelões que a levassem ao cepo do labor, em que empedra o cérebro e rebenta os músculos.

Grande parte desses pobres entes fora atirada ali, no esconderijo daquele covil, pela falta de fortuna. Para se livrar da polícia, dormiam sem ar, sufocados, na mais repugnante promiscuidade. E eu, o adido, o bacharel, o delegado amável estávamos a gozar dessa gente o doloroso espetáculo!

-Não se emocione, disse o delegado. Há por aqui gatunos, assassinos, e coisas ainda mais nojentas.

Desci. Doíam-me as têmporas. Era impossível o cheiro de todo aquele entulho humano. O adido precipitou-se também e os outros o seguiram. Embaixo, a vistoria aos fregueses não dera resultado. O encarregado ainda gritava e o cabo estava nervoso, já tendo dado alguns murros. O dr. delegado teve uma última idéia -a visão de uma cena ainda mais cruel.

-Vamos ver os fundos!

Foi aí então que vimos o sofrer inconsciente e o último grau da miséria. O hospedeiro torpe dizia que por ali dormiam alguns de favor, mas pelo corredor estreito, em derredor da sentina114, no trecho do quintal, cheio de trapos e de lama, nas lajes, os mendigos, faces escaveiradas e sujas, acordavam num clamor erguendo as mãos para o ar. E de tal forma a treva se ligava a esses espectros da vida que o quadro parecia formar um todo homogêneo e irreal.

-Tudo grátis aos desgraçadinhos, sibilava o homem musculoso.

Curvei-me, perto da latrina. Era uma velha embiocada num capuz preto.

-Quanto pagou v., minha velha?

-O que tinha, filho, o que tinha, dois tostões...

Dei-lhe qualquer coisa, e mais íntima, esticando o pescoço, ela indagou, trêmula:

-Por que será tudo isso? Vão levar-nos presos?

Mas já o delegado saíra com os seus convidados. À porta o encarregado esperava. Saí. A escuridão afogava os prédios, encapuchava os combustores, alongava a rua. Não se sabia onde acabara o pesadelo, onde começara a realidade.

-Basta, dizia o adido, basta. Já tenho uma dose suficiente.

-Também é tudo a mesma coisa. É ver uma, é ver todas.

-E quem diria? concluiu o bacharel, até então mudo.

Neste momento ouviu-se o grito de pega! Um garoto corria. O cabo precipitou-se.

Já outros dois soldados vinham em disparada. Era a caçada aos garotos, a «canoa». A «canoa» vinha perto. Tinham pegado uns vinte vagabundos, e pela calçada, presos, seguidos de soldados, via-se, como uma serpente macabra, desenrolar-se a série de miseráveis trêmulos de pavor.

-Canalhas! bradou o dr. delegado. E ainda se queixam que os mande prender para dormir na estação!

-Nós devíamos ter asilos, instruiu o adido.

-É verdade, os asilos, a higiene, a limpeza. Tudo isso é bonito. Havemos de ter. Por enquanto nosso Senhor, lá em cima, que olhe por eles!

As suas mãos, maquinalmente esticaram-se, e os nossos olhos acompanhando aquele gesto elegante de ceticismo mundano, deram no céu, recamado de ouro. Todas as estrelas palpitavam, por cima da casaria estendia-se uma poeira de ouro. Naquela chaga incurável, chaga lamentável da cidade, a luz gotejava do infinito como um bálsamo.

As mulheres mendigas

A mendicidade é a exploração mais regular, mais tranqüila desta cidade. Pedir, exclusivamente pedir, sem ambição aparente e sem vergonha, assim à beira da estrada da vida, parece o mais rendoso ofício de quantos tenham aparecido; e a própria miséria, no que ela tem de doloroso e de pungente, sofre com essa exploração.

É preciso estudar a sociedade complicada e diversa dos que pedem esmola, adivinhar até onde vai a verdade e até onde chega a malandrice, para compreender como a polícia descura o agasalho da invalidez e a toleima incauta dos que dão esmolas.

Entre os homens mendigos há irmãos da opa115, agentes de depravação viciados, profissionais de doenças falsas, mascarando um formidável cenário de dores e de aniquilamento. Só depois de um longo convívio é que se pode assistir à iniciação da maçonaria dos miseráveis, os estudos de extorsão pelo rogo, toda a tática lenta do pedido em nome de Deus que, às vezes, acaba em pancada. Os homens exploradores não tem brio. As mulheres, só quando são realmente desgraçadas é que não mentem e não fantasiam. São, entretanto, as mais incríveis.

Foi Pietro Mazzoli, um mendigo cínico, que pára sempre no Largo do Capim, quem me apontou o meio diverso da mendicidade das mulheres. Pietro é baixo, reforçado, corado. Puxa sempre a suiça potente, com o minúsculo chapeuzinho posto ao lado, sobre a juba enorme e cheia de lêndeas116. É mendigo por desfastio e comodidade. Soldado, fugiu do serviço militar como criado de bordo. Em Buenos Aires fez-se inculcador de casas suspeitas, porteiro do mesmo gênero, caften, barítono de café cantante, preso. No Rio, sendo-lhe habitual a prisão, já foi cego, torto das pernas, aleijado de carrinho, corcunda, maneta, atacado do mal de S. Guido. É o Frégoli117 da miséria. Antes de se estabelecer mendigo, andou pelo Estado do Rio fazendo dançar um urso que era um companheiro de malandragens. Essa pilhéria do urso nada autêntico valeu-lhe uma sova e três anos de prisão. Homem de tal jaez conhece todos os truques, a falsa miséria e a verdadeira, a exploração e a dor sentida. É ele quem nos inicia.

Há mendigas burguesas, mendigas mães de família, alugadas, dirigidas por caftens, cegas que vêem admiravelmente bem, chaguentas lépidas, cartomantes ambulantes, vagabundas, e uma série de mulheres perdidas cuja estrela escureceu na mais aflitiva desgraça.

Nos pontos dos bondes, pelas ruas, guiadas sempre por crianças de faces inexpressivas, vemos tristes criaturas com as mãos estendidas, mastigando desejos para a nossa salvação, com a ajuda de Deus

Há a Antônia Maria, a Zulmira, a viúva Justina, a d. Ambrosina, a excelente e anafada tia Josefa; umas magras, amparadas aos bordões, chorando humildades; outras gordas, movendo a mole do corpo com tremidinhos de creme. Às portas das igrejas param, indagam quem entra, a ver se a missa é de gente rica; postam-se nas escadarias, agachadas, salmodiando funerariamente, olhando com rancor os mendigos -negros roídos de alcoolismo, velhos a tremer de sífilis. A lista dessas senhoras é interminável, e há entre elas, negócios à parte, uma interessante sociabilidade. Cada uma tem o seu bairro a explorar, a sua igreja, o seu ponto livre de incômodos imprevistos. Quando aparece alguma neófita, olham-na furiosas e martirizam-na como nas escolas aos estudantes calouros.

Têm, naturalmente, uma vida regrada a cronômetro suíço, criaturas tão convencidas do seu ofício. Saem de casa às 6 da manhã, ouvem missa devotamente porque acreditam em Deus e usam ao peito medalhinhas de santos.

Depois, postam-se à porta até que a última missa tenha dado a receita suficiente às várias dependências do templo, vão almoçar e começam a peregrinação pelos bondes, de porta em porta, até à hora de jantar. Uma, a Isabel Ferreira, cabocla esguia e má, pede à noite e confessa que isso dá uma nota mais lúgubre, mais emocionante ao pedido.

Ao passar por essa gente sentem todos o fraco egoísmo da bondade e, cinco ou seis dias depois de as conversar, percebe-se que esmolar é apenas uma profissão menos fatigante que coser ou lavar -e sem responsabilidades, na sombra, na pândega. A maior parte dessas senhoras não tem moléstia alguma; sustenta a casa arrumadinha, canja aos domingos, fatiotas novas para os grandes dias. São, ou dizem-se, quase sempre viúvas.

Algumas, embrulhadas em xales pretos, acompanhadas de dois ou três petizes, as mais das vezes alugados -como uma certa mulher cor de cera, chamada Rosa- percorrem os estabelecimentos comerciais, ou lugares de agitação; sobem às redações dos jornais, forçando a esmola, agarrando, implorando. A d. Rosa, para dizer o seu nome e a inaudita felicidade da vida numa rede de mentiras, arrancou-me cinco mil réis, com precipitação, arte e destreza tais que, quando dei por mim, já ia longe com os petizes e a nota.

Não há uma só cuja coleta diária seja menor de dez mil réis, e, cada qual pede a seu modo, invadindo até as sacristias das igrejas. A Francisca Soares, da igreja de S. Francisco, envolta em uma mantilha de velho merinó118, começa sempre louvando os irmãos benfeitores pintados pelo sr. Petit.

Que retratos! Estão tal qual, certinhos! Depois, pergunta-nos se não temos coupons de volta dos bondes, arrisca-se a implorar o tostão em troca do coupon e, quando vê a moeda, fala mais do sr. Petit e acha pouco. Outras, dotadas de grande vocação dramática, sussurram, com a face decomposta, a angústia de um irmão morto em casa, sem dinheiro para o caixão. O resto, sem inventiva, macaqueia o multiformismo da invalidez, rezando.

A esmola, apesar da crise econômica que os jornais proclamam, subiu. Não há quem dê moeda de cobre a um mendigo sem o temor de desgostá-lo ou de levar uma descompostura cheia de pragas, que nessas bocas repuxadas causam uma dolorosa impressão de dor e de confrangimento.

Logo de manhã, quando nas torres os sinos tangem, a tropa sobe para a igreja.

-Bom dia, d. Guilhermina.

-Bom dia, d. Antônia. Como vai dos seus incômodos?

-O reumatismo não me deixa. É desta laje fria.

-Que se há de fazer? É a vontade de Deus. Então, hoje, missas boas?

-Li no jornal: às nove e meia a do general... Mas, não contemos. Os ricaços estão cada vez mais sovinas.

Aconchegam-se, tomam posição e, pouco depois, os níqueis começam a cair e as vozes de dentro dos xales a sussurrar:

-Deus vos acompanhe! Deus lhe pague! Deus lhe dê um bom fim!

Há até certos lugares rendosos que são vendidos como as cadeiras de engraxate e os fauteuils119 de teatro.

As mendigas alugadas são em geral raparigas com disposições lamurientas, velhas cabulosas120 aproveitadas pelos agentes da falsa mendicidade, com ordenado fixo e porcentagem sobre a receita. Encontrei duas moças -uma de Minas, outra da Bahia- Albertina e Josefa, e um bando de velhas nesse emprego. As raparigas são uma espécie de pupilas da sra. Genoveva que mora na Gamboa. Josefa, picada de bexiga, só espera o meio de se ver fora do jugo; Albertina, tísica, tossindo e escarrando, apresenta um atestado que a dá por mãe de três filhos.

O atestado é, de resto, um dos meios de embaçamento público.

Certo caften, morador nos subúrbios, chamado Alfredo, tem por sua conta um par de raparigas -a Jovita italiana, e a parda Maria. A Jovita foi, a princípio, criada; fugiu com um rapaz, abandonou-o e caiu na exploração da mendicidade com o sr. Alfredo. Maria é a história de Jovita, um pouco mais escurecida. Ambas têm atestado em bela letra, dizendo as graças que lhes vão por casa e o cadáver à espera do caixão.

Como Jovita é bonita, os subscritores são tão numerosos que pode fazer, sem cuidado, alguns enterramentos por semana. As 7 da noite, tomam as duas o trem na Central e quando se sentem seguidas, saltam em estações diferentes, metem-se nos bondes -tudo isso muito alegres e defendendo o sr. Alfredo com grande dedicação.

O gênero é relativamente agradável, à vista dos outros -o das vagabundas ladras e das pitonisas ambulantes, grupo de que são figuras principais as sras. Concha e Natividad, espanholas, e a sra. Eulália -cigana exótica. A sra. Concha, por exemplo, é cleptômana, e, dessa tara lhe vem a profissão -da tara e da inépcia policial. Quando cocotte121, Concha teve amantes ricos e roubava-lhes o relógio, os lenços, os alfinetes, por diversão.

Foi presa por um inglês sisudo, e partiu para Lisboa onde repetiu a cena tantas vezes que aos poucos se viu na necessidade de voltar ao Brasil como criada. Roubou de novo, foi outra vez presa e resolveu ser cartomante andarilha, ler a buena dicha122 pelos bairros pobres, pelas estalagens, para roubar. É gordinha, anda arrimada a um cacete, fingindo ter úlceras nas pernas. Aproxima-se, pede a esmola como quem pergunta se as coisas vão mal.

-Deus a favoreça!

-Você tem cara de ser feliz! Vamos ver a suerte del barajo123.

E tira do seio um maço de cartas. Quem nestas épocas dispersivas crenças, deixará de saber da própria sorte? Mandam-na entrar e ela conta histórias às famílias enquanto empalma objetos e alguns níqueis agradecidos.

Natividad e Eulália seguem o mesmo processo, mas Eulália, aduncamente cigana, lê nas mãos deformadas e calosas dos trabalhadores, enquanto as suas apalpam os bolsos do cliente.

Do fundo desse emaranhamento de vício, de malandragem, gatunice, as mulheres realmente miseráveis são em muito maior número que se pensa, criaturas que rolaram por todas as infâmias e já não sentem, já não pensam, despidas da graça e do pudor. Para estas basta um pão enlameado e um níquel; basta um copo de álcool para as ver taramelar124, recordando a existência passada.

Vivem nas praças, no Campo da Aclamação; dormem nos morros, nos subúrbios, passam à beira dos quiosques, na Saúde, em S. Diogo, nos grandes centros de multidões baixas, apanhando as migalhas dos pobres e olhando com avidez o café das companheiras. Eu encheria tiras de papel sem conta, só com o nome dessas desgraças a quem ninguém pergunta o nome, senão nas estações, entre cachações de soldados e a pose pantafaçuda125 dos inspetores; e seria um livro horrendo, aquele que contasse com a simples verdade todas as vidas anônimas desses fantásticos seres de agonia e de miséria! Andam por aí ulceradas, sujas, desgrenhadas, com as faces intumescidas e as bocas arrebentadas pelos socos, corridas a varadas dos quiosques, vaiadas pela garotada. Nas noites de chuva, sob os açoites da ventania, aconchegam-se pelos portais, metem-se pelos socavões, tiritando... Às vezes, para cúmulo de desgraça, aparecem grávidas, sem saber como, à mercê da horda de vagabundos que as viola, que as tortura, que as bate, sem lhes conceder ao menos a piedade do nojo; e os filhos morrem, desaparecem, levados na tristura do seu soluçante existir, estrangulados, talvez, nos inúmeros recantos que a milícia do nosso duplo policiamento ignora.

Acompanhado do cínico Mazzoli, ouvi-lhes as confissões inauditas. Pela noite alta, íamos os dois para o Largo da Sé, para as beiradas da Santa Casa, e, diante de nós, esses semblantes alanhados de sofrimento, os olhos em pranto, como um bando de espertos, desvendaram-nos os paroxismos da vida antiga.

Eram amorosas exploradas, ardendo ainda em raiva passional, eram vítimas do caftismo sentindo no lábio o freio de lenocínio, eram cocottes do chic, escalavradas de sífilis, na dor do luxo passado, e velhas, velhas sem pecado, que a miséria, a ingratidão e a misteriosa fatalidade desfaziam nos mais amargurados transes. Nunca os descabelados românticos imaginaram tão torvos quadros.

Já quando se lhes pergunta o nome com bondade, a surpresa estala em choro.

-Chamo-me Zoarda. Sou cubana. Vim para o Rio com um pelotari126. Ao chegar aqui, outro conquistou-me. Fui explorada por ambos. Eram bonitos, eram fortes! Adoeci; eles tomaram outra. Quando saí do hospital só pensava em matá-la!

-A quem?

-A ela, a outra. Fui, entretanto, presa e novamente segui para a Gamboa, onde cheguei a ser enfermeira. Quando de lá saí, roída pela moléstia, estava este trapo à espera do Zé-Maria.

-O Zé-Maria?

-Sim, da morte!

Zoarda vive a fingir que tem barriga-d'água.

-Josefina Veral, sim, senhor. Vim como criada. Um homem raptou-me; vivi com ele seis anos. Entreguei-me à prostituição explorada por dois malandros. Roubavam-me, a moléstia acabou a obra... Não posso trabalhar.

E de dentro de sua negra boca saem descrições satânicas da vida que a inutilizara.

-Ema Rosnick, nascida em Budapeste em 1874. Fui enjeitada num corredor. Os moradores levaram-me à polícia que cuidou de mim. Aos 18 anos casei com Rosnick, um debochado. Uma vez atirou-me aos braços de um amigo, a quem matou depois por questões de jogo; vim para o Brasil... Oh! os exploradores. Estou neste estado.

Esta mulher de trinta anos parece ter sessenta.

E outras e outras, floristas ainda moças, velhas que tiveram lar, mulheres passionais ou vítimas do amor, como nas prosas byronianas de 1830, como nos dramalhões do Recreio, um mundo de soluços, que, visto, ao nosso cepticismo parece falso.

Certa noite, no Largo da Sé, encontramos junto ao quiosque, cheia de latas velhas e coberta de andrajos, uma cara de velha boneca aureolada de farripas louras. A cara sinistra falava francês.

-Dá-me uma cigarreta, fez com o seu melhor sorriso. Turco? Il y a longtemps!... Oh! Oh! fuma gianaclis127?

Arredou as latas, puxou a traparia e os sacos com o ar de mímica Daynès Grassot.

-Afaste o mendigo, disse baixo, e para a soleira suja: Asseyez-vous. Vous êtes journaliste?

Eu vinha encontrar à espera dos restos de pão uma das mundanas do Alcazar; eu estava falando com Françoise D'Albigny; a Fran, a levada Fran, que tivera carros e agora discorria, com um arzinho postiço, da Suzane Castera, de um deputado do norte que ainda hoje figura na Câmara, de um conhecido jornalista seu amigo!

-Desgraças, mon petit! Tenho 65 anos. Casei, sabes, uma loucura! Casei com Maconi, que me pôs neste estado!

Representando logo, o pobre trapo da luxúria elegante, bateu-me a caixa de cigarretas e dinheiro, que com um sorriso atroz dizia ser para bonbons.

Eram dez horas da noite. O dono do quiosque fechava as persianas, apagando os bicos de gás. E, vendo-a naquele gozo, na pantomima do prazer, berrou, de longe:

-Eh! lá, lambisgóia velha, se não te apressas não levas o pão!

Os que começam...

Não há decerto exploração mais dolorosa que a das crianças. Os homens, as mulheres ainda pantomimam a miséria para lucro próprio. As crianças são lançadas no ofício torpe pelos pais, por criaturas indignas, e crescem com o vício adaptando a curvilínea e acovardada alma da mendicidade malandra. Nada mais pavoroso do que este meio em que há adolescentes de dezoito anos e pirralhos de três, garotos amarelos de um lustro de idade e moçoilas púberes sujeitas a todas as passividades. Essa criançada parece não pensar e nunca ter tido vergonha, amoldadas para o crime de amanhã, para a prostituição em grande escala. Há no Rio um número considerável de pobrezinhos sacrificados, petizes que andam a guiar senhoras falsamente cegas, punguistas sem proteção, paralíticos, amputados, escrofulosos, gatunos de sacola, apanhadores de pontas de cigarros, crias de famílias necessitadas, simples vagabundos à espera de complacências escabrosas, um mundo vário, o olhar de crime, o broto das árvores que irão obumbrar as galerias da detenção, todo um exército de desbriados e de bandidos, de prostitutas futuras, galopando pela cidade à cata do pão para os exploradores. Interrogados, mentem a princípio, negando; depois exageram as falcatruas e acabam a chorar, contando que são o sustento de uma súcia de criminosos que a polícia não persegue.

A metade desse bando conhece as leis do prefeito, os delegados de polícia e acompanha o movimento da política indígena, oposicionista e vendo em cada homem importante uma roubalheira. São em geral os mendigos claramente defeituosos a que falta uma perna, um braço.

A perda que os tornou inválidos é uma espécie de felicidade, a indolência e o sustento garantidos.

À beira das calçadas o dia inteiro têm tempo de se tornarem homens e de ler os jornais. Fazem tudo isso com vagar. Quando um ponto se torna insustentável vão para outros, e há entre eles relações, morféias128 que se ligam às úlceras, olhos em pus que olham com ternura companheiros sem braços, e todos guardando a data do desastre que os mutilou, que os fez entrar para a nova vida com a saudade da vida passada.

Fui encontrar na ponte das barcas Ferry alguns de volta de Niterói. Vinham alegres, batendo com as muletas, a sacolejar os fartos sacos, na tarde álgida. Só nessa tarde interroguei seis: Francisco, antigo peralta da Saúde; Antônio, jovem de dezoito anos, que, graças à falta de uma perna, trabalha desde os doze; Pedro, pardinho crispinhento129, que ri como um suíno e é o curador de uma senhora idosa; João Justino, sem um braço, e pequenos Felismino e Aurélio. Voltavam de mendigar.

Francisco é atroz. Míope, com a cara cheia de sulcos, a boca enorme e sem dentes, fuma cigarros empapados de saliva e tagarela sem descontinuar.

-Qual! Niterói não dá nada. Às vezes tenho que pedir emprestado para voltar. O xará não permite porém mendigo sem realejo. Eu sou fino. Vou para outro lugar.

-Quantas vezes estiveste na cadeia?

-Eu? não senhor! nunca! É verdade que uma vez fui preso por um inspetor viciado... Mas não estava fazendo nada. Também não me incomodo. Vou, torno a sair. E, sem transição: não imagina as vezes que tenho sido pegado. O Dr. Paula Pessoa, quando era delegado, já dizia: para pegar essas inutilidades? E eu só esperando. Olhe -morrer de fome é que eu não morro.

-Então já estiveste preso?

Quantas vezes! É preferível a cadeia ao tal Asilo. Antônio é outro gênero, o gênero dulçoroso, cheio de humildades açucaradas. Repete logo como uma nota policial o esmagamento da perna. Foi a 11 de novembro de 1897, na esquina da Rua da Uruguaiana. Caiu às 2 e 20 da tarde, quando passava o bonde chapa tanto.

E diz essas coisas vagamente magoado como se chorasse sem sentir. Mas mente, inventa nomes, faz-me jurar que não lhe farei mal, entrega-se à minha proteção, de que depende a sua vida, com uma detestável e beata hipocrisia. Era ajudante de pedreiro. Após o desastre mandaram-no esmolar no Passeio Público. O pai é trabalhador, ganha quatro mil e quinhentos, tem oito filhos e a mulher doente.

Ele ajuda com o dinheiro das esmolas. É um dos casos de formação de caráter, de inversão moral. Adolescente, forte, musculosa, a permanência na mendicidade deu-lhe à voz melopéias suspirosas e um recheio de votos pela sorte alheia. Não fala um segundo sem pedir a Deus que nos ajude, sem agradecer em nome de Deus a nossa bondade.

-Ai! Nossa Senhora, juro por Deus que todo o desejo que tenho é trabalhar...

Simples blague. Dêem-lhe um emprego e rejeitará, inutilizado pela vida de sarjeta, de desbrio, de inconsciente sem-vergonhice a que o forçou o pai.

Esse bando, porém, é evidentemente defeituoso; ganha dinheiro, como se estivesse empregado para sustentar a família. Há o outro, o maior, o infindável, que a polícia parece ignorar, a exploração capaz de emocionar os delegados nos dramalhões, a indústria da esmola infantil exercida por um grupo de matronas indignas e de homens criminosos, as criancinhas implumes, piolhentas e sujas, que saem para a rua às varadas, obrigadas ao sustento de casas inteiras; há a exploração lenta, que ensina os pequenos a roubar e as meninas a se prostituirem; o caftismo disfarçado, que espanca, maltrata e extorque. É um vasto tremedal130 a que a retórica sentimental nada adianta, cujo mal a segurança pública não quer remediar. Basta ter a simples curiosidade para mergulhar nesse caleidoscópio infinito de cenas torturantes de uma mesma ação, basta parar a uma esquina e ouvir a narração dessas tragédias vulgares e de fácil remédio.

A série de meninas é enorme, desde as cínicas de face terrosa às ingênuas e lindas.

-Como se chama você?

-Elisinha, sim senhor.

É parda: tem nove anos.

Embrulhada nuns farrapos, a tremer com os beicinhos roxos e as mãos no ar, muito aflita, parece que lhe vão bater. Mora na Rua Frei Caneca.

Não vai para a casa, não pode ir. A madrinha bate-lhe, tem o corpo cheio de equimoses.

-Quando não arranjo bastante para a madrinha e as filhas, dão-me sovas!

Destes casos há muitos com diversas modalidades. Jovita, por exemplo, pede esmola com uma bandeja dizendo que é missa pedida ou promessa feita. A mulher que a criou e a explora, a terrível megera Maria Trapo Velho, mora na Rua São Diogo e dá-lhe conselhos de roubo.

-Ela diz que, quando encontrar roupas ou outros objetos, meta no saco. Quando passo uma semana sem levar nada, põe-me de castigo, com os joelhos em cima do milho e sem comer.

Rosinha mora na Rua Formosa. Sai acompanhando uma senhora que finge de cega. A mãe é negra; ela é alva e todos ficam admirados!

Judite, com oito anos, moradora à Rua da Lapa, andava com o pai pelo subúrbio, tocando realejo. O pai fingia-se de cego, e como um cidadão descobrisse a patifaria, é ela só quem esmola, atacando as senhoras, pedindo algum dinheiro para a mãe moribunda. Laura e Amélia, filhas da senhora Josefina, têm um irmão que aprende o ofício de carpinteiro, moram na Rua da Providência e passam o dia a arranjar dinheiro para a mamã mais o padrasto.

-E o padrasto, que faz?

-Dá pancada na gente quando não se anda direito.

Estela, mulatinha, vive com uma dama que se diz sua avó, na Rua Senador Eusébio. As vezes fica até às dez horas da noite à porta da Central, esmolando. Nicota, moradora no Pedregulho, tem treze anos e perigosa viveza de olhar. A puberdade, a languidez dos membros rijos dão-lhe receitas grandes. É mandada pelo padrasto, um português chamado Jerônimo, que a industria. Explora a miséria no jardim de Eros, fazendo tudo quanto a não prejudica definitivamente, à porta dos quartéis, pelos bairros comerciais, ao escurecer. Confessa que vai abandonar o Jerônimo pelo sargento Gomes, a quem ama. A lista não tem fim, é o mesmo fato com variantes secundárias.

Se nessas crianças encontramos o abismo da perdição a tragá-las, nos pequenos vemos um grande esboço de todos os crimes.

Em quatro dias interrogamos noventa e seis garotos, estrangeiros, negros, mulatos, uma sociedade movediça e dolorosa. Há desde os pequenos que sustentam famílias até os gatunos precoces que se deixam roubar na vermelhinha à beira do cais, entre murros e cachações.

O primeiro a encontrarmos é o negrinho Félix, morador à Rua do Costa, órfão, que vive na casa de uma família. Como as coisas estão más, sai de sacola, a esmolar e a roubar. Já esteve preso por apanhar várias amostras de uma loja, mas um moço da polícia, que gosta de uma das meninas da casa, soltou-o.

-Que fazes hoje?

-Hoje tenho que roubar um queijo. Sinhazinha diz que não apareça sem um queijo.

Armando, petiz de dez anos, diz-se italiano por causa das dúvidas. Pára no Largo da Sé e, ingenuamente, conta que a família não faz comida há três anos. É ele que arranja tudo, fora os cobres. José Vizuvi, também italiano, é filho do conhecido mendigo Vizuvi. Sai da Rua do Alcântara, onde mora, às 5 da manhã, à procura dos pães que os padeiros costumam deixar nas janelas e à porta de certas casas. Quando a janela é alta serve-se de um pau em forma de ferrão. O pai ensina-o a roubar. Dudu de Oliveira passa o dia no Mercado e nos bairros centrais. A mãe, fingindo-se de cega, esmola no Largo do Machado. Ele leva recados suspeitos e propõe-se a misteres ignóbeis.

João Silva, morador à Rua Senador Pompeu, com treze anos, também serve para esses serviços pouco asseados. A mãe, sem emprego, é espancada pelo amante que lhe arranca todo o dinheiro. Franzino, doloroso, esse pretinho na ânsia da vida sustenta um caften reles. Todos esses nomes ignorados escondem dramas pungentes, cenas de horror, vidas perdidas.

A observação de tantos casos não me dava o tipo do explorador, não me mostrava os peralvilhos que vivem à custa das pobres crianças, receosas de me mostrar as casas onde são torturadas. Encontrei-o, porém, o tipo ideal, o drama resumo de um estado social, a tragédia soluçante que cada vez mais se alastra.

Logo no começo da Rua Uruguaiana há uma mulher de cor branca, fisionomia torva, sempre embiocada em panos pretos. Chamam-na a Cameleão, alcunha que lhe ficou do peralta do filho. Esse ente repelente tem uma estalagem, um prédio; é rica e pede esmola, provando ser viúva pobre. Quando encontra crianças, leva-as para a casa, um doloroso centro de lenocínio e velhacaria, a extorqui-las. Presentemente tem cinco petizes, todos menores de doze anos; três meninos, Alfredo, Felipe e Narciso, e duas meninas, Gertrudes e Madalena. As criancinhas saem pela manhã, voltam para almoçar, tornam a sair e só voltam à noite, para o interrogatório e a palmatória.

Um dos pequenos mostrou-me o ogre horrendo. Arrastava-se com uma voz pastosa e, quando me viu, trêmula curvou-se.

-Pelo amor de Deus! Uma esmola para os desgraçadinhos!

Os desgraçadinhos, na tarde chuvosa, pareciam transidos.

O vento fustigava-lhes as carnes seminuas e eles, agarrados uns aos outros, na fraternidade do sofrimento, sem pai, sem mãe, sem amparo, erguiam os olhos para o céu numa angustiosa súplica.

Onde às vezes termina a rua

Crimes de amor

Ao entrar no seu gabinete, severamente mobiliado de canela escura, o capitão Meira Lima disse:

-Meu caro amigo, tem você ampla liberdade. Pode ver, interrogar, examinar. Há agora na detenção quatrocentos e cinqüenta e quatro detentos, dos quais trezentos e noventa e cinco homens e cinqüenta e nove mulheres. Antigamente, era maior o número. Nós conseguimos que se não mantivessem aqui presos à disposição dos delegados sem processo. Mas, ainda assim, o exército do crime está bem representado. Há gatunos, desordeiros, incendiários, defloradores, mulheres perdidas, vítimas da sorte, criminosos por amor -toda uma flora estranha e curiosa. Estude você os crimes de amor. Lembra-se de um dramalhão do repertório da Ismênia: Aimée, ou o assassino por amor? Não é do seu tempo nem do meu, mas comoveu a geração passada e tem contínuos exemplos nas penitenciárias.

-E nas literaturas.

-Pois vá ver esses criminosos. O assassino por amor é o único delinqüente que confessa o crime.

Alguns chegam mesmo a reviver detalhes insignificantes. Ao passo que os gatunos, os incendiários e os homicidas vulgares, mesmo tendo a cumprir sentenças longas, negam sempre o crime; essas vítimas da paixão não se cansam de contar a sua história, cada vez com maior número de minúcias e mais abundância de memória.

-Pois, vejamos as vítimas do amor!

O capitão mandou chamar o chefe dos guardas, Antônio Barros, e saímos para o pátio, onde os presos serventes mourejavam.

-Há uns cinco casos notáveis, informava-se o guarda. Vamos entrar na primeira galeria.

A galeria é um enorme corredor, ladeado de cubículos engradados. A má disposição de luz, com a claridade da frente e dos fundos e a claridade das prisões, dá a esse corredor uma perpétua atmosfera de meia sombra. Através dos muros brancos ouve-se o sussurro das conversas murmuradas. Barros aponta-me silenciosamente uma das jaulas. Aproximo-me e do fundo vejo surgir um velho preto, magro, seco, com o olhar ardente e a cabeça branca. Pergunto receoso:

-Por que está aqui?

-Porque matei.

Nas prisões há duas coisas revoltantes: o cinismo do que nega e o que confessa como uma afronta. Aquela frase breve tinha, porém, cunho de uma dolorosa sinceridade.

-Eu sou do crime da Estrada Real, continuou o pobre agarrando-se aos varões de ferro. Chamo-me Salvador Firmino, tenho sessenta e três anos.

-E matou?

-Porque ela quis.

E de repente, como se a lembrança da cena o forçasse a se desculpar, a sua cabeça branca curvou-se, os seus olhos lampejaram:

-Quando eu encontrei Silvéria, era casado e feliz. Abandonei a mulher, só para viver com ela. Silvéria tinha dois filhos. Eduquei-os eu, dei-lhes o sustento, o ensino. Uma casa que consegui comprar logo passei para o seu nome, e de tudo eu me lembrava que a tornasse feliz. Silvéria tinha quarenta anos e eu gostava dela. Foi quando apareceu o outro. A mulher ficou com a cabeça virada, já não lhe bastava o meu carinho. Saía só, para passear com ele, não se importava com o passado, não me falava. O desaforo chegou ao ponto do outro vir trazê-la até à porta de casa. As vezes, eu os via de longe e entrava no mato para os não encontrar. Que dor! Eu tinha tanto medo de acabar... Uma noite, ela saiu, esteve na festa de Nossa Senhora e voltou acompanhada até à porta pelo outro. Eu bem que os vira, mas fingi não saber de nada quando entrei em casa. Silvéria conversava com a vizinha e dizia: «Mas se eu já lhe disse que podia vir...» Não pude comer a sopa; fui logo deitar-me. Do quarto via-se a sala, onde dormia o pequeno filho dela, e não demorou muito tempo que a vizinha não colocasse na cama outro travesseiro. Eu estava olhando, à luz da lamparina. Deixei passar alguns minutos e disse: «Ó Silvéria, vem-te deitar.» Ela não respondeu. «Silvéria, já disse que viesses dormir!» «Já vou.» De repente, os cães, no terreiro, começaram a ladrar. Era um alarido. Saltei da cama, agarrei o revólver. «Quem está aí?» Ela apareceu então: «Deita-te, não é nada.» «Qual! Pois se os cães estão ladrando... É alguém.» «Que vais fazer?» «Ver». «Não vás, Firmino não vás, não é nada!» E agarrava-se ao meu braço. «Como não hei de ir? Se for gatuno? Talvez esteja a roubar a criação.» «Firmino, meu velho, não vás!» Dei-lhe um empurrão, abri a tranca. Na moita, só a lua aclarava as moitas e os cães arfavam cansados. Voltei. Ela estava sentada, chorando. «Tu desconfias de mim!» «Eu? que falso!» «Tu pensavas que era o Herculano!» «Eu? Nem pensava nisso!» «Pensavas, sim! E o melhor é acabar com isso. Vou-me embora!» Ela estava à espera de um pretexto. Para que discussões? Deitei-me outra vez, sem poder dormir. Silvéria continuava na sala, remexendo os móveis. Pela madrugada, já os galos tinham cantado e o luar estava desmaiado, ouvi que abriam a porta. Ergui-me, corri. Ela ia pela estrada, com a trouxa da roupa, ia sem se despedir de mim, que lhe dera tudo, ia embora... Deitei a gritar: «Silvéria! Silvéria! Não vás.» «Adeus!» «Mas tu estás maluca, mulher.» «Não me fales, estou farta.» «Vais para o Herculano?» «Vou, sim, e agora?» «Um homem que podia ser teu filho!» «Talvez seja mais feliz.» «Silvéria! Silvéria!» «Basta de conversa fiada...» Eu então senti um desespero que me sacudia os nervos e não pude mais...

Para ouvir a história, encostara a cabeça na pedra em que os varões de ferro se encravavam. O pobre velho tremia num soluço sem fim. Então, eu lhe estendi a mão sem uma palavra, e segui, como se tivesse acordado de um horrível pesadelo. O guarda Barros acompanhava-me.

-Pobre homem! Tentou suicidar-se e é preciso uma vigilância extrema para que aqui não tente outra vez contra a própria vida.

Já os sinais misteriosos com os quais se correspondem os detentos haviam anunciado uma pessoa estranha ao estabelecimento. Em todos os cubículos, nas galerias, correra o som anunciador, e nas grades amontoavam-se as caras dos que não serão em breve da sociedade. Barros parou pouco adiante, apontando-me um homem magro, pálido, com o pescoço embrulhado num cache-nez. O homem corcovava tossindo, e os seus dois olhos brilhavam como os de um tísico. Ao lado, um português bem disposto sorria.

-O seu crime?

-Umas rusgas, tentativa de morte, não fui eu...

-E o seu?

-Matei minha mulher.

Esse também confessava. Então era verdade? O crime de amor é o único confessável? Acerquei-me cheio de simpatia, e o sujeito magro não esperou que eu lhe perguntasse mais nada. Antes, na ânsia de desabafar, atirou o cache-nez às costas e começou:

-Chamo-me Abílio Sarano, sou barbeiro. Sempre fui honesto. É a primeira vez que entro aqui por causa do crime do Catete. Não sabe? V. S.ª não sabe? Eu namorei uma moça, d. Geraldina, e com ela casei-me. Dias depois do nosso casamento minha esposa confessou-me que tinha sido gozada por um negociante, amante de sua própria mãe. Esse homem voltava a persegui-la. Era de noite, eu voltara do trabalho e amava minha senhora. Foi como se o mundo todo se desmoronasse. Ela, coitadinha, caíra de joelhos; eu interrogava, querendo saber tudo. «Anda, fala, dize como foi.» O negociante, o biltre forçara-a numa cadeira, e ninguém soubera. Quando acabou, eu estava sem forças e chorava. «E agora, Geraldina, que será de nós? que vai ser de nós?» Ela consolava-me. Agora, era esquecer esse sujeito odioso. Acreditei e começamos a viver a triste vida da dúvida. A mãe infame e a família continuavam, porém, a seduzi-la. Uma noite, apesar de ser sábado, eu fui cedo para casa. Geraldina estava nervosa. Conversávamos na sala quando a criada veio dizer que um homem procurava a patroa. «Um homem? Espera, vou eu mesmo ver quem é.» No topo da escada estava um cidadão robusto. «d. Geraldina está?». Num relâmpago compreendi que era ele. «d. Geraldina? Ah! Canalha, espera que eu te vou dar a Geraldina!» Saquei do revólver, e minha senhora apareceu assustada: «Fuja, seu Álvaro, fuja! Fuja!». Ela mandava-o fugir. Como um louco, ergui a arma. Ele descia os degraus da escada e Geraldina tapara-me a passagem. Detonei uma, duas vezes, descemos de roldão. No patamar, o corpo dele jazia. Matei-o, pensei, acabei a minha vida! E deitei a correr... Só mais tarde, soube a verdade. As balas tinham ferido minha mulher. Ele fingira-se morto e escapara são e salvo. É por isso que estou aqui.

O chefe dos guardas chamara-me ao fundo, para a mesa que fica entre as escadas das galerias superiores.

-Há ainda dois casos interessantes: um menino e uma mulher. Quer ver? Vou mandar buscar o menino. Sente-se.

Eu sentei-me. Por todas as janelas gradeadas, o sol entrava claro e benfazejo. Minutos depois, surgia, trazido pelo guarda, um pardinho cor de azeitona, dessas fisionomias honestas, alheias a devassidões.

-Como se chama?

Ele tomou uma posição respeitosa, falando bem, com desembaraço.

-Chamo-me Alfredo Paulino, sim, senhor. Tenho dezoito anos.

-E já casado?

-Casei aos dezesseis. Os meus parentes não queriam, mas depois o pai disse: «É melhor mesmo. Ao menos, não ficas perdido». Eu já ganhava o suficiente para sustentar dignamente a minha família. Casei. Foi nessa ocasião que o Dr. Constantino Néri me ofereceu o emprego de copeiro no palácio de Manaus. Aceitei, e voltávamos para o Rio quando a bordo encontramos um rapaz de dezoito anos, chamado José.

-Era bonito o José?

-Era simpático, sim, senhor, não posso negar. Ficamos tão amigos que, ao chegar, ele foi morar conosco. Primeiro, tudo andou direito, mas depois começaram os cochicos, as frases, as cartas anônimas. Era preciso tomar uma resolução. Disse ao José que não o podia ter mais em casa -por certas dificuldades. Ele saiu, mas eu sabia que a Adélia lhe falava. Passaram-se meses nessa tortura. De vez em quando eu a interrogava e sempre obtinha respostas negativas. Certo dia passei pelo José na rua e ele riu. Em casa pus Adélia em confissão, e ela disse: «É mesmo, fizeste bem em pôr esse homem na rua. Andava-me tentanto e foi tão ingrato que nem se despediu da gente direito.» De outra feita, encontrei-os na esquina, conversando e afinal, em casa. Foi então que eu fiquei desatinado.

Oh! o amor! Eu ouvira o amor sexagenário, o amor doloroso, o amor lilliput131 desse ménage de crianças! Todos tinham chegado ao mesmo fim trágico, ontem criaturas dignas, hoje com as mãos vermelhas de sangue, amanhã condenados por um juiz indiferente. Fiz um gesto. O pequeno insistiu.

-Já que estou aqui, quero trabalhar. Nunca passei sem trabalhar. Peço a V. S.ª para ver se entro como servente. Não quero estar no cubículo com aquela gente.

Neste momento traziam uma negra roliça, de dentes afiados, com um sorriso alvar a iluminar-lhe a cara. Era a Herculana, a autora de um crime célebre. Matara o amante enquanto este dormia, acendera todas as velas que encontrara e começara a cantar. O amante tinha vinte e três anos.

-E por que foi?

-Ora, nós brigamos. Eu gostava dele. Nós brigamos. Um dia, ele me disse uma porção de nomes. Eu fiquei calada, mas quando o vi deitado, com o pescoço à mostra, roncando, parece que o diabo me tentou. Eu fui então, com a faca...

Aproximei-me, e bem perto, quase murmurando as palavras:

-Diga: era capaz de fazer o mesmo outra vez, de abrir o pescoço do pobre rapaz, de acender as velas, de cantar? diga: era?

Ela riu como uma fera boceja, e disse num arranco de todo o ser:

-Eu era, sim, senhor...

Que estranha psicologia a dessas flores magníficas do jardim do crime! Que poderoso transformador o amor! Bem dizia Tennyson ao evocá-lo: Thou madest Life, in man and brute, thou madest Death... Eu começara a minha visita à beira do desespero, na púrpura de uma moita de lírios vermelhos.

Com os corações em sangue, vi uma coleção de assassinos, desde um velho lamentável até uma criança honesta, postos fora da sociedade pelo desvario, pela loucura que a paixão sopra no mundo. A mulher, que os poetas levam a cantar, Vênus inconsciente e perversa, Lilith132, lendária, surgia nessa ruína, perdendo, estragando, corroendo, matando, e eu sentia, no olhar e no gesto de cada uma das vítimas do amor, o desejo de guardar o perfil das suas destruidoras. Oh! Esses seres, que Schopenhauer denominava animais de cabelos compridos e idéias curtas, que formidável obra de destruição cometem! São a torrente a que ninguém pode resistir, a força dominadora da maldade, os molochs133 da alegria. As gerações futuras, livres dos nossos velhos deuses, devem, para que a harmonia as guie, levantar nas cidades um altar votivo onde os adolescentes possam sacrificar, todas as manhãs à ira de Vênus sanguissedenta.

Mas as minhas reflexões pararam. Como tocasse um sino, pela escada da direita desceu um cavalheiro elegante que tapava o rosto com o lenço. E logo depois, grácil e airosa, com um rico vestido preto, caminhou pela galeria, olhando altivamente os presos, uma mulher cuja fronte parecia a pura fronte da inocência.

O guarda curvou-se:

-O Dr. Saturnino e a esposa...

Eu vira o último crime de amor da detenção.

A galeria superior

A galeria superior é dividida por um tapume, com portas de espaço a espaço para o livre trânsito dos guardas. Os presos não podem ver os cubículos fronteiros. Os olhos abrangem apenas os muros brancos e a divisão de madeira que barra a cal das paredes. Quando a vigilância diminui, falam de cubículo para cubículo, atiram por cima do tapume jornais, cartas, recordações.

Estão atualmente na galeria duzentos e trinta e oito detentos. A aglomeração torna-os hostis. Há confabulações de ódio, murmúrios de raiva, risos que cortam como navalhas. Com o sentido auditivo educadíssimo, basta que se dirija a palavra baixo a alguém do primeiro cubículo para que o saibam no último. E então surgem todos, agarram-se às grades, com o olhar escarninho dos bandidos e a curiosidade má que lhes decompõe a cara.

Ah! Essa galeria! Tem qualquer coisa de sinistro e de canalha, um ar de hospedaria da infâmia à beira da vida. Nos cubículos há, às vezes, dezenove homens condenados por crimes diversos, desde os defloradores de senhoras de dezoito anos até os ladrões assassinos. A promiscuidade enoja. No espaço estreito, uns lavam o chão, outros jogam, outros manipulam, com miolo de pão, santos, flores e pedras de dominó, e há ainda os que escrevem planos de fuga, os professores de roubo, os iniciadores dos vícios, os íntimos passando pelos ombros dos amigos o braço caricioso... Quantos crimes se premeditam ali? Quantas perversidades rebentam na luz suja dos cárceres preventivos? Saciados da premeditação, há os jornais que lhes citam os nomes, há o desejo de possuir uma arma, desejo capaz de os fazer aguçar asas de caneca, o aço que prende a piaçava das vassouras, as colheres de sopa, e há ainda o jogo. Nesses cubículos joga-se mais de quarenta espécies de jogos. Eu só contei trinta e sete, dos quais os mais originais -o camaleão, a mosca, o periquito, o tigre, a escova, o osso, a sueca, o laço, as três chapas- são prodígios de malandragem. E nenhum deles se recusa aos parceiros. Quando algum desconhecido passa, deixam tudo, precipitam-se, alguns nus, outros em ceroulas, e há como um panorama sinistro e caótico, -negros degenerados, mulatos com contrações de símios, caras de velhos solenes, caras torpes de gatunos, cretinos babando um riso alvar, agitados delirantes, e mãos, mãos estranhas de delinqüentes, finas e tortas umas, grossas algumas, moles e tenras outras, que se grudam aos varões de ferro com o embate furioso de um vagalhão.

Vive naquela jaula o crime multiforme. O guarda aponta o Cecílio Orbano Reis, assassino, na Saúde, de uma mulher que lhe resistira; o João Dedone, facínora cínico; matadores ocasionais, como Joaquim Santana Araújo, quase demente; o Mirandinha, mulato, passador de moeda falsa, se faz passar por advogado; o Barãozinho, gatuno; Bouças Passos, ladrão assassino, Salvador Machado, o íntimo criado da Tina Tatti; negros capangas com as bocas sujas, que resistem à prisão com fúria; desordeiros temíveis como o Eduardinho da Saúde, retorcendo os bigodes, cheio de langores; sátiros moços e velhos violadores; o célebre Pitoca, que tem sessenta e seis entradas; rapazes estelionatários e até desvairados, como João Manuel Soares, acusado de tentativa de morte na pessoa do Sr. Cantuária, que leva, numa agitação perpétua, a dizer:

-Eu sei, foi o bicho... foi por causa do bicho, hein? Está claro!

Dois baixos-relevos alucinadores, dois frisos da história do crime de uma cidade, ora alegres, ora sinistros, como se fossem nascidos da colaboração macabra de um Forain e de um Goya, dois grandes painéis a gotejar sangue, treva, pus, onde perpassam, com um aspecto de bichos lendários, os estupradores de duas crianças, de sete e de dez anos.

E em meio do charco, fatalmente destinada a desaparecer, a inocência, atirada ali pela incúria das autoridades, floresce.

Encontro ao lado de respeitáveis assassinos, de gatunos conhecidos, na tropa lamentável dos recidivos, crianças ingênuas, rapazes do comércio, vendedores de jornais, uma enorme quantidade de seres que o desleixo das pretorias torna criminosos. Quase todos estão inclusos, ou no artigo 393 (crime de vadiagem), ou no 313 (ofensas físicas). Os primeiros não podem ficar presos mais de trinta dias, os segundos, sendo menores, mais de sete meses. Os processos, porém, não dão custas, e as pretorias deixam dormir em paz a formação da culpa, enquanto na indolência dos cubículos, no contacto do crime, rapazes, dias antes honestos, fazem o mais completo curso de delitos e infâmias de que há memória. Chega a revoltar a inconsciência com que a sociedade esmaga as criaturas desamparadas. Nessa enorme galeria, onde uma eterna luz lívida espalha um vago horror, vejo caixeiros portugueses com o lápis atrás da orelha, os olhos cheios de angústia; italianos vendedores de jornais, encolhidos; garçons de restaurant; operários, entre as caras cínicas dos pivettes reincidentes e os porqueiros do vício que são os chefes dos cubículos. Todos invariavelmente têm uma frase dolorosa:

-É a primeira vez que eu entro aqui!

E apelam para os guardas, sôfregos, interrogam os outros, trazem o testemunho dos chefes.

Por que estão presos? José, por exemplo, deu com uma correia na mão de um filho do cabo de um delegado; Pedro e Joaquim, ao saírem do café onde estão empregados, discutiram um pouco mais alto; Antônio atirou uma tapona à cara de Jorge. Há na nossa sociedade moços valentes, cujo sport preferido é provocar desordens: diariamente, senhores respeitáveis atacam-se a sopapo; jornalistas velho-gênero ameaçam de vez em quando pelas gazetas, falando de chicote e de pau a propósito de problemas sociais ou estéticos, inteiramente opostos a esses aviltantes instrumentos de razão bárbara. Nem os moços valentes, nem os senhores respeitáveis, nem os jornalistas vão sequer à delegacia.

Os desprotegidos da sorte, trabalhadores humildes, entram para a detenção com razões ainda menos fundadas.

E a detenção é a escola de todas as perdições e de todas as degenerescências.

O ócio dos cubículos é preenchido pelas lições de roubo, pelas perversões do instinto, pelas histórias exageradas e mentirosas. Um negro, assassino e gatuno, pertencente a qualquer quadrilha de ladrões, perde um cubículo inteiro, inventando crimes para impressionar, imaginando armas de asas de lata, criando jogos, armando rolos. Oito dias depois de dar entrada numa dessas prisões, as pobres vítimas da justiça, quase sempre espíritos incultos, sabem a técnica e o palavreado dos chicanistas134 de porta de xadrez para iludir o júri, lêem com avidez as notícias de crimes romantizados pelos repórteres e o pavor da pena é o mais intenso sugestionador da reincidência. Não há um ladrão que, interrogado sobre as origens da vocação, não responda:

-Onde aprendi? foi aqui mesmo, no cubículo.

Recolhida à sombra, nesse venenoso jardim, onde desabrocham todos os delírios, todas as nevroses, é certo que a criança sem apoio lá fora, hostilizada brutalmente pela sorte, acabará voltando. Mais de uma vez, na cerimônia indiferente e glacial da saída dos presos, eu ouvi o chefe dos guardas dizer:

-Vá, e vamos a ver se não voltas.

Como mais de uma vez ouvi o mesmo guarda, quando chegavam novas levas, dizer para umas caras já sem vergonha:

-Outra vez, seu patife, hein?

Mas que fazer, Deus misericordioso? Nunca, entre nós, ninguém se ocupou com o grande problema da penitenciária. Há bem pouco tempo, a detenção, suja e imunda, com cerca de novecentos presos à disposição de bacharéis delegados, era horrível. Passear pelas galerias era passear como o Dante pelos círculos do Inferno, e antes do Sr. Meira Lima, cuja competência não necessita mais de elogio, o cargo de administrador estava destinado a cidadãos protegidos, sem a mínima noção do que vem a ser um estabelecimento de detenção.

Qual deve ser o papel da polícia numa cidade civilizada? Em todos os congressos penitenciários, até agora tão úteis como o nosso último latino-americano, ficou claramente determinado. A polícia é uma instituição preventiva, agindo com o seu poder de intimidação, e o Dr. Guillaume e o Dr. Baker chegaram, em Estocolmo, às conclusões de que uma boa polícia tem mais força que o código penal e mais influência que a prisão.

A nossa polícia é o contrário. Para que a detenção dê resultados, faz-se necessário seja conforme ao fim predominante da pena, com o firme desejo de reformar e erguer a moral do culpado. Que fazemos nós? Agarramos uma criança de catorze anos porque deu um cascudo no vizinho, e calma, indiferente, cinicamente, começamos a levantar a moral desse petiz dando-lhe como companheiros, durante os dias de uma detenção pouco séria, o Velhinho, punguista conhecido, o Bexiga Fraga, batedor de carteira e um punhado de desordeiros da Saúde!

A princípio tomei-lhes os nomes: Manuel Fernandes, Antônio Oliveira, Francisco Queirós, Martins, Francisco Visconti, Antônio Gomes.

Mas era inútil. Para que, se o crime está na própria orgarnização da polícia? Está marcado! E eu ia deixar esse canto do jardim sinistro quando vi uma pobre criancinha, magra, encostada à parede, o olhar já a se encher de sombra.

-Como te chamas?

-José Bento.

Tinha catorze anos e era acusado de crime de morte. Fora por acaso, o outro dissera-lhe um palavrão... Quem sabe lá?

Talvez fosse. E, cheio de piedade, perguntei:

-Vamos lá, diga o que o menino quer. Prometo dar.

-Eu? Ah! Os outros são maus... são valentes sim, senhor... metem raiva à gente... Até têm armas escondidas! A gente tem que se defender... Eu tinha vontade... de uma faca...

E cobriu o rosto com as mãos trêmulas.

O dia das visitas

A força de policia é aumentada. Quatro ou cinco guardas contêm a multidão ao lado do porteiro, que distribui os cartões. A onda dos visitantes cresce a cada momento, impaciente e tumultuosa. São 11 horas da manhã. O sol queima. Há no ar uma poeira sufocadora. O saguão está cheio, a calçada está cheia. Do outro lado da rua, doceiros, homens de refrescos, vendedores de frutas estabeleceram as caixas e as latas e mercadejam em alta voz.

Nas soleiras das portas, mulheres gordas à espera, criancinhas choramingas têm o semblante desolado e triste, mas há também sujeitos alegres, peralvilhos de calça balão mastigando tangerinas e rindo; há curiosos olhando a cena, como no espetáculo, e soldados, soldados da brigada, que passeiam gingando, com os tacões altos e o quepe do lado, por cima da pastinha; dois turcos vendem imagens de santos, botões, canivetes e fósforos; um italiano, que finge de cego, instala o realejo, e o filho começa a remoer velhos trechos de ópera, dolorosamente angustiosos. De vez em quando passa uma carroça ou um enterro, alastrando a rua de poeira. Mais ao longe, trabalham os condenados da correção na nova fachada, e cada passo que algum deles dá é logo acompanhado por dois policiais de carabinas embaladas.

O sol é esmagador, pesa como chumbo. Todos esses semblantes têm qualquer coisa de revoltado e de tímido, de desafio e medo. Percebe-se o terror das pessoas importantes e o desejo secreto de apedrejá-las, essa mistura antagônica que faz o respeito da ralé.

À porta da detenção, o movimento torna-se cada vez mais difícil e o rumor cresce. Vista de fora, na semi-sombra, a multidão tem um aspecto estranho e uniforme, parece um quadro violentamente espatulado pela mesma mão delirante. Os olhos raiados de sangue, alegres ou chorosos, têm um mesmo desejo -entrar; os corpos, corpos de mulheres, frágeis corpos de crianças, corpos musculosos de homens, uma só vontade- forçar a entrada; e todos os gestos, lentos, dificultosos, presos em encontrões de rancor, exprimem o mesmo anelo, que é o de entrar.

Há pragas, frases violentas, mãos que se agarram às roupas de outros, interjeições furiosas; e de dentro, do mistério do pátio da prisão, vem um clamor formidável e indistinto, que aquece e fustiga ainda mais o desejo de entrar e de ver. O porteiro, um senhor velho de cavaignac branco, distribui os cartões irritado e a suar.

-Não deixem passar sem cartão! Não entra ninguém sem cartão!

E os cartões, sebentos, passam das mãos dos guardas para mãos sôfregas dos visitantes, enquanto na porta de ferro, desesperadamente os que os obtiveram antes procuram entrar todos a um tempo. Um cheiro especial, misto de fartum de negros e de perfumes baratos, de suores de mulheres e de roupa suja, enerva, dá-nos visões de pesadelo, crispações de raiva.

Dentro, o pátio está limpo de serventes. Das janelas da secretaria, alguns funcionários deitam olhares distraídos. Duas filas de criaturas parece ligarem a porta de ferro aos dois portões das galerias. E nessas galerias o espetáculo é medonho. Dias antes, os presos contam as horas, à espera desse instante. Uns querem matar saudades, outros contam com os amigos para mandar vender as suas obras -flores de pão, couraçados de pau; outros escreveram toda a noite cartas anônimas ao chefe de polícia, denunciando companheiros ou inimigos, e anseiam por alguém para as pôr no correio; e todos, absolutamente todos, acicateados pelo egoísmo, esperam os presentes, o fumo, o dinheiro, as prendas, como uma obrigação dos que os vão ver. Os dois portões fecham-se antes de se abrirem os cubículos, e no corredor da grande galeria é um alarido, um desespero de jaula, com gritos, imprecações gargalhadas, perguntas, risos, o pandemônio das vozes, enquanto, como uma matilha de lobos, acuada, agarrando-se aos grossos varões, uns por cima outros, os assassinos, os incendiários, os estupradores, os desordeiros e os inocentes obrigados à infâmia numa confusão, arquejam na ânsia da liberdade. De fora, os visitantes não chegam às vezes a se fazer compreender, esmagados uns nos outros, irritados, sem poder apertar a mão dos amigos. São em geral homens de lenço de seda preta e chapéu mole, adolescentes arrastando as chinelas, mulheres perdidas, velhos trêmulos. No alarido, ouvem-se frases breves -Ó Juca, trouxeste os cigarros? -Ai, meu filho, que saudades do nosso tempo de cubículo! -Sabes quem foi preso ontem? -Vê se me arranjas um habeas com o Benjamim! -Estou aqui já há um mês e três dias! Fala por mim a seu Irineu! Algumas dessas palavras são vociferadas de longe. Os que tiveram a felicidade de chegar primeiro unem as mãos entre os ferros, falam devagar. Há amantes trêmulas, vendo o ciúme nos olhos dos detentos, há pobres esposas, há crianças e há velhos respeitáveis com a face triste, todos os sentimentos escachoando, borbulhando, barulhando naquele vórtice de desgraça.

Na outra galeria estão as mulheres. Essas só são visitadas por homens, os mesmos sujeitos de lencinho preto e calça balão, que às vezes visitam num só dia quatro e cinco amigos na detenção. As conversas são mais calmas. Algumas estão lá por causa dos que as visitam, por ciúme e pancadas. Têm quase todas esse sorriso estereotipado de resignação e amargura, dos infelizes que ainda não mediram a extensão da própria infâmia. Do outro lado, os homens parece estarem ali por obrigação. Só um eu vi, menino ainda, magro, tísico, com um olho afundado em pus, que segurava, como para se aquecer, a mão de uma pequena mulatinha. Ela conversava com outro, sem lhe dar atenção. Afinal, teve um sorriso de piedade.

-E tu, João?

-As voltas com o Zé-Maria. Nem você imagina como eu ando. Estou só esperando que você saia, para tirar um pensamento da cabeça...

E as suas mãos agarravam a mão da outra, num gesto de medo e de paixão.

O clamor continuava, fragorava como um oceano que se debatesse contra os altos muros brancos. O administrador já mandara ordem para dar fim à visita. Ainda havia os serventes e os abastados. De vez em quando, destoando dos casacos-sacos dos malandros, entrava uma sobrecasaca, algum advogado de porta de xadrez, a farejar a diária de petições de habeas-corpus, lambiscando delicadezas aos guardas.

-Há alguns desses sujeitos, dizem-me, que até já estiveram presos. E conheço um que, tendo contratado um habeas-corpus por trinta mil réis, não queria que o administrador soltasse o preso enquanto não o tivesse pago dessa importância.

A nossa atenção voltou-se, porém, para uma austera senhora que descia da secretaria gravemente, com um embrulho debaixo do braço.

-Não conhece? perguntou-me um dos guardas. É missionária protestante. Vem, naturalmente, pedir ao sr. capitão Meira Lima para falar aos presos. Antigamente vinha mais vezes. Ah! o senhor nem imagina o que os detentos faziam com ela. Eram troças, pilhérias, arremedavam-na na bochecha, diziam-lhe desaforos. Por último, sopravam-lhe nos olhos pimenta em pó, através das grades do cubículo. Ela continuou, impassível, a distribuir folhetos da religião, que o pessoal transforma em baralhos.

Tenho aqui um para o senhor. Venha cá. É preciso que ela não veja.

Vamos para o saguão. O guarda desdobra por trás da jarra Tiradentes, de Benedito Machado, um embrulho, e eu vejo valetes, ases e damas admiravelmente pintados em pedaços dos livros de edificação moral. Há mesmo um rei de paus que tem nas costas S. Paulo. E no pátio, a inglesa, na sua obra regeneradora, espera com calma que o administrador consinta em mais uma distribuição de folhetos, para o fabrico de futuros baralhos!

O clamor das galerias parecia diminuir, enquanto à porta do pátio havia o mesmo atropelo de pessoas, agora querendo sair. Os protestos prorrompiam entre frases de cólera surda e frases de deboche. Uma rapariga com o filhinho nos braços bradava: -Não volto mais! Não falei ao José. É impossível chegar perto da grade! -Contente-se comigo, dona! -A mulherzinha vinha com sede! -Ó Antônio, vamos tomar uma lambada! -Ih! menino, já quebrei água hoje como quê! E as vozes alçavam-se, cruzavam-se; faziam naquela porta, como a ornamentação da raiva e da sem-vergonhice um baixo-relevo vivo de entrada de penitenciária, enquanto, suando, bufando, com os cartões na mão, aquela gente -mulatos, pretos, italianos, portugueses, fúfias e rufiões, tristes mulheres e trabalhadores de fato endomingado- dava cotoveladas e empurrões, no desejo cada qual de sair em primeiro lugar.

Um sino pôs-se a tocar. Era o fim da visita. Os sons vibravam, duros, como uma ordem. Há sinos que choram, sinos que cantam, sinos que são tristes; há sinos feitos para dobrar a finados, como os há para cantar missas em ações de graça. Aquele sino era um aguilhão. O pátio esvaziava. A tropa partia, tropa desoladora, amiga do vício e do crime.

Foi então que eu vi aparecer, carregada de embrulhos, com a coifa branca a ondular as duas grandes asas, a figura de bondade da irmã Paula. O guarda tirara o boné, cheio de um carinhoso respeito. Os malandros e os desgraçados, ainda à porta, tinham nos olhos uma expressão de timidez e de alegria.

-Bonjour, meu filho, fez a irmã com um gesto cansado. O Sr. administrador? O guarda disse qualquer coisa, comovido. Ela arrumou embrulhos, enxugou as mãos, subiu as escadas da secretaria. A sua coifa alva parecia uma grande borboleta branca.

-É a única visita que consola os presos, é a única que eles respeitam, murmurava o guarda. Quando ela fala, tão simples e tão meiga, até as pedras parece quererem-lhe bem. Quando Jesus passou por este mundo, devia ter sido assim bom para todos os desgraçados.

De novo a coifa apareceu, borboleta de esperança adejando as grandes asas brancas e, como se fizesse a obra mais natural deste mundo, a irmã Paula disse:

-Vamos ver os desgraçadinhos. Trago-lhes hoje umas coisas. O Sr. administrador é muito bom, permite.

E assim, tocado pela sua presença, a mim me pareceu que o doloroso canto do jardim do crime se transformava no horto das rosas de que fala S. Tomás de Kempis...

Versos de presos

O criminoso é um homem como outro qualquer. No primeiro momento, sob o pavor dos grandes muros de pedra, com um guarda que nos mostra os indivíduos como se mostrasse as feras de um domador, a impressão é esmagadora. Vê-se o crime, a ação tremenda ou infame; não se vê o homem sem o movimento anormal, que pôs à margem da vida. Quando a gente se habitua a vê-los e a falar-lhes todo o dia, o terror desaparece. Há sempre dois homens em cada detento -o que cometeu o crime e o atual, o preso. Os atuais são perfeitamente humanos, Só uma variedade da espécie causa sempre náuseas; os ladrões, os «punguistas», os «escrunchantes»135, porque dissimulam, mentem e têm, constante no riso e na palavra, um travo de cinismo. Os outros não. Conversam, contam fatos e pilhérias, arranjam o pretexto de ir lavar a roupa para apanhar um pouco de sol no lavadouro, são homens capazes até de sentimentos amáveis.

Ora, este país é essencialmente poético. Não há cidadão, mesmo maluco, que não tenha feito versos. Fazer versos é ter uma qualidade amável. Na detenção, abundam os bardos, os trovadores, os repentistas e os inspirados. São quase todos brasileiros ou portugueses, criados na malandragem da Saúde. A média poética é forte. Desordeiros perigosos, assassinos vulgares compõem quadras ardentes, e há poetas de todos os gêneros, desde os plagiários até os incompreensíveis. Não sei se a timidez ou outra razão mais obscura os faz assinar as composições poéticas apenas com as iniciais e quando muito com as iniciais precedidas do nome de batismo.

-Assine você o seu nome por extenso! dizia o guarda.

O poeta detento hesitava, punha as iniciais e, por baixo, entre parêntesis, escrevia o nome. As iniciais têm que vir fatalmente, são o complemento necessário ao fim da obra, Por quê? E misterioso, mas verdadeiro.

Os assuntos escolhidos pelas iniciais superiores da detenção abrangem todas as modalidades do sentir. Como há plagiários -o Antônio, crime de ferimentos, que se intitula autor da modinha Nasci para te Amar,- há simbolistas que escrevem coisas destas:

Pobre flor que mal nasceste, fatal

foi a tua sorte, que o primeiro

passo que deste com a morte deste.

Deixar-te é coisa triste. Cortar-te?

É coisa forte, pois deixar-te com vida

é deixar-te com a morte.



Há também poetas eróticos, o Chico Bentevi, autor do poema Os Amores de Carlos:

Chiquinha abriu sorrindo

a porta da sua alcova

e Carlos foi logo indo

com a sede...



Uma sede excessiva! Há poetas descritivos, trovadores simples, cançonetístas ocasionais, todos com um sentimento insistente: são patriotas e sofrem injustiça porque nasceram brasileiros.

O preso Carlos, por exemplo, que se assina Carlos F. P. Nas suas trovas é insistente a preocupação de que está preso porque é brasileiro. Escolho na sua considerável obra poética uma modinha cheia de mágoas:

Meus senhores, venham ouvir

do meu peito uma canção

tirada por um condenado

na casa de detenção.



Às mágoas segue-se o estribilho.

São martírios que se passam

sofrendo profunda dor

ser preso e condenado

por vingança é um horror.



Se os martírios fossem enormes, era natural que o Petrarca novo não compusesse quadras; mas Carlos F. P. é feroz e continua:

Fui preso sem nenhum crime

remetido para a detenção

fui condenado a trinta anos

oh! que dor de coração.



E surge afinal a preocupação, a idéia fixa:

Sou um triste brasileiro

vítima de perseguição

sou preso, sou condenado

por ser filho da nação.



Há uma porção de modinhas neste gênero. A idéia constante aparece sempre, ou na primeira ou na última quadra.

Outro poeta, José Domingos Cidade, é descritivo. Como toda a gente sabe, o poema épico passou literalmente à cançoneta. Virgílio, Lucano, Voltaire e Luís de Camões, se vivessem hoje, decerto comporiam os trabalhos de Enéias, a Farsala, a Henriade e os feitios de Vasco da Gama com refrains ao fim dos versos de mais efeito.

Não há mais ninguém com coragem para ler um poema heróico, apesar de haver ainda neste mundo de contradições -heróis guerreiros. Só o povo, a massa ignara, ainda acha prazer em ver, em rimas, batalhas ou arruaças. José Domingos, no cubículo que o veda à admiração dos contemporâneos, escreveu Os Sucessos, cançoneta repinicada, para violão e cavaquinho.

Vejam o poder de descritiva de Domingos:

Dia quinze de novembro.

antes de nascer o sol

vi toda a cavalaria

de clavinote a tiracol.



Isso é incontestavelmente mais belo que o antigo e clássico começo épico: «Eu canto os feitos, ou as armas, ou as guerras civis», de todos os vates e de Lucano, que por sinal começa dizendo: «Eu canto as nossas guerras mais que civis nos campos de Ematia...» Cidade foi mais urbano, mais imediato: cantou a refrega civil da Rua da Passagem com exagero apenas. Na segunda quadra, a descrição é soluçante:

As pobres mães choravam

e gritavam por Jesus;

o culpado disso tudo

é o Dr. Osvaldo Cruz!



Quando o homem predestinado que se chama Osvaldo Cruz pensou que José Domingos o amarrasse ao papel de carrasco em plena detenção?

Para o fim, mesmo em verso, o autor é modesto e patriota:

O autor desta modinha

é um pobre sem dinheiro

já não declaro-lhe o nome,

sou patriota brasileiro.



Os companheiros do Prata Preta, pessoal da Saúde, são naturalmente repentistas, tocadores de violão, cabras de serestas e, antes de tudo, garotos, mesmo aos quarenta anos. O malandro brasileiro é o animal mais curioso do universo, pelas qualidades de indolência, de sensualidade, de riso, de vivacidade de espírito. As quadras pornográficas são em número extraordinário; as que exprimem paixão são constantes, posto que o malandro não as faça senão para ser admirado pelos outros e independente de amar quer senhora das suas relações. Um gatuno afirmou-me que a modinha A Cor Morena era de seu amigo. Na Cor Morena há este pensamento de um perfume oriental:

Fui condenado

pela açucena

por exaltar

a cor morena...



Onde se vê o bom humour dos presos é principalmente nas quadras sobre acontecimentos políticos. O guarda Antônio Barros, que se dava ao trabalho de acompanhar as minhas horas de penitenciária voluntária, forneceu-me as seguintes remetidas por um dos detentos:

Meus amigos e camaradas

as coisas não andam boas

tomaram Porto-Artur

na conhecida Gamboa


Logo o Cardoso de Castro

ao seu Seabra foi falar

para deportar desordeiros

para o alto Juruá


Mas eu que não sou de ferro

meu corpo colei com lacre

que não gosto de chalaças

lá nos borrachas do Acre.



O exibicionismo, o reclamo, a vaidade, estas coisas que enlouquecem Sarah Bernhardt e talvez a todos nós, enlouquecem também presos. Há a princípio uma hesitação. Depois, os documentos são abundantes. Ser poeta é ser alguma coisa mais do que preso, e um negralhão capoeira, um assassino como o Bueno ou o José do Senado, após o testemunho da rima, falam mais livremente e com maior franqueza. Em duas semanas de detenção colecionei versos para publicar um copioso cancioneiro da cadeia. Há poesias de todos os gêneros, desde o lundu136 sensual até à nênia137 chorosa.

Este lundu do famoso Carlos F. P. chega a ser comovente:

Céus... meus! por piedade

tirai-me desta aflição!

Vós!... socorrei os meus filhos

das garras da maldição!



E o estribilho mais amargo ainda:

São horas, são horas

são horas de teu embarque

sinto não ver a partida

dos desterrados do Acre.



O Dr. Melo Morais, que conhece os segredos do violão, deve decerto imaginar o efeito destas palavras, à noite, na escuridão com os bordões a vibrar até às estrelas do céu...

O Amor, de resto, inunda o verso detento. Há por todos os lados choros, soluços, lábios de coral, saudades, recordações, desesperos, rogos:

Não sejas tão inclemente,

atende aos gemidos meus.



E um encontrei eu que me repetiu, com os olhos fechados, o seu último repente:

Se eu pudesse desfazer

tudo aquilo que está feito,

só assim teu coração

não veria contrafeito.



Era um rapaz pálido, como os rapazes fatais nos romances de 1850, mas com uns biceps de lutador.

Quantos poetas perdidos para sempre, quanta rima destinada ao olvido da humanidade! Cheio de interesse, um papel que me caia nas mãos, com erros de ortografia, era para mim precioso. Mas afinal, um dia, ao sair da detenção com os bolsos cheios de quadras penitenciárias, remoendo frases de psicologia triste, encontrei no bonde um poeta dos novos, que, há vinte e cinco anos, ataca as escolas velhas.

-São uns animais! bradou ele, logo após um aperto de mão imperativo. Este país está todo errado. Há mais poetas que homens. Eu, governo, mandava trancafiar metade, pelo menos, ali, com castigos corporais uma vez por mês!

Mal sabia ele que a detenção já está cheia.

As quatro idéias capitais dos presos

Às vezes, numa volta pelo pátio, a conversar com Obed Cardoso, eu via o elegante Dr. Saturnino de Matos passar, como se fosse dar milho às pombas. E, se depois de admirar o Dr. Saturníno apontavam-me, enfiado no zuarte138 do estabelecimento, com o número de metal à cinta, um modesto gatuno ou um simples assassino cujo comportamento exemplar os transformava em serventes, eu deixava o gentil Obed e gozava o calão dessas interessantes flores de patifaria.

Há na detenção reincidentes exemplares e casos de psicologia curiosíssimos. O Sargento da Meia-Noite, ladrão temível, uma espécie de transformista da infâmia, é passar os umbrais do jardim onde descansa o crime, para se tornar um cordeiro artista, uma espécie de frade medievo. Recolhido ao cubículo, inaugura logo a sua arte de miolo de pão. Faz flores, bonecos, santos, animais; pinta-os, remira-os, manda-os vender. Parece regenerado. Todos sabem, entretanto, que, uma vez livre, o Sargento não resistira à tentação de invadir a casa alheia. Os «punguistas», inofensivos lá dentro, tão certos estão de continuar a roubar que o Braga Bexiga me dizia:

-No dia em que sair, tomo logo um bonde e limpo a primeira carteira.

-Mas é difícil.

-Para quem conhece a arte não há dificuldades. Eu trabalho desde criança e tive como professor o Zezinho.

-Vamos a ver esse trabalho.

-Se V. S.ª me dá licença, eu vou tirar duas notas de duzentos que o sr. Obed pôs agora no bolso da calça.

Na outra extremidade da sala, Obed, sem que ninguém desse por isso, acabara de contar o seu dinheiro e de metê-lo no bolso da calça. Bexiga, trêmulo, com os olhinhos piscos, continuava ali a exercitar as suas criminosas observações. Capoeiras, assassinos, como Carlito e outros, reincidentes, condenados a trinta anos, exprimem a certeza de que continuarão lá fora a vida anterior. Carlito, mesmo, disse-me um dia:

-Deus aperta, mas não enforca!

Máxima muito mais profunda que quantas escritas pelo desfastio erudito do defunto Marquês de Maricá.

Os cientistas da penitenciária veriam nisso um problema a resolver, o problema de emendar o criminoso. Um, a quem eu contava o desplante dos recidivos, assegurou-me:

-É preciso aplicar o método inglês, as sentenças cumulativas, sistema de penas progressivas cuja duração é calculada pelo quociente das reincidências. Um preso condenado por ladroeira, se entrar outra vez pelo mesmo crime, tem a pena duplicada; se entrar terceira, triplicada, e assim por diante. Isto acabaria com a falha do código, o broquel de defesa dos gatunos, que nos seus artigos admiráveis tem a generalidade da pena para toda a sorte de escapatórias. Leia o dr. Monat, antigo diretor geral prisões na Índia; leia Baker, juiz de paz em Gloucester; leia Browne. As reincidências, eles o provam, diminuíram em toda a Inglaterra.

Outros perdiam-se em frases confusas, falando da necessidade urgente de reformar o nosso sistema de detenção, de pôr em ação os dois meios definitivos de corrigir: moralizar e intimidar. Eu achei mais interessante estudar as idéias e os estados da alma dos detentos.

A detenção tem idéias gerais. A primeira, a fundamental, definitiva, é a idéia monárquica. Com raríssimas exceções, que talvez não existam, todos os presos são radicalmente monarquistas. Passadores moeda falsa, incendiários, assassinos, gatunos, capoeiras, mulheres abjetas, são ferventes apóstolos da restauração. Não falam, não fazem meetings, não escrevem artigos como o Dr. Cândido de Oliveira ou o conselheiro Andrade Figueira -sentem intensamente, sem saber explicar a razão desse amor.

-É verdade; qual o governo que prefere? Eles riem, meio tímidos.

-Eu prefiro a monarquia.

-Por quê?

Sim! Por que malandros da Saúde, menores vagabundos, raparigas de vinte anos que não podem se recordar do passado regime, são monarquistas? Por que gatunos amestrados preferiam sua majestade ao dr. Rodrigues Alves? É um mistério que só poderá ter explicação no próprio sangue da raça, sangue cheio de revoltas e ao mesmo tempo servil; sangue ávido por gritar não pode! mas desejoso de ter a certeza de um senhor perpétuo.

O fato curioso é que para esta gente, de outro lado da sociedade, não basta pensar, é preciso trazer a marca das próprias opiniões no lombo. Raríssimos são os presos que na detenção não são tatuados; raros são aqueles que entre as tatuagens -lagartos, corações, sereias, estrelas- não têm no braço ou no peito a coroa imperial.

A outra idéia é a crença de Deus -uma verdadeira crise religiosa. Rezar, pedir a Deus a sua salvação, trazer bentinhos ao pescoço, ter entre os seus papéis imagens sagradas, não significa, de resto, regeneração.

Homens da espécie do Carlito ou do Cardosinho fazem o sinal da cruz ao levantar da cama para matar um homem horas depois; Serafim Bueno, um criminoso repugnante, tem uma fé surda no milagre e em Nosso Senhor; o Carrasco, gatuno torpe, treme quando se fala no castigo do céu -mas nenhum deles se regenera. Deus é apenas a salvação das suas patifarias na terra, e tanto é assim que não há desordeiro assassino em cuja mão direita não apontem, tatuadas, as cinco chagas de Cristo. Sabem a interpretação dada a este sinal?

A piedosa interpretação de que com a mão, ajudada por tão grande símbolo, não se atira à cara de um sujeito uma tapona sem que o contendor não caia ao chão!

Esses pobres entes são o normal. Há, entretanto, verdadeiras crises místicas como a desse convulsivo tratante Afonso Coelho. Afonso escreve diariamente cartas fervorosas de regeneração; reza, manda epístolas insultuosas a outros detentos, verberando-os porque a sua fé não é forte. Em todas as cartas há erros de ortografia lamentáveis e um sopro de milagre. Ao mesmo tempo, porém, Afonso Coelho esgaravata no pobre cérebro o meio de fugir. Arranja limas e corta varões de ferro. O administrador, atento, quando o trabalho está pronto, muda-o de cubículo. Vai ao tribunal e, em caminho, ainda na detenção, atira-se como um tigre, tentando escalar um portão. Os guardas têm que o puxar pelas pernas e lutar com ele, braço a braço. Traça planos de fuga, escreve indicações a amigos para abrirem portas num muro, combina fugas estranhas. O administrador guarda uma porção destas cartas, interceptadas por sua ordem. Ultimamente, visitado por um jornalista a quem dá a honra de falar, depois de discutir direitos, de meter os pés pelas mãos com a sua vaidosa mania de querer ser inteligente, acabou dizendo:

-Qual, meu amigo, já estou muito conhecido aqui. Se sair, embarco para a Europa. Lá o meio é maior.

E, cheio de doçura, enquanto desesperadamente a sua esperteza se arremete contra as grades preventivas, esse mesmo homem sonha com a Virgem, bate nos peitos e faz crer aos ingênuos ou aos interessados reformadores que é um santo no caminho de Damasco.

A terceira idéia quase obsessiva é a imprensa. Há os que têm medo de desprezá-la, há os que fingem desprezá-la, há os que a esperam aflitos. O jornal é a história diária da outra vida, cheia de sol e de liberdade; é o meio pelo qual sabem da prisão dos inimigos, do que pensa o mundo a seu respeito. Não há cubículo sem jornais. Um reporter é para essa gente inferior o poder independente, uma necessidade como a monarquia e o céu. Anunciar um reporter nas galerias é agitar loucamente os presos. Uns esticam papéis, provando inocência; outros bradam que as locais de jornais estavam erradas, outros escondem-se, receando ser conhecidos, e é um alarido de ronda infernal, uma ânsia de olhos, de clamores, de miséria... Os desordeiros acusados de ferimentos graves, com muitas mortes na consciência são, por sua natureza, vingativos e conhecem bem os reporters. E, entretanto, apesar das notícias cruéis, nunca nenhum se atreveu a tentar uma agressão. José do Senado pede:

-É com a imprensa que eu conto. O senhor foi cruel, porque não sabia...

Carlito teve, nesse dia, uma frase completa:

-Eu sei que foi o senhor o autor daquela descompostura contra mim, no jornal. Mas também estou vingado. Se não fosse eu, o sr. não escrevia tanto.

Os outros rojam, como as beatas nos altares dos santos impassíveis.

-Não fale de mim, seu reporter; deixe o meu nome sossegado, não fale!

E no dia seguinte percorrem, loucos, a folha para ver negrejar no papel poderoso a sua celebridade.

Há mesmo um preso, Antônio F., que me entregou um artigo de psicologia da imprensa. Antônio acha que, sendo o papel da imprensa educar os povos, ensinar os homens a serem até bons esposos, o nosso jornalismo é tudo quanto há de errado, de imbecil e de vazio. «Nada!» brada ele; «que aproveitam à nobreza, ou à plebe, estas banalidades! Nada! Que valem, portanto? Nada!... E nada, nada e nada milhões de vezes nada repercutia o eco do Prata ao Pará, se não corrigirem a grande força.»

A quarta idéia, a última, é a idéia fixa, a idéia constante de todos os detentos -escapar, ficar livre, burlar a prisão, apanhar novamente a liberdade. Os reincidentes conhecem as coisas do foro tanto quanto com os advogados de porta de xadrez: sabem chicanas, artigos do código, contam os dias de prisão, fazem petições de habeas-corpus, assinam declarações de inocência de outros, para que outros assinem declarações idênticas, vivem numa tensão nervosa extraordinária. A religião, que lhes dá a esperança, o jornal, que lhes lembra a rua, acendem a labareda desse desejo, e é principalmente a idéia da liberdade que modifica o humor dos presos, que faz freqüentadas as solitárias, que os torna ora alegres, de uma extrema bondade, ora agitados e terrivelmente maus.

Esses quatro ideais da generalidade dos presos fizeram-me pensar num país dirigido por eles. Um rei perpétuo governaria os vassalos, por vontade de Deus. Os vassalos teriam a liberdade de cometer todos os desatinos, confiantes na proteção divina, e a imprensa continuaria impassível no seu louvável papel de fazer celebridades. Seria muito interessante? Seria quase a mesma coisa que os governos normais -apenas com diferença da polícia na cadeia, como medida de precaução. Tanto as idéias do povo são idênticas, quer seja ele criminoso quer seja honesto!

Mulheres detentas

Quando entramos, algumas detentas lavavam a primeira sala, sob o olhar severo de um guarda.

-Tudo limpo?

-Saiba V. S.ª que ainda não.

-Pois apresse, apresse estas mulheres.

O chão de pedra estava cheio de lama. A água suja escorria da soleira da sala em dois grossos fios e as mulheres, de saia arregaçada, com pulos estranhos, davam gritinhos estridentes. Um cheiro especial, esquisito, pairava naquela galeria batida de sol, em que os metais reluziam. Os guardas tinham a fisionomia fechada.

-Quantas presas?

Há atualmente cinqüenta e oito, divididas por três salas, uma das quais é enfermaria. À falta de lugares, a promiscuidade é ignóbil nesses compartimentos transformados em cubículos. A maioria das detentas, mulatas ou negras, fúfias da última classe, são reincidentes, alcoólicas e desordeiras. Olho as duas salas com as portas de par em par abertas e fico aterrado. Há caras vivas de mulatinhas com olhos libidinosos dos macacos, há olhos amortecidos de bode em faces balofas de aguardente, há perfis esqueléticos de antigas belezas de calçada, sorrisos estúpidos navalhando bocas desdentadas, rostos brancos de medo, beiços trêmulos, e no meio dessa caricatura do abismo as cabeças oleosas das negras, os narizes chatos, as carapinhas imundas das negras alcoólicas. Alguns desses entes, lembra-me tê-los visto noutra prisão, no pátio dos delírios, no hospício. É possível? Haverá loucas na detenção como há agitados e imbecis? O Dr. Afrânio Peixoto, o psiquiatra eminente, dissera-me uma vez, apontando o pátio do hospício, onde, presas de agitação, as negras corriam clamando horrores aos céus: -Há algumas que têm quatro e cinco entradas aqui. Saem, tornam a beber e voltam fatalmente.

As mulheres tinham corrido todas para os fundos das salas, casquinando risinhos de medo. Naquela tropa, as alcóolicas andavam trôpegas, erguendo as saias com um ar palerma. Indiquei ao guarda uma delas.

-Venha cá, gritou ele.

As mulheres agitaram-se. Eu? Sou eu? Seu guarda, posso ir? O guarda tornou a chamar a massa abjeta e foi quase empurrada pelas outras que ela veio, meio envergonhada.

-Quantas vezes esteve no hospício?

A negra olhou para nós. Os seus olhos amarelos, raiados de sangue, abriram-se num esforço e ela balbuciou.

-Duas, sim senhor.

O álcool ou a preparava para a tísica rápida ou, dias depois, atiraria írremissívelmente para o manicômio.

As outras criaturas, dotadas de curiosidade irresistível, tinham-se aproximado das portas entre risadinhas e cochichos depravados, e eu pude assim, com calma e tranqüilidade, apreciar e interrogar todas as flores de enxurrada, todas essas venenosas parasitas do amor torpe num campo perdido do jardim do crime. Essas mulheres estão na detenção por coisas fúteis, coisas que cometem diariamente até à cólera final dos inspetores tolerantes ou a vingança de algum soldadinho apaixonado.

São moradoras do morro da Favela, das ruelas próximas ao quartel general, dos becos que deságuam no Largo da Lapa, das Ruas da Conceição, S. Jorge e Núncio. Quase sempre brigavam por causa de uma «tentação» que tentava e pretendia satisfazer as duas. Outras atiraram-se à cara dos apaixonados num desespero de bebedeira.

-Saiba V. S.ª que da outra vez que estive aqui foi por causa do inspetor. Eu tinha o meu bajoujo139; o bobo cheio de «fobó»140 estava-se endireitando. Mas veio de carrinho. O diabo vingou-se!

E logo outra, apoplética:

-Cá comigo é nove. Não gosto de presepadas. Ele era um rodelista141. Quando a gente gosta de um homem, gosta mesmo, nem que bata o trinta e um.

Falavam uma língua imprevista e curiosa, cuspinhando; e olhando as pobres coitadas, não sabia eu bem se falava a mulheres velhas ou a mulheres novas, de tal forma aquelas faces e aqueles corpos estavam arruinados. Perguntei a uma pardinha cujos dentes eram brancos e que devia Ter sido bonita:

-Como se chama?

-Quantos anos tem?

-Francisca Maria.

-Tenho vinte.

E estava havia cinco naquela vida de horror. E assim a Carmem da Rua Morais e Vale, e assim a Carmelina com uma navalhada na face, vibrada pela rival enquanto dormia, e assim a velha Rosa Maria à espera da liberdade apenas para continuar o seu fadário142 e voltar à detenção. Todas estão tatuadas, tatuadas nos seios, ombros, tatuadas nos braços, nas pernas, no ventre, tatuadas nas mãos, algumas até tatuadas na testa. Esses riscos azuis e essas manchas negras dão-lhes um aspecto bárbaro, um ar selvagem. Nenhuma decerto tem mais família ou amizades duradouras. A tatuagem para os seus pobres corações apodrecidos é como a exteriorização da saudade. Muitas têm, entre espadas, cristos, sereias, peixes, coroas imperiais, o nome dos que lhes deram o ser, o nome dos irmãos, o dos filhos perdidos e dos amantes que se foram: muitas, nas horas de solidão, têm na própria pele a recordação da eterna dor.

Cavalhada da luxúria, correndo nos recantos da cidade ao lado da morte e do assassinato, destinada aos fins trágicos da miséria, da sífilis ou do ciúme feroz, os seus próprios corpos são como o perpétuo símbolo das suas adorações, os altares onde se confundem todos os sentimentos. A cabocla Carmelina, uma das mais tatuadas, tem de tudo no corpo e até as falanges formam com iniciais o nome do irmão. Os braços, ela os dedicou ao amor. Há nomes e nomes, uns por cima dos outros, alguns apenas em iniciais, outros por extenso. Examinando esses dois braços de Vênus asquerosa, que com o mesmo delírio e a mesma alma apertaram na chama da paixão apaixonados diversos, o guarda perguntou, como quem quer decifrar um enigma:

-E qual destes é querido agora?

Carmelina esticou o braço esquerdo, e todos nós lemos, enquanto ela sorria, o nome de Narciso, com uma cedilha de mais por baixo do c. A criatura amava um Narciso, e decerto naquele momento aos seus olhos surgia a imagem desse seu deus temporário.

Eu porém já me nauseara, e Antônio Barros, chefe dos guardas, sempre solícito, levou-me à enfermaria, onde havia apenas três doentes -a Herculana assassina, a negrinha Gabriela do Pontes e uma pequena, feia, magra, olheirenta, espapaçada na cama como uma das múmias americanas que o museu guarda na sua seção de etnografia. Essa criaturinha tem quinze anos e parece ter mil. É dolorosamente irreal. Está condenada por crime de infanticídio. Matou o próprio filho ao nascer, mas antes devia ter matado outros, como matará os futuros com o seu olhar de círio perpetuamente ardendo na negridão das olheiras. Ao vê-la, lembra-se a gente das teorias dos criminalistas passados e principalmente das idéias de Maudsley sobre o crime e a loucura.

-Como te chamas?

-Olívia.

-Você não gosta das crianças?

Um gesto negativo de cabeça.

-Antes já procurara tomar remédios para abortar, não?

É uma pergunta sem razão de ser. A menina curva a cabeça e desata a chorar. Tudo quanto se lhe perguntar sobre o seu horror à maternidade, Olívia é incapaz de negar. Não deve estar nessa enfermaria de detenção, mas num dos pátios do hospício. E, encolhida, com os cabelos esparsos nos travesseiros, a pele ressequida como um pergaminho muito tempo esfregado por óleos bárbaros, essa infanticida de quinze anos arreganha a face num ricto de angústia como um cadáver de asteca ao ressurgir à face da terra.

Neste momento, porém, houve um rebuliço. Chegavam os presos da colônia de Dois Rios à disposição do chefe. Fora ouviam-se os rugidos de um negro abjeto, o Bronze, enleado numa camisola-de-força, esperneando, espumando. Dois outros adolescentes bem dispostos, de chinelos novos que sorriam perfeitamente contentes com a sorte, perfilavam-se ao longe entre os guardas.

Não tivemos tempo de chegar à janela. Pelo corredor vinham vindo três mulheres. Traziam toda a roupa de zuarte e um lenço cobrindo o crânio pelado. A primeira era magra, magríssima, tossindo a cada instante, com as mãos em cruz sobre o peito. De vez em quando parava e a sua face exprimia a horrenda e inexprimível dor de uma agonia sem fim. A segunda, apagada, com os braços abertos, parecia não sentir mais as pernas. A última, com uma face de burguesa honesta na miséria, tinha um ventre enorme, um ventre hidrópico, um ventre colossal. Os guardas iam-nas tocando.

-Eia! Pra diante! Eia!

As duas primeiras passaram sem ver, com o olhar insensível. A última parou.

-Não posso mais. Vim para fazer operação. Oh! o meu martírio! De qualquer forma, sr. guarda, eu morro, mas deixe-me ao menos morrer quando chegar a hora definitiva.

-Mas esta mulher é inteligente!

-Pois se até ensina a ler.

Aproximei-me:

-Ah! Meu caro senhor, por piedade, peça ao ministro o meu perdão. Há três anos que sofro. O ódio de um inspetor, a falta de amigos e de proteção reduziram-me a este lamentável estado. Venho da colônia. Não me trataram como uma presa, trataram-me como uma pessoa digna de piedade. E apesar disso eu estou assim. Perdão para mim!

-E a senhora chama-se?

-Maria José Correia. Fui professora pública...

Deus misericordioso! Que fatalidade sinistra arremessara aquele pobre ente inteligente, descendente de uma família honesta, à tropilha de uma colônia correcional? Que destino inclemente impele na sombra o homem, forma os vagalhões da popularidade, afoga uns, atira outros às estrelas e emaranha no dissabor e na tristeza a marcha do maior número? A essa mulher bastara perder o apoio da sociedade, para acabar no horizonte fechado de correcional todos os sonhos de ambição, todas as idéias felizes que os pais depositaram no seu espírito. Que lhe servia a visão superior do mundo na cloaca do crime e da luxúria? Que lhe servia ter ensinado às crianças o amor das coisas dignas, se o seu fim era acabar no eito da colônia, cavando a terra entre as desordeiras e as perdidas varridas da cidade?

Tomou-se uma espécie de medo, de fobia neurastênica. Recuei.

O guarda dizia:

-Deixa de lambança, Maria. Todos te conhecem. Saiba V. S.ª que é popular nos quiosques da Estrada de Ferro Central. Vai às cinco da manhã, e só deixa de beber quando os quiosques fecham. Antigamente servia-se da barriga para dizer que estava grávida e ser bem tratada na delegacia. Agora não há mais disso. É uma alcoólica mais malcriada que qualquer outra.

A mulher calou-se. As outras tinham parado e de repente a tísica, a que tinha na face a expressão horrenda de uma agonia sem fim, caiu de joelhos soluçando.

-Se eu tivesse o meu perdão. Nossa Senhora! não morreria aqui! Se eu tivesse o meu perdão, eu ia morrer sossegada.

Fora o sol enchia todo o pátio de um esplendor de puro líquido.

A musa das ruas

A musa das ruas é a musa que viceja nos becos e rebenta nas praças, entre o barulho da populaça e a ânsia de todas as nevroses, é a musa igualitária, a musa-povo, que desfaz os fatos mais graves em lundus e cançonetas, é a única sem pretensões porque se renova como a própria Vida. Se o Brasil é a terra da poesia, a sua grande cidade é o armazém, o ferro-velho, a aduana, o belchior, o grande empório das formas poéticas. Nesta Cosmópolis, que é o Rio, a poesia brota nas classes mais heterogêneas. A câmara regurgita de vates, o hospício tem dúzias de versejadores, as escolas grosas de nefelibatas, a cadeia fornadas de elegíacos. Onde for o homem lá estará à sua espera, definitiva e teimosa, a musa. Se tomardes um bonde modesto, encontrareis o palpite do bicho em verso nas costas do recibo; se entrais nos tramways de Botafogo, o recibo convida V. Exa numa quadra a ir a Copacabana. Os cafés são focos de micróbio rítmico, os blocos de folhinha, as balas de estalo, as adivinhações dos pássaros sábios, as poliantéias143, esse curioso gênero de engrossamento144 tipográfico e indireto, as tabuletas, os reclamos, os jornais proclamam incessantemente a preocupação poética da cidade, o anônimo mas formidável anseio de um milhão de almas pelo ritmo, que é a pulsação arterial da palavra. O verso domina, o verso rege, o verso é o coração da urbs, o verso está em toda a parte como o resultado absoluto das circunvoluções da cidade. E a musa urbana, a musa anônima, é como o riso e o soluço, a chalaça e o suspiro dos sem-nome e dos humildes.

A musa urbana! Ela é a canção, começa com os povos na história, e talvez tivesse, como o homem, a sua pré-história. Contar-lhe a idade é tentar um mergulho intérmino na clássica noite dos tempos. O primeiro homem, para dar a expressão à idéia, deu-lhe o ritmo; a primeira tribo, para exprimir os sentimentos mais complexos, descobriu a cadência. A civilização é a apoteose do verso popular, porque mais nitidamente acentua a facilidade de exprimir da massa ignorante. Os gregos faziam modinhas a todo o instante e a todo o propósito, e davam para cada uma denominação especial. Antes de saber ler tinham o sentimento do metro poético, e é o grave Aristóteles que nos faz sentir esta ridente idéia: canção e lei eram uma mesma palavra entre os helenos.

A modinha é o instinto bárbaro de independência e de maravilha no homem. Louva aos deuses, incita à guerra, canta a mesa, chora desejos de carne, e -ó coisa admirável!- foi ela que trouxe desde Atenas para os superficiais prazeres de civilização esses sons frívolos que nos cafés-cantantes nos fazem tanto bem, foi ela que modificou a onomatopéia selvagem, no delicioso tralalá.

Quando a musa anônima inventou o tralalá, jocunda insignificância, mais vasta, mais profunda que um etc. na conversa de um embaixador, a musa assegurara para todo o sempre a imortalidade, e vémo-la zurzir145 os césares em Roma e bajulá-los também; vêmo-la em plena Idade Média esconder-se nas pedras das catedrais e florir sob as espadas nuas dos cavaleiros; vêmo-la irradiar pelo universo início de literaturas, semente de grandes idéias, e nos tempos modernos fazer-se clava destruidora, bomba revolucionária, impondo a fórmula -igualdade, liberdade, fraternidade.

A canção é a sobrevivência alegre de um gênero comprido e lúgubre chamado poema épico, que já entre nós não tem cultores; a musa do povo tem esse aspecto infinito -é o contínuo epítome146 da história.

Cada nação moderna pode esquissar147 séculos da sua vida mental, política e artística, apenas com uma coleção de cantigas. A Revolução Francesa que todos teimam em considerar a base do mundo começou por modas satírícas contra Luís XIV, Richelieu e Mazarino, acentuou-se contra os favoritos de Luís XV, tornou-se brasa, látego, fogo, vergasta quando Maria Antonieta enfeitara carneirinhos nos prados cuidados, explodiu em quadras e estribilhos que lembram o embate de cargas de baionetas e afinal concluiu numa canção guerreira, a Marselhesa, que não se ouve sem se sentir a irresistível emoção do triunfo, da vitória, da apoteose.

As artes são por excelência ciências de luxo. A modinha, a cançoneta, o verso cantado não é ciência, não é arte pela sua natureza anônima, defeituosa e manca: é como a voz da cidade, como a expressão de justiceira de uma entidade a que emprestamos a nossa vida -colossal agrupamento, a formidável aglomeração, a urbs, é uma necessidade de alma urbana e espontânea vibração da calçada. Se quiserdes saber o que pensou o boulevard durante vinte anos, comprai esses papeluchos de um sou que os camelots vendem. Há desde a história do Panamá à questão dos cultos, desde a renúncia de Perier até a condenação de Sarah Bernhardt.

E se os gregos asseguravam que a poesia é um delírio inspirado pelas musas às almas simples e virgens, se o Evangelho afirma pretender o céu às crianças e aos que lhes parecem -por que teimaremos nós em dizer que a poesia preferiu o nosso cérebro ensanduichado em literaturas estrangeiras à alma simples do povo ignorante? Os poetas da calçada são as flores de todo o ano da cidade, são a sua graça anônima, a sua coquetterie148, a sua vaidade anônima e sua sagração -porque afinal o próprio Platão, que julgava Homero um envenenador público, considerava o poeta um ser leve, alado e sagrado.

É exatamente assim a nossa musa urbana. Dispépticos intelectuais, vêmo-la tristemente à margem da poesia. Que idade tem ela? Tem séculos e parece nascida ontem, passou por todas as vicissitudes e chalra149 como uma criança. Conhecem-lhe a origem? Pois decerto.

A musa renovou aqui o símbolo do filho pródigo. Teve pais notáveis, princípios sérios, e viveu no palácio dos reis, freqüentou os gênios e os salões fidalgos. Mas um belo dia, sem dizer água-vai, foi-se, degenerou, pintou o sete, embebedou-se, vive pelas alfurjas e chombergas, afina o violão em sítios escusos, e -ó acontecimento!- está forte, está sacudida, é a única musa que não tem cefaléias e não sofre de artritismo. Quem a criou? Gregório de Matos ao norte fez o lundu; S. Paulo ao sul o viradinho. A fusão dos dois é a alma do Brasil. Logo que a teve assim com todos seus encantos, Caldas Barbosa, mulato arcadiano, levou-a para Portugal.

A modinha entrou no paço dos reis, ensandeceu os peraltas e as sécias150 da decadência rocalhante151 do XIX século lusitano. As damas fechavam-se nos quartos e respiravam as endechas152 com o prazer de uma ação capitosa; os homens eram convidados para tais atos como hoje se convida para os five o'clock onde há flirt. O versinho ingênuo e babado delirava os baldaquins de trono real e a gracilidade das grandes damas. E como resistir? Como lhe poderiam resistir meridionais da terra do fado? A Modinha era o soluço, era o gemido, era o riso, era o suspiro ardente da selva ardente. Nem Lord Beckford, um inglês frio e fatalmente de gelo, como todos os ingleses, pode resistir, e esquenta e derrete. É dele a mais fogosa descrição de machucado da nossa canção:

«Quem nunca ouviu», diz, «este original gênero de música, ignorará para sempre as mais feiticeiras melodias que têm existido desde o tempo dos sibaritas. Consistem em lânguidos e interrompidos compassos, como se faltasse o fôlego por excesso de enlevo e a alma anelasse se unir a outra alma idêntica de algum objeto querido.»

«Uma ou duas horas correram quase ímperceptivelmente no deleitoso delírio que aquelas notas de sereia inspiravam, e não foi sem mágoa que eu vi a companhia dispersa e o encanto desfeito.»

Depois os poetas que sabiam ler continuaram a dar o seu prestígio às sibaríticas melodias que punham Lord Beckford em delírio e em deleite, e nós vemos toda a escola romântica tomar inconscientemente na maioria dos seus versos a feição melódica, o metro modinheiro; vemos aquele pernóstico elegante, o Magalhães dos Suspiros Poéticos, escrever em Roma versos que estão pedindo cavaquinho, gaforinha e unha grande; vemos Castro Alves criar para esse gênero canções de uma frescura eterna como a Tirana:

Minha Maria é bonita

tão bonita assim não há

o beija-flor quando passa

julga ver o manacá

minha Maria é morena

como as tardes de verão

tem as tranças da palmeira

quando sopra a viração.


E Casimiro de Abreu e Gonçalves Dias e Bittencourt da Silva, Ezequiel, Melo Morais, a leva dos ex-acadêmicos atuais conselheiros, e esse estranho Álvares de Azevedo, o único genial do bando romântico, o único predestinado como os grandes vates, o único que no choro de praxe desamargurados de estilo tinha o soluço presciente de uma tumba a abrir-se, o único que conservava no torvelinho das paixões uma alma de rosa cujo perfume desejava o céu, o único que hoje, amanhã, ninguém lerá sem sentir o soluço, o travo da morte, o ai! das agonias e a tristeza que nos causa o desaparecer de um astro, o murchar de uma flor, o tombar de um pássaro cujo breve cantar não passou de uma alegria em torno do próprio ninho...

Ainda um instante, ligando à sua dualidade, arma de dois gumes, sátira e lirismo, a musa foi a senhora capaz de entrar num salão e se conservar num ambiente respeitável. A sua paixão porém levou-a a acompanhar Laurindo Rabelo a maus lugares, o Laurindo cigano dos repentes, cantador emérito, de quem se tem dito tanto mal, tanto bem e tanta mentira. E de repente quando se falou num salão de modinhas, as damas coraram e os de família mudaram de conversa, arredando esse assunto fescenino, imoral, prejudicial à pureza do lar. A modinha dera na gandaia, a modinha era vagabunda, a modinha descera à ralé, integralmente anônima, desprezada. Melo Morais empresta a sua companhia de homem sério a tamanha bambochata, precipita-se nas vielas e bodegas para apanhar a história dos mais célebres e mais notáveis poetas, que ninguém conhece, e traz-nos naquele seu estilo, tão seu, tão complexo, tão bizarro, esses curiosos períodos:

«No Olimpo das serenatas do tempo, percebemos neste momento desfilar espectralmente, orvalhados dos relentos daquelas noites, vultos de transcendente nomeada, excelentes rapazes que passaram neste mundo para deixar lampejos fugazes e duradouras recordações. E foram eles pelo crisma popular conhecidos por Zuzu Cavaquinho, Lulu do Saco, Manezinho da Cadeia Nova ou Manezinho da Guitarra, Zé Menino, Vieira Barbeiro, ainda o Caladinho, o Inácio Ferreira, o Clementino Lisboa, o Rangel, o Saturnino, o Luisinho, Domingos dos Reis, que lá desceram para os túmulos, que ora volteio, agitando os ciprestes que os resguardam sob o céu sem eco das necrópoles.»

A modinha tinha por cultores o Manezinho do Saco e o Zuzu Cavaquinho. Pobre modinha!

Hoje, vinte ou trinta anos depois, é ainda mais abundante, mais popular e mais estranha ao nosso paladar de estética elevada. Cada cançoneta tem uma porção de pais. A musa urbana, a musa das ruas, que ri dos grandes fatos e canta os seus amores pelas esquinas, nas noites de luar, a musa é a de todo um milhão de indivíduos. Nessas quadras mancas vivem o patriotismo, a fé, a pilhéria e o desejo da populaça, desses versos falhos faz-se a sinfonia da cidade, proteiforme e sentimental. A modinha e a cançoneta nascem de um balanço de rede, de uma notícia de jornal, de fato do dia -assunto geral-, do namoro e da noite -assunto particular. Se em Paris é a rapsódia da miséria e a vergasta irônica, no Rio é a história viva do carioca, a evoluir na calçada, romântico, gozador e peralta. A gargalhada da rua faz-se de uma porção de risos, o soluço da paixão de muitos soluços -a musa é policroma, reflete a população confusa e babélica tal qual ela é. Já se não encontram modinhas com a beleza de forma do Talvez não creias.

Talvez não creias que por ti sou louco

tens feito pouco porque tu és má

talvez duvides, mas, donzela, eu juro

que amor tão puro como o meu não há.


Ou com a graça meio infantil no Tipe-ti:

Coração, que tens com Lília?

Desde que seus olhos vi

pulas e bates no peito

tape, tepi, tipi, ti

coração, não gostes dela

Que ela não gosta de ti.


Os grandes poetas não fazem mais versos para toda gente -o nível intelectual da classe média subiu assim como a proporção geométrica da sua pretensão, e os vates são parnasianos, são simbolistas, procuram a forma sensível e a essência oculta.

Em compensação brotam na calçada, como cogumelos, os bardos ocasionais da sátira e da paixão; e, varejando botequins e ruelas de Suburra outros Zuzus vamos encontrar em pleno triunfo. Esses vates têm uma só preocupação séria - cantar. Cantam como as cigarras e o canto dá-lhes para viver no eterno verão desta terra abundante. Quando não há dinheiro, inventam para uma certa música conhecida os versos do Ferramenta ou Sobe ou Arrebenta, O Roca da Rua da Carioca, a cantiga Ah! se Fosses Minha, mandam imprimir e vendem tudo por dois tostões. Admiram-se que eles imprimam e, o que é mais, esgotem edições, milheiros e milheiros de exemplares? Pois imprimem como qualquer poeta. Apenas eles vendem, e a maioria dos poetas oferece grátis aos amigos...

Mas os poetas da calçada não imprimem e vendem só. O espírito prático é, evidentemente, um progresso. Eles, entretanto, progrediram mais. Há trinta anos o bardo tinha uma gaforinha oleada e uma unha -desapareceram. Ao começo, logo que a musa caiu na populaça, resolvida a não voltar jamais aos salões, os versos à margem da poesia eram ainda uma qualidade especial de certo grupo limitado. Hoje a musa é de todo o gênero, o bardo deixou de ser um tipo porque todos cantam, e a sua história, que ninguém quer saber, é um conjunto de elementos para a análise da vida urbana.

A musa tem preferidos e tem estetas, tem críticos. Como chovesse muito um dia, acolheu-se a um desvão de porta. Dentro bebiam. Para beber também, ela cantou, e criou-se o cabaret nacional, esses estabelecimentos inéditos chamados chopps. Quando o chopp percebeu que perdia a graça sem ela, a musa da calçada tinha invertido o seu sistema romântico. Outrora ela bebia para cantar. Agora canta para beber. A indústria, o interesse, o lucro, o lucro, essa miragem que tanto faz progredir os povos como as literaturas, propagou-a, espalhou-a, tornou-a torrencial. A musa delira hoje numa pândega infrene, de bodega em bodega, de chopp em chopp, de tablado em tablado. Nesse turbilhão de bardos e de cantares surgiam alguns mais dados à evidência -o Geraldo, o Eduardo das Neves, o esteta Catulo da Paixão Cearense! O Geraldo deitou elegância e botinas de polimento; o Eduardo das Neves tinha bombeiro, antes de ser notável. Quando foi número de music-hall, perdeu a tramontana e andava de smoking azul e chapéu de seda. A sua fantasia foi mais longe: chegou a publicar um livro intitulado Trovador da Malandragem, e esse Trovador tem um prefácio cheio de cólera contra pessoas que duvidam da autoria das suas obras.

«Por que duvidais, diz ele, isto é, não acreditais quando aparece qualquer choro, qualquer composição minha que cai no goto do público e é decorada, por toda a gente e em toda a parte, desde nobres salões até pelas esquinas nas horas mortas da noite?»

Ninguém ouviu os choros do Sr. Eduardo nos salões fidalgos mas o Sr. Eduardo tem essa convicção definitiva, além de muitas outras. Depois de cantar algumas intimidades da sua vida, chegou mesmo, num lundu intitulado O crioulo, a desvendar o mistério de uma senhora loucamente apaixonada pela sua voz. No final do negócio a dama murmura:

Diga-me ao menos

Como se chama


E ele, complacente:

Sou o crioulo

Dudu das Neves


Dudu, entretanto canta apenas as suas obras. Há um outro sujeito, chamado Baiano, que sabe de cor mais de mil modinhas, e para o qual trabalham a oito mil réis por número, meia dúzia de poetas que nunca saíram nos suplementos dominicais dos jornais. E se baiano tem essa prodigiosa memória, o Sr. Catulo, último trovador velho-gênero, é o esteta da trova popular. Vê-lo recitar O Poeta e a Fidalga, com um copo de chopp na mão, é um desses espetáculos de brasserie153 inesquecível. Catulo emaranhou-se no dogma da moda, corrigiu os versos de tudo quanto era quadra, estudou Bellini, Donnizetti, Verdi, adaptou os nossos versos a trechos de óperas e, finalmente, compôs traduções livres de Leconte de Lisle para serem recitadas ao piano! Há no prefácio da Lira dos Salões, o livro em que se encontra Leconte no pelourinho do recitativo, a estética fundamental da modinha:

«Julgo difícil, diz ele, e escabroso o trabalho de escrever poesias para adaptar a músicas que já preexistem de há muito, e com extrema razão quando essas composições musicais foram escritas por quem nunca presumiu que elas fossem sacrificadas, isto é, cantadas com letras.»

«Canto valsas, schottischs, mazurcas, polcas, romances, árias de óperas, e já cheguei ao esquisitismo de cantar até uma quadrilha inteira.»

E mais adiante, no mesmo tom, depois dessa coisa espantosa e pernóstica:

«Vós me pedis, suponde, que eu faça a poesia para certa música. Crede que eu, imediatamente, sem mais reflexão, empunhe a pluma e a vaze no papel? Não. Há algumas dessas músicas que me fazem levar horas inteiras a interpretar-lhes os sentimentos, os queixumes, as mágoas de que sofrem os seus autores.»

«Leitor! ascende a tal culminância o orgulho que tenho de saber poetar para o canto que, sem acanhamento, teria o desaforo de vos dizer que o dia em que um competente me dissesse: esta ou aquela frase não foi bem adaptada, não diz o que diz a música, está incolor, esse dia seria o último da minha vida, porque ou suicidar-me-ia ou sucumbiria de pesar por ver aquele meu orgulho destronado.»

Catulo, hiperestesia da musa urbana, é, apesar de tanta trapalhada, capaz de fazer célebres vários poetas, quase desconhecido e vive à margem da poesia, poeta da musa anônima, poeta da calçada...

Porque a musa não se rala com a interpretação de partituras.

Basta-lhe o fato, o sucesso do dia, três gotas de paixão e um violão. Vibra acordes patrióticos, a dúvida, o desejo, e é o necessário para ser compreendida.

A característica principal dos poetas da calçada é o patriotismo, mas um patriotismo muito diverso do nosso e mesmo do da populaça -é o amor da pátria escoimado de ódios, o amor jacobino, o amor esterilizado para os de casa e virulento para os de fora. O homem do povo é no Brasil discursadoramente patriota. A sua questão principal é o Brasil melhor do que qualquer outro país. O sucesso e a popularidade de Santos Dumont são devidos menos aos seus trabalhos de aviação que ao ter causado a admiraçâo de Paris. Para o patriota ele não se fez admirado -dominou. A popularíssima cançoneta do Beranger das Neves é um atestado:

A Europa curvou-se ante o Brasil

e aclamou parabéns em meigo tom

brilhou lá no céu mais uma estrela

apareceu Santos Dumont.


Há pelo menos duas tolices em tal moxinifada154. O music hall ficava, entretanto, apinhado de jovens soldados, de marinheiros, de mocinhos patriotas; e eu hei de lembrar sempre certa vez em que, passando pelo café-cantante, ouvi o barulho da apoteose e entrei. Estava o Dudu das Neves, suado, com a cara de piche a evidenciar trinta e dois dentes de uma alvura admirável, no meio do palco e em todas as outras dependências do teatros a turba aclamava. O negro já estava sem voz.

Assinalou para sempre o século vinte

o herói que assombrou o mundo inteiro

mais alto que as nuvens, quase Deus

é Santos Dumont um brasileiro


E após essa rajada de hipérboles ao Dumont que todos nós conhecemos, sportman, elegante, acionista da Mogiana, bem homem da sua época, eu vi no estridor das aclamações Fausto Cardoso, poeta, político, patriota, agitar freneticamente um lenço, pálido de emoção... Era a vitória da calçada, era a poesia alma de todos nós, era o sentimento que brota entre os paralelepípedos com a seiva e a vida da pátria. Esse patriotismo é a nota persistente dos poetas sem nome, patriotismo que quer dominar o estrangeiro e jamais exibe, como exibem os jornalistas, a infâmia dos políticos e as fraquezas dos partidos. A musa urbana enaltece sempre os seus homens e quando odeia oculta o ódio para não o mostrar aos de fora. Todos os episódios da revolta foram postos em verso. Floriano tem entre outras aquela quadra:

Quando ele apareceu, altivo e sobranceiro

valente como as armas, beijando o pavilhão

a pátria suspirou dizendo: ele é o guerreiro

é marechal de ferro, escudo da nação.


É de imaginar por aí que a pátria suspirosa tinha medo das granadas e odiava Saldanha? Pois não! Saldanha também tem quadras em que se canta o seu valor épico. Na guerra de Canudos os garotos diziam a propósito do Conselheiro

Quem será esse selvagem

esse vulgo santarrão

que encoberto de coragem

fere luta no sertão?


para cantar em estilo majestático a morte de Moreira César. A musa tem dignidade - a quantos jornais ensinaria ela! Basta que o sangue apareça para que a vejamos soluçar.

5 de novembro

data fatal

em que deu-se a morte

desse marechal...


Basta que alguém suba para que ela aplauda. Por quê? Porque, além de chorosa, além de digna, ela também recebeu o vírus que corrompe as camadas superiores, o vírus do engrossamento. Apenas nela é espontâneo e sem lucro. É o patriotismo bizarro.

A polícia proíbe as agressões às autoridades. Furcy seria um mito na Maison Moderne, impossível em qualquer brasserie.

O povo, porém, que, como se sabe, é sempre oposicionista, decorou a canção dos presidentes:

1º de março

foi o dia da eleição,

foi eleito o Campos Sales

presidente da nação.

Parabéns ao novo chefe,

seus passos serão leais,

como foram os do nosso

bom Prudente de Morais.


Era bom Floriano, era bom Prudente, foi bom Campos Sales, são bons Rodrigues Alves e já o conselheiro Afonso Pena! Um outro versinho diz:

Mostrou que o Brasil não dorme

da presidência o bom paulista

e se quer que o mineiro informe

com ele é tudo fogo, lingüiça!


A musa acaba até com a má fama antiga, e se não faz versos diz verdades. Qual de vós teria a coragem de conservar quand même essa atitude de bondade para com todos os políticos? Esse esquisito sentimento dos poetas da calçada tem uma seqüência lógica -o jacobinismo pândego, a crítica acerba, toda de alto, com desprezo das coisas estrangeiras. A guerra hispano-americana foi motivo de um milheiro de cançonetas. Todas afinam por este diapasão:

La Union Española

lembrou-se de oferecer

passagens a seus súditos

para a pátria defender.

Mas eles, que nem lá vão,

passam cá vida folgada

quase todos pelotaris

nos boliches, nas touradas.


Quando por acaso o capadócio ama uma estrangeira, confessa, mas arreliando o seu bem:

Tomei amores com uma argentina

outro melhor jamais vi no mundo

é terno, gringo, profundo

é também das mais sensuais.


E a volubilidade, a despreocupação, a ironia complacente do malandro nacional exterioriza-se nas canções resultantes de grandes agitações como as causadas pela lei do selo, a reforma da higiene, a vacina obrigatória. A musa não se encoleriza, ri. O selo só fez compreender ao malandro que os fornecedores podiam ser multados:

Sapateiro já não pode

bater sola sossegado

se não selar as botinas.

catrapuz! está multado.


Uma das canções mais populares sobre a peste bubônica tem este estribilho:

Os ratos fazem qui, qui, qui,

qui, qui, qui, qui, qui

as pulgas pulam daqui

pra ali, dali praqui, daqui prali

os gatos fazem miau

miau, miau, miau

quem inventou a peste bubônica

merece muito pau.


E a vacina obrigatória, que quase apeia o governo do conselheiro Alves, deu uma infinita série de quadras livres. Patriota, jacobino, pândego, o atual bardo da calçada gosta exatamente dessas tolices fesceninas -é a tara da modinha desde Gregório de Matos- gosta mesmo de rimar sandices, assim como se vê, abandonado à margem da poesia, mas todos esses sentimentos se fundem na sua extrema liberdade, e o bardo abre o coração como uma represa de lirismo.

Oh! O lirismo das modinhas! Como é possível na miséria da urbs, no pó, na secura, na sujeira das vielas sórdidas, nas escuras alcovas das hospedarias reles, vibrar tamanha luz de poesia?

O lirismo é uma torrente, uma catadupa a escachoar espumante entre as idéias dos bardos. Todos os estilos da veia lírica do povo soluçam e choram nas calçadas. Não é possível deixar de sentir uma infinita amargura, quando nos becos sórdidos, à porta de miseráveis casas, os soldados consentem que os trovadores cantem, loucos de amor, a pureza da mulher transviada.

Virgem casta eu já fui como tu

já vivi como os anjos no céu

esta fronte que vês humilhada

foi coberta de cândido véu.


Essa idéia lírica e adquirida, idéia datando dos conselheiros românticos e da Dama das Camélias, não desaparece nunca -é a roca em que a musa fia o sentimento nas ruas. Aí os modinheiros perdem-se num estuário de amor. Tudo é paixão. Há o amor trágico:

É meia-noite; o triste bronze chora

a lua oculta numa nuvem escura.

calou-se a flauta numa longa queixa

o pobre louco morreu de amargura!


o irônico:

Zombaste, mulher com riso de escárnio

de pobre artista todo fogo e ardor

amava-o, dizias, julgando talvez

que do mundo fosse algum rico senhor.


o lírico:

Amo-te, ó virgem, como ama o nauta

à luz da estrela que lhe guia o lar...


o desconsolado:

Nem toda a árvore dá fruta

nem toda a erva dá flor

nem toda a mulher bonita

pode dar constante amor.


ou ainda mais desconsolado:

Perdão, Emília, mas chorar não posso


o triste:

Quisera amar-te mas não posso, Elvira.

Porque gelado tenho o peito meu


o zangado:

A mulher é diabo de saias

que nasceu para os homens tentar.

É perversa, é maldosa e tem lábia

que nos faz a cabeça girar.


o idílico:

Chiquinha, se eu te pedisse

de modo que ninguém visse

um beijo, tu mo negavas?

Ai dava! Eu dava...


Idílio que bem se podia comparar às mimas de Herondas, se não fosse a calçada o seu autor... Todos os tangos, os sambas, os lundus em que se canta a mulata:

É quitute saboroso

é melhor que vatapá

é néctar delicioso

é bom como não há


os acanalhadamente amorosos:

Gosto de ti, porque gosto

porque meu gosto é gostar

mas tu de mim não te lembras

por que me fazes penar?


o descritivo:

Numa conchinha de prata

navegavam dois amantes

beijando-se docemente

ao som de magos descantes.


o trocista:

O amor da mulher é cachaça

que se bebe por frio e calor

o amor da mulher é chalaça

e' cantiga de mau trovador.


até o ideal:

Poesia, era esse o nome

dessa mulher ideal

e amando-a sem ser poeta

fui louco, pequei, fiz mal.


O amor proteiforme, o eterno amor feito de soluços e risos, que Tennyson dizia senhor da vida e senhor da morte.

Há nessas modinhas e nessas cançonetas, de par com a paixão, a tristeza e a troça, um milhão de erros de gramática e de metrificação. O verso é quase ignorado pelo trovadores ocasionais. Mas que lhes importa isso, se não se importam com a honra, o bem-estar, a glória? Os poetas não têm versos, têm cavaquinhos, violões e a voz para dobrar e quebrar os nossos nervos. Ao povo basta a cadência, o som sugestionador que chega a atrair os crocodilos. Uma história sem sentido como esta

Bolim bolacho, bole em cima,

bolim bolacho por causa do bole embaixo

quem não come da castanha caruru

não percebe do caju

quem não come do caju

não percebe do fubá


entusiasma fatalmente os auditórios. Eles, os trovadores, tenham ou não alegria, acham que tudo tem compensação até na morte:

Vai o pobre para a cova

e o rico para a carneira

mas ao fim de cinco anos

ao abrir a salgadeira

quer do pobre, quer do rico

há só ossos e caveira.


A despreocupação dessa gente parece viver com uma estranha verdade no lundu popular:

Eu vivo triste como sapo na lagoa

cantando triste, escondido pelas matas.

Para ver se endireito a minha vida

vou deixar das malditas serenatas.

O meu nome na Gazeta de Notícias

ainda hoje eu vi bem declarado:

ontem, à noite foi preso um vagabundo...


Vagabundo sim! A musa da cidade, a musa constante e anônima, que tange todas as cordas da vida e é como a alma da multidão, a musa triste é vagabunda, é livre, é pobre, é humilde. E por isso todos lhe sofrem a ingente fascinação, por isso a voz de um vagabundo, nas noites de luar, enche de lágrimas os olhos dos mais frios, por isso ninguém há que não a ame -flor de ideal nascida nas sarjetas, sonho perpétuo da cidade à margem da poesia, riso e lágrima, poesia da encantadora alma das ruas!...