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A moreninha

Joaquim Manuel de Macedo

Aposta imprudente

Bravo! exclamou Filipe, entrando e despindo a casaca, que pendurou em um cabide velho. Bravo!... Interessante cena! mas certo que desonrosa fora para casa de um estudante de Medicina e já no sexto ano, a não valer-lhe o adágio antigo: -O hábito não faz o monge.

-Temos discurso!... Atenção!... Ordem!... gritaram a um tempo três vozes.

-Coisa célebre! acrescentou Leopoldo. Filipe sempre se torna orador depois do jantar...

-E dá-lhe para fazer epigramas, disse Fabrício.

-Naturalmente, acudiu Leopoldo, que, por dono da casa, maior quinhão houvera no cumprimento do recém-chegado; naturalmente. Bocage, quando tomava carraspana, descompunha os médicos.

-C'est trop fort! bocejou Augusto, espreguiçando-se no canapé em que se achava deitado.

-Como quiserem, continuou Filipe, pondo-se em hábitos menores; mas, por minha vida, que a carraspana de hoje ainda me concede apreciar devidamente aqui o meu amigo Fabrício, que talvez acaba de chegar de alguma visita diplomática, vestido com esmero e alinho, porém, tendo a cabeça encapuzada com a vermelha e velha carapuça do Leopoldo; este, ali escondido dentro do seu robe-de-chambre cor de burro quando foge, e sentado em uma cadeira tão desconjuntada que, para não cair com ela, põe em ação todas as leis de equilíbrio, que estudou em Pouillet; acolá, enfim, o meu romântico Augusto, em ceroulas, com as fraldas à mostra, estirado em um canapé em tão bom uso, que ainda agora mesmo fez com que Leopoldo se lembrasse de Bocage. Oh! VV. SS. tomam café!... Ali o senhor descansa a xícara azul em um pires de porcelana... aquele tem uma chávena com belos lavores dourados, mas o pires é cor-de-rosa... aquele outro nem porcelana, nem lavores, nem cor azul ou de rosa, nem xícara... nem pires... aquilo é uma tigela num prato...

-Carraspana!... Carraspana!...

-O' moleque! prosseguiu Filipe, voltando-se para o corredor, traze-me café, ainda que seja no púcaro em que o coas; pois creio que a não ser a falta de louças, já teu senhor mo teria oferecido.

-Carraspana!... Carraspana!...

-Sim, continuou ele, eu vejo que vocês...

-Carraspana!... Carraspana!...

-Não sei de nós quem mostra...

-Carraspana!... Carraspana!...

Seguiram-se alguns momentos de silêncio; ficaram os quatro estudantes assim a modo de moças quando jogam o siso. Filipe não falava, por conhecer o propósito em que estavam os três de lhe não deixar concluir uma só proposição, e estes, porque esperavam vê-lo abrir a boca para gritar-lhe: Carraspana!...

Enfim, foi ainda Filipe o primeiro que falou, exclamando de repente:

-Paz! Paz!...

-Ah! Já?... disse Leopoldo, que era o mais influído.

-Filipe é como o galego, disse um outro; perderia tudo para não guardar silêncio uma hora.

-Está bem, o passado, o passado; protesto não falar mais nunca na carapuça, nem nas cadeiras, nem no canapé, nem na louça do Leopoldo... Estão no caso... sim...

-Hein?... olha a carraspana.

-Basta! vamos a negócio mais sério. Onde vão vocês passar o dia de Sant'Ana?

-Por quê?... Temos patuscada?... acudiu Leopoldo.

-Minha avó chama-se Ana.

-Ergo!...

-Estou habilitado para convidá-los a vir passar a véspera e dia de Sant'Ana conosco na ilha de...

-Eu vou, disse prontamente Leopoldo.

-E dois, acudiu Fabrício.

Augusto só guardou silêncio.

-E tu, Augusto?... perguntou Filipe.

-Eu?... Eu não conheço tua avó.

-Ora, sou seu criado; também eu não a conheço, disse Fabrício.

-Nem eu, acrescentou Leopoldo.

-Não conhecem a avó; mas conhecem o neto, disse Filipe.

-E demais, tornou Fabrício, palavra de honra que nenhum de nós tomará o trabalho de lá ir por causa da velha.

-Augusto, minha avó é a velha mais patusca do Rio de Janeiro.

-Sim?... Que idade tem?

-Sessenta anos.

-Está fresquinha ainda... Ora... Se um de nós a enfeitiça e se faz avô de Filipe!...

-E ela, que possui talvez seus duzentos mil cruzados, não é assim, Filipe? Olha, se é assim, e tua avó se lembrasse de querer casar comigo, disse Fabrício, juro que mais depressa daria o meu «recebo a vós» aos cobres da velha, do que a qualquer das nossas «toma-larguras» da moda.

-Por quem são!... deixem minha avó e tratemos da patuscada. Então tu vais, Augusto?

-Não.

-É uma bonita ilha.

-Não duvido.

-Reuniremos uma sociedade pouco numerosa, mas bem escolhida.

-Melhor para vocês.

-No domingo, à noite, teremos um baile.

-Estimo que se divirtam.

-Minhas primas vão.

-Não as conheço.

-São bonitas.

-Que me importa?... Deixe-me. Vocês sabem o meu fraco e caem-me logo com ele: Moças!... Moças!... Confesso que dou o cavaco por elas, mas as moças me têm posto velho.

-É porque ele não conhece tuas primas, disse Fabrício.

-Ora... O que poderão ser senão demoninhas, como são todas as outras moças bonitas?

-Então tuas primas são gentis?... perguntou Leopoldo a Filipe.

-A mais velha, respondeu este, tem dezessete anos, chama-se Joana, tem cabelos negros, belos olhos da mesma cor, e é pálida.

-Hein?... exclamou Augusto, pondo-se de um pulo duas braças longe do canapé onde estava deitado, então ela é pálida?...

-A mais moça tem um ano de menos: loura, de olhos azuis, faces cor-de-rosa... seio de alabastro... dentes...

-Como se chama?

-Joaquina.

-Ai, meus pecados!... disse Augusto.

-Vejam como Augusto já está enternecido...

-Mas, Filipe, tu já me disseste que tinhas uma irmã.

-Sim, é uma moreninha de quatorze anos.

-Moreninha? Diabo!... exclamou outra vez Augusto, dando novo pulo.

-Está sabido... Augusto não relaxa a patuscada.

-É que este ano já tenho pagodeado meu quantum satis, e, assim como vocês, também eu quero andar em dia com alguns senhores com quem nos é muito preciso estar de contas justas no mês de novembro.

-Mas a pálida?... A loura?... A moreninha?...

-Que interessante terceto! exclamou com tom teatral Augusto; que coleção de belos tipos!... Uma jovem de dezessete anos, pálida... romântica e, portanto, sublime; uma outra, loura... de olhos azuis... faces cor-de-rosa... e... não sei que mais: enfim, clássica e por isso bela. Por último uma terceira de quatorze anos... moreninha, que, ou seja, romântica ou clássica, prosaica ou poética, ingênua ou misteriosa, há de, por força, ser interessante, travessa e engraçada; e por conseqüência qualquer das três, ou todas ao mesmo tempo, muito capazes de fazer de minha alma peteca, de meu coração pitorra!... Está tratado... não há remédio... Filipe, vou visitar tua avó. Sim, é melhor passar os dois dias estudando alegremente nesses três interessantes volumes da grande obra da natureza do que gastar as horas, por exemplo, sobre um célebre Velpeau, que só ele faz por sua conta e risco mais citações em cada página do que todos os meirinhos reunidos fizeram, fazem e hão de fazer pelo mundo.

-Bela conseqüência! É raciocínio o teu que faria inveja a um caloiro, disse Fabrício.

-Bem raciocinado... não tem dúvida, acudiu Filipe; então, conto contigo, Augusto?

-Dou-te palavra... e mesmo porque eu devo visitar tua avó.

-Sim... já sei... isso dirás tu a ela.

-Mas vocês não têm reparado que Fabrício tornou-se amuado e pensativo, desde que se falou nas primas de Filipe?...

-Disseram-me que ele anda enrabichado com minha prima Joaninha.

-A pálida?... pois eu já me vou dispondo a fazer meu pé-de-alferes com a loura.

-E tu, Augusto, quererás porventura reqüestar minha irmã?...

-É possível.

-E de que gostarás mais, da pálida, da loura ou da moreninha?...

-Creio que gostarei, principalmente, de todas.

-Ei-lo aí com a sua mania.

-Augusto é incorrigível.

-Não, é romântico.

-Nem uma coisa nem outra... é um grandíssimo velhaco.

-Não diz o que sente.

-Não sente o que diz.

-Faz mais do que isso, pois diz o que não sente.

-O que quiserem... Serei incorrigível, romântico ou velhaco, não digo o que sinto não sinto o que digo, ou mesmo digo o que não sinto; sou, enfim, mau e perigoso e vocês inocentes e anjinhos. Todavia, eu a ninguém escondo os sentimentos que ainda há pouco mostrei, e em toda a parte confesso que sou volúvel, inconstante e incapaz de amar três dias um mesmo objeto; verdade seja que nada há mais fácil do que me ouvirem um «eu vos amo», mas também a nenhuma pedi ainda que me desse fé; pelo contrário, digo a todas o como sou e, se, apesar de tal, sua vaidade é tanta que se suponham inesquecíveis, a culpa, certo, que não é minha. Eis o que faço. E vós, meus caros amigos, que blasonais de firmeza de rochedo, vós jurais amor eterno cem vezes por ano a cem diversas belezas... vós sois tanto ou ainda mais inconstantes que eu!... Mas entre nós há sempre uma grande diferença: -vós enganais e eu desengano; eu digo a verdade e vós, meus senhores, mentis...

-Está romântico!... Está romântico!... exclamaram os três, rindo às gargalhadas.

-A alma que Deus me deu, continuou Augusto, é sensível demais para reter por muito tempo uma mesma impressão. Sou inconstante, mas sou feliz na minha inconstância, porque apaixonando-me tantas vezes não chego nunca a amar uma vez.

-Oh!... Oh!... Que horror!... Que horror!...

-Sim! Esse sentimento que voto às vezes a dez jovens num só dia, às vezes, numa mesma hora, não é amor, certamente. Por minha vida, interessantes senhores, meus pensamentos nunca têm dama, porque sempre têm damas; eu nunca amei... eu não amo ainda... eu não amarei jamais...

-Ah!... Ah!... Ah!... E como ele diz aquilo!

-Ou, se querem, precisarei melhor o meu programa sentimental; lá vai: afirmo, meus senhores, que meu pensamento nunca se ocupou, não se ocupa, nem se há de ocupar de uma mesma moça quinze dias.

-E eu afirmo que segunda-feira voltarás da ilha de... loucamente apaixonado de alguma de minhas primas.

-Pode bem suceder que de ambas.

-E que todo o resto do ano letivo passarás pela rua de... duas e três vezes por dia, somente com o fim de vê-la.

-Assevero que não.

-Assevero que sim.

-Quem?... Eu?... Eu mesmo passar duas e três vezes por dia por uma só rua, por causa de uma moça?... E para quê?... Para vê-la lançar-me olhos de ternura, ou sorrir-se brandamente quando eu para ela olhar, e depois fazer-me caretas ao lhe dar as costas?... Para que ela chame as vizinhas que lhe devem ajudar a chamar-me tolo, pateta, basbaque e namorador?... Não, minhas belas senhoras da moda! Eu vos conheço... amante apaixonado quando vos vejo, esqueço-me de vós duas horas depois de deixar-vos. Fora disto só queimarei o incenso da ironia no altar de vossa vaidade; fingirei obedecer a vossos caprichos e somente zombarei deles. Ah!... Muitas vezes, alguma de vós, quando me ouve dizer: «sois encantadora», está dizendo consigo: «ele me adora», enquanto eu digo também comigo: «que vaidosa!»

-Que vaidoso!... Te digo eu, exclamou Filipe.

-Ora, esta não é má!... Então vocês querem governar o meu coração?...

-Não; porém, eu torno a afirmar que tu amarás uma de minhas primas todo o tempo que for da vontade dela.

-Que mimos de amor que são as primas deste senhor!...

-Eu te mostrarei.

-Juro que não.

-Aposto que sim.

-Aposto que não.

-Papel e tinta, escreva-se a aposta.

-Mas tu me dás muita vantagem e eu rejeitaria a menor. Tens apenas duas primas; é um número de feiticeiras muito limitado. Não sejam só elas as únicas magas que em teu favor invoques para me encantar. Meus sentimentos ofendem, talvez, a vaidade de todas as belas; todas as belas, pois, tenham o direito de te fazer ganhar a aposta, meu valente campeão do amor constante!

-Como quiseres, mas escreve.

-E quem perder?...

-Pagará a todos nós um almoço no Pharoux, disse Fabrício.

-Qual almoço! acudiu Leopoldo. Pagará um camarote no primeiro drama novo que representar o nosso João Caetano.

-Nem almoço, nem camarote, concluiu Filipe; se perderes, escreverás a história da tua derrota, e se ganhares, escreverei o triunfo da tua inconstância.

-Bem, escrever-se-á um romance, e um de nós dois, o infeliz, será o autor.

Augusto escreveu primeira, segunda e terceira vez o termo da aposta, mas depois de longa e vigorosa discussão, em que qualquer dos quatro falou duas vezes sobre a matéria, uma para responder e dez ou doze pela ordem; depois de se oferecerem quinze emendas e vinte artigos aditivos, caiu tudo por grande maioria, e entre bravos, apoiados e aplausos, foi aprovado, salva a redação, o seguinte termo:

«No dia 20 de julho de 18... na sala parlamentar da casa n... da rua de... sendo testemunhas os estudantes Fabrício e Leopoldo, acordaram Filipe e Augusto, também estudantes, que, se até o dia 20 de agosto do corrente ano o segundo acordante tiver amado a uma só mulher durante quinze dias ou mais, será obrigado a escrever um romance em que tal acontecimento confesse; e, no caso contrário, igual «pena sofrerá o primeiro acordante. Sala parlamentar, 20 de julho de 18... Salva a redação.»

Como testemunhas: Fabrício e Leopoldo.

Acordantes: Filipe e Augusto.

E eram oito horas da noite quando se levantou a sessão.

Fabrício em apuros

A cena que se passou teve lugar numa segunda-feira. Já lá se foram quatro dias, hoje é sexta-feira, amanhã será sábado, não um sábado como outro qualquer, mas um sábado véspera de Sant'Ana.

São dez horas da noite. Os sinos tocaram a recolher. Augusto está só, sentado junto de sua mesa, tendo diante de seus olhos seis ou sete livros e papéis, pena se toda essa série de coisas que compõem a mobília do estudante.

É inútil descrever o quarto de um estudante. Aí nada se encontra de novo. Ao muito acharão uma estante, onde ele guarda os seus livros, um cabide, onde pendura a casaca, o moringue, o castiçal, a cama, uma, até duas canastras de roupa, o chapéu, a bengala e a bacia; a mesa onde escreve e que só apresenta de recomendável a gaveta, cheia de papéis, de cartas de família, de flores e fitinhas misteriosas, é pouco mais ou menos assim o quarto de Augusto.

Agora ele está só. Às sete horas, desse quarto saíram três amigos: Filipe, Leopoldo e Fabrício. Trataram da viagem para a ilha de... no dia seguinte retiraram-se descontentes, porque Augusto não se quis convencer de que deveria dar um ponto na Clínica para ir com eles ao amanhecer. Augusto tinha respondido: Ora vivam! Bem basta que eu faça gazeta na aula de partos; não vou senão às dez horas do dia.

E, pois, despediram-se amuados. Fabrício queria ainda demorar-se e mesmo ficar com Augusto, mas Leopoldo e Filipe o levaram consigo, à força. Fabrício fez-se acompanhar do moleque que servia Augusto, porque, dizia ele, tinha um papel de importância a mandar.

Eram dez horas da noite, e nada do moleque. Augusto via-se atormentado pela fome, e Rafael, o seu querido moleque, não aparecia... O bom Rafael, que era ao mesmo tempo o seu cozinheiro, limpa-botas, cabeleireiro, moço de recados e... e tudo mais que as urgências mandavam que ele fosse.

Com justa razão, portanto, estava cuidadoso Augusto, que de momento a momento exclamava:

-Vejam isto!... Já tocou a recolher e Rafael está ainda na rua!! Se cai nas unhas de algum beleguim, não é, decerto, o Sr. Fabrício quem há de pagar as despesas da Casa de Correção... Pobre do Rafael! que cavaco não dará quando lhe raparem os cabelos!

Mas neste momento ouviu-se tropel na escada... Era Rafael, que trazia uma carta de Fabrício, e que foi aprontar o chá, enquanto Augusto lia a carta. Ei-la aqui:

«Augusto. Demorei o Rafael, porque era longo o que tenho de escrever-te. Melhor seria que eu te falasse, porém, bem viste as impertinências de Filipe e Leopoldo. Felizmente, acabam de deixar-me. Que macistas!... Principio por dizer-te que te vou pedir um favor, do qual dependerá o meu prazer e sossego na ilha de... Conto com a tua amizade, tanto mais que foram os teus princípios que me levaram aos apuros em que ora me vejo. Eis o caso.

Tu sabes, Augusto, que, concordando com algumas de tuas opiniões a respeito de amor, sempre entendi que uma namorada é traste tão essencial ao estudante como o chapéu com que se cobre ou o livro em que estuda. Concordei mesmo algumas vezes em dar batalha a dois e três castelos a um tempo; porém tu não ignoras que a semelhante respeito estamos discordes no mais: tu és ultra-romântico e eu ultraclássico. O meu sistema era este:

1º. Não namorar moça de sobrado. Daqui tirava eu dois proveitos, a saber: não pagava o moleque para me levar recados e dava sossegadamente, e à mercê das trevas, meus beijos por entre os postigos das janelas.

2º. Não reqüestar moça endinheirada. Assim eu não ia ao teatro para vê-la, nem aos bailes para com ela dançar, e poupava os meu cobres.

3º. Fingir ciúmes e ficar mal com a namorada em tempo de festas e barracas no Campo. E por tal modo livrava-me de pagar doces, festas e outras impertinências.

Estas eram as bases fundamentais do meu sistema.

Ora, tu te lembrarás que bradavas contra o meu proceder, como indigno da minha categoria de estudante; e, apesar de me ajudares a comer saborosas empadas, quitutes apimentados e finos doces, com que as belas pagavam por vezes minha assiduidade amantética, tu exclamavas:

-Fabrício! Não convém tais amores ao jovem de letras e de espírito. O estudante deve considerar o amor como um excitante que desperte e ateie as faculdades de sua alma: pode mesmo amar uma moça feia e estúpida, contanto que sua imaginação lha represente bela e espirituosa. Em amor a imaginação é tudo: é ardendo em chamas, é elevado nas asas de seus delírios que o mancebo se faz poeta por amor.

Eu então te respondia:

-Mas quando as chamas se apagam, e as asas dos delírios se desfazem, o poeta por amor não tem, como eu, nem quitutes nem empadas.

E tu me tornavas:

-É porque ainda não experimentaste o que nos prepara o que se chama amor platônico, paixão romântica! Ainda não sentiste como é belo derramar-se a alma toda inteira de um jovem na carta abrasadora que escreve à sua adorada e receber em troca uma alma de moça, derramada toda inteira em suas letras, que tantas mil vezes se beija.

Ora, esses derramamentos de alma bastante me assustavam, porque eu me lembro que em patologia se trata mui seriamente dos derramamentos.

Mas tu prosseguias:

-E depois, como é sublime deitar-se o estudante no solitário leito e ver-se acompanhado pela imagem da bela que lhe vela no pensamento, ou despertar ao momento de ver-se em sonhos sorvendo-lhe nos lábios voluptuosos beijos!

Ainda estes argumentos me não convenciam suficientemente, porque eu pensava: 1º. que essa imagem que vela no pensamento não será a melhor companhia possível para um estudante, principalmente quando ela lhe velasse na véspera de alguma sabatina; 2º. porque eu sempre acho muito mais apreciável sorver os beijos voluptuosos por entre os postigos de uma janela, do que sorvê-los em sonhos e acordar com água na boca. Beijos por beijos antes os reais que os sonhados.

Além disto no teu sistema nunca se fala em empadas, doces, petiscos, etc.; no meu eles aparecem e tu, apesar de romântico, nunca viraste as costas nem fizeste má cara a esses despojos de minhas batalhas.

Mas enfim, maldita curiosidade de rapaz!... Eu quis experimentar o amor platônico, e dirigindo-me certa noite ao teatro S. Pedro de Alcântara, disse entre mim: esta noite hei de entabular um namoro romântico.

Entabulei-o, Sr. Augusto de uma figa!... Entabulei-o, e quer saber como?... Saí fora do meu elemento e espichei-me completamente. Estou em apuros.

Eis o caso:

Nessa noite fui para o superior; eu ia entabular um namoro romântico, e não podia ser de outro modo. Para ser tudo à romântica, consegui entrar antes de todos; fui o primeiro a sentar-me; ainda o lustre monstro não estava aceso; vi-o descer e subir depois, brilhante de luzes; vi se irem enchendo os camarotes; finalmente eu, que tinha estado no vácuo, achei-me no mundo: o teatro estava cheio. Consultei com meus botões como devia principiar e concluí que para portar-me romanticamente deveria namorar alguma moça que estivesse na quarta ordem. Levantei os olhos, vi uma que olhava para o meu lado, e então pensei comigo mesmo: seja aquela!... Não sei se é bonita ou feia, mas que importa? Um romântico não cura dessas futilidades. Tirei, pois, da casaca o meu lenço branco, para fingir que enxugava o suor, abanar-me e enfim fazer todas essas macaquices que eu ainda ignorava que estavam condenadas pelo romantismo. Porém, ó infortúnio!... Quando de novo olhei para o camarote, a moça se tinha voltado completamente para a tribuna; tossi, tomei tabaco, assoei-me, espirrei e a pequena... nem caso; parecia que o negócio com ela não era. Começou a ouverture... nada; levantou-se o pano, ela voltou os olhos para a cena, sem olhar para o meu lado. Representou-se o primeiro ato... Tempo perdido. Veio o pano finalmente abaixo.

-Agora sim, começará o nosso telégrafo a trabalhar, disse eu comigo mesmo, erguendo-me para tornar-me mais saliente.

Porém, nova desgraça! Mal me tinha levantado, quando a moça ergueu-se por sua vez e retirou-se para dentro do camarote, sem dizer por quê, nem por que não.

-Isto só pelo diabo!... exclamei eu involuntariamente, batendo com o pé com toda a força.

-O senhor está doido?! disse-me... gemendo e fazendo uma careta horrível, o meu companheiro da esquerda.

-Não tenho que lhe dar satisfações, respondi-lhe amuado.

-Tem, sim senhor, retorquiu-me o sujeito, empinando-se.

-Pois que lhe fiz eu, então? acudi, alterando-me.

-Acaba de pisar-me, com a maior força, no melhor calo do meu pé direito.

-Ó senhor... queira perdoar!...

E dando mil desculpas ao homem, saí para fora do teatro, pensando no meu amor.

Confesso que deveria ter notado que a minha paixão começava debaixo de maus auspícios, mas a minha má fortuna ou, melhor, os teus maus conselhos me empurravam para diante com força de gigante.

Sem pensar no que fazia, subi para os camarotes e fui dar comigo no corredor da quarta ordem; passei junto do camarote de minhas atenções: era o n.º 3 (número simbólico, cabalístico e fatal! Repara que em tudo segui o romantismo). A porta estava cerrada; fui ao fim do corredor e voltei de novo: um pensamento esquisito e singular acabava de me brilhar na mente, abracei-me com ele.

Eu tinha visto junto à porta n.º 3 um moleque com todas as aparências de ser belíssimo cravo-da-índia. Ora, lembrava-me que nesse camarote a minha querida era a única que se achava vestida de branco e, pois, eu podia muito bem mandar-lhe um recado pelo qual me fizesse conhecido. E, pois, avancei para o moleque.

Ah! maldito crioulo... estava-lhe o todo dizendo para o que servia!... Pinta na tua imaginação, Augusto, um crioulinho de 16 anos, todo vestido de branco, com uma cara mais negra e mais lustrosa do que um botim envernizado, tendo dois olhos belos, grandes, vivíssimos e cuja esclerótica era branca como o papel em que te escrevo, com lábios grossos e de nácar, ocultando duas ordens de finos e claros dentes, que fariam inveja a uma baiana; dá-lhe a ligeireza, a inquietação e rapidez de movimento de um macaco e terás feito idéia desse diabo de azeviche, que se chama Tobias.

Não me foi preciso chamá-lo. Bastou um movimento de olhos para que o Tobias viesse a mim, rindo-se desavergonhadamente. Levei-o para um canto.

-Tu pertences àquelas senhoras que estão no camarote, a cuja porta te encostavas?... perguntei.

-Sim, senhor, me respondeu ele, e elas moram na rua de... n.º... ao lado esquerdo de quem vai para cima.

-E quem são?...

-São duas filhas de uma senhora viúva, que também aí está, e que se chama a Ilma. Sra. D. Luísa. O meu defunto senhor era negociante e o pai de minha senhora é padre.

-Como se chama a senhora que está vestida de branco?

-A Sra. D. Joana... tem 17 anos e morre por casar.

-Quem te disse isso?...

-Pelos olhos se conhece quem tem lombrigas, meu senhor!...

-Como te chamas?

-Tobias, escravo de meu senhor, crioulo de qualidades, fiel como um cão e vivo como um gato.

O maldito do crioulo era um clássico a falar português. Eu continuei.

-Hás de levar um recado à Sra. D. Joana.

-Pronto, lesto e agudo, respondeu-me o moleque.

-Pois toma sentido.

-Não precisa dizer duas vezes.

-Ouve. Das duas uma: ou poderás falar com ela hoje ou só amanhã...

-Hoje... agora mesmo. Nestas coisas Tobias não cochila: com licença de meu senhor, eu cá sou doutor nisto; meus parceiros me chamam orelha de cesto, pé de coelho e boca de taramela. Vá dizendo o que quiser que em menos de dez minutos minha senhora sabe tudo; o recado de meu senhor é uma carambola que, batendo no meu ouvido, vai logo bater no da senhora D. Joaninha.

-Pois dize-lhe que o moço que se sentar na última cadeira da 4.ª coluna da superior, que assoar-se com um lenço de seda verde, quando ela para ele olhar, se acha loucamente apaixonado de sua beleza, etc.; etc.; etc.; etc.

-Sim, senhor, eu já sei o que se diz nessas ocasiões: o discurso fica por minha conta.

-E amanhã, ao anoitecer, espera-me na porta de tua casa.

-Pronto, lesto e agudo, repetiu de novo o crioulo.

-Eu recompensar-te-ei, se fores fiel.

-Mais pronto, mais lesto e mais agudo!

-Por agora toma estes cobres.

-Ó, meu senhor! prontíssimo, lestíssimo e agudíssimo.

Ignoro de que meios se serviu o Tobias para executar a sua comissão. O que sei é que antes de começar o 2.º ato já eu havia feito o sinal, e então comecei a pôr em ação toda a mímica amantética que me lembrou: o namoro estava entabulado; embora a moça não correspondesse aos sinais do meu telégrafo, concedendo-me apenas amiudados e curiosos olhares, isso era já muito para quem a via pela primeira vez.

Finalmente, Sr. Augusto dos meus pecados, o negócio adiantou-se, e hoje, tarde me arrependo e não sei como me livre de semelhante entaladela, pois o Tobias não me sai da porta. Já não tenho tempo de exercer o meu classismo; há três meses que não como empadas e, apesar de minhas economias, ando sempre com as algibeiras a tocar matinas. Para maior martírio a minha querida é a Sra. D. Joana, prima de Filipe.

Para compreenderes bem o quanto sofro, aqui te escrevo alguma das principais exigências da minha amada romântica.

1.º Devo passar por defronte de sua casa duas vezes de manhã e duas de tarde. Aqui vês bem, principia a minha vergonha, pois não há pela vizinhança gordurento caixeirinho que se não ria nas minhas barbas quatro vezes por dia.

2.º Devo escrever-lhe, pelo menos, quatro cartas por semana, em papel bordado, de custo de 400rs. a folha. Ora, isto é detestável, porque eu não sei onde vá buscar mais cruzados para comprar papel, nem mais asneiras para lhe escrever.

3.º Devo tratá-la por «minha linda prima» e ela a mim por «querido primo». Daqui concluo que a Sra. D. Joana leu o Faublas. Boa recomendação!...

4.º Devo ir ao teatro sempre que ela for, o que sucede quatro vezes no mês, o mesmo a respeito de bailes. Esta despesa arrasa-me a mesada terrivelmente.

5.º Ao teatro e bailes devo levar no pescoço um lenço ou manta da cor da fita que ela porá em seu vestido ou no cabelo, o que, com antecedência, me é participado. Isto é um despotismo detestável!...

Finalmente, ela quer governar os meus cabelos, as minhas barbas, e cor dos meus lenços, a minha casaca, a minha bengala, os botins que calço, e, por último, ordenou-me que não fumasse charutos de Havana nem de Manilha, porque era isto falta de patriotismo.

Para bem rematar o quadro das desgraças que me sobrevieram com a tal paixão romântica que me aconselhaste, D. Joana, dir-te-ei, mostra amar-me com extremo, e no meio de seus caprichos de menina dá-me provas do mais constante e desvelado amor; mas que importa isso, se eu não posso pagar-lhe com gratidão?... Vocês, com seu romantismo a que me não posso acomodar, a chamariam «pálida». Eu, que sou clássico em corpo e alma e que, portanto, dou às coisas o seu verdadeiro nome, a chamarei sempre «amarela».

Malditos românticos, que têm crismado tudo e trocado em seu crismar os nomes que melhor exprimem as idéias»!... O que outrora se chamava em bom português, moça feia, os reformadores dizem: menina simpática!... O que numa moça era, antigamente, desenxabimento, hoje é ao contrário: sublime languidez!... Já não há mais meninas importunas e vaidosas... As que o foram chamam-se agora espirituosas!... A escola dos românticos reformou tudo isso, em consideração ao belo sexo.

E eu, apesar dos tratos que dou à minha imaginação, não posso deixar de convencer-me que a minha «linda prima» é, aqui para nós, amarela e feia como uma convalescente de febres perniciosas.

O que, porém, se torna sobretudo insofrível é o despotismo que exerce sobre mim o brejeiro do Tobias...

Entende que todos os dias lhe devo dar dinheiro e persegue-me de maneira tal que, para ver-me livre dele, escorrego-lhe, cum quibus, a despeito da minha má vontade.

O Tobias está no caso de muitos que, grandes e excelentes parladores, são péssimos financeiros na prática. Como eles fazem ao país, faz Tobias comigo, que sempre depois de longo discurso me apresenta um déficit e pede-me um crédito suplementar.

Eis aqui, meu Augusto, o lamentável estado em que me acho. Lembra-te que foram os teus conselhos que me obrigaram a experimentar uma paixão romântica; portanto, não só por amizade, como por dever, conto que me ajudarás no que te vou propor.

Eu preciso de um pretexto mais ou menos razoável para descartar-me da tal «pálida».

Ela vai passar conosco dois dias na ilha de... Aí podemos levar a efeito, e com facilidade, o meu plano: ele é de simples compreensão e de fácil execução.

Tu deverás reqüestar, principalmente, à minha vista, a tal minha querida. Ainda que ela não te corresponda, persegue-a. Não te custará muito isso, pois que é o teu costume. Nisto se limita o teu trabalho, e começará então o meu, que é mais importante.

Ver-me-ás enfadado, talvez que te trate com rispidez e que te dirija alguma graça pesada, não farás caso e continuarás com a reqüesta para diante.

Eu então irei às nuvens... Desesperado, ciumento e delirante, aproveitarei o primeiro instante em que estiver a sós com D. Joaninha, farei um discurso forte e eloqüente contra a inconstância e volubilidade das mulheres. E no meio de meus transportes dou-me por despeitado de meus amores com ela e, pulando fora da tal paixão romântica, correrei a apertar-te contra meu peito, como teu amigo e colega de coração - Fabrício

-E esta!... exclamou Augusto, depondo a carta sobre a mesa e sorvendo uma boa pitada de rapé de Lisboa. E esta!...

Acabando de sorver a pitada, o nosso estudante desatou a rir como um doido. Rir-se-ia a noite inteira, talvez, se não fosse interrompido pelo Rafael, que o vinha chamar para tomar chá.

Manhã de sábado

Seriam pouco mais ou menos onze horas da manhã, quando o batelão de Augusto abordou à ilha de... Embarcando às dez horas, ele designou ao seu palinuro o lugar a que se destinava, e deitou-se para ler mais à vontade o Jornal do Commercio. Soprava vento fresco e, muito antes do que supunha, Augusto ergueu-se, ouvindo a voz de Leopoldo que o esperava na praia.

-Bem-vindo sejas, Augusto. Não sabes o que tens perdido...

-Então... muita gente, Leopoldo?...

-Não: pouca, mas escolhida.

No entanto, Augusto pagou, despediu o seu bateleiro, que se foi remando e cantando com os seus companheiros. Leopoldo deu-lhe o braço, e, enquanto por uma bela avenida, orlada de coqueiros, se dirigiam à elegante casa, que lhes ficava a trinta braças do mar, o curioso estudante recém-chegado examinava o lindo quadro que a seus olhos tinha e de que, para não ser prolixo, daremos idéia em duas palavras. A ilha de... é tão pitoresca como pequena. A casa da avó de Filipe ocupa exatamente o centro dela. A avenida por onde iam os estudantes a divide em duas metades, das quais a que fica à esquerda de quem desembarca está simetricamente coberta de belos arvoredos, estimáveis, ou pelos frutos de que se carregam, ou pelo aspecto curioso que oferecem. A que fica à mão direita é mais notável ainda fechada do lado do mar por uma longa fila de rochedos e no interior da ilha por negras grades de ferro está adornada de mil flores, sempre brilhantes e viçosas, graças à eterna primavera desta nossa boa terra de Santa Cruz. De tudo isto se conclui que a avó de Filipe tem no lado direito de sua casa um pomar e do esquerdo um jardim.

E fizemos muito bem em concluir depressa, porque Filipe acaba de receber Augusto com todas as demonstrações de sincero prazer e o faz entrar imediatamente para a sala.

Agora, outras duas palavras sobre a casa: imagine-se uma elegante sala de cinqüenta palmos em quadro; aos lados dela dois gabinetes proporcionalmente espaçosos, dos quais um, o do lado esquerdo, pelos aromas que exala, espelhos que brilham, e um não sei quê, que insinua, está dizendo que é gabinete de moças. Imagine-se mais, fazendo frente para o mar e em toda a extensão da sala e dos gabinetes, uma varanda terminada em arcos; no interior meia dúzia de quartos, depois uma alegre e longa sala de jantar, com janelas e portas para o pomar e jardim, e ter-se-á feito da casa a idéia que precisamos dar.

Pois bem. Augusto apresentou-se. A sala estava ornada com boa dúzia de jovens interessantes: pareceu ao estudante um jardim cheio de flores ou o céu semeado de estrelas. Verdade seja que, entre esses orgulhos da idade presente, havia também algumas rugosas representantes do tempo passado; porém isso ainda mais lhe sanciona a propriedade da comparação, porque há muitas rosas murchas nos jardins e estrelas quase obscuras no firmamento.

Filipe apresentou o seu amigo a sua digna avó e a todas as outras pessoas que aí se achavam. Não há remédio senão dizer alguma coisa sobre elas.

A Sra. D. Ana, este o nome da avó de Filipe, é uma senhora de espírito e alguma instrução. Em consideração a seus sessenta anos, ela dispensa tudo quanto se poderia dizer sobre seu físico. Em suma, cheia de bondade e de agrado, ela recebe a todos com o sorriso nos lábios; seu coração se pode talvez dizer o templo da amizade cujo mais nobre altar é exclusivamente consagrado à querida neta, irmã de Filipe; e ainda mais: seu afeto para com essa menina não se limita à doçura da amizade, vai ao ardor da paixão. Perdendo seus pais, quando apenas contava oito anos, a inocente criança tinha, assim como Filipe, achado no seio da melhor das avós toda a ternura de sua extremosa mãe.

Ao lado da Sra. D. Ana estavam duas jovens, cujos nomes se adivinharão facilmente: uma é a pálida, a outra a loura. São as primas de Filipe.

Ambas são bonitinhas, mas, para Augusto, D. Quinquina tem as feições mais regulares; achou-lhe mesmo muita harmonia nos cabelos louros, olhos azuis e faces coradas, confessando, todavia, que as negras madeixas e rosto romântico de D. Joaninha fizeram-lhe uma brecha terrível no coração.

Além destas, algumas outras senhoras aí estavam, valendo bem a pena de se olhar para elas meia hora sem pestanejar. Toda a dificuldade, porém, está em pintar aquela mocinha que acaba de sentar-se pela sexta vez, depois que Augusto entrou na sala: é a irmã de Filipe. Que beija-flor! Há cinco minutos que Augusto entrou e em tão curto espaço já ela sentou-se em diferentes cadeiras, desfolhou um lindo pendão de rosas, derramou no chapéu de Leopoldo mais de duas onças d'água-de-colônia de um vidro que estava sobre um dos aparadores, fez chorar uma criança, deu um beliscão em Filipe e Augusto a surpreendeu fazendo-lhe caretas: travessa, inconseqüente e às vezes engraçada; viva, curiosa e em algumas ocasiões impertinente. O nosso estudante não pode dizer com precisão nem o que ela é, nem o que não é: acha-a estouvada, caprichosa e mesmo feia; e pretende tratá-la com seriedade e estudo, para nem desgostar a dona da casa, nem se sujeitar a sofrer as impertinências e travessuras que a todo momento a vê praticar com os outros. Enfim, para acabar de uma vez esta já longa conta das senhoras que se achavam na sala, diremos que aí se notavam também duas velhas amigas da dona da casa: uma, que só se entreteve, se entretém e se há de entreter em admirar a graça e encantos de duas filhas que consigo trouxera; e outra, que pertence ao gênero daquelas que nas sociedades agarram num pobre homem, sentam-no ao pé de si, e, maçando-o duas e três horas com enfadonhas e intermináveis dissertações, finalmente o largam, supondo que lhe têm feito grande honra e dado maior prazer.

Quanto aos homens... Não vale a pena!... Vamos adiante.

Estas observações que aqui vamos oferecendo fez também Augusto consigo mesmo, durante o tempo que gastou em endereçar seus cumprimentos e dizer todas essas coisas muito banais e já muito sediças, mas que se dizem sempre de parte a parte, com obrigado sorrir nos lábios e indiferença no coração. Concluída essa verdadeira maçada e reparando que todos tratavam de conversar, para melhor passar as horas e esperar as do jantar, ele voltou o rosto com vistas de achar uma cadeira desocupada junto de alguma daquelas moças; porém, ó monfina do pobre estudante!... Ó itempestivo castigo dos seus maiores pecados!... A segunda das duas velhas, de quem há pouco se tratou, estendeu a mão e chamou-o, mostrando com o dedo carregado de anéis um lugar livre junto dela.

Não havia remédio: era preciso sofrer, com olhos enxutos e o prazer na face, o martírio que se lhe oferecia. Augusto sentou-se ao pé da Sra. D. Violante.

Ela lançou-lhe um olhar de bondade e proteção e ele abaixou os olhos, porque os de D. Violante são terrivelmente feios e os do estudante não se podem demorar por muito tempo sobre espelho de tal qualidade.

-Adivinho, disse ela, com certo ar de ironia, que lhe está pesando demais o sacrifício de perder alguns momentos conversando com uma velha.

-Ó minha senhora! respondeu o moço, as palavras de V. S. fazem grande injustiça a si própria e a mim também: a mim, porque me faz bem cheio de rudeza e mau gosto; e a si, porque, se um cego as ouvisse, certo que não faria idéia do vigor e da...

-Olhem como ele é lisonjeiro!... exclamou a velha, batendo levemente com o leque no ombro do estudante, e acompanhando esta ação com uma terrível olhadura, rindo-se com tão particular estudo, que mostrava dois únicos dentes que lhe restavam.

Augusto olhou fixamente para ela e conheceu que na verdade se havia adiantado muito. D. Violante era horrivelmente horrenda, e com sessenta anos de idade apresentava um carão capaz de desmamar a mais emperreada criança.

A conversação continuou por uma boa hora; o tédio do estudante chegou a ponto de fazê-lo arrepender-se de ter vindo à ilha de... Três vezes tentou levantar-se, mas D. Violante sempre tinha novas coisas a dizer. Falou-lhe sobre a sua mocidade... seus pais, seus amores, seu tempo, seu finado marido, sua esterilidade, seus rendimentos, seu papagaio e até suas galinhas. Ah!... Falou mais que um deputado da oposição, quando se discute o voto de graças. Finalmente parau um instante, talvez para respirar, começar novo ataque de maçada. Augusto quis aproveitar-se da intermitência: estava desesperado e pela quarta vez ergueu-se.

-Com licença de V. S.

-Nada! disse a velha, detendo-o e apertando-lhe a mão, eu ainda tenho muito que dizer-lhe.

-Muito que dizer?... balbuciou o estudante automaticamente, deixando-se cair sobre a cadeira, como fulminado por um raio.

-O senhor está incomodado?... perguntou D. Violante, com toda a ingenuidade.

-Eu... eu estou às ordens de V. S.

-Ah! Vê-se que a sua delicadeza iguala à sua bondade, continuou ela com um acento meio açucarado e terno.

-Oh, castigo de meus pecados!... pensou Augusto consigo; querem ver que a velha está namorada de mim?!! e recuou sua cadeira meio palmo para longe dela.

-Não fuja... prosseguiu D. Violante, arrastando por sua vez a cadeira até encostá-la à do estudante, não fuja... eu quero dizer-lhe coisas que não é preciso que os outros ouçam.

-E então? pensou de novo Augusto, fiz ou não uma galante conquista?... E suava suores frios.

-O senhor está no quinto ano de Medicina?...

-Sim, minha senhora.

-Já cura?

-Não, minha senhora.

-Pois eu desejava referir-lhe certos incômodos que sofro, para que o senhor me dissesse que moléstia padeço e que tratamento me convém.

-Mas... minha senhora... eu ainda não sou médico e só no caso de urgente necessidade me atreveria...

-Eu tenho inteira confiança no senhor; me parece que é o único capaz de acertar com a minha enfermidade.

-Mas ali está um estudante do sexto ano...

-Eu quero o senhor mesmo.

-Pois, minha senhora, eu estou pronto para ouvi-la: porém julgo que o tempo e o lugar são poucos oportunos.

-Nada... há de ser agora mesmo.

Ah!... A boa da velha falou e tornou a falar. Eram duas horas da tarde e ela ainda dava conta de todos os seus costumes, de sua vida inteira; enfim, foi uma relação de comemorativos como nunca mais ouvirá o nosso estudante. Às vezes Augusto olhava para seus companheiros e os via alegremente praticando com as belas senhoras que abrilhantavam a sala, enquanto ele se via obrigado a ouvir a mais insuportável de todas as histórias. Daqui e de certos fenômenos que acusava a macista, nasceu-lhe o desejo de tomar uma vingançazinha. Firme neste propósito, esperou com paciência que D. Violante fizesse ponto final bem determinado a esmagá-la com o peso do seu diagnóstico e ainda mais com o tratamento que tencionava prescrever-lhe.

Às duas horas e meia a oradora terminou o seu discurso, dizendo:

-Agora quero que, com toda a sinceridade, me diga se conhece a minha enfermidade e o que devo fazer.

-Então V. S. dá-me licença para falar com toda a sinceridade?

-Eu o exijo.

-Pois, minha senhora, atendendo tudo quanto ouvi e principalmente a estes últimos incômodos, que tão a miúdo sofre, e de que mais se queixa, como tonteiras, dores no ventre, calafrios, certas dificuldades, esse peso dos lombos, etc., concluo e todo o mundo médico concluirá comigo, que V. S. padece de...

-Diga... não tenha medo.

-Hemorróidas.

D. Violante fez-se vermelha como um pimentão, horrível como a mais horrível das fúrias, encarou o estudante com despeito, e, fixando nele seus tristíssimos olhos furta-cores, perguntou:

-O que foi que disse, senhor?...

-Hemorróidas, minha senhora.

Ela soltou uma risada sarcástica.

-V. S. quer que lhe prescreva o tratamento conveniente?

-Menino, respondeu com mau humor, tome o meu conselho: outro ofício; o senhor não nasceu para médico.

-Sinto ter desmerecido o agrado de V. S. por tão insignificante motivo. Rogo-lhe que me desculpe, mas eu julguei dever dizer o que entendia.

Isto dizendo, o estudante ergueu-se; a velha já não fez o menor movimento para o demorar, e vendo-o deixá-la, disse em tom profético:

-Este não nasceu para Medicina!

Mas Augusto, afastando-se de D. Violante, dava graças ao poder do seu diagnóstico e augurava muito bem de seu futuro médico, pela grande vitória que acabava de alcançar.

-Agora, sim, disse ele com os seus botões, vou recuperar o tempo perdido. E procurava uma cadeira, cuja vizinhança lhe conviesse.

A digna hóspede compreendeu perfeitamente os desejos do estudante, pois, mostrando-lhe um lugar junto de sua neta, disse:

-Aquela menina lhe poderá divertir alguns instantes.

-Mas, minha avó, exclamou a menina com prontidão, até o dia de hoje ainda não me supus boneca.

-Menina!...

-Contudo, eu serei bem feliz se puder fazer com que o senhor... senhor...

-Augusto, minha senhora.

-... o Sr. Augusto passe junto a mim momentos tão agradáveis, como lhe foram as horas que gozou ao pé da Sra. D. Violante.

Augusto gostou da ironia, e já se dispunha a travar conversação com a menina travessa, quando Fabrício se chegou a eles e disse a Augusto:

-Tu me deves dar uma palavra.

-Creio que não é preciso que seja imediatamente.

-Se a Sra. D. Carolina o permitisse, eu estimaria falar-te já. Por mim não seja... disse a menina erguendo-se.

-Não, minha senhora, eu o ouvirei mais tarde, acudiu Augusto, querendo retê-la.

-Nada... não quero que o Sr. Fabrício me olhe com maus olhos... Além de que, eu devo ir apressar o jantar, pois leu no seu rosto que a conversação que teve com a Sra. D. Violante, quando mais não desse, ao menos produziu-lhe muito apetite... mesmo um apetite de... de...

-Acabe.

-De estudante.

E mal o disse, a travessa moreninha correu para fora da sala.

Falta de condescendência

Fabrício acaba de cometer um grave erro e que para ele será de más conseqüências. Quem pede e quer ser servido, deve medir bem o tempo, o lugar e as circunstâncias, e Fabrício não soube conhecer que o tempo, o lugar e as circunstâncias lhe eram completamente desfavoráveis. Vai exigir que Augusto o ajude a forjar cruel cilada contra uma jovem de dezessete anos, cujo único delito é ter sabido amar o ingrato com exagerado extremo. Ora, para conseguir semelhante torpeza, preciso seria que Fabrício aproveitasse um momento de loucura, um desses instantes de capricho e de delírio em que Augusto pensasse que ferir a fibra mais sensível e vibrante do coração da mulher, a fibra do amor, não é um crime, não é pelo menos louca e repreensível leviandade; é apenas perdoável e interessante divertimento de rapazes; e nessa hora não podia Augusto raciocinar tão indignamente. Ainda quando não houvesse nele muita generosidade, estava para desarmá-lo o poder indizível da inocência, o poderoso magnetismo de vinte olhos belos como o planeta do dia, a influência cativadora da formosura em botão, de beleza virgem ainda, de uma anjo, enfim, porque é símbolo de um anjo a virgindade de uma jovem bela.

Mas Fabrício olvidou tudo, e mal, sem dúvida, terá de sair de seu empenho com tantas contrariedades; o tempo não lhe é propício, porque Augusto começa a sentir todos os sintomas de apetite devorador. Ora, um rapaz, e principalmente um estudante com fome, se aborrece de tudo, principalmente do que lhe cheira a maçada. O lugar não menos lhe era desfavorável, porque, diante de um ranchinho de belas moças, quem poderá tramar contra o sossego delas?... Então Augusto, dos tais que por semelhante povo são como formiga por açúcar, macaco por banana, criança por campainha... e ele tem razão! Por último, as circunstâncias também contrariavam Fabrício, pois a Sra. D. Violante havia tido o poder de esgotar toda a elástica paciência do pobre estudante, que não acharia nem mais uma só dose homeopática desse tão necessário confortativo para despender com o novo macista.

Fabrício tomou, pois, o braço de Augusto e ambos saíram da sala: este com vivos sinais de impaciência, e o primeiro com ares de quem ia tratar importante negócio.

A inocente D. Joaninha os acompanhou com os olhos e riu-se brandamente, encontrando os de Fabrício, que teve ainda bastante audácia para fingir um sorriso de gratidão.

Eles se dirigiram ao gabinete do lado direito da sala, o qual fora destinado para os homens; e entrando, fechou Fabrício a porta sobre si, para se achar em toda a liberdade. Enfim, estavam sós. Voltados um para o outro, guardaram alguns momentos de silêncio. Foi Augusto quem teve de rompê-lo.

-Então, ficamos a jogar o siso?

-Espero a tua resposta, disse Fabrício.

-Ainda me não perguntaste nada, respondeu o outro.

-A minha carta?...

-Eu a li, sim... tive a paciência de lê-la toda.

-E então?...

-Então o quê, homem?...

-A resposta?...

-Aquilo não tem resposta.

-Ora, deixa-te disso; vamos mangar com a moça.

-Tu estás doido, Fabrício?

-Por tua culpa, Augusto.

-Pois então cuidas que o amor de uma senhora deve ser peteca com que se divirtam dois estudantes?...

-Quem é que te fala em peteca?... Pelo contrário, o que eu quero é desgrudar-me do fatal contrabando.

-Não; a pesar teu, deves respeitar e cultivar nobre sentimento que te liga a D. Joaninha. Que se diria do teu procedimento, se depois de trazeres uma moça toda cheia de amor e fé na tua constância, por espaço de três meses, a desprezasses sem a menor aparência de razão, sem a mais pequena desculpa?...

-Então tu, com o teu sistema de...

-Eu desengano: previno a todas que minhas paixões têm apenas horas de vida, e tu, como os outros, juras amor eterno.

-Estou desconhecendo-te, Augusto. Sempre te achei com juízo e bom conceito e agora temo muito que estejas com princípios de alienação mental. Explica-me, por quem és, que súbito acesso de moralidade é esse que tanto te perturba.

-Isso, Fabrício, chama-se inspiração de bons costumes.

-Bravo! Bravo! foi muito bem respondido, mas, palavra de honra, que tenho dó te ti! Vejo que em matéria da natureza de que tratamos estás tão atrasado como eu em fazer sonetos. Apesar de todo o teu romantismo ou, talvez, principalmente por causa dele, não vês o que se passa a duas polegadas do nariz. Pois meu amigo, quero te dizer: a teoria do amor do nosso tempo aplaude e aconselha o meu procedimento; tu verás que eu estou na regra, porque as moças têm ultimamente tomado por mote de todos os seus apaixonados extremos ternos afetos e gratos requebros, estes três infinitos de verbos: -iscar, pescar e casar. Ora, bem vês que, para contrabalançar tão parlamentares e viciosas disposições, nós, os rapazes, não podíamos deixar de inscrever por divisa em nossos escudos os infinitos destes três outros verbos: fingir, rir e fugir. Portanto, segue-se que estou encadernado nos axiomas da ciência.

-Com efeito!... Não te supunha tão adiantado!

-Pois que dúvida? Para viver-se vida boa e livre é preciso andar com o olho aberto e pé ligeiro. Então as tais sujeitinhas que, com a facilidade e indústria com que a aranha prende a mosca na teia, são capazes de tecer de repente, com os olhares, sorrisos, palavrinhas doces, suspiros a tempo, medeixes aproximando-se, zelos afetados e arrufos com sal e pimenta, uma armadilha tão emaranhada que, se o papagaio é tolo e não voa logo, mete por força o pé no laço e adeus minhas encomendas, fica de gaiola para todo o resto de seus dias... E, portanto, meu Augusto, deixa-te de insípidos escrúpulos e ajuda-me a sair dos apuros em que me vejo.

-Torno a dizer-te que estás doido, Fabrício, pois que me acreditas capaz de servir de instrumento para um enredo... uma verdadeira traição. Então, que pensas?... Eu reqüestaria D. Joaninha, não é assim?... Tu a deixavas, fingindo ciúmes, e depois quem me livraria dos apertos em que necessariamente tinha de ficar?...

-Ora, isso não te custava cinco minutos de trabalho. Tu... inconstante por índole e por sistema.

-Fabrício, deixa-te de asneiras; já que te meteste nisso, avante! Além de que, D. Joaninha é um peixão.

-Oh! oh! oh!... Uma desenxabida...

-Que blasfêmia!

-Além disso é impossível... não posso suportar o peso: escrever quatro cartas por semana... Isto só! o talento que é preciso para inventar asneiras e mentiras dezesseis vezes por mês! e depois, o Tobias...

-Puxa-lhe as orelhas.

-Como?... se ele é a cria de D. Joaninha, o alfenim da casa, o S. Benedito da família!...

-Não sei, meu amigo, arranja-te como puderes.

-Lembra-te que foste a causa principal de tudo isso.

-Quem, eu?... eu apenas te disse que não sabias o gosto que tinha o amor à moderna.

-Pois bem, saí do meu elemento, fui experimentar a paixão romântica... Aí a tens!... A tal paixãozinha me esgotou já paciência, juízo e dinheiro. Não a quero mais.

-Tu sempre foste um papa-empadas.

-Sim, e há dois meses que não sei o que é o cheiro delas. Anda, meu Augustozinho, ajuda-me!

-Não posso e não devo.

-Vê lá o que dizes!

-Tenho dito.

-Augusto!

-Agora digo mais que não quero.

-Olha que te hás de arrepender!

-Esta é melhor!... Pretendes meter-me medo?...

-Eu sou capaz de vingar-me.

-Desafio-te a isso.

-Desacredito-te na opinião das moças.

-É um meio de tornar-me objeto de suas atenções. Peço-te que o faças.

-Descubro e analiso o teu sistema de iludir a todas.

-Tornar-me-ás interessante a seus olhos.

-Direi que és um bandoleiro.

-Melhor, elas farão por tornar-me constante.

-Mostrarei que a tua moral a respeito de amor é a pior possível.

-Ótimo!... elas se esforçarão por fazê-la boa.

-Hei de, nestes dois dias, atrapalhar-te continuamente.

-Bravo!... Não contava divertir-me tanto!

-Então tu teimas no teu propósito?...

-Pois, se é precisamente agora que estou vendo os bons resultados que ele me promete!

-Portanto, estes dois dias, guerra!

-Bravíssimo, meu Fabrício; guerra!

-Antecipo-te que meu primeiro ataque terá lugar durante o jantar.

-Oh! por milhares de razões, tomara eu que chegasse a hora dele!...

-Augusto, até o jantar!

-Fabrício, até o jantar!

Neste momento Filipe abriu a porta do gabinete e, dirigindo-se aos dois, disse:

-Vamos jantar.

Jantar conversado

Ao escutar-se aquele aviso animador que, repetido pela boca de Filipe, tinha chegado até ao gabinete onde conversavam Augusto e Fabrício, raios de alegria brilharam em todos os semblantes. Cada cavalheiro deu o braço a uma senhora e, par a par, se dirigiram para a sala de jantar. Eram, entre senhoras e homens, vinte e seis pessoas.

Coube a Augusto a glória de ficar entre D. Quinquina, que lhe dera a honra de aceitar seu braço direito, e uma jovem de quinze anos, cuja cintura se podia abarcar completamente com as mãos. Um velho alemão ficava à esquerda dela e, sem vaidade, podia Augusto afirmar que D. Clementina prestava mais atenção a ele que aos jagodes, que, também, a falar a verdade, por seu turno mais se importava com o copo do que com a moça.

D. Quinquina (como a chamam suas amigas) conversa sofrível e sentimentalmente: é meiga, terna, pudibunda, e mostra ser muito modesta. Seu moral é belo e lânguido como seu rosto; um apurado observador, por mais que contra ela se dispusesse, não exitaria de classificá-la entre as sonsas. D. Clementina pertencia, decididamente, a outro gênero: o que ela é lhe estão dizendo dois olhos vivos e perspicazes e um sorriso que lhe está tão assíduo nos lábios, como o copo de vinho nos do alemão. D. Clementina é um epigrama interminável; não poupa a melhor de suas camaradas; sua vivacidade e espírito se empregam sempre em descobrir e patentear nas outras as melhores brechas, para abatê-las na opinião dos homens com quem pratica.

Durante as primeiras cobertas ela dissertou maravilhosamente acerca de suas companheiras. Maliciosa e picante, lançou sobre elas o ridículo, que manejava, e os sorrisos de Augusto, que com destreza desafiava. As únicas que lhe haviam escapado eram D. Quinquina, provavelmente por ficar-lhe muito vizinha, e a irmã de Filipe, que estava defronte ou, como é moda dizer - vis-à-vis.

Augusto quis provocar os tiros de D. Clementina contra aquela menina impertinente que tão pouco lhe agradava.

-E que pensa V. S. desta jovem senhora que está defronte de nós? perguntou ele com voz baixa.

-Quem?... A Moreninha?... respondeu ela no mesmo tom.

-Falo da irmã de Filipe, minha senhora.

-Sim... todas nós gostamos de chamá-la Moreninha. Essa...

-Acabe D. Clementina, disse a irmã de Filipe, que, fingindo antes não prestar atenção ao que conversavam os dois, acabava de fixar de repente na terrível cronista dois olhares penetrantes e irresistíveis.

Parecia que uma luta interessante ia ter lugar; as duas adversárias mostravam-se ambas fortes e decididas, porém D. Clementina para logo recuou; e, como querendo não passar por vencida, sorriu-se maliciosamente e, apontando para a Moreninha, disse, afetando um acento gracejador:

-Ela é travessa como o beija-flor, inocente como uma boneca, faceira como o pavão, e curiosa como... uma mulher.

-Sim, tornou-lhe D. Carolina. Preciso é que os ouvidos estejam bem abertos e a atenção bem apurada, quando se está defronte de uma moça como D. Clementina, que sempre tem coisas tão engraçadas e tão inocentes para dizer!... Oh! minha camarada, juro-lhe que ninguém lhe iguala na habilidade de compor um mapa!

-Mas... D. Carolina... você deu o cavaco?...

-Oh! Não, não... continuou a menina, com picante ironia; porém, é fato que nenhuma de nós gosta de ser ofuscada com o esplendor de outra. Já basta de brilhar, D. Clementina; o Sr. Augusto deve estar tão enfeitiçado com o seu espírito e talento, que decerto não poderá toda esta tarde e noite olhar para nós outras, sem compaixão ou desgosto; portanto, já basta... se não por si, ao menos por nós.

A cronista fez-se cor de nácar e a sua adversária, imitando-a na malícia do sorriso e no acento gracejador, prosseguiu ainda:

-Mas ninguém conclua daqui que, por ofuscada, perco eu o amor que tinha ao astro que me ofuscou. Bela rosa do jardim! teus espinhos feriram a borboleta, mas nem por isso deixarás de ser beijada por ela!...

E assim dizendo, a Moreninha estendeu e apinhou os dedos de sua mão direita, fez estalar um beijo no centro do belo grupo que eles formaram e, enfim, executou com o braço um movimento, como se atirasse o beijo sobre D. Clementina.

-Oh! disse Augusto consigo mesmo: a tal menina travessa não é tão tola como me pareceu ainda há pouco. E desde então começou o nosso estudante a demorar seus olhares naquele rosto que, com tanta injustiça, tachara de irregular e feio. Prevenido contra D. Carolina, por havê-la surpreendido fazendo-lhe uma careta, o tal Sr. Augusto, com toda a empáfia de um semidoutor, decidiu magistralmente que a moça tinha todos os defeitos possíveis. Coitadinho... espichou-se tão completamente, que agora mesmo já está pensando com os seus botões: ela não será bonita!... Porém feia... isso é demais!

-Chegou muito tarde à ilha... balbuciou D. Quinquina, como quem desejava travar conversação com Augusto.

-Pensa deveras isso, minha senhora?!... respondeu este, pregando nela um olhar de quem está pedindo um sim.

-Penso... disse a moça enrubescendo.

-Pois é precisamente agora que eu reconheço ter chegado muito tarde ou, pelo contrário, talvez cedo demais.

-Cedo demais?...

-Certamente... não se chegará sempre cedo demais onde se corre algum risco?

-Aqui, portanto...

-Neste lugar, portanto, continuou o estudante, voltando os olhos por todas as senhoras, e apontando depois para D. Quinquina, e aqui principalmente, floresce e brilha o prazer, mas perde-se também a liberdade de um mancebo!

Os dois foram interrompidos para corresponder a uma longa e interminável coleção de brindes que o alemão principiou a desenrolar, e com tanta freqüência e tão pouca fertilidade que só a Sra. D. Ana teve, por sua saúde, de vê-lo beber seis vezes.

Enfim, cedeu um pouco a tormenta, e D. Quinquina, que havia gostado do que lhe dissera o estudante, continuou:

-Não quis vir com seus colegas?

-Eu gosto de andar só, minha senhora.

-Sempre é má e triste a solidão.

-Mas às vezes também a sociedade se torna insuportável... por exemplo, depois de amanhã...

-Depois de amanhã? repetiu ela, sorrindo-se; depois de amanhã o quê?

-Minha senhora, ouvidos que escutaram acordes, sons de harpa sonora, vibrada por ligeira mão de formosa donzela, doem-se de ouvir o toque inqualificável da viola desafinada da rude saloia.

-Eu não o compreendo bem...

-Quem respirou o ar embalsamado dos jardins, o aroma das rosas, os eflúvios da angélica, se incomoda, se exaspera ao respirar logo depois a atmosfera grave e carregada de miasmas de um hospital.

-Ainda o não entendi.

-Pois juro, minha senhora, que desta vez me há de compreender perfeitamente. Digo que, vendo eu hoje dois olhos que por sua cor e brilho se assemelham a dois belos astros de luz, cintilando em céus do mais puro azul; que, escutando uma voz tão doce como serão as melodias dos anjos; que, enfim, respirando junto de alguém, cujo bafo é um perfume de delícias, depois de amanhã preferirei não ver, não ouvir e não cheirar coisa alguma, a ver os olhos pardos e escovados ali do meu amigo Leopoldo, a ouvir a voz de taboca rachada do meu colega Filipe e a respirar a fumaça dos charutos de meu companheiro Fabrício.

-Ah!... exclamou outra vez inesperadamente D. Carolina, eu creio que D. Quinquina terá finalmente compreendido o que o Sr. Augusto tanto se empenha em lhe explicar.

-Minha prima, atreveu-se a dizer a ingênua, modesta, medrosa e muito sonsa D. Quinquina; minha prima, você o teria compreendido no primeiro instante, não é assim?...

-Certamente, respondeu a mocinha, sem perturbar-se; o Sr. Augusto, além de falar com habilidade e fogo, pôs em ação três sentidos; o que poderia também suceder era que, como algumas costumam fazer, eu fingisse não compreendê-lo logo, para dar lugar a mais vivas finezas, até que ele, de fatigado, dissesse tudo, sem figuras e flores de eloqüência... Ora isso quase que aconteceu, porque os olhos, os ouvidos e o nariz do Sr. Augusto hão de estar certamente cansados de tão excessivo trabalho!...

-Minha senhora!...

-Por desdita dele não houve ocasião de pôr em campo um outro sentido; o gosto ficou em inação bem contra sua vontade, não é assim, Sr. Augusto?...

-Minha prima, todos olham para nós...

-A respeito de tato, não direi palavra, continuou a terrível Moreninha; porque, se as mãos do Sr. Augusto conservaram-se em justa posição, quem sabe os transes por que passariam os pés de minha prima?... Os Srs. estão juntinhos, que com facilidade e sem risco se podem tocar por baixo da mesa.

-Menina! exclamou a Sra. D. Ana, com acento de repreensão.

-Minha senhora, consinta que ela continue a gracejar, disse Augusto, meio aturdido. Além de me dar a honra de tomar-me por objeto de seus gracejos, dá-me também o prazer de apreciar e admirar seu espírito e agudeza.

-Agradecida! muito agradecida! tornou o diabinho da menina, rindo-se com a melhor vontade. Eu cá não custo tanto a compreendê-lo como minha prima; já sei o que querem de mim os seus elogios... estou comprada, não falo mais.

Uma risada geral aplaudiu as últimas palavras de D. Carolina; não há nada mais natural; ela era neta da dona da casa, e, além de ser moça, é rica.

Começava então a servir-se a sobremesa.

-E eu, apesar de amigo e colega de Augusto, disse por fim Fabrício, endireitando-se, não posso deixar de lastimar a Sra. D. Joaquina, pela triste conquista que acaba de fazer.

Augusto conheceu que lhe era dado o sinal de combate. Fabrício queria tomar vingança de sua nenhuma condescendência, e, pois, preparou-se para sustentar a luta com todo o esforço. E vendo que todos tinham os olhos nele, como que esperando uma resposta, não hesitou:

-Obrigado, disse; nem eu mesmo posso de mim formar outro conceito. Devo, todavia, declarar que, se me fosse dado conhecer a ditosa mortal que conseguiu ganhar os pensamentos e o coração do meu colega, certo que lhe eu daria meus parabéns em prosa e verso, porque Fabrício é, sem contradição, a mais alegre e apreciável conquista!

A ironia o feriu. A interessante Moreninha lançou sobre Augusto um olhar de aprovação e sorriu-se brandamente; gostou de o ver manejar a sua arma favorita. Sem se explicar o porquê, também o nosso estudante teve em muita conta aquele sorriso da menina travessa. Fabrício continuou:

-Venha embora o ridículo, que nem por isso poder-se-á negar que para o nosso Augusto não houve, não há, nem pode haver amor que dure mais de três dias.

Todas as senhoras olharam para o réu daquele horrendo crime de lesa-formosura. Augusto respondeu:

-E o que há aí de mais engraçado é que Fabrício tem culpa disso, porque, enfim, manda o meu destino que eu sempre tenha andado, ande, e haja de andar em companhia dele, que, com a maior crueldade do mundo, tira-me todos os lances, antes de três dias de amor.

Novo olhar, novo sorriso de aprovação de D. Carolina, novo prazer de Augusto por merecê-los.

Fabrício torceu-se sobre a cadeira e prosseguiu:

-Nada de fugir da questão. Poder-se-ia julgar fraqueza querer de algum modo ocultar que, tanto em prática como em teoria, o meu colega é e se preza de ser o protótipo da inconstância.

-Eis o que ele não pode negar, acudiram Leopoldo e Filipe, rindo-se.

-E para que negar, se já o nosso colega afirmou que eu me prezava de ter essa qualidade?...

-Misericórdia! exclamou uma das moças.

-É possível?!... perguntou a avó de Filipe, com seriedade.

-É absolutamente verdade, respondeu o estudante.

Lançou depois um olhar ao derredor da mesa e todas as senhoras lhe voltaram o rosto. D. Quinquina tinha nos lábios um triste sorriso. A Moreninha olhou-o com espanto, durante um curto momento, mas logo depois soltou uma sofrível risada e pareceu ocupar-se exclusivamente de uma fatia de pudim.

Reinou silêncio por alguns instantes: Fabrício parecia vitorioso; Augusto estava como em isolamento, as senhoras olhavam para ele com receio, mostravam temer encontrar seus olhos; dir-se-ia que receavam que de uma troca de olhares nascesse para logo o sentimento que as devesse tornar desgraçadas. Desde as fatais palavras de Fabrício, Augusto era naquela mesa o que costumava ser um leproso na Idade Média: -O homem perigoso, cujo contato podia fazer a desgraça de outro.

Fabrício compreendeu em quão triste situação estava o seu adversário, e, inexperiente, se havia deixá-lo debatendo-se em sua má posição, quis ainda mais piorá-la, e foi, talvez, arrancá-lo dela. Fabrício, pois, fala; as senhoras embebem nele seus olhos e o aplaudem, enquanto Augusto, servindo-se de um prato de grosso melado, afeta prestar pouca atenção ao seu acusador.

-Sim, minhas senhoras, é um jovem inconstante, acessível a toda as belezas, repudiando-as ao mesmo tempo para correr atrás de outra, que será logo deixada pela vista de uma nova, como se ele fosse a inércia da matéria, que conserva uma impressão, mas que não a guarda senão o tempo que é gasto para um novo agente modificá-la!

-Muito bem! Muito bem! disseram algumas vozes.

-Seu coração é pétrica abóbada de teatro, que não entende o dizer de Auber, quando soluça à flauta ternos sons de músico discurso, pois aquela muda superfície reflete a todos e a todos esquece com estúpida indiferença!...

-Bravo!... Fabrício está hoje romântico! exclamou Leopoldo, apontando maliciosamente para uma garrafa que se achava defronte do orador, e quase de todo esgotada.

-Apoiadíssimo!... murmurou Augusto, apontando também para a garrafa.

-Mas ele deverá viver de lágrimas, suspiros e ânsias de condenado... concluiu Fabrício.

-Bravo!... Muito bem!... Bravo!...

-Peço a palavra para responder! exclamou Augusto.

-Tem a palavra, mas nada de maçada!

-Duas palavras, minhas senhoras, só duas palavras.

-Sim, defenda-se, defenda-se.

-Defender-me?... Certo que o não farei; poderia, ao contrário, acusar, mas também não quero; julgo apenas oportuno dar algumas explicações. Minhas senhoras, debaixo de certo ponto de vista o meu colega Fabrício disse a verdade, porque eu sou, com efeito, o mais inconstante dos homens em negócio de amor.

-Ainda repete?!

-Mas também quem me conhece bastante conclui que, por fim de contas, não há amante algum mais firme do que eu.

-O senhor está compondo enigmas.

-Não o interrompam, deixem-no apresentar o seu programa amoroso.

-Sim, minhas senhoras, continuou Augusto; vamos ao desenvolvimento da primeira proposição.

-Ouçam! Ouçam!

-A minha inconstância é natural, justa e, sem dúvida, estimável. Eu vejo uma senhora bela, amo-a não porque ela é senhora... mas porque é bela; logo, eu amo a beleza. Ora, este atributo não foi exclusivamente dado a uma só senhora, e quando o encontro em outra, fora injustiça que eu desprezasse nesta aquilo mesmo que tanto amei na primeira.

-Bravo!... Viva o raciocínio!

-Mais ainda. Todo o mundo sabe que não há quem nasça perfeito. Suponhamos que eu estou na agradável companhia de três jovens; todas são lindas; mas a primeira vence a segunda na delicadeza do talhe, esta supera aquela na ternura do olhar e na graça dos sorrisos, e a terceira, enfim, ganha as duas na sublime harmonia de umas bastas madeixas negras, coroando um rosto romanticamente pálido; ora, bem se vê que seria cometer a mais detestável injustiça se eu, por amar a delicadeza do talhe da primeira, me esquecesse das ternuras dos olhares e da graça dos sorrisos da segunda, assim como das bastas madeixas negras e do rosto romanticamente pálido da última.

-Muito bem, Augusto, exclamou Filipe. Estou achando um não sei quê tão aproveitável no teu sistema, que me vejo em termos de segui-lo.

-Eis aqui, pois, por que sou inconstante, minhas senhoras; é o respeito que tributo ao merecimento de todas, é talvez o excesso a que levo as considerações que julgo devidas ao sexo amável, que me faz ser volúvel. Agora eu entro na segunda parte da minha explicação.

-Atenção!... Ele vai provar que é constante!...

-Antes que ninguém, minhas senhoras, eu repreendi o meu coração pela sua volubilidade; mas vendo que era vão trabalho querer extinguir por tal meio uma disposição que a natureza nele plantara, pretendi primeiro achar na mesma natureza um corretivo que o fizesse; procurei uma jovem bem encantadora para me lançar em cativeiro eterno, mas debalde o fiz, porque eu sou tão sensível ao poder da formosura, que sempre me sucedia esquecer a bela de ontem pela que via hoje, a qual, pela mesma razão, era esquecida depois. Quantas vezes, minhas senhoras, nos meus passeios da tarde, eu olvidei o amor da manhã desse mesmo dia por outro amor, que se extinguiu no baile dessa mesma noite!...

-É exageração! disse uma senhora.

-É exatamente assim, acudiu Fabrício.

-Que folha d'alho!... exclamou D. Quinquina.

-Então, minhas senhoras, prosseguiu Augusto, eu entendi que devia recorrer a mim próprio para tornar-me constante. Consegui-o. Sou firme amante de um objeto... mas de um só objeto que não tem existência real, que não vive.

-Como é isto!... Então a quem ama?

-A sua sombra, como Narciso?...

-A boneca que se vê na vidraça do Desmarais?...

-Ao cupido de Praxiteles, como Aquídias de Rodes?

-Alguma estátua da Academia das Belas-Artes?...

-Nada disso.

-Então a quem?

-A todas as senhoras, resumidas num só ente ideal. À custa dos belos olhos de uma, das lindas madeixas de outra, do colo de alabastro desta, do talhe elegante daquela, eu formei o meu belo ideal, a quem tributo o amor mais constante. Reúno o que de melhor está repartido e faço mais ainda: aperfeiçôo a minha obra todos os dias. Por exemplo, retirando-me desta ilha, eu creio que vestirei o meu belo ideal de novas formas!

-Viva o cumprimento!...

-Foi assim, minhas senhoras, que eu me pude tornar constante e, graças a meu proveitoso sistema, posso amar a todas as senhoras a um tempo sem ser infiel a nenhuma. Disse.

-Muito bem!... Muito bem!...

-Augusto desempenhou-se.

O champagne estourava naquele momento. Leopoldo tomou a palavra pela ordem.

-Eu vou, exclamou, propor um belo meio de terminar esta discussão, convidando a todos os senhores para um brinde, no qual Augusto, por castigo de sua inconstância, nos não poderá acompanhar. Não é novo que mancebos bebam, no meio dos prazeres de um festim, um copo de vinho depois de pronunciar o nome daquela que é dama de seus pensamentos: aqui não estamos só mancebos e, pois, não faremos tanto; pronunciaremos, contudo, a inicial do primeiro nome.

-Sim! Sim! disse Filipe, Augusto não beberá conosco...

-Não, maninho, acudiu a interessante Moreninha, ele há de beber também.

-Ah, minha senhora! no beber um copo de champagne não está a dúvida; a dificuldade toda é poder, entre tantos nomes, escolher o mais amado. Acode-me tal número dos que têm tocado o superlativo do amor...

-M... disse Leopoldo, esvaziando seu copo.

-C... pronunciou Filipe, olhando para D. Clementina.

-J... balbuciou Fabrício, exasperado com um acesso de tosse que atacara Augusto.

Os outros mancebos pronunciaram suas letras; só o inconstante faltava.

-Eis! ânimo, Sr. Augusto, disse D. Carolina.

-Mas que letra, minha senhora?... se eles me dessem licença, eu faria o enorme sacrifício de reduzir as que me lembram ao diminuto número de vinte e três.

-Nada! nada! nesta saúde não entra o número plural.

-Pois bem, Sr. Augusto, continuou a menina, uma coleção não deixa de ser singular; beba o seu copo de champagne ao alfabeto inteiro!

-Sim, minha senhora, ao alfabeto inteiro!

Meia hora depois levantaram-se da mesa. Leopoldo aproximou-se de Augusto.

-Então que dizes, Augusto?...

-Que passaremos a mais agradável noite.

-E quem ganhará a aposta?

-Eu.

-De quais destas meninas estás mais apaixonado,...

-Estou na minha regra, mas hoje tenho-me apaixonado só de três, principalmente.

-E o que pensas da irmã de Filipe?

-A melhor resposta que te posso dar, é... não sei... porque, ao meio-dia, a julgava travessa, importuna e feia, mas era-me completamente indiferente...

-À uma hora?...

-Eu a supus estouvada e desagradável.

-Às duas horas?...

-Má, e desejava vê-la longe de mim.

-Durante o jantar?...

-Fui achando-lhe algum espírito e acusei-me por havê-la julgado feia.

-E agora?

-Parece que me sinto muito inclinado a declará-la engraçada e bonitinha.

-E daqui a pouco?

-Eu te direi...

Augusto com seus amores

Poucos momentos depois da cena antecedente, a sala de jantar ficou entregue unicamente ao insaciável Keblerc, que entendeu, não sabemos se mal ou bem, que era muito mais proveitoso ficar fazendo honras a meia dúzia de garrafas de belo vinho do que acompanhar as moças, que se foram deslizar pelo jardim. Outro tanto não fizeram os rapazes, que de perto as acompanharam, assim como pais, maridos e irmãos, todos animados e cheios de prazer e harmonia, dispostos a acabar o dia e entrar pela noite com gosto.

Mas dissemos que não sabíamos se Keblerc havia feito bem ou mal em não imitar os outros. Sem dúvida já fomos condenados por homem de mau gosto, cumpre-nos dar algumas razões. Entendemos, cá para nós, que por diversos caminhos vão, tanto o alemão como os rapazes, a um mesmo fim. Em resultado, esgotadas as garrafas e terminado o passeio, haverá mona, não só na sala do jantar, mas também no jardim; a diferença é que uma será mona de vinho e a outra de amor. Esta última costuma sempre ser mais perigosa. Pela nossa parte confessamos que não há cachaça que embebede mais depressa do que uma que se bebe nos olhos travessos de certas pessoas.

Passeava-se. Cada cavalheiro dava o braço a uma senhora, e, divagando-se assim pelo jardim, o dicionário das flores era lembrado a todo o momento. Menina havia que, apenas algum lhe dizia, apontando para a flor:

-Acácia!

-Sonhei com você! respondia logo.

-Amor-perfeito!

-Existo para ti só! tornava imediatamente.

E o mesmo fazia a respeito de todas as flores que lhe mostravam. Era uma doutora de borla e capelo em todas as ciências amatórias; e esta menina era, nem mais nem menos, aquela lânguida e sonsinha D. Quinquina. Fiai-vos nas sonsas!

Um moço e uma moça, porém, andavam, como se costuma dizer, solteiros; cem vezes dela se aproximava o sujeito, mas a bela, quando mais perto o via, saltava, corria, voava como um beija-flor, como uma abelha ou, melhor, como uma doudinha. Eram eles D. Carolina e Augusto.

Augusto passeava só, contra a vontade; D. Carolina, por assim o querer.

Augusto viu de repente todos os braços engajados. Duas senhoras, a quem se dirigiu, fingiram não ouvi-lo, ou se desculparam. O inconstante não lhes fazia conta, ou, antes, queriam, tornando-se difíceis, vê-lo reqüestando-as; porque, desde o programa de Augusto, cada uma delas entendeu lá consigo que seria grande glória para qualquer, o prender com inquebráveis cadeias aquele capoeira do amor, e que o melhor meio de o conseguir era fingir desprezá-lo e mostrar não fazer conta com ele. Exatamente intentavam batê-lo por meio dessa tática poderosa, com que quase sempre se triunfa da mulher, isto é, pouco a pouco.

D. Carolina, pelo contrário, havia rejeitado dez braços. Queria passear só. Um braço era uma prisão e a engraçada Moreninha gosta, sobretudo, da liberdade. Ela quer correr, saltar e entender com as outras; agora adiante de todos, e daqui a pouco ser a última no passeio: viva, com seus olhos sempre brilhantes, ágil, com seu pezinho sempre pronto para a carreira; inocente para não se envergonhar de suas travessuras e criada com mimo demais para prestar atenção aos conselhos de seu irmão, ela está em toda a parte, vê, observa tudo e de tudo tira partido para rir-se: em contínua hostilidade com todas aquelas que passeavam com moços, de cada vista d'olhos, de cada suspiro, de cada palavra, de cada ação que percebia tirava motivo para seus epigramas; e, inimigo invencível, porque não tinha travo por onde fosse atacado, era por isso temido e acariciado. Deixemo-la, pois, correr e saltar, aparecer e desaparecer ao mesmo tempo; nem à nossa pena é dado o poder acompanhá-la, que ela é tão rápida como o pensamento.

Finalmente, o pobre Augusto encontrou uma senhora que teve piedade dele. Estão afastados do resto da companhia; conversa. Vamos ouvi-los:

-Com efeito, disse a Sra. D. Ana, devo confessar que me espantei ouvindo-o sustentar com tão vivo fogo a inconstância no amor.

-Mas, minha senhora, não sei por que se quer espantar!... É uma opinião.

-Um erro, senhor!... Ou, melhor ainda, um sistema perigoso e capaz de produzir grandes males.

-Eis o que também me espanta!

-Não senhor, nada há aqui que exagerado seja; rogo-lhe que por um instante pense comigo: se o seu sistema é bom, deve ser seguido por todos; e se assim acontecesse, onde iríamos assentar o sossego das famílias, a paz dos esposos, se lhes faltava a sua base - a constância?...

Augusto guardou silêncio e ela continuou:

-Eu devo crer que o Sr. Augusto pensa de maneira absolutamente diversa daquela pela qual se explicou; consinta que lhe diga: no seu pretendido sistema, o que há é muita velhacaria; finge não se curvar por muito tempo diante de beleza alguma, para plantar no amor-próprio das moças o desejo de triunfar de sua inconstância.

-Não, minha senhora, o único partido que eu procuro e tenho conseguido tirar é o sossego que há algum tempo gozo.

-Como?

-É uma história muito longa, mas que eu resumirei em poucas palavras. Com efeito, não sou tal qual me pintei durante o jantar. Não tenho a louca mania de amar um belo ideal, como pretendi fazer crer; porém, o certo é que eu sou e quero ser inconstante com todas e conservar-me firme no amor de uma só.

-Então o senhor já ama?

-Julgo que sim.

-A uma moça?

-Pois então a quem?

-Sem dúvida bela!...

-Creio que deve ser.

-Pois o senhor não sabe?...

-Juro que não.

-O seu semblante?

-Não me lembro dele.

-Mora na Corte?...

-Ignoro-o.

-Vê-a muitas vezes?

-Nunca.

-Como se chama?...

-Desejo muito sabê-lo.

-Que mistério!...

-Eu devo mostrar-me grato à bondade com que tenho sido tratado, satisfazendo a curiosidade que vejo muito avivada no seu rosto; e pois, a senhora vai ouvir o que ainda não ouviu nenhum dos meus amigos, o que eu não lhes diria, porque eles provavelmente rir-se-iam de mim. Se deseja saber o mais interessante episódio da minha vida, entremos nesta gruta, onde praticaremos livres de testemunhas e mais em liberdade.

Eles entraram.

Era uma gruta pouco espaçosa e cavada na base de um rochedo que dominava o mar. Entrava-se por uma abertura alta e larga, como qualquer porta ordinária. Ao lado direito havia um banco de relva, em que poderiam sentar-se a gosto três pessoas; no fundo via-se uma pequena bacia de pedra, onde caía, gota a gota, límpida e fresca água que do alto do rochedo se destilava; preso por uma corrente à bacia de pedra estava um copo de prata, para servir a quem quisesse provar da boa água do rochedo.

Foi este lugar escolhido por Augusto para fazer suas revelações à digna hóspeda.

O estudante, depois de certificar-se de que toda a companhia estava longe, veio sentar-se junto da Sra. D. Ana, no banco de relva, e começou a história dos seus amores.

Os dois breves, branco e verde

Negócios importantes, minha senhora, tinham obrigado meu pai a deixar sua fazenda e a vir passar alguns meses na Corte; eu o acompanhei, assim como toda a nossa família. Isto foi há sete anos, e nessa época houve um dia... mas que importa o dia?... eu o poderia dizer já; o dia, o lugar, a hora, tudo está presente à minha alma, como se fora sucedido ontem o acontecimento que vou ter a honra de relatar; é uma loucura a minha mania... embora... Foi, pois, há sete anos, e tinha eu então treze de idade que, brincando em uma das belas praias do Rio de Janeiro, vi uma menina que não poderia ter ainda oito.

Figure-se a mais bonita criança do mundo, com um vivo, agradável e alegre semblante, com cabelos negros e anelados voando ao derredor de seu pescoço, com o fogo do céu nos olhos, com o sorrir dos anjos nos lábios, com a graça divina em toda ela, e far-se-á ainda uma idéia incompleta dessa menina.

Ela estava à borda do mar e seu rosto voltado para ele; aproximei-me devagarinho. Uma criança viva e espirituosa, quando está quieta, é porque imagina novas travessuras ou combina os meios para executar alguma a que se põe obstáculos; eu sabia isto por experiência própria, e cheguei-me, pois, para saber em que pensava a menina; a pequena distância dela parei, porque já tinha adivinhado seu pensamento.

Na praia estava deposta uma concha, mas tão perto do mar, que quem a quisesse tomar e não fosse ligeiro e experiente, se expunha a ser apanhado pelas ondas, que rebentavam com força, então.

Eu vi a travessa menina hesitar longo tempo entre o desejo de possuir a concha e o receio de ser molhada pelas vagas; depois pareceu haver tomado uma resolução: o capricho de criança tinha vencido. Com suas lindas mãozinhas arregaçou o vestido até aos joelhos, e quando a onda recuou, ela fez um movimento, mas ficou ainda no mesmo lugar, inclinada para diante e na ponta dos pés; segunda, terceira, quarta, quinta onda, e sempre a mesma cena de ataque e receio do inimigo. Finalmente, ao refluxo da sexta, ela precipitou-se sobre a concha, mas a areia escorregou debaixo de seus pés; e a interessante menina caiu na praia, sem risco e com graça; erguendo-se logo e espantada ao ver perto de si a nova onda, que dessa vez vinha mansa e fraca como respeitosa, correu para trás e sem pensar atirou-se nos meus braços, exclamando:

-Ah!... Eu ia morrer afogada!...

Depois, vendo-se com o vestido cheio de areia, começou a rir-se muito, sacudindo-o e dizendo ao mesmo tempo:

-Eu caí! Eu caí!...

E como se não bastasse esta passagem rápida do susto para o prazer, ela olhou de novo para o mar, e tornando-se levemente melancólica, balbuciou com voz pesarosa, apontando para a concha.

-Mas... a minha concha!...

Ouvindo a sua voz harmoniosa e vibrante, eu não quis saber de fluxos nem refluxos de ondas; corri para elas com entusiasmo e, radiante de prazer e felicidade, apresentei-me à linda menina, embora um pouco molhado mas trazendo a concha desejada.

Este acontecimento fez-nos logo camaradas. Corremos a brincar juntos com toda essa confiança infantil que só pode nascer da inocência, e que ainda em parte se dava em mim, posto que já a esse tempo fosse eu um pouco velhaquete e sonso, como um estudante de latim que era, e que por tal já procurava minhas blasfêmias no dicionário.

É sempre digno de observar-se esta tendência que têm as calças para o vestido... Desde a mais nova idade e no mais inocente brinquedo aparece o tal mútuo pendor dos sexos... e de mistura umas vergonhas muito engraçadas...

Eu cá sempre fui assim; quando brincava o tempo-será, por exemplo, sempre preferia esconder-me atrás das portas com a menos bonita de minhas primas, do que com o mais formoso de meus amigos da infância.

Mas, como ia dizendo, nós brincamos juntos, corríamos e caíamos na areia, e depois ríamos ambos de nós mesmos. Tínhamos esquecido todo o mundo, e pensávamos somente em nos divertir, como os melhores amigos.

Depois de uma agradável hora passada em mil diversas travessuras, que nossa imaginação e inconstância de meninos modificava e inventava a cada momento, a minha interessante camarada voltou-se de repente para mim, e perguntou:

-Sou bonita, ou feia?...

Eu quis responder-lhe mil coisas... corei... e finalmente murmurei tremendo:

-Tão bonita!...

-Pois então, tornou-me ela, quando formos grandes, havemos de nos casar, sim?

-Oh!... Pois bem!...

-Havemos, continuou o lindo anjinho de sete anos, eu o quero... Olhe, o meu primo Juca me queria também, mas ainda ontem me quebrou a minha mais bonita boneca... Ora, o marido não deve quebrar as bonecas de sua mulher!... Eu quero, pois, me casar com o senhor, que há de apanhar bonitas conchinhas para mim... Além disso ele não tem como o senhor os cabelos louros nem a cor rosada...

-Porém, eu gosto mais dos cabelos pretos...

-Melhor!... Melhor!... exclamou a menina, saltando de prazer. Olhe: os meus são pretos!

E nisto ela puxou com a sua pequena mãozinha um de seus belos anéis de madeixa, para mostrar-mo, e largando-o depois, eu vi cair outra vez em seu pescoço, de novo torcido como um caracol.

Ainda corremos mais e continuamos a brincar juntos; e, sem o pensar, nós nos esquecemos de procurar saber os nossos verdadeiros nomes, porque nos bastavam esses com que já nos tratávamos, de: meu marido, minha mulher!

A viveza, a graça e o espírito da encantadora menina tinham feito desaparecer meu natural acanhamento, nós estávamos como dois antigos camaradas, quando fomos interrompidos em nossas travessuras por um outro menino que para nós corria chorando.

-O que tem?... perguntamos ambos.

-É meu pai que morre! exclamou ele, apontando para uma velha casinha que avistamos algumas braças distante de nós.

Ficamos um momento tristemente surpreendidos; depois, como dominados pelo mesmo pensamento, ela e eu dissemos a um tempo:

-Vamos lá.

E corremos para a pequena casa.

Entramos. Era um quadro de dor e luto que tínhamos ido ver. Uma pobre velha e três meninos mal vestidos e magros cercavam o leito em que jazia moribundo um ancião de cinqüenta anos, pouco mais ou menos. Pelo que agora posso concluir, uma síncope havia causado todo o movimento, pranto e desolação que observamos. Quando chegamos ao pé de seu leito, ele tornava a si.

-Ainda não morri, balbuciou, olhando com ternura para seus filhos, e deixando cair dos olhos grossas lágrimas. Depois, deparando conosco, continuou:

-Quem são estes dois meninos?...

Ninguém lhe respondeu, porque todos choravam, sem excetuar a minha bela camarada e eu.

-Não chorem ao pé de mim, exclamou o velho, sufocado em pranto, e escondendo o rosto entre as mãos, enquanto seus três filhos e o quarto, que tínhamos há pouco visto fora, se atiravam sobre ele, no excesso da maior, da mais nobre e da mais sublime das dores.

A minha camarada dirigiu-se então à velha.

-O que tem então ele?... perguntou com viva demonstração de interesse.

-Ó, meus meninos, respondeu a aflita velha, ele sofre uma enfermidade cruel, mas que poderia não ser mortal... porém é pobre!... E morre mais depressa pelo pesar de deixar seus filhos expostos à fome!... Morre de miséria!... Morre de fome!...

-Fome! exclamamos com espanto; fome! pois também morre-se de fome?...

E instintivamente a minha interessante companheira tirou do bolso do seu avental uma moeda de ouro e, dando-a à velha, disse:

-Foi meu padrinho que ma deu hoje de manhã... eu não preciso dela... não tenho fome.

E eu tirei de meu bolso uma nota, não me lembro de que valor e por minha vez a entreguei, dizendo:

-Foi minha mãe que ma deu e ela me dá também um abraço, sempre que faço esmola aos pobres.

Não é possível descrever o que se passou então naquela miserável choupana. Minha linda mulher e eu tivemos de ser abraçados mil vezes, de ver de joelhos a nossos pés a velha e os meninos... O ancião forcejava por falar há muito tempo... Dava com as mãos, chamando-nos... Finalmente nós nos aproximamos dele, que nos apertou com entusiasmo contra o coração.

-Quem sois? pôde, enfim, dizer; quem sois?

-Duas crianças, foi a menina que respondeu.

-Dois anjos, tornou o velho. E quem é este menino?...

-É o meu camarada, disse ainda ela.

-Vosso irmão?...

-Não senhor, meu... marido.

-Marido?

-Sim, eu quero que ele seja meu marido.

-Deus realize vossos desejos!..

Acabando de pronunciar estas palavras, o ancião guardou silêncio por alguns instantes... bebeu com sofreguidão um púcaro cheio d'água e, olhando de novo para nós, e tendo no rosto um ar de inspiração e em suas palavras um acento profético, exclamou:

-Seja dado ao homem agonizante lançar seus últimos pensamentos do leito da morte, além dos anos, que já não serão para ele, e penetrar com seus olhares através do véu do futuro!... Meus filhos! amai-vos, e amai-vos muito! A virtude se deve ajuntar, assim como o vício se procura; sim, amai-vos. Eu não vos iludo... vejo lá... bem longe... a promessa realizada! São dois anjos que se unem... vede!... Os meninos que entraram na casa do miserável, que enxugaram o pranto e mataram a fome da indigência, são abençoados por Deus e unidos em nome d'Ele!... Meus filhos, eu vos vejo casados lá no futuro!...

-Oh!... Eis aí outra vez o delírio!... disse a velha vendo a exaltação e o semblante afogueado do enfermo.

-Não, minha mãe, continuou ele, não! Não é delírio... Pois o quê!... Não pode o Eterno abençoar a virtude pela minha boca?... Ó meus meninos! Deus paga sempre a esmola que se dá ao pobre!... Ainda uma vez... lá no futuro... vós o sentireis.

Nós estávamos espantados; o rosto do ancião se havia tornado rubro, seus olhos flamejantes... Seus lábios tremiam convulsivamente, sua mão rugosa tinha três vezes nos abençoado.

Escutando suas palavras, eu acreditei que estávamos ouvindo uma profecia infalivelmente realizável, pronunciada por um inspirado do Senhor.

Não parou aí a nossa admiração. O doente, cujas forças pareciam haver reaparecido subitamente, apoiando-se sobre um dos cotovelos, abriu a gaveta de uma mesa, que estava junto de seu leito, e tirando de uma pequena e antiga caixa dois breves, os deu à velha, dizendo:

-Minha mãe, descosa esses dois breves.

A velha, obedecendo pontualmente, os descoseu com prontidão. Os breves eram dois: um verde e outro branco.

Depois o ancião, voltando-se para mim, disse:

-Menino! Que trazeis convosco que possais oferecer a esta menina?...

Eu corri com os olhos tudo que em mim havia e só achei, para entregar ao admirável homem que me falava, um lindo alfinete de camafeu, que meu pai me tinha dado para trazer ao peito e, maquinalmente, pus-lhe nas mãos o meu camafeu.

O velho quebrou o pé do alfinete e dando-o a sua mãe, acrescentou:

-Minha mãe, cosa dentro do breve branco este camafeu.

E voltando-se para minha bela camarada, continuou:

-Menina! que trazeis convosco que possais oferecer a este menino?...

A menina, atilada e viva, como que já esperando tal pergunta, entregou-lhe um botão de esmeralda que trazia em sua camisinha.

O velho o deu à sua mãe, dizendo:

-Minha mãe, cosa esta esmeralda dentro do breve verde.

Quando as ordens do ancião foram completamente executadas, ele tomou os dois breves e, dando-me o de cor branca, disse-me:

-Tomais este breve, cuja cor exprime a candura da alma daquela menina. Ele contém o vosso camafeu: se tendes bastante força para ser constante e amar para sempre aquele belo anjo, dai-lho, a fim de que ela o guarde com desvelo.

Eu mal compreendi o que o velho queria: ainda maquinalmente entreguei o breve à linda menina, que o prendeu no cordão de ouro que trazia ao pescoço.

Chegou a vez dela. O nosso homem deu-lhe o outro breve, dizendo:

-Tomai este breve, cuja cor exprime as esperanças do coração daquele menino. Ele contém a vossa esmeralda: se tendes bastante força para ser constante e amar para sempre aquele bom anjo, dai-lho, a fim de que ele o guarde com desvelo.

Minha bela mulher executou a insinuação do velho com prontidão, e eu prendi o breve ao meu pescoço com uma fita que me deram.

Quando tudo isto estava feito, o velho prosseguiu ainda:

-Ide, meus meninos; crescei e sede felizes! vós olhastes para mim, pobre e miserável, e Deus olhará para vós... Ah! Recebei a bênção de um moribundo! recebi-a e saí para não vê-lo expirar...

Isto dizendo, apertou nossas mãos com força, eu senti, então, que o velho ardia; senti que seu bafo era como vapor de água fervendo, que sua mão era uma brasa que queimava... Sinto ainda sobre meus dedos o calor abrasador dos seus e agora compreendo que, com efeito, ele delirava quando assim praticou com duas crianças.

Enfim, nós deixamos aquela morada aflitos e admirados. Sós, nós pensamos no velho e choramos juntos; depois, nas crianças, isto não merece reparo, nossa dor se mitigou, para cuidarmos em brincar outra vez.

De repente, a menina olhou para mim e disse:

-E quando minha mãe perguntar pela esmeralda?...

Eu cuidei que lhe respondia, e fiz-lhe igual pergunta:

-E quando meu pai perguntar pelo meu camafeu?

Ficamos olhando um para o outro; passados alguns instantes, minha linda mulher, que me parecera estar pensando, disse sorrindo-se:

-Eu vou pregar uma mentira.

-E qual?...

-Eu direi à minha mãe que perdi a minha esmeralda na praia.

-E eu responderei a meu pai que perdi o meu camafeu nas pedras.

-Eles mandarão procurar, sem dúvida...

-E não o achando, esquecer-se-ão disso.

-E os breves?...

-Nós os guardaremos?...

-O velho disse que sim.

-Para que será isto?...

-Diz que é para nos casarmos quando formos grandes.

-Pois então nós os guardaremos.

-Oh! Eu o prometo.

-Eu o juro.

-Neste momento soou ave-maria.

-Tão tarde! exclamou a menina... minha mãe ralhará comigo!

E, dizendo isto, correu, esquecendo-se até de despedir-se de mim. Esse fatal descuido acabava de entristecer-me, quando ela, já de longe, voltou-se para onde eu estava e, mostrando-me o breve branco, gritou:

-Eu o guardarei!

Pela minha parte entendi dever dar-lhe igual resposta, e, pois, mostrei-lhe o meu breve verde e gritei-lhe também:

-Eu o guardarei!...

Aqui parou Augusto para respirar, tão cansado estava com a longa narração; porém, ergueu-se logo, ouvindo ruído à entrada da gruta.

-Alguém nos escuta! disse ele.

-Foi talvez uma ilusão! respondeu a digna hóspeda.

-Não, minha senhora; eu ouvi distintamente a bulha que faz uma pessoa que corre, tornou Augusto, dirigindo-se à entrada da gruta e observando em derredor dela.

-Então?... perguntou a Sra. D. Ana.

-Enganei-me, na verdade.

-Mas vê alguma pessoa?...

-Apenas lá vejo sua bela neta, a Sra. D. Carolina, pensativa e recostada à efígie da Esperança.

Augusto prosseguindo

A avó de Filipe quis tomar, por sua vez, a palavra; porém, o estudante lhe fez ver que ainda muito faltava para o fim de suas histórias, e voltando de novo ao seu lugar, continuou:

-O acontecimento que acabo de relatar, minha senhora, produziu vivíssima impressão no meu espírito; ajudado por minha memória de menino de treze anos, apenas entrei em casa escrevi, palavra por palavra, quanto me havia acontecido. Isto me tirou o trabalho de mentir, porque, adormecendo sobre o papel que acabava de escrever, meu pai o leu à sua vontade e soube o destino do camafeu, sem precisar que eu lho dissesse. Ele ainda estava junto de mim quando despertei, exclamando: -O meu breve!... O velho!... Minha mulher!...

-Anda, doidinho, disse-me meu pai com bondade; eu te perdôo tuas novas loucuras, em louvor da ação que praticaste, socorrendo um velho enfermo; agora, guarda, eu to peço, e mesmo to mando; guarda melhor esse breve do que guardaste o camafeu.

E isto dizendo, deixou-me.

Não se falou mais nesse acontecimento; soube que o velho morrera no dia seguinte e que no momento da agonia abençoara de novo a minha camarada e a mim.

Meu pai fez todas as despesas do enterro do velho e socorreu sua desgraçada família.

Eu nunca mais vi, nem soube notícia alguma de minha interessante camarada, mas nem por isso a esqueci, minha senhora... porque, ou seja que meu coração a tivesse amado deveras, ou que esse breve tivesse em si alguma coisa de encantador, o certo é que eu ainda hoje me lembro com saudade dessa criança tão travessa, porém tão bela. Sem saber seu nome, pois nem lho perguntei, nem ela mo disse, quando quero falar a seu respeito, digo: -Minha mulher! Riem-se? não me importa: eu não posso dizer de outro modo.

Sempre com sua imagem na minh'alma, com seu engraçado sorriso diante de meus olhos, com suas sonoras palavras soando a meus ouvidos, passei cinco anos pensando nela de dia, e com ela sonhando de noite; era uma loucura, mas que havia eu de fazer?...Cheguei assim aos meus dezoito anos.

Eu já era, pois, mancebo. Meus pais nada poupavam para me educar convenientemente: aprendia quanto me vinha à cabeça: diziam que minha voz era sonora, e por tal convidavam-me para cantar em elegantes sociedades; julgavam que eu dançava com graça e lá ia eu para os bailes; finalmente, como cheguei a fazer algumas quadras, pediam-me para recitar sonetos em dias de anos, e assim introduziram-me em mil reuniões, onde as belezas formigavam e os amores eram dardejados por brilhantes olhos de todas as cores. Além disto freqüentava as casas de meus companheiros de estudos e os ouvia contar proezas de paixões, triunfos e derrotas amorosas. Meu amor-próprio se despertou; tive vontade de amar e ser amado.

Julguei esta minha determinação ainda mais justa, pois tendo ido passear certas férias na roça, e lá falando mil vezes no meu breve e em minha mulher, ouvi a minha mãe dizer uma vez, em que me julgava longe:

-Temo que esse breve tire o juízo àquele menino: talvez que nos seja preciso casá-lo cedo.

Portanto, para não ouvir somente, mas também para contar alguma vitória de amor, para não endoidecer por causa do breve e, finalmente, para não ser necessário à minha mãe casar-me cedo, determinei-me a amar.

-Esqueceu-se, por conseqüência, de sua mulher e do seu breve?! perguntou a Sra. D. Ana, interrompendo Augusto.

-Ao contrário, minha senhora, tornou este; foi essa minha resolução que me tornou mais firme e mais amante de minha mulher.

-Não sei, continuou Augusto, que teve o amor comigo, para entender que todas as moças deviam rir-se de mim e zombar de meus afetos! Pensa que brinco, minha senhora?... Pois foi isso mesmo o que me sucedeu no decurso de minhas paixões. Eu resumo algumas.

A primeira moça que amei era uma bela moreninha, de dezesseis anos de idade. Fiz-lhe a minha declaração na carta mais patética que um pateta poderia conceber: no fim de três dias recebi uma resposta abrasadora e cheia de protestos de gratidão e ternura; meu coração se entusiasmou com isso... Na primeira reunião de estudantes contei a minha vitória, li a minha carta e a resposta que havia recebido: fui vivamente aplaudido; porém, oito dias depois, os mesmos estudantes quase que me quebraram a cabeça com cacholetas e gargalhadas, porque oito dias, bem contadinhos, depois dessa resposta, a minha terna amada casou-se com um velho de sessenta anos. Jurei não amar moça nenhuma que tivesse a cor morena.

Apaixonei-me logo e fui, desgraçadamente, correspondido por uma interessante jovem tão coradinha, que parecia mesmo uma rosa francesa. Nós nos encontrávamos nas noites dos sábados em certa casa, onde se dava todas as semanas uma partida; era a mais agradável sabatina que podia ter um estudante; porém, o meu novo amor chegava a ser tocante demais: a minha querida levava o ciúme até um ponto que atormentava prodigiosamente: se passava algum dia em que a não visse e lhe não mandasse uma flor, aparecia-me depois chorosa e abatida; se na tal partida eu me atrevia a dançar com alguma outra moça bonita, era contar com um desmaio certo, e desmaio de que não acordava sem que eu mesmo lhe chegasse ao nariz o seu vidrinho de essência de rosas; e tudo mais por este teor e forma. Este amor já estava um pouco velho, certamente, tinha três meses de idade. Um sábado mandei-lhe prevenir que faltaria à partida; mas, tendo terminado cedo meus trabalhos, não pude resistir ao desejo de vê-la e fui à reunião; eram onze horas da noite, quando entrei na sala, procurei-a com os olhos e certo moço, com quem me dava, que me entendeu, apontou para um gabinete vizinho. Voei para ele.

Ela estava sentada junto de um mancebo e com as costas voltadas para a porta: tomavam sorvetes. Cheguei-me de manso: conversavam os dois, sem vergonha nenhuma, em seus amores!... Fiquei espantado e tanto mais que, pelo que ouvi, eles já se correspondiam há muito tempo; mas o meu espanto se tornou em fúria quando ouvi o machacaz falar no meu nome, fingindo-se zeloso, e receber em resposta as seguintes palavras: -O Augustozinho?... Lamente-o antes, coitado! é um pobre menino com quem me divirto nas horas vagas!... Soltei um surdo gemido; a traidora olhou para mim e, voltando-se depois para o seu querido, disse com o maior sangue-frio: -Ora aí tem! Perdi por sua causa este divertimento.

Jurei não amar moça nenhuma de cor rosada. Sem emendar-me, ainda tomei-me cego amante de uma jovem pálida, e, como das outras vezes, fui correspondido com ardor; mas deste tive eu provas de afeto mui sérias. Antes de ver-me, ela amava um primo e até escrevia-lhe a miúdo; eu exigi que a minha terceira amada continuasse a receber cartas dele e que as respondesse; consentiu nisso, com a condição de lhe redigir eu as respostas. Belo! disse comigo: vou também divertir-me por minha vez à custa de um amante infeliz!

E o negócio ficou assentado.

Infelizmente eu não conhecia o primo da minha amada, mas essa era a infelicidade mais tolerável possível.

Um dia tratamos de encontrar-nos em certa igreja, onde tinha de haver esplêndida festa; cheguei cedo, mas, logo depois da minha chegada, rebentou uma tempestade e choveu prodigiosamente. Pouco durou o mau tempo, porém as ruas deveriam ter ficado alagadas e a bela esperada não podia vir; apesar disso eu olhava a todos os momentos para a porta e, coisa notável, sempre encontrava os olhos de um outro moço, que se dirigiam também para lá; acabada a festa, ambos nos aproximamos.

-Nós devemos ser amigos, disse ele.

-Eu penso do mesmo modo, respondi.

E apertamos as mãos.

-Sou capaz de jurar que adivinho a razão por que o senhor olhava tanto para aquela porta, continuou ele.

-E eu também.

-Convenho: esperávamos ambos as nossas amadas e a chuva mangou conosco.

-Exatamente.

-Mas nós vamos, sem dúvida, vingar-nos, indo agora vê-las à janela.

-Eu queria propor a mesma vingança.

-Bravo!... Iremos juntos... onde mora a sua?...

-Na rua de...

-Ainda melhor... a minha é na mesma rua.

Saímos da igreja, embraçamo-nos e fomos. A minha amada morava perto, eu a avistei debruçada na janela, talvez me esperando, pois olhava para o lado donde eu vinha; abri a boca para dizer ao meu novo amigo: É aquela!... quando ele me pronunciou com indizível prazer -É aquela!... Julgue, minha senhora, da minha exasperação! Pela terceira vez eu era a boneca de uma menina!...

Não sei por que ainda tive ânimo de tirar o meu chapéu à tal pálida, que ao menos dessa vez se fez cor-de-rosa, talvez por ver-me de braço com o meu novo amigo.

Passando a maldita casa, Jorge, que assim se chamava o moço, disse-me com fogo:

-Aquela jovem adora-me!

-Está certo disso, meu amigo?

-Tenho provas.

-Acredita muito nelas?

-Tenho as mais fortes; por último recebi ainda e de maior confiança... eu lhe conto. Um estudante a reqüestou e escreveu-lhe; ela mandou-me a carta, e eu respondi em seu lugar. A correspondência tem continuado por minha vontade e sou eu quem sempre faço a norma das cartas que ela deve escrever; achará isto imprudência, e eu acho um belo divertimento.

-Sim... um belo divertimento.

-Mas que é isso? Está tão pálido!...

-Não é coisa de cuidado... Eu... ora... o estudante...

-É por certo um famoso pateta...

-Não é bom ir tão longe...

-Não tem dúvida... é tolo rematado.

-Fale-me a verdade: eu acho aquela moça com cara de ser sua prima.

-Quem lhe disse?... É, com efeito, minha prima!

-Pois vamos à minha casa.

-E a sua amada?...

-Não me fale mais nela.

Apenas chegamos à minha casa, abri a minha gaveta, e tirando dela todas as cartas que Jorge havia escrito à sua prima, e que ela me tinha mandado, assim como as normas que eu redigira para as que deveriam ser enviadas ao meu amigo, acrescentei:

-Concordemos ambos que, se o estudante foi um famoso pateta e um tolo rematado, não o foi menos o primo daquela senhora a quem cortejamos na rua de...

Jorge devorou todas as cartas e normas que lhe dei; depois desatou a rir e, abraçando-me, exclamou:

-Concordemos também, caro estudante, que minha prima tem bastante habilidade para se corresponder com meio mundo, sem se incomodar com o trabalho da redação de suas cartas!...

O bom humor de Jorge tornou-me alegre. Jantamos juntos, rimo-nos todo o dia, e só de noite se retirou.

Tratei de dormir, mas, antes de adormecer, falei ainda comigo mesmo: -Juro que não hei de amar moça nenhuma de cor pálida.

Desde então declarei guerra ao amor, minha senhora; tornei-me ao que era dantes, isto é, ocupei-me somente em me lembrar de minha mulher e em beijar o meu breve.

Mas eu andava triste e abatido e às vezes pensava assim: -Ora pois, jurei não amar a moça nenhuma que fosse morena, corada ou pálida; estas são as cores; estes são os tipos da beleza... e, portanto, minha mulher terá, a pesar meu, uma das tais cores; logo não me caso com minha mulher e, em última conclusão, serei celibatário, vou ser... frade... frade!...

Minha tristeza, meu abatimento deu nos olhos da digna, jovial e espirituosa esposa de um de meus bons amigos. Ela me pediu que lhe confiasse as minhas penas e eu não pude deixar de relatar estes três fatos à consorte de um caro amigo.

A única consolação que tive foi vê-la correr para o piano, e ouvi-la cantas as seguintes e outras quadrinhas musicadas no gosto nacional:

I

Menina solteira

que almeja casar,

não caia em amar

a homem algum;

nem seja notável
5

por sua esquivança,

não tire a esperança

de amante nenhum.

II

Mereçam-lhes todos

olhares ardentes;
10

suspiros ferventes

bem pode soltar:

não negue a nenhum

protestos de amor;

a qualquer que for
15

o pode jurar.

III

Os velhos não devem

formar exceção,

porquanto eles são

um grande partido;
20

que, em falta de moço

que fortuna faça,

nunca foi desgraça

um velho marido.

IV

Ciúmes e zelos,
25

amor e ternura,

não será loucura

fingida estudar;

assim ganhar tudo

moças se tem visto;
30

serve muito isto

antes de casar.

V

Contra os ardilosos

oponha seu brio:

tenha sangue-frio
35

pra saber fugir;

em todos os casos

sempre deve estar

pronta pra chorar,

pronta pra rir.
40

VI

Pode bem a moça,

assim praticando,

dos homens zombando,

a vida passar;

mas, se aparecer
45

algum toleirão,

sem mais reflexão,

é logo casar.



-Então o negócio é assim, minha senhora? exclamei eu, ao vê-la levantar-se do piano.

-Certamente, me respondeu ela; é este, pouco mais ou menos, o breviário por onde reza a totalidade das moças.

-Fico-lhe extremamente agradecido pelo desengano.

-Estimo que lhe sirva de muito.

-Já serve, minha senhora; já tirei grande proveito dele.

-E como?...

-Escute: abatido e desesperado com os meus infortúnios, eu tinha jurado não amar a mais nenhuma moça que fosse morena, corada ou pálida; estavam, pois, esgotados os belos tipos... eu deveria morre celibatário.

-E agora?...

-Agora?... Graças ao seu lundu, juro que de hoje avante amarei a todas elas... morenas, coradas, pálidas, magras e gordas, cortesãs ou roceiras, feias ou bonitas... tudo serve. E, com efeito, minha senhora, continuou Augusto, dirigindo-se à Sra. D. Ana, fiz-me absolutamente um ser novo, graças ao lundu; guardando e beijando com desvelo o meu querido breve, que sempre comigo trago, eu conservo a lembrança mais terna e constante de minha mulher: ela é o amor de meu coração, enquanto todas as outras são o divertimento dos meus olhos e o passatempo de minha vida. Eis, finalmente, a história de meus amores!... Tais foram as razões que me tornaram borboleta de amor.

Terminando assim, Augusto ia respirar um instante, quando pela segunda vez lhe pareceu ouvir ruído na porta da gruta.

-Alguém nos escuta, disse ele, como da outra vez.

-É talvez uma nova ilusão... respondeu a digna hóspeda.

-Não, minha senhora; eu ouvi distintamente a bulha de uma pessoa que corre, tornou Augusto, dirigindo-se à entrada da gruta e observando ao derredor dela.

-Então?... perguntou a Sra. D. Ana.

-Enganei-me, na verdade.

-Mas vê alguém?...

-Apenas lá vejo a sua bela neta, a Sra. D. Carolina, que se precipita com a maior graça do mundo sobre uma borboleta que lhe foge e que ela procura prender.

-Uma borboleta...

A Sra. D. Ana com suas histórias

Finalmente, o bom do estudante que, quando lhe dava para falar, era mais difuso que alguns de nossos deputados novos na discussão do art. 1.º dos orçamentos, julgou dever fazer pausa de suspensão; mas a Sra. D. Ana, que já tinha-o por vezes interrompido fora de tempo e debalde, não quis tomar a palavra para responder, sem segurar-se, dirigindo-lhe estas palavras pela ordem:

-Então concluiu, Sr. Augusto?...

-Sim, minha senhora; e peço-lhe perdão por me haver tornado incômodo, pois fui, sem dúvida, tão minucioso em minha narração que eu mesmo tanto me fatiguei, que vou beber uma gota d'água.

E isto dizendo, foi ao fundo da gruta, e enchendo o copo de prata na bacia de pedra, o esgotou até ao fim; quando voltou os olhos, viu que a boa hóspeda estava rindo-se maliciosamente.

-Sabe de que estou rindo?... disse ela.

-Certamente que não o adivinho.

-Pois estava neste momento lembrando-me de uma tradição muito antiga, seguramente fabulosa, mas bem apropositada dessa fonte, e que tem muita relação com a história de seus amores e com o copo d'água que acaba de beber.

-V. S. põe em tributo a minha curiosidade...

-Eu o satisfaço com todo o prazer.

A Sra. D. Ana principiou.

As lágrimas de amor

-Eu lhe vou contar a história das lágrimas de amor, tal qual a ouvi a minha avó, que em pequena a aprendeu de um velho gentio que nesta ilha habitava.

Era no tempo em que ainda os portugueses não haviam sido por uma tempestade empurrados para a terra de Santa Cruz. Esta pequena ilha abundava de belas aves e em derredor pescava-se excelente peixe. Uma jovem tamoia, cujo rosto moreno parecia tostado pelo fogo em que ardia-lhe o coração, uma jovem tamoia linda e sensível, tinha por habitação esta rude gruta, onde ainda então não se via a fonte que hoje vemos. Ora, ela, que até aos quinze anos era inocente como a flor, e por isso alegre e folgazona como uma cabritinha nova, começou a fazer-se tímida e depois triste, como o gemido da rola; a causa estava no agradável parecer de um mancebo da sua tribo, que diariamente vinha caçar ou pescar na ilha, e vinte vezes já o havia feito, sem que uma só desse fé dos olhares ardentes que lhe dardejava a moça. O nome dele era Aoitin; o nome dela era Aí. A pobre Aí, que sempre o seguia, ora lhe apanhava as aves que ele matava, ora lhe buscava as flechas disparadas, e nunca um só sinal de reconhecimento obtinha; quando no fim de seus trabalhos, Aoitin ia adormecer na gruta, ela entrava de manso e com um ramo de palmeira procurava, movendo o ar, refrescar a fronte do guerreiro adormecido. Mas tantos extremos era tão mal pagos, que Aí, de cansada, procurou fugir do insensível moço e fazer por esquecê-lo: porém, como era de esperar, nem fugiu-lhe, e nem o esqueceu.

Desde então tomou outro partido: chorou. Ou porque sua dor era tão grande que lhe podia espremer o amor em lágrimas desde o coração até aos olhos, ou porque, selvagem mesma, ela já tinha compreendido que a grande arma da mulher está no pranto, Aí chorou.

E porque também nas lágrimas de amor há, como na saudade, uma doce amargura, que é veneno que não mata, por vir sempre temperado com o reativo da esperança, a moça julgou dever separar da dor, que a fazia chorar amargores, a esperança que no pranto lhe adicionava a doçura, e, tendo de exprimir a doçura, Aí cantou.

Seu canto era triste e selvagem, mas terno canto. Dizem que um velho frade português, ouvindo-o por tradição depois de muitos anos, o traduziu para a nossa língua e fez dele uma balada, a qual minha neta canta.

Todos os dias, ao romper da aurora, a pobre Aí subia ao rochedo, que serve de teto a esta gruta, e esperava a piroga de Aoitin. Mal a avistava ao longe, chorava e cantava horas inteiras, sem descanso, até que se partia o bárbaro que nunca dela dava fé, nem mesmo quando, dormindo na gruta, o canto soava sobre a sua cabeça.

Mas Aí era tão formosa e sua voz tão sonora e terna, que o mesmo não pôde vencer do insensível moço, pôde do bruto rochedo; com efeito, seu canto havia amolecido a rocha e suas lágrimas a traspassaram.

E o mancebo vinha sempre, e sempre ela cantava e chorava, e nunca ele a atendia.

Uma vez, e já então o rochedo estava todo traspassado pelas lágrimas da virgem selvagem, uma vez veio Aoitin e, como das outras, não olhou para Aí, nem lhe escutou as sentidas cantigas; entregou-se a seus prazeres e, quando se sentiu fatigado, entrou na gruta e adormeceu num leito de verde relva; mas, ao tempo que em mais sossego dormia, duas gotas das lágrimas de amor, que tinham passado através do rochedo, caíram-lhe sobre as pálpebras, que lhe cerravam os olhos. Aoitin despertou; e tomando suas flechas, correu para o mar, mas, saltando dentro de sua piroga e afastando-se da ilha, ele viu sobre o rochedo a jovem Aí e disse bem alto:

-Linda moça!

-No outro dia ele voltou e já, então, olhou para a virgem selvagem, mas não ouviu ainda o canto dela; depois de caçar veio, como sempre, adormecer na gruta; e, dessa vez, a gota de lágrima lhe veio cair no ouvido; na volta não só admirou a beleza da jovem, como, ouvindo a terna cantiga, disse bem alto:

-Voz sonora!

Terceiro dia amanheceu e Aoitin viu e ouviu Aí; caçou e cansou, veio repousar na gruta, e dessa vez a gota de lágrima lhe caiu no lugar do coração e, quando voltava, disse bem alto:

-Sinto amar-te!

Ora, parece que nada mais faltava a Aí, e que a ela cumpria responder a este último grito de Aoitin, confessando também o seu amor tão antigo; mas a natureza da mulher é a mesma, tanto na selvagem como na civilizada: a mulher deseja ser amada, fingindo não amar; deseja ser senhora do mesmo de quem é escrava: e pois Aí nada respondeu; mas riu-se, suas lágrimas secaram; porém já a este tempo as muitas que havia derramado tinham dado origem a esta fonte, que ainda hoje existe.

No dia seguinte veio Aoitin, e viu a sua amada, que já não cantava, nem chorava: mesmo antes de chegar à praia, foi clamando:

-Sinto amar-te!

E Aí não respondeu e só sorriu-se.

Nada de caça... nada de pesca... já o insensível era escravo e não vivia longe do encanto que o prendia: correu, pois, para a gruta, deitou-se, mas não dormiu. Quem ama não dorme; sentiu que em suas veias corria sangue ardente, que seu coração estava em fogo: -Era a febre do amor... Aoitin teve sede; a dois passos viu a fonte que manava; correu açodado para ao pé dela e, ajuntando as suas mãos, foi bebendo as lágrimas de amor. A cada trago que bebia, um raio de esperança lhe brilhava; e quando a sede foi saciada, já estava feliz; a fonte era milagrosa.

As lágrimas de amor, que haviam tido o poder de tornar amante o insensível mancebo, não puderam esconder a sua origem e fizeram com que Aoitin conhecesse que era amado.

Então ele não mais buscou sua piroga. Saindo da gruta, fez um rodeio e foi, de manso, trepando pelo rochedo, até chegar junto de Aí, que, com os olhos na praia do lado oposto, esperava ver partir o seu amante e ouvir o seu belo grito:

-Sinto amar-te!

Mas de repente ela estremeceu, porque uma mão estava sobre seu ombro: e quando olhou viu Aoitin, que sorrindo-se lhe disse num tom seguro e terno:

-Tu me amas!?

Aí não respondeu, mas também não fugiu dos braços de Aoitin, nem ficou devendo o beijo que nesse instante lhe estalou na face.

Desde então foram felizes ambos na vida, e foi numa mesma hora que morreram ambos.

A fonte nunca mais deixou de existir e há ainda quem acredite que por desconhecido encanto conserva duas grandes virtudes...

Dizem, pois, que quem bebe desta água não sai da nossa ilha sem amar alguém dela e volta, por força, em demanda do objeto amado. E em segundo lugar, querem também alguns que algumas gotas bastam para fazer a quem as bebe adivinhar os segredos de amor.

-Terminei aqui a minha história, disse a Sra. D. Ana, respirando.

-E eu sou capaz de jurar, disse Augusto, que pela terceira vez sinto ruído de alguém que se retira correndo.

-Pois examine depressa.

Augusto correu à porta e voltou logo depois.

-E então?... perguntou a Sra. D. Ana.

-Ninguém, respondeu o estudante.

-E vê alguém no jardim?...

-Apenas a Sra. D. Carolina, que vai apressadamente para o rochedo.

-Sempre minha neta!...

-E eu, minha senhora, tenho que pedir-lhe uma graça.

-Diga.

-Rogo-lhe que, por sua intervenção, me facilite o prazer de ouvir sua linda neta cantar a balada de Aí, que tanto me interessou com o seu amor.

-Oh!... Não carece pedir... não a ouve cantar... sobre o rochedo?... E a balada.

-Será possível?!

-Adivinhou o seu pensamento.

A Balada no rochedo

A hóspeda e o estudante deixaram então a gruta e, tomando campo no jardim para vencer a altura do rochedo, viram a bela Moreninha em pé e voltada para o mar, com seus cabelos negros divididos em duas tranças que caíam pelas espáduas, e cantando com terna voz o seguinte:

I

Eu tenho quinze anos

e sou morena e linda!

mas amo e não me amam,

e tenho amor ainda,

e por tão triste amar
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aqui venho chorar.

II

O riso de meus lábios

há muito que murchou;

aquele que eu adoro

ah! foi quem o matou:
10

ao riso, que morreu,

o pranto sucedeu.

III

O fogo de meus olhos

de todo se acabou:

aquele que eu adoro
15

foi quem o apagou:

onde houve fogo tanto

agora corre o pranto.

IV

A face cor de jambo

enfim se descorou;
20

aquele que eu adoro

ah! foi que a desbotou:

a face tão rosada

de pranto está lavada!

V

O coração tão puro
25

já sabe o que é amor;

aquele que eu adoro

ah! só me dá rigor:

o coração no entanto

desfaz o amor em pranto.
30

VI

Diurno aqui se mostra

aquele que eu adoro;

e nunca ele me vê,

e sempre o vejo e choro:

por paga a tal paixão
35

só lágrimas me dão!

VII

Aquele que eu adoro

é qual rio que corre,

sem ver a flor pendente

que à margem murcha e morre:
40

eu sou a pobre flor

que vou murchar de amor.

VIII

São horas de raiar

o sol dos olhos meus;

mau sol! queima a florzinha
45

que adora os raios seus:

tempo é do sol raiar

e é tempo de chorar.

IX

Lá vem sua piroga

cortando leve os mares:
50

lá vem uma esperança,

que sempre dá pesares:

lá vem o meu encanto,

que sempre causa pranto.

X

Enfim abica à praia;
55

enfim salta apressado,

garboso como o cervo

que salta alto valado:

quando há de ele cá vir

só pra me ver sorrir?...
60

XI

Lá corre em busca de aves

a selva que lhe é cara,

ligeiro como a seta

que do arco seu dispara:

quando há de ele correr
65

somente pra me ver?

XII

Lá vem do feliz bosque

cansado de caçar;

qual beija-flor, que cansa

de mil flores beijar:
70

quando há de ele cansado

descansar a meu lado?...

XIII

Lá entra para a gruta,

e cai na rude cama,

qual flor de belas cores,
75

que cai do pé na grama:

quando há de nesse leito

dormir junto a meu peito?

XIV

Lá súbito desperta,

e na piroga embarca,
80

qual sol que, se ocultando,

o fim do dia marca:

quando hei de este sol ver

não mais desaparecer?

XV

Lá voa na piroga,
85

que o rasto deixa aos mares,

qual sonho que se esvai

e deixa após pesares:

quando há de ele cá vir

pra nunca mais fugir?...
90

XVI

Ó; bárbaro! Tu partes

e nem sequer me olhaste?

amor tão delicado

em outra já achaste?

ó; bárbaro! responde
95

amor como este, aonde?

XVII

Somente pra teus beijos

te guardo a boca pura;

em que lábios tu podes

achar maior doçura?...
100

Meus lábios murchareis,

seus beijos não tereis!

XVIII

Meu colo alevantado

não vale teus braços?...

Que colo há mais formoso,
105

mais digno de teus braços?

Ingrato! Morrerei...

E não te abraçarei.

XIX

Meus seios entonados

não podem ter vala?
110

Desprezas as delícias

que neles te oferecia?

Pois hão de os seios puros

murcharem prematuros?

XX

Não sabes que me chamam
115

a bela do deserto?...

Empurras para longe

o bem que te está perto!

Só pagas com rigor

as lágrimas de amor?...
120

XXI

Ingrato! ingrato! Foge...

E aqui não tornes mais:

que, sempre que tornares,

terás de ouvir meus ais:

e ouvir queixas de amor,
125

e ver pranto de dor!...

XXII

E, se amanhã vieres,

em pé na rocha dura

'Starei cantando aos ares

a mal paga ternura...
130

Cantando me ouvirás.

Chorando me acharás!...



Travessuras de D. Carolina

Mas ela não pára: o movimento é a sua vida; esteve no jardim e em toda a parte; cantou de sobre o rochedo e ei-la outra vez no jardim! Infatigável, apenas suas faces se coraram com o rubor da agitação. Travessa menina!... Porém, ela tempera todas as travessuras com tanta viveza, graça e espírito, que menos valera se não fizera o que faz. Não há um só, entre todos, der cuja alma se não tenham esvaído as idéias desfavoráveis que, à primeira vista, produziu o gênio inquieto de D. Carolina. O mesmo Augusto não pôde resistir à vivacidade da menina. Encontrando Leopoldo, disseram duas palavras sobre ela.

-Então, como a achas agora?... disse Leopoldo, apontando para a irmã de Filipe.

-Interessante, espirituosa e capaz de levar a glória ao mais destro casuísta. Olha, Fabrício vê-se doido com ela.

-Só isso?...

-Acho-a bonita.

-Nada mais?...

-Tem voz muito agradável.

-É tudo o que pensas?...

-Tem a boca mais engraçada que se pode imaginar.

-Só?...

-Muito esbelta.

-Que mais?

-É tão ligeira como um juramento de mulher.

-Dize tudo de uma vez.

-Pois que queres que eu diga?

-Que a amas!... Que dás o cavaco por ela.

-Amá-la? Não faltava mais nada! amo-a como amo as outras... isso sim.

-Pois meu amigo, todos nós estamos derrotados; o diabinho da menina nos tem posto o coração em retalhos. Se, de novo, se fizer a saúde que hoje fizemos, todos, à exceção de Filipe, pronunciarão a letra C...

-Também Fabrício?

-Ora! Esse está doente... perdido... doido, enfim!

-E ela?

-Zomba de todos nós; cada cumprimento que lhe endereçamos paga ela com uma resposta que não tem troco e que nos racha de meio a meio. Tu ainda não lhe disseste nada?

-Cousas vãs... e palavras da tarifa.

-E ela?

-Palavras da tarifa... e cousas vãs.

-Pois é opinião geral que ela te prefere a todos nós.

-Tanto melhor para mim.

-E pior para ela, mas... adeus! O meu lindo par se levanta do banco de relva em que descansava; vou tomar-lhe o braço; tenho-me singularmente divertido: a bela senhora é filósofa!... Faze idéia! Já leu Mary de Wollstonecraft e, como esta defende os direitos das mulheres, agastou-se comigo, porque lhe pedi uma comenda para quando fosse Ministra de Estado, e a patente de cirurgião do exército, no caso de chegar a ser general; mas, enfim, fez as pazes, pois lhe prometi que, apenas me formasse, trabalharia para encartar-me na Assembléia Provincial e lá, em lugar das maçadas de pontes, estradas e canais, promoveria a discussão de uma mensagem ao governo-geral, em prol dos tais direitos das mulheres: além de que... Mas... tu bem vês que ela me está chamando: Adeus!... Adeus!...

No entanto D. Carolina continuava a cativar todos os olhares e atenções; tinham notado, é verdade, que ela estivera alguns momentos recostada à efígie da Esperança, triste e pensativa. Fabrício jurava mesmo que a vira enxugar uma lágrima, mas logo depois desapareceu completamente a menor aparência de tristeza, tornou a brilhar-lhe o prazer em ebulição.

Todos tinham tido seu quinhão, maior ou menor, segundo os merecimentos de cada um, nas graças maliciosas da menina. Ninguém havia escapado: Fabrício era a vítima predileta, porque também foi ele o único que se atreveu a travar luta com ela.

Finalmente D. Carolina acabava de entrar outra vez no jardim, depois de ter cantado sua balada. De todos os lados soavam-lhe os parabéns, mas ela escapou a eles, correndo para junto de uma roseira toda coroada por suas belas e rubras flores.

Fabrício, que ainda não estava suficientemente castigado e que, além disto, começava a gostar seu tantum da Moreninha, se dirigiu com D. Joaninha para o lado em que ela se achava.

-É decididamente o que eu pensava, disse Fabrício, quando se viu ao pé de D. Carolina; e dirigindo-se a D. Joaninha: sim... sua bela prima ama as rosas, exclusivamente.

-Conforme as ocasiões e circunstâncias, respondeu a menina.

-Poderia eu merecer a honra de uma explicação? perguntou Fabrício.

-Com toda a justiça e, continuou D. Carolina rindo-se, tanto mais que foi a V. S.ª que me dirigi. Eu queria dizer que, entre um beijo-de-frade ou um cravo-de-defunto e uma rosa, não hesito em preferir a última.

Fabrício fingiu não entender a alusão e continuou:

-Todavia não é sempre bem pensada semelhante preferência; a rosa é como a beleza: encanta mais espinha; V. S.ª o sabe, não é assim?

-Perfeitamente, mas também não ignoro que a rosa só espinha quando se defende de alguma mão impertinente que vem perturbar a paz de que goza; V. S.ª o sabe, não é assim?

-Oh! então a Sra. D. Carolina foi bem imprudente em quebrar o pé dessa rosa com que brinca, expondo assim seus delicados dedos; e bem cruel também em fazê-la murchar de inveja, tendo-a defronte de seu formoso semblante.

-Pela minha vida, meu caro senhor! nunca vi pedir uma rosa com tanta graça: quer servir-se dela?

-Seria a mais apetecível glória...

-Pois aqui a tem... Querida prima, nada de ciúmes.

E Fabrício, recebendo o belo presente, em vez de olhar para a mão que o dava, atentava em êxtase o rosto moreno e o sorrir malicioso de D. Carolina. Ao momento de se encontrar a mão que dava e a que recebia, Fabrício sentiu que lhe apertavam os dedos; seu primeiro pensamento foi crer que era amado; mas logo se lhe apagou esse raio de vaidade, pois que ele retirou vivamente a mão, exclamando involuntariamente:

-Ai! Feri-me!...

Era que a travessa lhe havia apertado os dedos contra os espinhos da rosa. Mas a flor tinha caído na relva: Fabrício, já menos desconcertado, a levantou com presteza, e, encarando a irmã de Filipe, disse-lhe, em tom meio vingativo:

-Foi um combate sanguinolento, ma ganhei o prêmio da vitória.

-Pois feriu-se?... perguntou D. Carolina, chegando-se com fingido cuidado para ele.

-Nada foi, minha senhora: comprei uma rosa por algumas gotas de sangue... valeu a pena.

-Maldita rosa! exclamou a Moreninha, teatralmente... Maldita rosa! Eu te amaldiçôo!...

E dando um piparote na inocente flor, a desfolhou completamente; não ficou na mão de Fabrício mais que o verde cálice. D. Carolina correu para junto de sua digna avó; o pobre estudante ficou desconcertado.

-E esta! murmurou ele, enfim.

-Foi muito bem feito! disse D. Joaninha, cheia de zelos e dando-lhe um beliscão, que o fez ir às nuvens.

-Perdão, minha senhora... seja pelo amor de Deus! exclamou Fabrício, que se via batido por todos os lados.

No entanto começava a declinar a tarde; uma voz reuniu todas as senhoras e senhores em um só ponto: serviu-se o café num belo caramanchão; mas, como fosse ele pouco espaçoso para conter tão numerosa sociedade, aí só se abrigaram as senhoras, enquanto os homens se conservavam na parte de fora.

Escravas decentemente vestidas ofereciam chávenas de café fora do caramanchão, e, apesar disse, D. Carolina se dirigiu com uma para Fabrício, que praticava com Augusto.

-Eu quero fazer as pazes, Sr. Fabrício; vejo que deve estar muito agastado comigo e venho trazer-lhe uma chávena de café temperado pela minha mão.

Fabrício recuou um passo e colocou-se à ilharga de Augusto: ele desconfiava das tenções da menina; sua primeira idéia foi esta: o café não tem açúcar.

Então, começou entre os dois um duelo de cerimônias, que durou alguns instantes; finalmente, o homem teve de ceder à mulher. Fabrício ia receber a chávena, quando esta estremeceu no pires... D. Carolina, temendo que sobre ela se entornasse o café, recuou um pouco. Fabrício fez outro tanto: a chávena, inda mal tomada, tombou: o café derramou-se inopinadamente. Fabrício recuou ainda mais com vivacidade, mas, encontrando a raiz de um chorão que sombreava o caramanchão, perdeu o equilíbrio e caiu redondamente na relva.

Uma gargalhada geral aplaudiu o sucesso.

-Fabrício espichou-se completamente! exclamou Filipe.

O pobre estudante ergueu-se com ligeireza, mas, na verdade, corrido do que acabava de sobrevir-lhe: as risadas continuavam, as terríveis consolações o atormentavam; todas as senhoras tinham saído do caramanchão e riam-se, por sua vez, desapiedadamente. Fabrício muito daria para ser livrar dos apuros em que se achava, quando de repente soltou também a sua risada e exclamou:

-Viva as calças de Augusto!

Todos olharam. Com efeito, Fabrício tinha encontrado um companheiro na desgraça: Augusto estava de calças brancas, e a maior porção de café entornado havia caído nelas.

Continuaram as risadas, redobraram os motejos. Duas eram as vítimas.

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