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Meia hora embaixo da cama

Não tardou que Filipe, como bom amigo e hóspede, viesse em auxílio de Augusto. Em verdade que era impossível passar o resto da tarde e a noite inteira com aquela calça, manchada pelo café; e, portanto, os dois estudantes voaram à casa. Augusto, entrando no gabinete destinado aos homens, ia tratar de despir-se, quando foi por Filipe interrompido.

-Augusto, uma idéia feliz! vai vestir-te no gabinete das moças.

-Mas que espécie de felicidade achas tu nisso?

-Ora! Pois tu deixas passar uma tão bela ocasião de te mirares no mesmo espelho em que elas se miram!... De te aproveitares das mil comodidades e das mil superfluidades que formigam no toucador de uma moça?... Vai!... Sou eu que to digo; ali acharás banhas e pomadas naturais de todos os países; óleos aromáticos, essências de formosura e de todas as qualidades; águas cheirosas, pós vermelhos para as faces e para os lábios, baeta fina para esfregar o rosto e enrubescer as pálidas, escovas e escovinhas, flores murchas e outras viçosas.

-Basta, basta; eu vou, mas lembra-te que és tu quem me fazes ir e que o meu coração adivinha...

-Anda, que o teu coração sempre foi um pedaço d'asno.

E, isto dizendo, Filipe empurrou Augusto para o gabinete das moças e se foi reunir ao rancho delas.

Ai do pobre Augusto!... Mal tinha acabado de tirar as calças e a camisa, que também se achava manchada, sentiu rumor que faziam algumas pessoas que entravam na sala.

Augusto conheceu logo que eram moças, porque estes anjinhos, quando se juntam fazem, conversando, matinada tal, que a um quarto de légua se deixam adivinhar; se é sediço e mesmo insólito compará-las a um bando de lindas maitacas, não há remédio senão dizer que muito se assemelham a uma orquestra de peritos instrumentais, na hora da afinação.

Ora, o nosso estudante estava, por sua esdrúxula figura, incapaz de aparecer a pessoa alguma; em ceroulas e nu da cintura para cima, faria recuar de espanto, horror, vergonha e não sei que mais, ao belo povinho que acabava de entrar em casa e que, certamente, se assim o encontrasse, teria de cobrir o rosto com as mãos; e, portanto, o pobre rapaz seguiu o primeiro pensamento que lhe veio à mente: ajuntou toda a sua roupa, enrolou-a, e com ela embaixo do braço escondeu-se atrás de uma linda cama que se achava no fundo do gabinete, cuidando que cedo se veria livre de tão intempestiva visita; mas, ainda outra vez, pobre estudante! teve logo de agachar-se e espremer-se para baixo da cama, pois quatro moças entraram no quarto. E eram elas D. Joaninha, D. Quinquina, D. Clementina e uma outra por nome Gabriela, muito adocicada, muito espartilhada, muito estufada, e que seria tudo quanto tivesse vontade de ser, menos o que mais acreditava que era, isto é, bonita.

Depois que todas quatro se miraram, compuseram cabelos, enfeites e mil outros objetos que estavam todos muito em ordem, mas que as mãozinhas destas quatro demoiselles não puderam resistir ao prazer, muito habitual nas moças, de desarranjar para outra vez arranjar, foram por mal dos pecados de Augusto, sentar-se da maneira seguinte: D. Clementina e D. Joaninha na cama, embaixo da qual estava ele; D. Quinquina de um lado, em uma cadeira, e D. Gabriela exatamente defronte do espelho, do qual não tirava os olhos, em outra cadeira que, apesar de ser de braços e larga, pequena era para lhe caber sem incômodo toda a coleção de saias, saiotes, vestidos de baixo e enorme variedade de enchimentos que lhe faziam de suplemento à natureza, que com D. Gabriela, segundo suas próprias camaradas, tinha sido um pouco mesquinha a certos respeitos.

Depois de respirar um momento, as meninas, julgando-se sós, começaram a conversar livremente, enquanto Augusto, com sua roupa embaixo do braço, coberto de teias de aranha e suores frios, comprimia a respiração e conservava-se mudo e quedo, medroso de que o mais pequeno ruído o pudesse descobrir; para meu mor infortúnio, a barra da cama era incompleta e havia seguramente dois palmos e meio de altura descobertos, por onde, se alguma das moças olhasse, seria ele impreterivelmente visto. A posição do estudante era penosa, certamente; por último, saltou-lhe uma pulga à ponta do nariz, e por mais que o infeliz a soprasse, a teimosa continuou a chuchá-lo com a mais descarada impunidade.

-Antes mil vezes cinco batinas seguidas, em tempo de barracas no Campo!... dizia ele consigo.

Mas as moças falam já há cinco minutos; façamos por colher algumas belezas, o que é, na verdade, um pouco difícil, pois, segundo o antigo costume, falam todas quatro ao mesmo tempo. Todavia, alguma coisa se aproveitará.

-Que calor!... exclamou D. Gabriela, afetando no abanar de seu leque todo o donaire de uma espanhola; oh! não parece que estamos no mês de julho; mas, por minha vida, vale bem o incômodo que sofremos, o regalo que têm tido nossos olhos.

-Bravo, D. Gabriela!... então seus olhos...

-Têm visto muita coisa boa. Olhe, não é por falar, mas, por exemplo, há objeto mais interessante do que D. Luísa mostrar-se gorda, esbelta, bem feita?...

-É um saco!

-E como é feia!...

-É horrenda!

-É um bicho!

-E não vimos a filha do capitão com sua dentadura postiça?... Agora não faz senão rir!...

-Coitadinha! aperta tanto os olhos!

-Se ela pudesse arranjar também um postiço para o queixo!

-Ora, D. Clementina, não me obrigue a rir!...

-D. Joaninha, você reparou no vestido de chalim de D. Carlota?... Quanto a mim, está absolutamente fora da moda.

-Ainda que estivesse na moda, não há nada que nela assente bem.

-Ora... é um pau vestido!... Tem uma testa maior que a rampa do Largo do Paço!...

-Um nariz com tal cavalete, que parece o morro do Corcovado!...

-E a boca?... Ah! Ah! Ah!

-Parece que anda sempre pedindo boquinhas.

-E que língua que ela tem!

-É uma víbora!

-Eu não sei por que as outras não hão de ser como nós, que não dizemos mal de nenhuma delas.

-É verdade, porque se eu quisesse falar...

-Diga sempre, D. Quinquina.

-Não... não quero. Mas, passando a outra coisa... D. Josefina aplaude com prazer a moda dos vestidos compridos!

-Por quê?

-Ora... porque tem pernas de caniço de sacristão.

-Pernas finas também é moda presentemente.

-Deus me livre!... acudiu D. Clementina; pelo menos para mim nunca deve ser, pois não posso emendar a natureza, que me deu pernas grossas.

-Não lhe fico atrás, juro-lhe eu! exclamou D. Quinquina.

-Nem eu! Nem eu! disseram as outras duas.

-Isso é bom de se dizer, tornou a primeira; mas, felizmente, podemos tirar as dúvidas.

-Como?

-Facilmente: vamos medir nossas pernas.

Ouvindo tal proposição, o nosso estudante, apesar de se ver em apuros embaixo da cama, arregalou os olhos de maneira que lhe pareciam querer saltar das órbitas, porém, D. Gabriela, que não parecia estar muito consigo e que só por honra da firma dissera o seu «nem eu!», veio deixá-lo com água na boca.

-Havia de ser engraçado, disse ela, arregaçarmos aqui nossos vestidos!...

-Que tinha isso?... acudiu D. Quinquina; não somos todas moças?... dir-se-ia que não temos dormido juntas.

-É verdade, acrescentou D. Clementina e, além de que, não se veria demais senão quatro ou cinco saias por baixo do segundo vestido.

-E talvez algum saiote... vamos a isto!

-Não... não... disse, por sua vez, D. Joaninha.

-Pois por mim não era a dúvida, tornou D. Clementina, com ar de triunfo, recostando-se mole e voluptuosamente nas almofadas, e deixando escorregar de propósito uma das pernas para fora do leito, até tocar com o pé no chão, de modo que ficou à mostra até o joelho.

-Quem me dera já casar... suspirou ela.

Pobre Augusto!... Não te chamarei eu feliz!... Ele vê a um palmo dos seus olhos a perna mais bem torneada que é possível imaginar!... Através da finíssima meia aprecia uma mistura de cor de leite com a cor-de-rosa e, rematando este interessante painel róseo, um pezinho que só se poderia medir a polegadas, apertado em um sapatinho de cetim, e que estava mesmo pedindo um... dez... cem... mil beijos; mas, quem o pensaria? não foram beijos o que desejou o estudante outorgar àquele precioso objeto; veio-lhe ao pensamento o prazer que sentiria dando-lhe uma dentada... Quase que já se não podia suster... já estava de boca aberta e para saltar... Porém, lembrando-se da exótica figura em que se via, meteu a roupa que tinha enrolada entre os dentes e, apertando-os com força, procurava iludir sua imaginação.

-Quem me dera já casar!... repetiu D. Clementina.

-Isto é fácil, disse D. Gabriela; principalmente se devemos dar crédito aos que tanto nos perseguem com finezas. Olhem, eu vejo-me doida!... Mais de vinte me atormentam! Querem saber o que me sucedeu ultimamente?... Eu confesso que me correspondo com cinco... isto é só para ver qual dos cinco quer casar primeiro; pois bem, ontem, uma preta que vende empadas e que se encarrega das minhas cartas, recebeu da minha mão duas...

-Logo duas?...

-Ora pois, apesar de todas as minhas explicações, a maldita estava de mona. Mesmo dizendo-lhe eu dez vezes: a de lacre azul é do Sr. Joãozinho e a de verde é do Sr. Juca, sabem o que fez?... Trocou as cartas!

-E o resultado?...

-Ei-lo aqui, respondeu D. Gabriela, tirando um papel do seio; ao vir embarcar, e quando descia a escada, a tal preta, com a destreza precisa, entregou-me este escrito do Sr. Joãozinho: «Ingrata! Ainda tremem minhas mãos, pegando no corpo de delito da tua perfídia! Escreves a outro? Compareces por tão horrível crime perante o júri do meu coração; e, bem que tenhas nesse tribunal a tua beleza por advogada, o meu ciúme e justo ressentimento, que são os juízes, te condenam às perpétuas galés do desprezo; e só te poderás livrar delas se apelares dessa sentença para o poder moderador de minha cega paixão.»

-Bravo, D. Gabriela! O Sr. Joãozinho é sem dúvida estudante de jurisprudência?

-Não, é doutor.

-Bem mostra pelo bem que escreve.

-Mas eu sou bem tola! conto tudo o que me sucede e ninguém me confia nada!

-Isso é razoável, disse D. Clementina; nós devemos pagar com gratidão a confiança de D. Gabriela. Eu começo declarando que estou comprometida com o Sr. Filipe a deixar esta noite, embaixo da quarta roseira da rua do jardim, que vai direita ao caramanchão, um embrulhozinho com uma trança de meus cabelos.

-Que asneira?... Por que lhe não entrega ou não lho manda entregar?...

-Ora... eu tenho muita vergonha... antes quero assim; até parece romântico.

-São caprichos de namorados! falou D. Quinquina; havia tanto tempo para isso! mas, enfim, de futilidades é que amor se alimenta. Querem ver uma dessas? O meu predileto está de luto e por isso exige que eu vá à festa de... com uma fita preta no cabelo, em sinal de sentimento; exige ainda que eu não valse mais, que não tome sorvetes, para não constipar, que não dê dominus tecum a moço nenhum que espirrar ao pé de mim, e que jamais me ria quando ele estiver sério; e a tudo isso julga ele ter muito direito por ser tenente da Guarda Nacional! Pois, por isso mesmo, ando agora de fita branca no cabelo, valso todas as vezes que posso, tomo sorvetes até não poder mais, dou dominus tecum aos moços mesmo quando eles não espirram e não posso ver o Sr. Tenente Gusmão sério sem soltar uma gargalhada.

-Olhem lá o diabinho da sonsa! murmurou consigo mesmo Augusto, embaixo da cama.

-E você, mana, não diz nada?... perguntou ainda ela a D. Joaninha.

-Eu?... O que hei de dizer? respondeu esta; digo que ainda não amo.

-É a única que ama deveras! pensou o estudante, a quem já doíam as cadeiras de tanto agachar-se.

-E o Sr. Fabrício?... E o Sr. Fabrício?... exclamaram as três.

-Pois bem, tornou D. Joaninha, é o único de quem gosto.

-Mas que temos nós feito nesta ilha?... Que triunfos havemos conseguido?... Vaidade para o lado: moças bonitas, como somos, devemos ter conquistado alguns corações!

-Juro que estou completamente aturdida com os protestos de eterna paixão do Sr. Leopoldo, disse D. Quinquina; mas é uma verdadeira desgraça ser hoje moda ouvir com paciência quanta frivolidade vem à cabeça - não direi à cabeça, porque parece que os tolos como que não a têm, porém, aos lábios de um desenxabido namorado. O tal Sr. Leopoldo... não é graça, eu ainda não vi estudante mais desestudável!...

-Você, D. Joaninha, acudiu D. Clementina, tem-se regalado hoje com o incomparável Fabrício. Não lhe gabo o gosto... só as perninhas que ele tem!...

-Ora, respondeu aquela; ainda não tive tempo de olhar para as pernas... mas também você parece que não se arrepia muito com a corcova do nariz de meu primo; confessemos, minha amiga, todas nós gostamos de ser conquistadoras.

-Pois confessemos... isso é verdade.

-Pela minha parte não digo nada, assobiou D. Gabriela mirando-se no espelho; mas enfim... eu não sei se sou bonita, mas, onde quer que esteja, vejo-me sempre cercada de adoradores; hoje, por exemplo, tenho-me visto doida... perseguiram-me constantemente seis... era impossível ter tempo de mangar com todos a preceito.

-Mas, D. Gabriela, onde está o seu talento?...

-Pois bem, que se ponha outra no meu lugar.

-Alguns homens zombariam de doze de nós outras a um tempo... Houve já um que não teve vergonha de escrever isto em um papel:

Num dia, numa hora,
no mesmo lugar
eu gosto de amar
quarenta
cinqüenta
sessenta:
se mil forem belas,
amo a todas elas.

-Que pateta!...

-Que tolo!...

-Que vaidoso!

-Essa opinião segue também o Augusto!

-Oh!... E esse paspalhão!...

-Ei-las comigo... murmurou entre dentes o nosso estudante, estendendo o pescoço a modo de cágado.

-Como lhe fica mal aquela cabeleira!... assemelha-se muito a uma preguiça.

-Tem as pernas tortas.

-Eu creio que ele é corcunda.

-Não, aquilo é magreza.

-Forte impertinente! falando é um Lucas...

-Há de ser interessante dançando!

-Vamos nós tomá-lo à nossa conta?

-Vamos: pensemos nos meios de zombar dele cruelmente...

-Pois pensemos...

Mas elas não tiveram tempo de pensar, porque, neste momento, ouviu-se um grito de dor, ao qual seguiu-se viva agitação no interior daquela casa, onde inda há pouco só se respirava prazer e delícias. As quatro moças levantaram-se espantadas.

-Pareceu-me a voz de minha prima Carolina, exclamou D. Joaninha.

-Coitada! Que lhe sucederia?...

-Vamos ver.

As quatro moças correram precipitadamente para fora do quarto.

Augusto, que não estava menos assustado, saiu de seu esconderijo, vestiu-se apressadamente e ia, por sua vez, deixar aquele lugar, em que se vira em tantos apuros, quando deu com os olhos na carta do Sr. Joãozinho, que, com a pressa e agitação, havia D. Gabriela deixado cair.

O estudante apanhou e guardou aquele interessante papel, e com prontidão e cuidado pôde, sem ser visto, escapar-se do gabinete.

Um instante depois foi cuidadoso procurar saber a causa do rumor que ouvira.

O grito de dor tinha sido, com efeito, soltado por D. Carolina.

Os quatro em conferência

Ninguém se arreceie pela nossa travessa. O grito de dor foi, na verdade, seu; mas, se alguém corre perigo, não é certamente ela. O caso é simples.

Morava com a Sra. D. Ana uma pobre mulher, por nome Paula, muito estimada de todos, porque o era da despotazinha daquela ilha, de D. Carolina, a quem tinha servido de ama. Os desvelos e incômodos que tivera na criação da menina lhe eram sobejamente pagos pela gratidão e ternura da moça.

Ora, todos se tinham ido para o jardim logo depois do jantar, mas o nosso amigo Keblerc achara justo e prudente deixar-se ficar fazendo honras à meia dúzia de lindas garrafas, das quais se achava ternamente enamorado; contudo, ele pensava que seria mais feliz se deparasse com um companheiro que o ajudasse a reqüestar aquelas belezas: era um amante sem zelos. Por infelicidade de Paula, o alemão a lobrigou ao entrar num quarto. Chamou-a, obrigou-a a sentar-se junto de si, mostrou por ela o mais vivo interesse e depois convidou-a a beber à saúde de seu pai, sua mãe e sua família.

Não havia remédio senão corresponder a brindes tão obrigativos. Depois não houve ninguém no mundo a quem Keblerc não julgasse dever com a sua meia língua dirigir uma saúde, e, como já estivesse um pouco impertinente, forçava Paula a virar copos cheios. Passado algum tempo, e muito naturalmente, Paula se foi tornando alegrezinha e por sua vez desafiava Keblerc a fazer novos brindes; em resultado as seis garrafas foram-se. Paula deixou-se ficar sentada, risonha e imóvel, junto à mesa, enquanto o alemão, rubicundo e reluzente, se dirigiu para a sala.

Quando daí a pouco a ama de D. Carolina quis levantar-se, pareceu-lhe que estava uma nuvem diante de seus olhos, que os copos dançavam, que havia duas mesas, duas salas e tudo em dobro; ergueu-se e sentiu que as paredes andavam-lhe à roda, que o assoalho abaixava e levantava-se debaixo dos pés; depois... não pôde dar mais que dois passos, cambaleou e, acreditando sentar-se numa cadeira, caiu com estrondo contra uma porta. Logo confusão e movimento... Ninguém ousou pensar que Paula, sempre sóbria e inimiga de espíritos, se tivesse deixado embriagar, e, por isso, correram alguns escravos para o jardim, gritando que Paula acabava de ter um ataque.

A primeira pessoa que entrou em casa foi D. Carolina que, vendo a infeliz mulher estirada no assoalho, caiu sobre ela, exclamando com força:

-Oh! Minha mãe!... -foi este o seu grito de dor.

Momentos depois Paula se achava deitada numa boa cama e rodeada por toda a família; porém, havia algazarra tal, que mal se entendia uma palavra.

-Isto foi o jantar que lhe deu na fraqueza, gritou uma avelhantada matrona, que se supunha com muito jeito para a Medicina; é fraqueza complicada com o tempo frio... não vale nada... venha um copo de vinho!

E dizendo isto, foi despejando meia garrafa de vinho na boca da pobre Paula que, por mais que lépida e risonha o fosse engolindo a largos tragos, não pôde livrar-se de que a interessante Esculápia lhe entornasse boa porção pelos vestidos.

-São maleitas! exclamava D. Violante, com toda a força de seus pulmões... São maleitas!... Quem lhe olha para o nariz diz logo que são maleitas! Eu já vi curar-se uma mulher, que teve o mesmo mal, com cauda de cobra moída, torrada e depois desfeita num copo d'água tirada do pote velho com um coco novo e com a mão esquerda, pelo lado da parede. É fazer isso já.

-São lombrigas! gritava uma terceira.

-É ataque de estupor! bradava a quarta senhora.

-É espírito maligno! acudiu outra, que foi mais ouvida que as primeiras... é espírito maligno que lhe entrou no corpo! Venha quanto antes um padre com água benta e seu breviário.

-Ora, para que estão com tal azáfama?... disse uma senhora, que acabava de entrar no quarto; não se vê logo que isto não passa de uma mona, que a boa da Paula tomou? Olhem: até tem o vestido cheio de vinho.

-Mona, não senhora! acudiu D. Carolina; a minha Paula nunca teve tão feio costume, e, se está molhada com vinho, a culpa é desta senhora, que há pouco lhe despejou meia garrafa por cima. Oh! é bem cruel que, mesmo vendo-se a minha dor, digam semelhantes coisas!...

No meio de toda esta balbúrdia era de ver-se o zelo e a solicitude da menina travessa!... Observava-se aquela Moreninha de quinze anos, que parecera somente capaz de brincar e ser estouvada, correndo de uma para outra parte, prevenindo tudo e aparecendo sempre onde se precisava apressar um serviço ou acudir a um reclamo. Só cuidava de si quando devia enxugar as lágrimas.

Junto do leito apareceram os quatro estudantes.

Curto foi o exame. O rosto e o bafo da doente bastaram para denunciar-lhes com evidência a natureza da moléstia.

-Isto não vale a pena, disse Filipe em tom baixo a seus colegas; é uma mona de primeira ordem.

-Está claro, vamos sossegar estas senhoras.

-Não, tornou Filipe, sempre em voz baixa; aturdidas pelo caso repentino e preocupadas pela sobriedade desta mulher, nenhuma delas quer ver o que está diante de seus olhos, nem sentir o cheiro que lhes está entrando pelo nariz; minha irmã ficaria inconsolável, brigaria conosco e não nos acreditaria, se lhe disséssemos que sua ama se embebedou; e, portanto, podemos aproveitar as circunstâncias, zombar de todas elas e divertir-nos fazendo uma conferência.

-Oh diabo!... Isso é do catecismo dos charlatães!

-Ora, não sejas tolo... não pareces estudante; devemos lançar mão de tudo o que nos possa dar prazer e não ofenda os outros.

-Mas que iremos dizer nesta conferência, senão que ela está espirituosa demais? perguntou Augusto.

-Diremos tudo o que nos vier à cabeça, ficando entendido que as honras pertencerão ao que maior número de asneiras produzir; o caso é que nos não entendam, ainda que também nós não entendamos.

-Há de ser bonito, tornou Augusto, à vista de tanta gente que, por força, conhecerá esta patacoada.

-Qual conhecer?... Aqui ninguém nos entende, tornou Filipe, que, voltando-se para os circunstantes, disse com voz teatralmente solene: -Meus senhores, rogamos breves momentos de atenção; queremos conferenciar.

Movimento de curiosidade.

Seguiu-se novo exame da enferma, no qual os quatro estudantes fingiram observar o pulso, a língua, o rosto e os olhos da enferma auscultaram e percutiram-lhe o peito e fizeram todas as outras pesquisas do costume.

Depois eles se colocaram em um dos ângulos do quarto. Filipe teve a palavra. Profundo silêncio.

-Acabastes, senhores, de fazer-me observar uma enfermidade que não nos deixa de pedir sérias atenções e sobre a qual eu vou respeitosamente submeter o meu juízo. Poucas palavras bastam. A moléstia de que nos vamos ocupar não é nova para nós; creio, mesmo, senhores, que qualquer de vós já a tem padecido muitas vezes...

-Está enganado.

-Não respondo aos apartes. Eu diagnostico uma baquites. Concebe-se perfeitamente que as etesias desenvolvidas pela decomposição dos éteres espasmódicos e engendrados no alambique intestinal, uma vez que a compresão do diafragma lhes cause vibrações simpáticas que os façam caminhar pelo canal colédoco até o periósteo dos pulmões...

-C'est trop fort!...

-Daí, passando à garganta, perturbam a quimificação da hematose, que por isso se tornando em linfa hemostática, vá de um jacto causar um tricocéfalo no esfenóide, podendo mesmo produzir uma protorragia nas glândulas de Meyer, até que, penetrando pelas câmaras ópticas, no esfíneter do cerebelo, cause um retrocesso prostático, como pensam os modernos autores, e promovam uma rebelião entre os indivíduos cerebrais: por conseqüência isto é nervoso.

-Muito bem concluído.

-O tratamento que proponho é concludente: algumas gotas de éter sulfúrico numa taça do líquido fontâneo açucarado; o cozimento dos frutos do coffea arabica torrados, ou mesmo o thea sinensis; e quando isto não baste, o que julgo impossível, as nossas lancetas estão bem afiadas e duas libras de sangue de menos não farão falta à doente. Disse:

-Como ele fala bem! murmurou uma das moças.

Fabrício tomou a palavra.

-Sangue! sempre sangue! eis a Medicina romântica do insignificante Broussais! mas eu detesto tanto a Medicina sanguinária, como a estercorária, herbária, sudorária e todas as que acabam em ária. Desde Hipócrates, que foi o maior charlatão do seu tempo, até os nossos dias, tem triunfado a ignorância, mas já, enfim, brilhou o sol da sabedoria... Hahnemann... ah!... Quebrai vossas lancetas, senhores! para curar o mundo inteiro basta-vos uma botica homeopática, com o Amazonas ao pé!... Queimai todos os vossos livros, porque a verdade está só, exclusivamente, no alcorão de nosso Mafoma, no Organon do grande homem! Ah! se depois do divino sistema morre por acaso alguém, é por se não ter ainda descoberto o meio de dividir em um milhão de partes cada simples átomo da matéria! Senhores, eu concordo com o diagnóstico de meu colega, mas devo combater o tratamento por ele oferecido. Uma taça de líquido fontâneo açucarado, e acidulado com algumas gotas de éter sulfúrico, é, em minha opinião, capaz de envenenar a todos os habitantes da China! O mesmo direi do cozimento do coffea arabica...

-Mas por que não têm morrido envenenados os que por vezes o têm já tomado?...

-Eis aí a consideração que os leva ao erro!... Senhor meu colega, é porque a ação maléfica desses medicamentos não se faz sentir logo... às vezes só aparece depois de cem, duzentos e mais anos... eis a grande verdade!... Mas eu tenho observações de moléstias de natureza da que nos ocupa e que vão mostrar a superioridade do meu sistema. Ouçam-me. Uma mulher padecia este mesmo mal; já tinha sofrido trinta sangrias; haviam-lhe mandado aplicar mais de trezentas bichas, purgantes sem conta, vomitórios às dúzias e tisanas aos milheiros; quis o seu bom gênio que ela recorresse a um homeopata, que, com três doses, das quais cada uma continha apenas a trimilionésima parte de um quarto de grão de nihilitas nihilitatis, a pôs completamente restabelecida; e quem quiser pode ir vê-la na rua... É certo que não me lembro agora onde, mas posso afirmar que ela mora em uma casa e que hoje está nédia, gorda, com boas cores e até remoçou e ficou bonita... Outro fato.

-Basta! Basta!...

-Pois bem, basta; e propondo a aplicação da nihilitas nihilitatis na dose da trimilionésima parte de um quarto de grão, dou por terminado o meu discurso.

-O Sr. Leopoldo tem a palavra.

-Senhores, eu devo confessar que restam-me muitas dúvidas a respeito do diagnóstico e, portanto, julgo útil recorrermos ao magnetismo animal, para vermos se a enferma, levada ao sonambulismo, nos aclara sua enfermidade. Além disto, eu tenho fé de que não há moléstia alguma que possa resistir à maravilhosa aplicação dos passes, que tanto abismaram Paracelso e Kisker. Ainda mais: se o diagnóstico do colega que falou em primeiro lugar é exato, dobrada razão acho para sustentar o meu parecer porque, enfim, se similia similibus curantur, necessariamente o magnetismo tem de curar a baquites. Voto, pois, para que comecemos já a aplicar-lhe os passes.

Seguiu-se o discurso de Augusto que, por longo demais, parece prudente omitir. Em resumo basta dizer que ele combateu as raras teorias de Filipe, mas concordou com o tratamento por ele proposto e falou com arte tal que D. Carolina o escolheu para assistente de sua ama.

Augusto determinou as aplicações convenientes ao caso, mas, não tendo entrado no número delas a essencial lembrança de um escalda-pés, caiu a tropa das mezinheiras sobre o desgraçado estudante, que se viu quase doido com a balbúrdia de novo alevantada no quarto.

-Menos ruído, minhas senhoras, dizia o rapaz; isto pode ser fatal à doente!

-Ora... eu nunca vi negar-se um escalda-pés!

-Ainda em cima de não lhe mandar aplicar uma ajuda, esquece-se também do escalda-pés!...

-Se não lhe derem um escalda-pés, eu não respondo pelo resultado!...

-Olhem como a doente está risonha, só por ouvir falar em escalda-pés!...

-Aquilo é pressentimento!

-Sr. Doutor, um escalda-pés!...

-Pois bem, minhas senhoras, disse Augusto para se ver livre delas, dêem-lhe o preconizado escalda-pés!

E fugindo logo do quarto, foi pensando consigo mesmo que as coisas que mais contrariam o médico são: primeiro, a saúde alheia, segundo, um mau enfermeiro e, por último, enfim, as senhoras mezinheiras.

Pedilúvio sentimental

Ria-se, jogava-se, brincava-se. Todos se haviam já esquecido da pobre Paula. Na verdade também que, por ter a ama de D. Carolina tomado seu copo de vinho de mais, não era justo que tantas moças e moços, em boa disposição de brincar, e umas poucas de velhas determinadas a maçar meio mundo, ficassem a noite inteira pensando na carraspana da rapariga. E além disso, quatro semidoutores já haviam pronunciado favorável diagnóstico; como, pois, se arrojaria Paula a morrer, contra a ordem expressa dos quatro hipocratíssimos senhores?...

Era por isso que todos brincavam alegremente, menos o Sr. Keblerc que, diante de meia dúzia de garrafas vazias, roncava prodigiosamente; grande alemão para roncar!... Era uma escala inteira que ele solfejava com bemóis, bequadros e sustenidos!... dir-se-ia que entoava um hino... a Baco.

Os rapazes estavam nos seus gerais; a princípio, como é seu velho costume, haviam festejado, cumprimentado e aplaudido as senhoras idosas que se achavam na sala, principalmente aquelas que tinham trazido consigo moças; mas, passada meia hora, adeus etiquetas e cerimônias!... Estabeleceu-se um cordão sanitário entre a velhice e a mocidade; a Sra. D. Ana achou a ocasião oportuna para ir dar ordens ao chá, D. Violante ocupou-se em desenvolver a um velho roceiro os meios mais adequados para se preencher o déficit provável do Brasil para o ano financeiro de 44 a 45, sem aumentar os direitos de importação, nem criar impostos, abolindo-se, pelo contrário, a décima urbana. Já se vê que D. Violante tinha casas na cidade. Restavam quatro senhoras, que julgaram a propósito jogar o embarque, que na verdade as divertia muito, como o episódio do ás galar o sete; havia, enfim, outra mesa em que alguns senhores, viúvos, casados e velhos pais perdiam ou ganhavam dinheiro no écarté, jugo muito bonito e muito variado, que nos vieram ensinar os senhores franceses, grandes inventores, sem dúvida!...

A rapazia empregava melhor o seu tempo: também jogava, mas na sua roda não havia nem mesa, nem cartas, nem dados. O seu jogo tinha diretor que, exceção de regra entre os mais, não podia ter menos de cinqüenta anos. Era um homem de estatura muito menos que ordinária, tinha o rosto muito vermelho, cabelos e barbas ruivas, gordo, de pernas arqueadas, ajuntava ao ridículo de sua figura muito espírito; não estava bem senão entre rapazes, por felicidade deles sempre se encontra desses. Tal o diretor da roda dos moços. O Sr. Batista (este é o seu nome) era fértil em jogos; quando um aborrecia, vinha logo outro melhor. Já se havia jogado o do toucador e o do enfermo. O terceiro agradou tanto, que se repetia pela duodécima vez, com aplauso geral, principalmente das moças: era, sem mais nem menos, o jogo da palhinha.

Caso célebre!... Já se viu que coincidência!... Ora expliquem, se são capazes... Tem-se jogado a palhinha doze vezes e em todas as doze tem a sorte feito com que Filipe abrace D. Clementina e Fabrício D. Joaninha! E sempre, no fim de cada jogo, qualquer das duas recua um passo, como se pouca vontade houvesse nelas de dar o abraço, e fazendo-se coradinha, exclama:

-Quantos abraços!... Pois outra vez?...

-Eu já não dei inda agora?... Ora isto!...

Entre os rapazes, porém, há um que não está absolutamente satisfeito: é Augusto. Será por que no tal jogo da palhinha tem por vezes ficado viúvo?... não! ele esperava isso como castigo de sua inconstância. A causa é outra: a alma da ilha de... não está na sala! Augusto vê o jogo ir indo o seu caminho muito em ordem; não se rasgou ainda nenhum lenço, Filipe ainda não gritou com a dor de nenhum beliscão, tudo se faz em regra e muito direito; a travessa, a inquieta, a buliçosa, a tentaçãozinha não está aí; D. Carolina está ausente!...

Com efeito, Augusto, sem amar D. Carolina (ele assim o pensa), já faz dela idéia absolutamente diversa da que fazia ainda há poucas horas. Agora, segundo ele, a interessante Moreninha é, na verdade, travessa, mas a cada travessura ajunta tanta graça, que tudo se lhe perdoa. D. Carolina é o prazer em ebulição; se é inquieta e buliçosa, está em sê-lo a sua maior graça; aquele rosto moreno, vivo e delicado, aquele corpinho, ligeiro como abelha, perderia metade de que vale, se não estivesse em contínua agitação. O beija-flor nunca se mostra tão belo como quando se pendura na mais tênue flor e voeja nos ares; D. Carolina é um beija-flor completo.

Neste momento a Sra. D. Ana entrou na sala, e depois, dirigindo-se à grande varanda da frente, sentou-se defronte do jardim. Batista acabava de dar fim ao jogo da palhinha e começava novo; Augusto pediu que o dispensassem e foi ter com a dona da casa.

-Não joga mais, Sr. Augusto? disse ela.

-Por ora não, minha senhora.

-Parece-me pouco alegre.

-Ao contrário... estou satisfeitíssimo.

-Oh! seu rosto mostra não sentir o que me dizem seus lábios; se aqui lhe falta alguma coisa.

-Na verdade que aqui não está tudo, minha senhora.

-Então que falta?

-A Sra. D. Carolina.

A boa senhora riu-se com satisfação. Seu orgulho de avó acabava de ser incensado; era tocar-lhe no fraco.

-Gosta de minha neta, Sr. Augusto?

-É a delicada borboleta deste jardim, respondeu ele, mostrando as flores.

-Vá buscá-la, disse a Sra. D. Ana, apontando para dentro.

-Minha senhora, tanta honra!...

-O amigo de meu neto deve merecer minha confiança; esta casa é dos meus amigos e também dos dele. Carolina está sem dúvida no quarto de Paula; vá vê-la e consiga arrancá-la de junto de sua ama.

A Sra. D. Ana levou Augusto pela mão até ao corredor e depois o empurrou brandamente.

-Vá, disse ela, e receba isso como a mais franca prova de minha estima para com o amigo de meu neto.

Augusto não esperou ouvir nova ordem: e endireitou para o quarto de Paula, com presteza e alegria. A porta estava cerrada; abriu sem ruído e parou no limiar.

Três pessoas havia nesse quarto: Paula, deitada e abatida sob o peso de sua sofrível mona, era um objeto triste e talvez ridículo, se não padecesse; a segunda era uma escrava que acabava de depor, junto do leito, a bacia em que Paula deveria tomar o pedilúvio recomendado, objeto indiferente; a terceira era uma menina de quinze anos, que desprezava a sala, em que borbulhava o prazer, pelo quarto em que padecia uma pobre mulher; este objeto era nobre...

D. Carolina e a escrava tinham as costas voltadas para a porta e por isso não viam Augusto: Paula olhava, mas não via, ou antes não sabia o que via.

-Anda, Tomásia, dá-lhe o escalda-pés! disse D. Carolina.

Pela sua voz conhecia-se que tinha chorado.

A escrava abaixou-se; puxou os pés da pobre Paula; depois, pondo a mão n'água, tirou-a de repente, e sacudindo-a:

-Está fervendo!... disse.

-Não está fervendo, respondeu a menina; deve ser bem quente, assim disseram os moços.

A escrava tornou a pôr a mão e de novo retirou-a com presteza tal, que bateu com os pés de Paula contra a bacia.

-Estonteada!... Sai... afasta-te, exclamou D. Carolina, arregaçando as mangas de seu lindo vestido.

A escrava não obedeceu.

-Afasta-te daí, disse a menina com tom imperioso; e depois abaixou-se no lugar da escrava, tomou os pés de sua ama, apertou-os contra o peito, chorando, e começou a banhá-los.

Belo espetáculo era o ver essa menina delicada, curvada aos pés de uma rude mulher, banhando-os com sossego, mergulhando suas mãos, tão finas, tão lindas, nessa mesma água que fizera lançar um grito de dor à escrava, quando aí tocara de leve com as suas, tão grosseiras e calejadas!... Os últimos vislumbres das impressões desagradáveis que ela causara a Augusto, de todo se esvaíram. Acabou-se a criança estouvada... ficou em seu lugar o anjo de candura.

Mas o sensível estudante viu as mãozinhas tão delicadas da piedosa menina já roxas, e adivinhou que ela estava engolindo suas dores para não gemer; por isso não pôde suster-se e, adiantando-se, disse:

-Perdoe, minha senhora.

-Oh!... O senhor estava aí?

-E tenho testemunhado tudo!

A menina abaixou os olhos, confusa e apontando para a doente, disse:

-Ela me deu de mamar...

-Mas nem por isso deve a senhora condenar suas lindas mãos a serem queimadas, quando algum dos muitos escravos que a cercam poderia encarregar-se do trabalho em que a vi tão piedosamente ocupada.

-Nenhum o fará com jeito.

-Experimente.

-Mas a quem encarregarei?

-A mim, minha senhora.

-O senhor falava de meus escravos...

-Pois nem para escravo eu presto?

-Senhor!...

-Veja se eu sei dar um pedilúvio!

E nisto o estudante abaixou-se e tomou os pés de Paula, enquanto D. Carolina, junto dele, o olhava com ternura.

Quando Augusto julgou que era tempo de terminar, a jovenzinha recebeu os pés de sua ama e os envolveu na toalha que tinha nos braços.

Agora deixemo-la descansar, disse o moço.

-Ela corre algum risco?... perguntou a menina.

-Afirmo que acordará amanhã perfeitamente boa.

-Obrigada!

-Quer dar-me a honra de acompanhá-la até à sala? disse Augusto, oferecendo a mão direita à bela Moreninha.

Ela não respondeu, mas olhou-o com gratidão, e aceitando o braço do mancebo deixou o quarto de Paula.

Um dia em quatro palavras

Ao romper do dia de Sant'Ana estavam todos na ilha de... descansando nos braços do sono; era isso muito natural, depois de uma noite como a da véspera, em que tanto se havia brincado.

Com efeito, os jogos de prendas tinham-se prolongado excessivamente. A chegada de D. Carolina e Augusto lhes deu ainda dobrada viveza e fogo. A bonita Moreninha tornou-se mais travessa do que nunca; mil vezes bulhenta, perturbava a ordem dos jogos, de modo que era preciso começar de novo o que já estava no fim; outras tantas rebelde, não cumpria certos castigos que lhe impunham, não deu um só beijo e aquele que atreveu-se a abraçá-la teve em recompensa um beliscão.

Finalmente, ouviu-se a voz de: -Vamos dormir, e cada qual tratou de fazer por consegui-lo.

O último que se deitou foi Augusto e ignora-se por que saiu de luz na mão, a passear pelo jardim, quando todos se achavam acomodados; de volta do seu passeio noturno, atirou-se entre Fabrício e Leopoldo e imediatamente adormeceu. Os estudantes dormiram juntos.

São seis horas da manhã e todos dormem ainda o sono solto.

Um autor pode entrar em toda parte e, pois... Não, não, alto lá! No gabinete das moças... não senhor, no dos rapazes, ainda bem. A porta está aberta. Eis os quatro estudantes estirados numa larga esteira; e como roncam!... Mas que faz o nosso Augusto? Ri-se, murmura frases imperceptíveis, suspira... Então que é isso lá?... Dá um beijo em Fabrício, acorda espantado e ainda em cima empurra cruelmente o mesmo a quem acaba de beijar...

Oh! Beleza! Oh! Inexplicável poder de um rosto bonito que, não contente com as zombarias que faz ao homem que vela, o ilude e ainda zomba dele dormindo!

Estava o nosso estudante sonhando que certa pessoa, de quem ele teve até aborrecimento e que agora começa com os olhos travessos a fazer-lhe cócegas no coração, vinha terna e amorosamente despertá-lo; que ele fingira continuar a dormir e ela se sentara à sua cabeceira; que traquinas como sempre, em vez de chamá-lo, queria rir-se, acordando-o pouco a pouco; que, para isso, aproximava seu rosto do dele, e, assoprando-lhe os lábios, ria-se ao ver as contrações que produzia a titilação causada pelo sopro; que ele, ao sentir tão perto dos seus os lindos lábios dela, estava ardentemente desejoso de furtar-lhe um beijo, mas que temia vê-la fugir ao menor movimento; que, finalmente, não podendo mais resistir aos seus férvidos desejos, assentara de, quando se aproximasse o belo rosto, ir de um salto colher o voluptuoso beijo naquela boquinha de botão de rosa; que o rosto chegou à distância de meio palmo e... (aqui parou o sonho e principiou a realidade) e ele deu um salto e, em lugar de pregar um terno beijo nos lábios de D. Carolina, foi, com toda a força e estouvamento, bater com os beiços e nariz contra a testa de Fabrício; e como se o colega tivesse culpa de tal infelicidade, deu-lhe dois empurrões, dizendo:

-Sai-te daí, peste!... Ora, quando eu sonhava com um anjo, acordo-me nos braços de Satanás!...

Corra-se, porém, um véu sobre quanto se passou até que se levantaram do almoço. A sociedade se dividiu logo depois em grupos. Uns conversavam, outros jogavam, dois velhos ferraram-se no gamão, as moças espalharam-se pelo jardim e os quatro estudantes tiveram a péssima lembrança de formar uma mesa de voltarete.

E apesar do poder todo da cachaça do jogo, de cada vez quer qualquer deles dava cartas, ficava na mesa um lugar vazio e junto do arco da varanda, que olhava para o jardim, colocava-se uma sentinela.

Já se vê que o voltarete não podia seguir marcha muito regular. Augusto, por exemplo, distraía-se com freqüência tal, que às vezes passava com basto e espadilha e era codilhado todas as mãos que jogava de feito.

A Moreninha já fazia travessuras muito especiais no coração do estudante; e ele, que se acusava de haver sido injusto para com ela, agora a observava com cuidado e prazer, para, em compensação, render-lhe toda a justiça.

D. Carolina brilhava no jardim e, mais que as outras, por graças e encantos que todos sentiam e que ninguém poderia bem descrever, confessava-se que não era bela, mas jurava-se que era encantadora; alguém queria que ela tivesse maiores olhos, porém não havia quem resistisse à viveza de seus olhares; as que mais apaixonados fossem da doce melancolia de certos semblantes em que a languidez dos olhos e brandura de custosos risos estão exprimindo amor ardente e sentimentalismo, concordariam por força que no lindo rosto moreno de D. Carolina nada iria melhor do que o prazer que nele transluz e o sorriso engraçado e picante que de ordinário enfeita seus lábios; além disto, sempre em brincadora guerra com todos e em interessante contradição consigo mesma, ela a um tempo solta um ai e uma risada, graceja, fazendo-se de grave, fala, jurando não dizer palavra, apresenta-se, escondendo-se, sempre quer, jamais querendo.

Nunca também se havia mostrado a Moreninha tão jovial e feiticeira, mas para isso boas razões havia: esse era o dia dos anos de sua querida avó e a pobre Paula, sua estimada ama, estava completamente restabelecida.

Eis uma deliciosa invasão!... Dez moças entram de repente na varanda e num momento dado tudo se confunde e amotina; D. Carolina atira no meio da mesa do voltarete uma mão cheia de flores; enquanto Filipe faz tenção de dirigir-lhe um discurso admoestador, ela furta-lhe a espadilha e voa, para tornar a aparecer logo depois. É impossível continuar assim!... Dá-se por acabado o jogo e a Moreninha, à custa de um único sorriso, faz as pazes com o irmão.

-Parabéns, Sra. D. Joaquina, disse Augusto; já triunfou de uma de suas rivais!

-Como?... perguntou ela.

-Ora, que esta minha prima nunca entende as figuras do Sr. Augusto, acudiu D. Carolina; explique-se, Sr. Doutor!

-Sua prima, minha senhora, a aurora e a rosa disputam sobre qual primará na viveza da cor, e eu vejo que ela já tem presa no cabelo uma das duas rivais.

-Eu o encarrego com prazer da guarda fiel desta minha competidora... seja o seu carcereiro! disse D. Quinquina, querendo tirar uma linda rosa do cabelo, para oferecê-la a Augusto.

-Ó minha senhora! seria um cruel castigo para ela, que se mostra tão vaidosa!

-Pois rejeita?...

-Certo que não; aceito mas rogo um outro obséquio.

-Qual?...

-Que por ora lhe conceda seus cabelos por homenagem.

-Pois bem, será satisfeito; eu guardarei a sua rosa.

-Mas cuidado, não haja quem liberte a bela cativa! disse Leopoldo.

-Protesto que a hei de furtar, acrescentou D. Carolina.

-Desafio-lhe a isso! respondeu-lhe a prima.

Então começou uma luta de ardis e cuidados entre a Moreninha e D. Quinquina. Aquela já tinha debalde esgotado quantos estratagemas lhe pôde sugerir seu fértil espírito, e enfim, fingindo-se fatigada, veio sossegadamente conversar junto de D. Quinquina, que, não menos viva, conservava-se na defensiva.

Depois de uma meia hora de hábil afetação, a menina travessa, com um rápido movimento, fez cair o leque de sua adversária; Leopoldo abaixou-se para levantá-lo e D. Quinquina, um instante despercebida, curvou-se também e soltou logo um grito, sentindo a mão da prima sobre a rosa, e com a sua foi acudir a esta; houve um conflito entre duas finas mãozinhas, que mutuamente se beliscaram, e em resultado desfolhou-se completamente a rosa.

-Morreu a bela cativa!... Morreu a pobre cativa!... gritaram as moças.

-D. Carolina está criminosa! disse D. Clementina.

-Vai ao júri, minha senhora!

-É verdade, vamos levá-la ao júri.

A idéia foi recebida com aplauso geral, só Filipe se opôs.

-Não, não, disse ele. Carolina é muito rebelde, e se fosse condenada não cumpriria a sentença.

-Ó maninho! não diga isso.

-Você jura obedecer?...

-Eu juro por você.

-Tanto pior... era mais um motivo para se tornar perjura.

-Pois bem, dou a minha palavra, não é suficiente?

-Basta! Basta!

Organizou-se o júri; Fabrício foi encarregado da presidência, um outro moço serviu de escrivão, e cinco moças saíram por sorte para juradas; D. Clementina terá de ser a relatora da sentença. Augusto foi declarado suspeito na causa, e Filipe foi escolhido para advogado da ré e Leopoldo da autora.

A sessão começou.

Longo fora enumerar tudo o que se passou em duas horas muito agradáveis e por isso muito breves, também.

Toda a companhia veio tomar parte naquele divertimento improvisado e até, quem o diria?!, os dois velhos deixaram o tabuleiro do gamão! Resuma-se alguma coisa.

As testemunhas foram D. Gabriela e uma outra, que deram provas de bastante espírito. O interrogatório de D. Carolina fez rir a quantos o ouviram. O debate dos advogados esteve curioso.

Leopoldo acusou a ré, demonstrando que tinha havido a circunstância agravante da premeditação e que o crime se tornava ainda mais feio, por ser causado pelo ciúme; procurou provar que D. Carolina, cônscia de seus encantos e beleza, queria ser senhora absoluta de todos os corações e até de todos os seres, que ela se enchera de zelos supondo, com razão, que Augusto desse subido valor à rosa, por lhe ser dada por uma moça bela como a autora e, enfim, que o ciúme da ré era tão excessivo, que já na tarde antecedente jurara a perda daquela flor, por desconfiar que o zéfiro brincava mais com ela do que com seus olhos.

Filipe não se deixou ficar atrás. Argumentou dizendo que era impossível decidir que mão tinha dado a morte à bela cativa, que não houvera premeditação, porque a ré não quisera matar mas, sim libertar; que, se havia crime, só o cometera a autora, por prender uma inocente flor; e que, por último, ainda quando fosse a ré que desfolhara a rosa e mesmo dando-se o propósito de o fazer, dever-se-ia atribuir tal ação à piedade, pois que D. Quinquina a estava matando pouco a pouco com o veneno da inveja, colocando-a tão perto de suas faces, que tanto a venciam em rubor e viço.

As juradas recolheram-se à toilette e cinco minutos depois voltaram com a sentença, que foi lida por D. Clementina.

O júri declarou D. Carolina criminosa e a condenou a indenizar o dono da rosa com um beijo.

-Para fazer tal, disse a ré, não carecia eu de sentença do júri; tome um beijo, minha prima...

-Não é a mim que o deve dar, respondeu a autora; o dono da rosa é o Sr. Augusto.

De rosa fez-se então o rosto de D. Carolina.

-O beijo! O beijo! gritaram as juradas. Você deu sua palavra!

Ela hesitou alguns momentos... depois, aproximou-se de Augusto e, com seu sorriso feiticeiro e irresistível nos lábios, disse:

-O senhor me perdoa?...

-Não! Não! Não! -clamaram de todos os lados.

Mas a menina parecia contar com o poder de seus lábios, porque, sorrindo-se ainda do mesmo modo, tornou a perguntar com meiguice e ternura:

-Me perdoa?...

-Não! Não!

-Porém, como resistir ao seu sorriso?... Como dizer que não a quem pede como ela?... exclamou Augusto, entusiasmado.

D. Carolina estava, pois, perdoada.

-Agradecida! disse ela com vivo acento de gratidão e estendeu sua destra para Augusto que, não podendo ceder tudo com tão criminoso desinteresse, tomou entre as suas aquela mãozinha de querubim e fez estalar sobre ela o beijo mais gostoso que tinham até então dado seus lábios.

A manhã deste dia foi assim passada; e á tarde voltou-se aos preparativos do sarau.

O sarau

Um sarau é o bocado mais delicioso que temos, de telhados abaixo. Em um sarau todo o mundo tem que fazer. O diplomata ajusta, com um copo de champanha na mão, os mais intrincados negócios; todos murmuram e não há quem deixe de ser murmurado. O velho lembra-se dos minuetes e das cantigas do seu tempo, e o moço goza todos os regalos da sua época; as moças são no sarau como as estrelas no céu; estão no seu elemento: aqui uma, cantando suave cavatina, eleva-se vaidosa nas asas dos aplausos, por entre os quais surde, às vezes, um bravíssimo inopinado, que solta de lá da sala do jogo o parceiro que acaba de ganhar sua partida no écarté, mesmo na ocasião em que a moça se espicha completamente, desafinando um sustenido; daí a pouco vão outras, pelos braços de seus pares, se deslizando pela sala e marchando em seu passeio, mais a compasso que qualquer de nossos batalhões da Guarda Nacional, ao mesmo tempo que conversam sempre sobre objetos inocentes que movem olhaduras e risadinhas apreciáveis. Outras criticam de uma gorducha vovó, que ensaca nos bolsos meia bandeja de doces que veio para o chá, e que ela leva aos pequenos que, diz, lhe ficaram em casa. Ali vê-se um ataviado dandy que dirige mil finezas a uma senhora idosa, tendo os olhos pregados na sinhá, que senta-se ao lado. Finalmente, no sarau não é essencial ter cabeça nem boca, porque, para alguns é regra, durante ele, pensar pelos pés e falar pelos olhos.

E o mais é que nós estamos num sarau. Inúmeros batéis conduziram da Corte para a ilha de... senhoras e senhores, recomendáveis por caráter e qualidades; alegre, numerosa e escolhida sociedade enche a grande casa, que brilha e mostra em toda a parte borbulhar o prazer e o bom gosto.

Entre todas essas elegantes e agradáveis moças, que com aturado empenho se esforçam por ver qual delas vence em graça, encantos e donaires, certo que sobrepuja a travessa Moreninha, princesa daquela festa.

Hábil menina é ela! nunca seu amor-próprio produziu com tanto estudo seu toucador e, contudo, dir-se-ia que o gênio da simplicidade a penteara e vestira. Enquanto as outras moças haviam esgotado a paciência de seus cabeleireiros, posto em tributo toda a habilidade das modistas da Rua do Ouvidor e coberto seus colos com as mais ricas e preciosas jóias, D. Carolina dividiu seus cabelos em duas tranças, que deixou cair pelas costas: não quis adornar o pescoço com seu adereço de brilhantes, nem com seu lindo colar de esmeraldas; vestiu um finíssimo, mas simples vestido de garça, que até pecava contra a moda reinante, por não ser sobejamente comprido. E vindo assim aparecer na sala, arrebatou todas as vistas e atenções.

Porém, se um atento observador a estudasse, descobriria que ela adrede se mostrava assim, para ostentar as longas e ondeadas madeixas negras, em belo contraste com a alvura de seu vestido branco, para mostrar, todo nu, o elevado colo de alabastro, que tanto a formoseia, e que seu pecado contra a moda reinante não era senão um meio sutil de que se aproveitara para deixar ver o pezinho mais bem-feito e mais pequeno que se pode imaginar.

Sobre ela estão conversando agora mesmo Fabrício e Leopoldo. Terminam sem dúvida a sua prática. Não importa; vamos ouvi-los.

-Está na verdade encantadora!... repetiu pela quarta vez aquele.

-Danças com ela? perguntou Leopoldo.

-Não, já estava engajada para doze quadrilhas.

-Oh! Lá vai ter com ela o nosso Augusto. Vamos apreciá-lo.

Os dois estudantes aproximaram-se de Augusto, que acabava de rogar à linda Moreninha a mercê da terceira quadrilha.

-Leva de tábua, disse Fabrício ao ouvido de Leopoldo... é a mesma que eu lhe havia pedido.

Mas a jovenzinha pensou um momento antes de responder ao pretendente; olhou para Fabrício e com particular mover de lábios pareceu mostrar-se descontente; depois riu-se e respondeu a Augusto:

-Com muito prazer.

-Mas, minha senhora, disse Fabrício, vermelho de despeito e aturdido com um beliscão que lhe dera Leopoldo; há cinco minutos que já estava engajada até a duodécima.

-É verdade, tornou D. Carolina; e agora só acabo de ratificar uma promessa: o Sr. Augusto poderá dizer se ontem pediu-me ou não a terceira contradança?

-Juro... balbuciou Augusto.

-Basta! acudiu Fabrício interrompendo-o; é inútil qualquer juramento de homem, depois das palavras de uma senhora.

Fabrício e Leopoldo retiraram-se; D. Carolina, que tinha iludido o primeiro, vendo brilhar o prazer na face de Augusto, e temendo que daquela ocorrência tirasse este alguma explicação lisonjeira demais, quis aplicar um corretivo e, erguendo-se, tomou o braço de Augusto. Aproveitando o passeio, disse:

-Agradeço-lhe a condescendência com que ia tomar parte na minha mentira... foi necessário que eu praticasse assim; quero antes dançar com qualquer, do que com aquele seu amigo.

-Ofendeu-lhe, minha senhora?

-Certo que não, mas... diz-me coisas que não quero saber.

-Então... que diz ele?...

-Fala tantas vezes em amor...

-Meu Deus! É um crime que eu tenho estado bem perto de cometer!

-Pois bem, foi esta a única razão.

-Mas eu temo perder a minha contradança... alguns momentos mais e serei réu como Fabrício.

-A culpa será de seus lábios.

-Antes dos seus olhos, minha senhora.

-Cuidado, Sr. Augusto! Lembre-se da contradança!

-Pois será preciso dizer que a detesto?...

-Basta não dizer que me ama.

-É não dizer o que sinto, eu... não sei mentir.

-Ainda há pouco ia jurar falso...

-Nas palavras de um anjo ou de uma...

-Acabe.

-Tentaçãozinha.

-Perdeu a terceira contradança.

-Misericórdia! Eu não falei em amor!...

Neste momento a orquestra assinalou o começo do sarau. É preciso antecipar que nós não vamos dar ao trabalho de descrever este, é um sarau, como todos os outros, basta dizer o seguinte:

Os velhos lembraram-se do passado, os moços aproveitaram o presente, ninguém cuidou do futuro. Os solteiros fizeram por lembrar-se do casamento, os casados trabalharam por esquecer-se dele. Os homens jogaram, falaram em política e reqüestaram as moças; as senhoras ouviram finezas, trataram de modas e criticaram desapiedadamente umas das outras. As filhas deram carreirinhas ao som da música, as mães, já idosas, receberam cumprimentos por amor daquelas, e, as avós, por não ter que fazer nem que ouvir, levaram todo o tempo a endireitar as toucas e comer doce. Tudo esteve debaixo destas regras gerais, só resta dar conta das seguintes particularidades:

D. Carolina sempre dançou a terceira contradança com Augusto, mas, para isso, foi preciso que a Sra. D. Ana empenhasse todo o seu valimento; a tirana princesinha da festa esteve realmente desapiedada; não quis passear com o estudante.

A interessante D. Violante fez o diabo a quatro: tomou doze sorvetes, comeu pão-de-ló, como nenhuma, tocou em todos os doces, obrigou alguns moços a tomá-la por par e até dançou uma valsa de corrupio.

Augusto apaixonou-se por seis senhoras com quem dançou; o rapaz é incorrigível. E assim tudo mais.

Agora são quatro horas da manhã; o sarau está terminado, os convidados vão retirando-se e nós, entrando no toilette, vamos ouvir quatro belas conhecidas nossas, que conversam com ardor e fogo.

-É possível?!... exclamou D. Quinquina, dirigindo-se à sua mana; pois é verdade que esse Sr. Augusto lhe fez uma declaração de amor?...

-Como quer que lhe diga, maninha?... Asseverou que meus olhos pretos davam à sua alma mais luz do que a seus olhos todos os candelabros da sala nesta noite, e mesmo do que o sol, nos dias mais brilhantes... palavras dele.

-Que insolente!... tornou D. Quinquina; ele mesmo, que me jurou ser a mais bela a seus olhos e a mais cara a seu coração, porque meus cabelos eram fios d'ouro e a cor das minhas faces o rubor de um belo amanhecer!... palavras dele.

-Que atrevido!... bradou D. Clementina; o próprio que afirmou ser-lhe impossível viver sem alentar-se com a esperança de possuir-me, porque eu sabia ferir corações com minhas vistas e curar profundas mágoas com meus sorrisos!... palavras dele.

-Oh! Que moço abominável!... disse, por sua vez, D. Gabriela; e ousou dizer-me que me amava com tão subida paixão que, se fora por mim amado e pudesse desejar e pedir algum extremo, não me pediria como as outras, para beijar-me a face, porque das virgens do céu somente se beija os pés, e de joelhos!... palavras dele.

-Mais isto é um insulto feito a todas nós!

-Como se estará ele rindo!...

-Qual! Se ele está apaixonado!...

-Apaixonado?!... E por quem?

-Por nós quatro... talvez por outras mais... ele pensa assim.

-Que maldito brasileiro com alma de mouro!...

-E havemos de ficar assim?...

-Não, acudiu D. Joaninha, vamos ter com ele, desmascaremo-lo.

-Isto é nada para quem não tem vergonha!...

-Pois troquemos os papéis: finjamos que estávamos tratadas para desafiar-lhe os requebros... ridicularizemo-lo como for possível.

-Sim... obriguemo-lo a dizer qual de nós é a mais bonita. Cada uma lhe pedirá um anel de seus cabelos... uma prenda... uma lembrança... ponhamo-lo doido...

-Muito bem pensado! Vamos!

-Deus nos livre! À vista de tanta gente!...

-Então, quando e onde?

-Uma idéia!... Seja a zombaria completa: escreva-se uma carta anônima, convidando-o para estar ao romper do dia na gruta.

-Bravo! Então escreva...

-Eu não, escreva você...

-Deus me defenda!... Escreva, D. Gabriela, que tem boa letra...

-Então, nenhuma escreve.

-Pois tiremos por sorte!

A idéia foi recebida com aprovação e a sorte destinou para secretária D. Clementina que, tirando de seu álbum um lápis e uma tira de papel, escreveu sem hesitar:

«Senhor: - Uma jovem que vos ama e que de vós escutou palavras de ternura, tem um segredo a confiar-vos. Ao raiar da aurora a encontrareis no banco de relva da gruta; sede circunspecto e vereis a quem, por meia hora ainda, quer ser apenas - Uma incógnita

-Bem... disse D. Quinquina, eu me encarrego de fazer-lhe receber a carta. Saiamos.

As quatro moças iam sair, quando um suspiro as suspendeu; mais alguém estava no toilette. D. Joaninha, medrosa de que uma testemunha tivesse presenciado a cena que se acabava de passar, voltou-se para o fundo do gabinete e o susto para logo se dissipou.

-Vejam como ela dorme!... disse.

Com efeito, recostada em uma cadeira de braços, D. Carolina estava profundamente adormecida.

A Moreninha se mostrava, na verdade, encantadora no mole descuido de seu dormir: à mercê de um doce resfolegar, os desejos se agitavam entre seus seios; seu pezinho bem à mostra, suas tranças dobradas no colo, seus lábios entreabertos e como por costume amoldados àquele sorrir cheio de malícia e de encanto que já lhe conhecemos e, finalmente, suas pálpebras cerradas e coroadas por bastos e negros supercílios, a tornavam mais feiticeira que nunca.

D. Clementina não pôde resistir a tantas graças; correu para ela... dois rostos angélicos se aproximaram... quatro lábios cor-de-rosa se tocaram e este toque fez acordar D. Carolina.

Um beijo tinha despertado um anjo, se é que o anjo realmente dormia.

Foram buscar lã e saíram tosquiadas

Se houve alguém que quisesse servir a D. Quinquina ou se foi ela mesma quem pôs a carta anônima no bolso da jaqueta de Augusto, é coisa que pouco interesse dá; o certo é que o estudante, indo tirar o lenço para assoar-se, achou o interessante escritinho; então correu logo para um lugar solitário, e só depois de devorar o convite sem assinatura foi que lembrou-se que ainda não se havia assoado e que o pingo estava cai não cai na ponta do nariz; enfim, ainda com o lenço acudiu a tempo, e depois entendeu que, para melhor decidir o que lhe cumpria fazer naquela conjuntura, deveria avivar o cérebro, sorvendo uma boa pitada de rapé. Portanto, lançou a mão ao segundo bolso de sua jaqueta, e eis que lhe sai com a caixa do bom Princesa um outro escritinho como o primeiro.

-Bravo! exclamou o nosso estudante; temíveis mãozinhas seriam estas, se se dessem ao exercício não de encher, mas de vazar as algibeiras da gente.

E sem mais dizer, abriu e leu o escrito.

«Senhor: - Uma moça, que nem é bonita nem namorada, mas que quer interessar-se por vós, entende dever prevenir-vos que no banco de relva da gruta não achareis ao amanhecer uma incógnita, porém sim conhecidas, que pretendem zombar de vós, porque esta mesma noite jurastes amar a cada uma delas em particular. Não procureis adivinhar quem vos escreve, porque, apesar de ser vossa amiga, serei por agora - Uma incógnita»

-Muito bonito! Muito bonito!... disse Augusto beijando o bilhete; estou exatamente representando um papel de romance! mas quem sabe se ainda acharei mais cartas?...

E nisto pensando, foi correndo um por um todos os bolsos dos seus vestidos, sem esquecer o do relógio, e até passou os dedos por sua basta cabeleira, presumindo que talvez introduzissem algum no enorme canudo de cabelo que lhe escondia as orelhas.

Porém, nada mais havia; também duas cartas tão curiosas já eram de sobra em uma só noite.

O estudante pensou no conteúdo de ambas e ainda reflexionava se lhe cumpria fugir ou aceitar um certame com quatro moças, que ele adivinha quais eram, quando a primeira rosa da aurora se desabriu no horizonte. Augusto correu para a gruta encantada.

Chegando ao pé, foi de mansinho se aproximando, sentiu o rumor e ouviu que alguém dizia em tom baixo:

-Oh! Se ele vier!

-Ei-lo aqui, minhas belas senhoras, exclamou o estudante, que entendeu não lhes dever nunca dar tempo a tomar a ofensiva; eis-me aqui!...

As moças, que estavam todas sentadinhas no banco de relva, como quatro pombas-rolas enfiladas no mesmo galho, ergueram-se sobressaltadas ao ver entrar inopinadamente o estudante; era isso mesmo o que ele queria, pois continuou:

-As senhoras vêem que acudi de pronto ao honroso convite e que me entusiasmo vendo quatro auroras, em lugar de uma só! Belo amanhecer é este, sem dúvida... mas, exposto ao fogo abrasador de oito olhos brilhantes... eu me sinto arder... juro que tenho sede... Eis ali uma fonte... Mas, meu Deus, é a fonte encantada que descobre os segredos de quem está conosco!... Bem! Bem! Melhor... Uma gota desta linfa de fadas!...

-O que é que ele está dizendo, mana? exclamou D. Quinquina, apontando para Augusto, que tinha entre os lábios o copo de prata.

-É preciso decidir-nos a começar, disse D. Gabriela.

-Principie você, disse D. Joaninha.

-Eu não, comece você...

-Eu não, que sou a mais moça...

Então o estudante, que tinha acabado de esgotar o seu copo d'água, voltou-se para elas, e dando a seu rosto uma expressão animada e às suas palavras estudado acento:

-Começo eu, minhas senhoras, disse, e começo por dizer-vos que aquela fonte é realmente encantada; sim, eu tenho, à mercê de sua água, adivinhado belos segredos: escutai vós... Perdoai e consenti que vos trate assim, enquanto vos falar inspirado por um poder sobrenatural. Vós viestes aqui para maltratar-me e zombar de mim, por haver amado a todas vós numa só noite; que ingratidão!... eu vos poderia perguntar como o poeta:

Assim se paga a um coração amante?!

-Mas, desgraçadamente, a fada que preside àquela fonte, quer mais alguma coisa ainda e me dá uma cruel missão! ordena-me que eu diga a cada uma de vós, em particular, algum segredo do fundo de vossos corações, para melhor provar os seus encantamentos. Pois bem, é preciso obedecer; qual de vós quer ser a primeira?... Eu não ouso falar alto, porque pelo jardim talvez estejam passeando alguns profanos. Qual de vós quer ser a primeira?...

Nenhuma se moveu.

-Será preciso que eu escolha? continuou o tagarela. Escolherei... Iluminai-me, boa fada! Quem será?... Será... a... Sra. D. Gabriela.

-Eu?! respondeu a menina, recuando.

-A senhora mesma, disse Augusto, trazendo-a pela mão para junto da fonte; vinde, senhora, para bem perto do lugar encantado; agora silêncio... ouvi.

-Ele está mangando conosco, murmurou D. Clementina.

Augusto já estava falando em voz baixa a D. Gabriela.

-Vós, senhora, ainda não amastes a pessoa alguma; para vós amor não existe: é um sonho apenas; só olhais como real a galanteria; vós quereis zombar de mim, porque vos protestei os mesmos sentimentos que havia protestado a mais três companheiras vossas e, todavia, estais incursa em igual delito, pois só por cartas vos correspondeis com cinco mancebos.

-Senhor!...

-Oh! Não vos impacienteis; quereis provas?... Há quatro dias, uma vendedeira de empadas, que se encarrega de vossas cartas, enganou-se na entrega de duas; trocou-as e deu, se bem me lembra a fada, a de lacre azul ao Sr. Juca e a de lacre verde ao Sr. Joãozinho.

-Ora... ora, senhor! Quem lhe contou essas invenções?

-A fada! E fez mais ainda. Vós não achareis em vosso álbum o escrito desesperado do Sr. Joãozinho, que vos foi entregue no momento de vossa partida para esta ilha; sou eu que o tenho, a fada mo deu há pouco com sua mão invisível.

-Impossível! balbuciou D. Gabriela, recorrendo ao seu álbum.

Ela não podia encontrar o escrito.

-Sr. Augusto, disse então, toda vergonha e acanhamento; eu lho rogo que me dê esse papel.

-Pois não quereis ouvir mais nada?...

-Basta o que tenho ouvido e que não posso bem compreender; mas dê-me o que lhe pedi.

-Daqui a pouco, senhora, na hora de minha partida para a Corte, porém, com uma condição.

-Pode dizê-la.

-Sois sobremaneira delicada, senhora; este excesso vos deve ser nocivo; quereis fazer-me o obséquio de ir descansar e dar-me a honra de aceitar a minha mão até à porta da gruta?...

-Com muito prazer.

Então os dois se dirigiram para fora; passando junto das três companheiras, D. Gabriela pôde apenas dizer-lhes:

-Até logo.

Chegando à porta, Augusto falou já em outro tom:

-Minha senhora, espero que me faça a justiça de crer que fico extremamente penalizado por não poder dilatar por mais tempo a glória de acompanhá-la; mas sabe o que ainda tenho de fazer.

-Obrigada, respondeu D. Gabriela, não poupe as outras.

Não é possível bem descrever a admiração das três.

Augusto chegou-se a D. Quinquina, e tomando-lhe a mão, disse:

-Minha senhora, é chegada vossa vez.

D. Quinquina deixou-se levar para junto da fonte; as moças tinham perdido toda a força; o que diante delas se passava pedia uma explicação que não estava ao seu alcance dar. Augusto começou:

-Senhora, eu poderia dizer-vos, pelo que me conta a boa fada, que vós sois como as outras de vossa idade, tão volúveis como eu; mas para tal saber não precisava eu beber da água encantada; podia também gastar meia hora em falar-vos do vosso galanteio com um tenente da Guarda Nacional, por nome Gusmão...

-Senhor!...

-Por nome Gusmão, que leva o seu despotismo amoroso ao ponto de exigir que não valseis, que não tomeis sorvetes, que não deis dominus tecum quando ao pé de vós espirrar algum moço e que não vos riais quando ele estiver sério.

-Quem lhe disse isso, senhor?...

-A fada, senhora; e ainda me disse mais: por exemplo, contou-me que no baile desta noite, passeando com um velho militar, vós recebestes da mão dele um lindo cravo e a seus olhos o escondestes, com gesto apaixonado, no palpitante seio; mas daí a um quarto de hora essa mesma flor, tão ternamente aceita, deveria ir parar no bolso de um belo jovem, chamado Lúcio, se acaso não fosse roubada pela fada que preside esta fonte.

-Eu não entendo nada do que o senhor está dizendo... isso não é comigo.

-Eu me explico: o Sr. Lúcio viu ser dado e recebido o presente e, fingindo-se zeloso, vos pediu esse cravo, muito notável, porque, além da flor aberta, havia sete flores em botão. Ora, dizei, não é verdade? Pois o Sr. Lúcio queria esse cravo, mas vós lho não podíeis dar, porque o velho militar não tirava os olhos de vós; ora, conversando com o Sr. Lúcio, acordastes ambos que ele iria esperar um instante no jardim e que um pequeno escravo, por nome Tobias, lhe levaria a flor; e como o tal Tobias ainda não conhecia o Sr. Lúcio, este lhe daria por senha as seguintes palavras: sete botões; não foi assim?

D. Quinquina guardou silêncio; tudo era verdade; ela estava cor de nácar. Augusto prosseguiu:

-Isto se passou estando vós na grande varanda, sentados em um banco e com as costas voltadas para uma janela da sala do jogo; ora, a fada esteve recostada a essa janela, ouviu quanto dissestes e, como lhe é dado tomar todas as figuras, tomou a de moço, foi ao jardim, e quando viu o Tobias, disse sete botões; e o cravo foi logo da fada e é agora meu, ei-lo aqui!...

-Isto é uma invenção; eu não conheço essa flor.

-Bem! então consentireis que eu a traga esta manhã no meu peito?... Se não confessais, eu a mostrarei... O senhor coronel ainda se não retirou e...

-Perdoe-me, balbuciou, enfim, D. Quinquina, deixando cair uma lágrima na mão de Augusto. Dê-me esse maldito cravo.

-Eu vo-lo darei na hora de minha partida, senhora, porém, ouvi mais.

-Basta.

-Pois bem, basta; mas eu vejo que vossa face está umedecida; seria uma lágrima se o relento da noite não molhasse também a rosa. Quereis descansar, sem dúvida; poderei gozar o prazer de conduzir-vos até à porta da gruta?...

-Sim, senhor.

Duas guerreiras tinham sido batidas; só a curiosidade retinha as outras: Augusto se chegou para elas e falou a D. Clementina:

-Agora nós, senhora.

Ela deixou-se levar pela mão até junto da fonte, e o estudante começou:

-Quereis fatos de anteontem ou da noite passada, senhora?

-Eu não entendo o que o senhor quer dizer.

-Pergunto, senhora, se vos dá gosto que eu vos repita o que convosco se passou, quando tomáveis um sorvete ao lado de um jovem de cabelos negros... o que convosco conversou o meu colega Filipe, quando tomáveis chá?

-Eu não preciso saber nada disso.

-Então dir-vos-ei o que mais vos interessa, sossegarei mesmo os vossos cuidados e os do Sr. Filipe, a respeito da perda de certo objeto...

-Sr. Augusto!...

-Senhora, foi a fada desta misteriosa fonte quem vos roubou um precioso embrulho que continha uma trança de vossos cabelos e que deveria ser achado embaixo da quarta roseira da rua que vai ter ao caramanchão, e essa trança pára, hoje, em minhas mãos, ei-la aqui...

-Oh! Dê-ma.

-Não preferis antes que eu a entregue ao feliz para quem a destináveis?

-Não, eu lhe peço que ma dê.

-Eu estou pronto a obedecer-vos, senhora, mas só na hora de minha partida. Vós quatro queríeis zombar de mim; não concebo até onde iria a vossa vingança; preciso de reféns que assegurem a paz entre nós; estes são meus; quereis saber mais alguma coisa?

-Eu já sei que o senhor sabe demais!

-Então...

-Quer, como as duas primeiras, oferecer-me a mão e obrigar-me a desamparar o campo?

-Venceu, senhor, e sou eu que lhe peço que me acompanhe até à porta da gruta.

-Eu estou pronto, senhoras, para servir-vo em tudo.

Só restava D. Joaninha, era a vez dela.

-Eu vos deixei para o fim, disse Augusto, porque a vós é que eu mais admiro, porque vós sois exatamente a única dentre elas que tem amado melhor e que mais infeliz tem sido, eu vos explicarei isto. Sois, todavia, um pouco excessiva em exigências...

-Que quer dizer, Sr. Augusto?

-Que quereis muito, quando ordenais a um estudante que vos escreva quatro vezes por semana, pelo menos; que passe por defronte de vossa casa quatro vezes por dia; que vá a miúdo ao teatro e aos bailes que freqüentais, e até que não fume charutos de Havana nem de Manilha, por ser falta de patriotismo.

-Quem lhe disse isso, senhor!?

-A fada, senhora, que sabe que amais a um moço, a quem dais a honra de chamar querido primo.

-É uma vil traição!

-Exatamente diz o mesmo a nossa boa fada, e ainda mais, senhora: quer que eu vos aconselhe a que desprezeis esse jovem infiel, que não sabe pagar o vosso amor: eu poderia dar-vos provas...

-Não as tenho eu bastante, exclamou D. Joaninha com sentimento, quando lhe ouço repetir o que deveria ser sabido dele e de mim somente?

Augusto ia falar; ela o interrompeu.

-Senhor, eu agradeço o benefício que recebi; o senhor quis zombar de mim, como das outras, mas não o fez; ao contrário, atalhou em princípio uma grande enfermidade, que, talvez, fosse daqui a pouco tempo incurável! Eu galanteio também às vezes, porém, sei amar até o extremo. Adeus, senhor! eu posso apenas agradecer-lhe, dizendo que tenho tanta confiança na sua discrição e no seu caráter, que nem mesmo lhe recomendo o cuidado do meu segredo.

D. Joaninha ia deixar a gruta; Augusto lhe ofereceu o braço.

-Agradecida, disse ela; permita que eu entre só em casa.

Augusto ficou só. Esteve alguns momentos lembrando-se da cena que acabava de ter lugar; finalmente disse, soltando uma risada:

-Vieram buscar lã e saíram tosquiadas!

E já estava para pôr o pé fora da gruta, quando uma voz branda e sonora o suspendeu, dizendo:

-Agora, Sr. Augusto, é chegada a sua vez...

Achou quem o tosquiasse

Escutando aquelas inesperadas palavras que o chamavam para a mesma posição em que ele tinha colocado as quatro moças, Augusto voltou-se de repente e viu no fundo da gruta a interessante Moreninha, que enchia o copo de prata.

-Minha senhora!... balbuciou o estudante, confuso.

D. Carolina respondeu-lhe primeiro com o seu costumado sorriso, e depois assim:

-Não se dirá que um homem zombou impunemente de quatro senhoras; uma outra toma o cuidado de vingá-las. Sr. estudante, eu também sou adepta ao culto desta fada e vou invocá-la em meu auxílio.

A menina travessa bebeu em seguida a estas palavras o seu copo d'água e depois, imitando o estilo de Augusto, que se achava junto dela, disse:

-Quereis que vos fale do passado, do presente ou do futuro?

-De todas essas épocas... ao menos para ouvir por mais tempo os vaticínios e palavras de tão amável Sibila.

-Pois então principiemos pelo passado. Oh! que belas revelações me fez a fada! Sim, eu estou lendo no livro da vossa vida, estou vendo tudo, estou dentro do vosso espírito e de vosso coração!

-Oh! Sim, eu juro que isso é verdade, atalhou o estudante.

A menina fingiu não entender a alusão e continuou:

-Senhor, vós amastes muito cedo... creio... sim, foi de idade de treze anos.

Augusto recuou um passo; ela prosseguiu:

-Amastes, sim, a uma menina de sete anos, com quem brincastes à borda do mar.

-E quem era ela? Como se chamava? perguntou Augusto com fogo, talvez pensando que D. Carolina estava, com efeito, adivinhando e podia dizer-lhe o que ele mesmo ignorava.

-Posso eu sabê-lo? respondeu a Moreninha; a fada só me diz o que se passou em vosso coração e vós, por certo, que também não sabeis quem era essa menina e só a conheceis pelo nome de minha mulher.

-Prossiga, minha senhora!

-Poderia eu contar-vos uma longa história de velho moribundo, esmeralda, camafeu, mas basta de vossa mulher; permiti que vos diga que mostrava ser uma criança doidinha, que cedo começava a fazer loucuras.

-Que cruel juízo!

-Oh! Não vos agasteis; eu a respeito também, em atenção a vós, porém, vamos acabar com o vosso passado. Houve um tempo em que quisestes figurar entre os amigos como galanteador de damas, e por justo e bem merecido castigo fostes desgraçado: todas elas zombaram de vós!

E a menina interrompeu-se, para rir-se da cara que fazia Augusto.

-Ora, por esta não esperava eu, disse o estudante.

-A primeira jovem que reqüestastes foi uma moreninha de dezesseis anos, que jurou-vos gratidão e ternura, e casou-se oito dias depois com um velho de sessenta anos! não foi assim?

E a menina, de novo, desatou a rir.

-Minha senhora, de que gosta tanto?

-Ora! É que a fada está-me dizendo que ainda em cima vossos amigos, quando souberam de tal, deram-vos uma roda de cacholetas!

-Então a Sra. D. Ana lhe contou tudo isso?

-Juro-vos, senhor, que minha avó não me fala em semelhantes objetos. Consenti que eu continue. A segunda foi uma jovem coradinha, a quem em uma noite ouvistes dizer num baile que éreis um pobre menino com quem ela se divertia nas horas vagas, não foi assim?

-Prossiga, minha senhora.

-A terceira foi uma moça pálida, que zombou solenemente, tanto de um primo que tinha, como de vós. Eis alguns de vossos principais galanteios. Exasperado com o infeliz resultado deles e vivamente tocado das leras e da música de certo lundu que se vos cantou, tomastes outro partido e desde então vós pretendeis fazer-vos passar por borboleta de amor.

-Borboleta?!... Sim... sim... lembro-me agora que a senhora passeava pelo jardim. Já sei de quem foram certas carreirinhas e, portanto, compreendo que sabeis tudo à custa...

-À custa da fada, senhor, e escuso estender-me mais, porque vós estais bem certo de que eu devo saber ainda muito.

-Sim, mas diga sempre.

-Não, antes quero falar-vos do vosso presente.

-Pelo amor de seus belos olhos, minha senhora, vamos antes ao que eu não sei, vamos ao meu futuro.

-Sois sobejamente sôfrego! Não vedes como isso vai contra a boa ordem da narração?

-Mas a desordem é hoje a moda! O belo está no desconcerto; o sublime no que se não entende; o feio é só o que podemos compreender: isto é romântico; queira ser romântica, vamos ao meu futuro.

-Pois bem, vamos ao vosso futuro. Principiarei, como pretendia fazer, se falasse do presente de vossa vida, dizendo-vos que vós não sois inconstante como afetais.

-Misericórdia!

-Mas que estais a ponto de o ser: digo-vos que perdereis uma certa aposta que fizestes com três estudantes.

-Como é isso? Então a senhora sabe...

-A fada, que me revelou isso, leu a termo na carteira de quem o guardou.

-A fada? Sim, a feiticeira o leu... Compreendo.

-Vós não sois inconstante, porque tendes até hoje cultivado com religioso empenho o amor de vossa mulher; mas vós ides ser, porque não longe está o dia em que a esquecereis por outra.

-A culpa será dos olhos dessa outra; porém, quem sabe?...

-Desejo que não; contudo, eu já vos vejo em princípio e temo que vades ao fim; sereis perjuro, tereis de escrever um romance e perdoai-me se vos desejo este mal: eu quisera que ao pé de meu irmão, que vos apresentará o termo da aposta, aparecesse a vossos olhos a mulher traída. Do vosso futuro eis quanto me disse a fada.

-E disse bastante para me confundir.

-Quereis que vos fale agora de vosso presente?

-Oh, se quero! No presente está a minha glória.

-Ontem, no baile, dissestes palavras de ternura pelo menos a seis senhoras.

-Esta agora é melhor! e quem o pôde notar?

-Provavelmente a fada vos observava.

-Então a fada, a feiticeira fazia isso?

-Depois do baile puseram-vos duas cartas no bolso.

-Que mãos delicadas...

-Não mo sabe dizer a fada; porém, vós viestes para esta gruta acudindo a um convite e fingistes adivinhar segredos de corações. Não era verdade: a fada nada vos revelou; o que dissestes sabíeis antes e a fada me disse como.

-Explique-me, pois, minha senhora.

-Quando involuntariamente fui causa de vos entornarem café nas calças, vós fostes mudar de roupa e entrastes para o gabinete das senhoras; lá ouvistes tudo o que afetastes adivinhar há pouco.

-E quem me viu entrar?

-A fada, sem dúvida. O cravo de D. Quinquina fostes vós que recebestes no jardim; na noite dos jogos de prendas, fostes vós ainda quem, com uma luz na mão, procurou e achou a trança de cabelos de D. Clementina, embaixo da quarta roseira da rua que vai para o caramanchão.

-Mas quem observou o que eu fiz às escondidas e com tanto cuidado?

-A fada, que, segundo penso, vos tem sempre seguido com os olhos.

-A fada?!... A feiticeira me segue sempre com os olhos?!... Oh! como sou feliz!... A feiticeira é a senhora!

-Senhor! Sois pouco modesto; que me importariam vossos passos e vossas ações?...

-Perdão! Perdão!... Eu sou um tresloucado... um incivil... um doido... não sei o que faço, nem o que digo; mas continue...

-Basta! Vós duvidastes da fada e por isso eu termino aqui.

-Não! Não, minha senhora! É preciso dizer-me mais alguma cousa ainda!... Por força a fada lhe deveria ter revelado! ela, que adivinha tudo o que está dentro do meu coração, digo o que ainda se passa nele.

-Nada mais de disse.

-Beba outro copo d'água...

-Não julgo necessário.

-Pois então...

-Cumpre retirar-me.

-Não, por certo! perdoe-me minha senhora, mas eu devo descobrir todos os meus segredos a quem conhece tão boa parte deles.

-Eu me contento com o pouco que sei.

-Ouça uma só palavra...

-Não sou curiosa.

-Pois a senhora...

-Sei que sou senhora, mas sou exceção de regra; não quero saber.

-Embora, eu lhe direi ainda contra a vontade...

-E para isso toma-me a saída?...

-É só para dizer que eu amo...

-Já sei, a sua mulher.

-Não é isso: a uma bela moça...

-Ela o deve ser agora.

-Muito espirituosa...

-Já ela o era em criança.

-E que se chama...

-Ah! Espreitam-nos da entrada da gruta?

Augusto correu a examinar quem era a indiscreta testemunha; não aparecia pessoa alguma; compreendeu então que fora ainda um meio de que se lembrara D. Carolina para não deixá-lo concluir sua declaração e, disposto a lançar-se aos pés da menina, voltou-se já com o nome da bela nos lábios e...

D. Carolina tinha desaparecido da gruta.

Entremos nos corações

O que é bom dura pouco. As festas estão acabadas; nossas belas conhecidas bordam; nossos alegres estudantes estão de livro na mão. Mas, pelo que toca a estes, qual é, digam-me, qual é o estudante que, depois de uma patuscada de tom, não fica por oito dias incapaz de compreender a mais insignificante lição? Isto sucede assim; essa pobre gente vê, por toda a parte, e misturando-se com todos os pensamentos, no livro em que estuda, nas estampas que observa, na dissertação que escreve, o baile, as moças e os prazeres que apreciou.

O nosso Augusto, por exemplo, está agora bronco para as lições e impertinente com tudo. Rafael é quem paga o pato; se o inocente moleque lhe apronta o chá muito cedo, apanha meia dúzia de bolos, porque quer ir vadiar pelas ruas; se no dia seguinte se demora só dez minutos, leva dois pescoções, para andar mais ligeiro. Não há, enfim, cousa alguma que possa contentar o Sr. Augusto; está aborrecido da Medicina, tem feito duas gazetas na aula; de ministerial que era, passou-se para a oposição; não quer mais ser assinante de periódicos, não há para seus olhos lugar nenhum bonito no mundo; aborrece a Corte, detesta a roça e só gosta das ilhas.

Deveremos fazer-lhe uma visita; ele está em seu gabinete e um pouco menos carrancudo, porque Leopoldo, o seu amigo do coração, o acompanha e tem a paciência de lhe estar ouvindo, pela duodécima vez, a narração do que com ele se passou na ilha de...

Segundo parece, Augusto acaba de relatar o que ocorreu na gruta, entre ele e a bela Moreninha, porque Leopoldo lhe perguntou:

-E por onde fugiria ela?...

-Por uma difícil saída que eu não havia observado, respondeu Augusto, e que exatamente se praticava no fundo da gruta.

-Que diabinho de menina!

-Quanto mais se tu notasses a graça e malícia com que ela, quando eu entrei na sala, me perguntou sossegadamente: «Esteve dormindo na gruta, Sr. Augusto?...»

-Então ela gostou da tua semideclaração?!...

-Não... não... se ela tivesse gostado, não me fugiria.

-Ora, é boa! Não devia fazer outra coisa.

-Se ela gostasse de mim!... Mas, por que me não deu um só sinal de ternura?... Também eu, às vezes, tão adiantado, fui desta um tolo, um basbaque! tremi diante de uma criança que não tem quinze anos e não soube dizer duas palavras.

-Estás doido, Augusto, e doido varrido; acredita que D. Carolina foi mais sensível aos teus cumprimentos que aos de nenhum outro, e se não, dize por que se não deixou ela dormir, como as outras senhoras, e foi à hora de tua partida passear pela praia e ver-te embarcar?... Por que ficou ali passeando até desaparecer o teu batelão?...

-Isto não significa nada.

-Ora, ature-se um namorado!... Mas venha cá, Sr. Augusto, então como é isso?... Estamos realmente apaixonados?!

-Quem te disse semelhante asneira?...

-Há três dias que não falas senão na irmã de Filipe e...

-Ora, viva! Quero divertir-me... digo-te que a acho feia, não é lá essas coisas; parece ter mau gênio. Realmente notei-lhe muitos defeitos... sim... mas, às vezes... Olha, Leopoldo, quando ela fala ou mesmo quando está calada, ainda melhor; quando ela dança ou mesmo quando está sentada... ah! ela rindo-se... e até mesmo séria... quando ela canta ou toca ou brinca ou corre, com os cabelos à négligé, ou divididos em belas tranças; quando... Para que dizer mais? Sempre, Leopoldo, sempre ela é bela, formosa, encantadora, angélica!

-Então, que história é essa? Acabas divinizando a mesma pessoa que, principiando, chamaste feia?...

-Pois eu disse que ela era feia? É verdade que eu... no princípio... Mas depois... Ora! Estou com dores de cabeça, este maldito Velpeau!... Que lição temos amanhã?

-Tratar-se-á das apresentações de...

-Temos maçada! Quem te perguntou por isso agora? Falemos de D. Carolina, do baile, do...

-Eis aí outra! Não acabaste de perguntar-me qual era a lição de amanhã?

-Eu? Pode ser... Esta minha cabeça!...

-Não é a tua cabeça, Augusto, é o teu coração.

Houve um momento de silêncio. Augusto abriu um livro e fechou-o logo; depois tomou rapé, passeou pelo quarto duas ou três vezes e, finalmente, veio de novo sentar-se junto de Leopoldo.

-É verdade, disse; não é a minha cabeça: a causa está no coração. Leopoldo, tenho tido pejo de te confessar, porém não posso mais esconder estes sentimentos que eu penso que são segredos e que todo o mundo mos lê nos olhos! Leopoldo, aquela menina que aborreci no primeiro instante, que julguei insuportável e logo depois espirituosa, que daí a algumas horas comecei a achar bonita, no curto trato de um dia, ou melhor ainda, em alguns minutos de uma cena de amor e piedade, em que a vi de joelhos banhando os pés de sua ama, plantou no meu coração um domínio forte, um sentimento filho da admiração, talvez, mas sentimento que é novo para mim, que não sei como o chame, porque o amor é um nome muito frio para que o pudesse exprimir!... Eu a mim não conheço... não sei onde irá isto parar... Eu amo! Ardo! Morro!

-Modera-te, Augusto, acalma-te, não é graça; olha que estás vermelho como um pimentão.

-Oh! Tudo naquela ilha fatal se assanhou para enfeitiçar-me, tudo, até a própria mentira.

-E tu acreditaste muito nessa senhora?...

-Escuta, Leopoldo: uma vez que com a avó de Filipe conversava na gruta, eu fatigado e sequioso, bebi um copo d'água da fonte do rochedo; então, a nossa boa hóspeda contou-me uma fabulosa e singular tradição daquela fonte. A água dizia-se milagrosa e quem bebesse dela não sairia da ilha sem amar algum de seus habitantes. Eis aqui, pois, uma mentira, mas uma mentira que excitou a minha imaginação; uma mentira que me perseguiu lá dois dias e que me persegue ainda hoje; uma mentira, enfim, que se transformou em verdade, porque eu bebi daquela água e não pude deixar a ilha sem amar, e muito, um de seus habitantes...

-Deveras que isso não deixa de ser interessante. Mas que efeito esperas tu que provenha de toda essa moxinifada?

-Que efeito?... O... amor...

-Amor?... Amor não é efeito, nem causa, nem princípio, nem fim, e é tudo, tudo isso ao mesmo tempo; é uma coisa que... sim... finalmente, para encurtar razões, amor é o diabo... Dize-me, pois, sinceramente falando, qual o resultado que pensas tirar de tudo isso que me contaste.

-Que resultado?... O... amor...

-E ele a dar-me com o maldito amor! Augusto, falemos sério; essa tua exaltação estava muito em ordem num moço que quisesse desposar D. Carolina; porém tu nem cuidas em casamento nem, se tal pensasses, te lembrarias, roceiro como és, de escolher para mulher uma menina que foi criada, educada e pode-se dizer que mora na Corte.

-Esta agora não é má!... Deveras que ainda não me passou pela mente a idéia do casamento, nem chegará a tal ponto minha loucura; mas suponhamos o contrário disto: que mal tu achas em que um roceiro se case com uma moça da cidade?...

-Que mal?... Ora, escuta: devendo ir morar na roça, a moça tem, necessariamente, de mudar de costumes e de vida; compreende, pois, quanto atormentará o coração do pobre marido à vista dos dissabores e contrariedades que sofrerá na solidão e monotonia campestre a senhora amamentada no seio dos prazeres e festins da Corte!... Quanto devem entristecer os suspiros e saudades de que serás testemunha, quando a amada companheira recordar-se de sua família, de suas amigas, do teatro, do passeio, dessa cadeia de delícias, enfim, que, a pesar dela a ligará ainda a seu passado!...

-Oh! Não, não, Leopoldo, se o marido for amado por ela!... Quando se ama deveras e se está com o objeto do amor, não se recorda, não se deseja, não se quer mais nada!...

-Tu falas em amor, Augusto?... Ainda bem que somos ambos estudantes da roça e posso dizer-te agora o que entendo, sem medo de ofender a susceptibilidade de cortesão algum. Pois ainda não observaste que o verdadeiro amor não se dá muito com os ares da cidade?... Que por natureza e hábito, as nossas roceiras são mais constantes que as cidadoas?... Olha, aqui encontramos nas moças mais espírito, mais jovialidade, graça e prendas, porém, nelas não acharemos nem mais beleza, nem tanta constância. Estudemos as duas vidas. A moça da Corte cresce e vive comovida sempre por sensações novas e brilhantes, por objetos que se multiplicam e se renovam a todo o momento, por prazeres e distrações que se precipitam; ainda contra a vontade, tudo a obriga a ser volúvel: se chega à janela um instante só, que variedade de sensações! seus olhos têm de saltar da carruagem para o cavaleiro, da senhora que passa para o menino que brinca, do séquito do casamento para o acompanhamento do enterro! Sua alma tem de sentir ao mesmo tempo o grito de dor e a risada de prazer, os lamentos, os brados de alegria e o ruído do povo; depois, tem o baile com sua atmosfera de lisonjas e mentiras, onde ela se acostuma a fingir o que não sente, a ouvir frases de amor a todas as horas, a mudar de galanteador em cada contradança. Depois, tem o teatro, onde cem óculos fitos em seu rosto parecem estar dizendo -és bela! e assim enchendo-a de orgulho e muitas vezes de vaidade; finalmente, ela se faz por força e por costume tão inconstante como a sociedade em que vive, tão mudável como a moda dos vestidos. Queres agora ver o que se passa com a moça da roça?...

Ali ela está na solidão de seus campos, talvez menos alegre, porém, certamente, mais livre; sua alma é todos os dias tocada dos mesmos objetos; ao romper d'alva, é sempre e só aurora que bruxuleia no horizonte; durante o dia, são sempre os mesmos prados, os mesmos bosques e árvores; de tarde, sempre o mesmo gado que se vem recolhendo ao curral; à noite, sempre a mesma lua que prateia seus raios na lisa superfície do lago. Assim, ela se acostuma a ver e amar um único objeto; seu espírito, quando concebe uma idéia, não a deixa mais, abraça-a, anima-a, vive eterno com ela; sua alma, quando chega a amar, é para nunca mais esquecer, é para viver e morrer por aquele que ama. Isto é assim, Augusto; considera que é lá em nosso campos que mais brilham esses sentimentos, que são a mesma vida e que não podem acabar senão com ela!...

-Como estás exagerado, Leopoldo! juraria que desejas casar com alguma moça da roça!

-Oh!... se esse desejo me dominar, certamente que o satisfarei com uma das muitas cachopinhas de minha terra.

-Eu logo vi que nos teus raciocínios e observações andava o gênio da prevenção; escuso-me, porém, de responder-te, pois que falaste em geral e desse modo concedes...

-Que há muitas exceções, sem dúvida?

-Bom! quando não, tu me forçarias a tomar a palavra para defender a linda Moreninha, que tanto me cativa?

-Então, Augusto, teremos, porventura, um romance?

-Que romance?

-Perderás a aposta e ao completar-se o mês...

-Daqui até lá... se eu pudesse esquecê-la!... Mas aquela menina não é como as outras: é uma tentação... um diabinho...

-Quando, pois, começas a escrever?

-Estás tolo... respondeu Augusto, tomando por um momento seu antigo bom humor; eu ainda pretendo nestes quinze dias mudar de amor três vezes.

Basta, porém, de estudantes. Já temos ouvido bastante o nosso Augusto e demorar-nos mais tempo em seu gabinete fora querer escutar ainda as mesmas coisas: porque o tal mocinho, que quer campar de beija-flor, parece que caiu no visco dos olhos e graças da jovem beleza da ilha de... e está sinceramente enamorado dela; ora, todos sabem que os amantes têm um prazer indizível em matrequear os ouvidos dos que os atendem com uma história muito comprida e mil vezes repetida que, reduzindo-se à expressão mais simples, ficaria em zero ou, quando muito, nos seguintes termos: «eu olhei e ela olhou; eu lhe disse - pode ser, não pode ser». Deixemos, portanto, o senhor Augusto entregue a seus cuidados de moço, e tanto mais que já conhecemos o estado em que se acha. Vamos agora entrar no coraçãozinho de um ente bem amável, que não tem, como aquele, uma pessoa a quem confie suas penas, e por isso sofre talvez mais. Faremos uma visita à nossa linda Moreninha.

Também suas modificações têm aparecido no caráter de D. Carolina, depois dos festejos de Sant'Ana. Antes deles, era essa interessante jovenzinha o prazer da ilha de... Irreconciliável inimiga da tristeza, ela ignorava o que era estar melancólica dez minutos e praticava o despotismo de não consentir que alguém o estivesse; junto dela, por força ou vontade, tudo tinha que respirar alegria; sabia tirar partido de todas as circunstâncias para fazer rir, e, boa, afável e carinhosa para com todos, amoldava os corações à sua vontade; o ídolo, o delírio de quantos a praticavam, era ela a vida daquele lugar e empunhava com as suas graças o cetro do prazer. Hoje suas maneiras são outras; e, enquanto suas músicas se empoeiram, seu piano passa dias inteiros fechado, suas bonecas não mudam de vestido, ela vaga solitária pela praia, perdendo seus belos olhares na vastidão do mar, ou, sentada no banco de relva da gruta, descansa a cabeça em sua mão e pensa... Em quê?... Quais serão os solitários pensamentos de uma menina de menos de quinze anos?... E às vezes suspira... um suspiro?... Eis o que é já um pouco explicativo.

Assim como o grito tem o eco, a flor o aroma e a dor o gemido, tem o amor o suspiro; ah! o amor é demoninho que não pede para entrar no coração da gente e, hóspede quase sempre importuno, por pior trato que se lhe dê, não desconfia, não se despede, vai-se colocando e deixando ficar, sem vergonha nenhuma, faz-se dono da casa alheia, toma conta de todas as ações, leva o seu domínio muito cedo aos olhos, e às vezes dá tais saltos no coração, que chega a ir encarapitar-se no juízo; e então, adeus minhas encomendas!...

Pois muito bem, parece que a tal tentação anda fazendo pelóticas no peito da nossa cara menina; também não há moléstia de mais fácil diagnóstico. Uma mocinha que não tem cuidados, com quem a mamãe não é impertinente, que não sabe dizer onde lhe dói, que não quer que se chame médico, que suspira sem ter flatos, que não vê o que olha, que acha todo o guisado mal temperado, é porque já ama; portanto, D. Carolina ama, mas... a quem?!...

Ah! Sr. Augusto! Sr. Augusto! A culpa é toda sua, sem dúvida. Esta bela menina, acostumada desde as faixas a exercer um poder absoluto sobre todos os que a cercam, não pôde ouvir o estudante vangloriar-se de não ter encontrado ainda uma mulher que o cativasse deveras, sem sentir o mais vivo desejo de reduzi-lo a obediente escravo de seus caprichos; ela pôs então em ação todo o poder de suas graças, ideou mesmo um plano de ataque, estudou a natureza e os fracos do inimigo; observou; bateu-se: o combate foi fatal a ambos, talvez, e no fim dele a orgulhosa guerreira apalpou o seu coração e sentiu que nele havia penetrado um dardo; consultou a sua consciência e ouviu que ela respondia; se venceste também estás vencida!

Com efeito, D. Carolina ama o feliz estudante, e uma mistura de saudades e de temor da inconstância do seu amado é provavelmente a causa de sua tristeza; ajunte-se a isto a novidade e os cuidados de um amor nascente e primeiro, o incômodo de um sentimento novo, inexplicável, que lhe enchia o inocente coração e ver-se-á que ela tem suas razões para andar melancólica.

E, portanto, toda a família está assaltada do mesmo mal; há na ilha uma epidemia de mau humor que tem chegado a todos, desde a Sra. D. Ana até à última escrava. Além de quanto se acaba de expor, acresce que Filipe se deixou ficar na cidade a semana inteira, sem querer dispensar uma só tarde para vir visitar sua querida avó e a tão bonita maninha.

Eis, porém, o que se chama acusação injusta. Diz o ditado que: -falai no mau, aprontai o pau! Filipe estava esperando pelo dia de sábado para aproveitar o domingo todo no seio de sua família; ei-lo aí que recebe a bênção de sua avó e beija a fronte de sua irmã.

-Pensei, disse aquela, que não queria mais ver-nos!

-E quase que deixei a viagem para amanhã, minha boa avó.

-O ingrato ainda o diz... ouves, Carolina?... Então por quê?...

-Para vir na companhia de Augusto, que deve passar o dia conosco.

Estas palavras tiveram poder elétrico; D. Carolina, para ocultar a perturbação que a agitava, correu a esconder-se em seu quarto.

Lá, bem às escondidas, ela derramou uma lágrima: doce lágrima... era de prazer.

Primeiro domingo: Ele marca

Augusto madrugou, e muito; quando a aurora começou a aparecer, já ele havia vencido meia viagem e seu desejo era ir acordar na ilha de..., uma pessoa que tinha o mau costume de dormir até alto dia; por isso instava com os seus remeiros para que forcejassem; e, enquanto seu batelão se deslizava pelas águas, rápido como uma flecha pelos ares, ele o acusava de pesado, de vagoroso; tinha há muito descoberto a ilha de... e; os objetos foram pouco a pouco se tornando mais e mais distintos; viu a casa, viu o rochedo em que outrora a tamoia deveria ter cantado seus amores e de sobre o qual cantara, há oito dias, D. Carolina a sua balada; depois distinguiu sobre esse rochedo negro um ponto, um objeto branco, que foi crescendo, sempre crescendo, que enfim lhe pareceu uma figura de mulher, que ostentava a alvura de seus vestidos. Depois ele tinha desviado um pouco os olhos; quando os voltou de novo para o rochedo, a figura branca havia desaparecido como um sonho.

Enfim o batelão abordou a ilha de...; Augusto correu a casa de que tantas saudades sofrera; todos já se tinham levantado; ninguém dormia, D. Carolina estava vestida de branco.

-Eu lhe agradeço bem, Sr. Augusto, disse a Sra. D. Ana, depois dos primeiros cumprimentos; eu lhe agradeço a sua boa visita; nós temos passado oito dias de nojo, e foi preciso que Filipe nos trouxesse a notícia de sua vinda, para reviver nossa antiga alegria; Carolina, por exemplo, desde ontem à noite já tem estado sofrivelmente travessa.

-Eu, minha avó, sempre tive fama de desinquieta e prazenteira; e se ontem me adiantei, foi porque chegou-me um companheiro para traquinar comigo.

-Não o negues, menina; tens estado melancólica e abatida toda esta semana; eram saudades da agradável companhia que tivemos. Que eram saudades conheci eu pelos suspiros que soltavas e também não vai mal nenhum em confessá-lo.

D. Carolina voltou o rosto. Augusto arregalou os olhos e sentiu que a ventura lhe inundava o coração.

-O mesmo por lá nos sucedeu, disse Filipe tomando a palavra; estivemos todos carrancudos e, seja dito em amor da verdade, Augusto, mais do que nenhum outro, gostou de nosso trato e nossa companhia; realmente foi ele que o mostrou sofrer maiores saudades.

-É verdade, Sr. Augusto? perguntou a boa hóspeda.

-Minha senhora, a visita que vim ter o gosto de fazer é a melhor resposta que lhe posso dar.

D. Carolina tinha os olhos em um livro de música, mas seus ouvidos e sua atenção pendiam dos lábios de Augusto; ouvindo as últimas palavras do estudante, ela sorriu brandamente.

-De que estás rindo, Carolina? perguntou Filipe.

-De um engraçado pedacinho da cavatina do Fígaro, no Barbeiro de Sevilla.

Então ele examinou o livro e viu que havia mentido, porque o que tinha diante de seus olhos era uma coleção de modinhas do Laforge.

Duas horas depois serviu-se o almoço. Mas, durante essas duas horas, que se passaram muito depressa, Augusto teve de agradecer as obsequiosas atenções da avó de Filipe, que dizia ter por ele notável predileção, e também de reparar com esmero e minuciosidade no objeto de seus recentes cultos. Em resultado de suas observações concluiu que D. Carolina estava bonita como dantes, porém, mais lânguida; que às vezes reparava suas indiscrições e que outras, quando mais parecia ocupar-se com seus alegres trabalhos, olhava-o furto, com uma certa expressão de receio, pejo e ardor, que a embelecia ainda mais.

Durante o almoço a conversação divagou sobre inúmeros objetos; finalmente teve de ir bulir com um pobre lencinho que estava na mão de D. Carolina, e que, se aí não estivesse, passaria desapercebido.

-Eu julgo que ele está trabalhoso e perfeitamente marcado, disse Augusto.

-É ir muito longe, respondeu a menina; aí o tem, observe-o de mais perto; repare que barafunda vai por aqui.

-Ora, eu acho tudo o melhor possível; ao muito, poder-se-ia dizer que este X foi marcado por mão de moça travessa.

-Quer dizer que foi pela minha? Adivinhou.

-Tem uma bela prenda, minha senhora.

-Que é muito comum.

-E nem por isso merece menos.

-Eu não entendo assim; aprecio bem pouco o que todo o mundo pode ter. Quem não sabe marcar?

-Eu, minha senhora.

-É porque não quer.

-É porque não posso; eu não me poderia haver com uma agulha na mão.

-Um dia de paciência lhe seria suficiente.

-Querem ver, acudiu Filipe, que minha maninha reduz Augusto a aprender a marcar!

-Então, seria isso alguma asneira?

-Não, por certo; maninha pode mesmo dar-te algumas lições.

-Nada, respondeu a menina; sou muito raivosa e à primeira linha que ele rebentasse, eu o chamaria a bolos.

-Se é uma condição que oferece, eu a aceito, minha senhora; ensine-me com palmatória.

-Veja o que diz!...

-Repito-o.

-Pois bem; palmatória não, porque, enfim, podia doer-lhe muito; mas de cada vez que eu julgar necessário, dar-lhe-ei um puxão de orelha.

-Menina! disse a Sra. D. Ana.

-Mas, minha avó, eu não estou pedindo a ele que venha aprender comigo.

-Porém podes ensinar-lhe com bons modos.

-É o que pretendo fazer.

-Ele há de aproveitar muito.

-Terá os meus elogios.

-E se por acaso errar alguma vez?

-Levará um puxão de orelha.

-Se me é permitido, disse Augusto, aceito as condições.

-Pois bem, respondeu D. Carolina, está o senhor matriculado na minha aula de marcar e daqui a uma hora principiaremos a nossa lição.

-E então ele não passeia comigo? perguntou Filipe.

-Depois da lição, respondeu a mestra, fazendo-se de grave; antes, não lhe dou licença.

Levantaram-se da mesa; algum tempo foi destinado a descansar; Filipe desafiou Augusto para uma partida de gamão e incontinenti foram travar combate na varanda; Filipe derrotou seu competidor em três jogos consecutivos; estavam no começo do quarto, quando tocou uma campainha; os dois estudantes não deram atenção a isso e continuaram: o jogo tornou-se duvidoso; qualquer dos dois podia dar ou levar gamão; Augusto acabava de lançar uns dois e ás, que desconcertaram seu antagonista, quando D. Carolina apareceu e, dirigindo-se ao seu discípulo, disse com engraçada seriedade:

-O senhor não ouviu tocar a campainha?

-Então isso era comigo?

-Sim, senhor, são horas de lição, e espero que para outra vez não me seja preciso chamá-lo.

-Aceito a admoestação, minha bela mestra, mas rogo-lhe o obséquio de consentir que termine esta partida.

-Não, senhor.

-É uma mão de honra!

-Pior está essa!

-Ora, é boa! acudiu Filipe; então quer você...

-Não tenho a dizer-lhes o que quero, nem o que não quero; são horas de lição, vamos.

-E é preciso obedecer, concluiu Augusto, levantando-se.

Daí a pouco estava tudo em via de regra; Augusto, sentado em uma banquinha aos pés de sua bela mestra, escutava, com os olhos fitos no rosto dela, as explicações necessárias. Às vezes D. Carolina não podia conservar imperturbável sua afetada gravidade e então os sorrisos da bela mestra e do aprendiz graciosamente se trocavam; ela se mostrava mais pacífica e ele menos atento do que haviam prometido, porque era já pela quarta vez que a bela mestra recomeçava suas explicações e o aprendiz cada vez a entendia menos.

Filipe apareceu na sala, pronto para ir caçar, e convidou o seu amigo para com ele partilhar do mesmo prazer. Todo o mundo adivinha que Augusto disse que não; ele poderia responder que não queria caçar, porque estava pescando, mas contentou-se com dizer:

-Minha bela mestra não dá licença.

-Tome cuidado no modo de pegar nessa agulha!... gritou ela com mau modo e sem se importar com Filipe.

-Está bem, disse este, saindo; eu não os posso aturar.

E depois acrescentou, sorrindo-se:

-Fique-se aí, Sr. Hércules, aos pés da sua bela Onfale!

-Ouviu o que ele disse? perguntou Augusto.

-Já lhe tenho repetido três vezes que não é assim que se pega na agulha.

-Ora, minha senhora...

-Ora, minha senhora!... Ora, minha senhora! Eu não sou sua senhora, sou sua mestra.

-Minha bela mestra!

-Digo-lhe que já me vai faltando a paciência. O senhor não atenta no que faz!... Já tem quatro vezes rebentado a linha e é a décima segunda que lhe cai o dedal.

-Não se exaspere, minha bela mestra, eu o vou apanhar e não cairá mais nunca.

Augusto curvou-se e ficou quase de joelhos diante de D. Carolina; ora, o dedal estava bem junto dos pés dela e o aprendiz, ao apanhá-lo, tocou, ninguém sabe se de propósito, com seus dedos em um daqueles delicados pezinhos; esse contato fez mal; a menina estremeceu toda. Augusto olhou-a admirado, os olhos de ambos se encontram e os olhos de ambos tinham fogo. Um momento se passou; o sossego se restabeleceu.

-Já não posso mais! exclamou a bela mestra; rebentou o senhor pela quinta vez a linha; não dá um ponto que preste; não há outro remédio...

E, dizendo isto, lançou uma das mãos à orelha do aprendiz, que de súbito deu um grito e acudiu com as suas. Ora, essas mãos se encontraram, debateram-se, e nesse ensejo os dedos da bela mestra foram docemente apertados pela mão do aprendiz. Novo fogo de olhares! que aproveitável lição!...

-Menina, tenha modos!... O Sr. Augusto não é criança, exclamou a Sra. D. Ana, que a dez passos cosia, e que só podia ver a exterioridade do que se passava entre a bela mestra e o aprendiz.

A lição se prolongou até ao meio-dia e mais de mil vezes se repetiu a mesma cena do encontro das mãos; D. Carolina não conseguiu puxar uma só vez a orelha do estudante e o aprendiz não perdeu uma só ocasião de apertar os dedos da mestra. Augusto se comprometeu a apresentar na primeira lição um nome marcado pela sua mão. Tudo foi às mil maravilhas.

O resto do dia se passou como se havia passado o seu princípio para Augusto e D. Carolina.

Eles não se chamaram mais por seus nomes próprios; o amor lhes tinha ensinado outros; eram: «meu aprendiz», e «minha bela mestra».

A madrugada seguinte foi triste, porque presidiu às despedidas do aprendiz e sua bela mestra, mas ainda foi bem doce, porque ambos meigamente se disseram:

-Até domingo!

Segundo domingo: brincando com Bonecas

Raiou o belo dia, que seguiu a sete outros, passados entre sonhos, saudades de esperanças. Augusto está viajando: já não é mais aquele mancebo cheio de dúvidas e temores da semana passada, é um amante que acredita ser amado e que vai, radiante de esperanças, levar à sua bela mestra a lição de marca que lhe foi passada. O prognóstico de D. Carolina, na gruta encantada, se vai verificando: Augusto está completamente esquecido da aposta que fez e do camafeu que outrora deu à sua mulher. Um bonito rosto moreninho fez olvidar todos esses episódios da vida do estudante. D. Carolina triunfa e seu orgulho de despotazinha de quantos corações conhece deveria estar altaneiro, se ela não amasse também.

Como da primeira vez, Augusto vê o dia amanhecer-lhe no mar; e, como na passada viagem, avista sobre o rochedo o objeto branco, que vai crescendo mais e mais, à medida que seu batelão se aproxima, até que distintamente conhece nele a elegante figura de uma mulher, bela por força; mas desta vez, não como da outra, essa figura se demora sobre o rochedo, não desaparece como um sonho, é uma bonita realidade, é D. Carolina que só desce dele para ir receber o feliz estudante que acaba de desembarcar.

-Minha bela mestra!...

-Meu aprendiz!... Já sei que traz nome bem marcado.

-Oh! Sempre precisarei que me queira puxar as orelhas.

-Não, eu não farei tal na lição de hoje.

-E se eu merecer?

-Talvez.

-Então errarei toda a lição.

Eles se sorriram, mas Filipe acaba de chegar e todos três vão pela avenida se dirigindo a casa.

Ter a ventura de receber o braço de uma moça bonita e a quem se ama, apreciar sobre si o doce contato de uma bem torneada mão, que tantas noites se tem sonhado beijar; roçar às vezes com o cotovelo um lugar sagrado, voluptuoso e palpitante; sentir sob sua face perfumado bafo que se esvaiu dentre os lábios virginais e nacarados, cujo sorrir se considera um favor do céu; o apanhar o leque que escapa da mão que estremeceu, tudo isso... mas para que divagações? Que mancebo há aí, de dezesseis anos por diante, que não tenha experimentado esses doces enleios, tão leves para a reflexão e tão graves e apreciáveis para a imaginação de quem ama? Pois bem, Augusto os está gozando neste momento; mas, porque só a ele é isto de grande entidade, e convém dizer apenas o que absolutamente se faz preciso, pode-se, sem inconveniente, abreviar toda a história de duas horas, dizendo-se: almoçaram e chegou a hora da lição.

-Vamos, disse D. Carolina a Augusto, que estava já sentado a seus pés e em sua banquinha; vamos, meu aprendiz, o senhor comprometeu-se a trazer-me um nome marcado pela sua mão; que nome marcou?

-Entendi que devia ser o nome da minha bela mestra.

Ela não esperava outra resposta.

-Vamos, pois, ver a sua obra, continuou, e creia que estou pouco disposta a perdoar-lhe, como fiz na lição passada. Venha a marca.

Augusto apresentou então um finíssimo lenço aos olhos da sua bela mestra, que teve de ler em cada ângulo dele o nome Carolina e no centro o dístico Minha bela mestra. Tudo estava primorosamente trabalhado; preciso é confessar: o aprendiz havia marcado melhor do que nunca o tivera feito D. Carolina.

Augusto esperava com ansiedade ver brilhar nos olhos de sua bonita querida o prazer da gratidão; fruía já de antemão o terno agradecimento com que contava, quando viu, com espanto, que sua bela mestra ia gradualmente corando e por fim se fez vermelha de cólera e de despeito.

-Nunca a mão grosseira de um homem poderia marcar assim!... disse ela a custo.

-Mas, minha bela mestra...

-Eu quero saber quem foi! exclamou com força.

-Eu não entendo...

-Foi uma mulher! Isso não carece que me diga. Uma moça que lhe marcou este lenço para o senhor vir zombar e rir-se de mim, de minha credulidade, de tudo...

-Minha senhora...

-Vejam!... Já nem me quer chamar sua mestra!... Agora só sabe dizer «minha senhora!»...

A interessante jovem acabava de ser inesperadamente assaltada de um acesso de ciúme. Augusto estava espantado e a Sra. D. Ana, levantando os olhos ao escutar a última exclamação de sua neta, viu-a correndo para ela.

-Que é isto menina? perguntou.

-Veja, minha querida avó: aqui está a marca que ele me traz! Eu queria um nome muito mal feito, uma barafunda que se não entendesse, o pano suado e feio, tudo mau, tudo péssimo; eu me riria com ele. Sabe, porém, o que fez? Foi para a Corte tomar outra mestra, que não há de ter a minha paciência, nem o meu prazer, mas que marca melhor que eu, que é mais bonita!... Veja, minha querida avó; ele tem outra mestra, outra bela mestra!...

E dizendo isto, ocultou o rosto no seio da extremosa senhora e começou a soluçar.

-Que loucura é essa, menina? Que tem que ele tomasse outra mestra? Pois por isso choras assim?

-Mas nem me quer dizer o nome dela!... Que me importa que seja moça ou bonita? Nada tenho com isso, porém, quero saber-lhe o nome, só o nome!...

Então ela ergueu-se e, com os olhos ainda molhados, com a voz entrecortada, mas com toda a beleza da dor e delírio do ciúme, voltou-se para Augusto e perguntou:

-Como se chama ela?

-Juro que não sei.

-Não sabe?...

-Quis trazer um lenço bem marcado para ostentar meus progressos e motivar alguns gracejos e mandei-o encomendar a uma senhora muito idosa, que vive destes trabalhos.

-Muito idosa?...

-É verdade.

-Não lhe deram este lenço?

-Paguei-o.

-Pois eu o rasgo...

-Pode o fazer.

-Ei-lo em tiras.

-Que fazes, Carolina? exclamou a Sra. D. Ana, querendo, já tarde, impedir que sua neta rasgasse o lenço.

-Fez o que cumpria, minha senhora, acudiu Augusto: exterminou o mau gênio que acabava de fazê-la chorar.

-E que importa que eu rasgasse um lenço? minha querida avó, peço-lhe licença para dar um dos meus ao Sr. Augusto.

A Sra. D. Ana, que começava a desconfiar da natureza dos sentimentos da mestra e do aprendiz, julgou a propósito não dar resposta alguma, mas nem isso desnorteou a viva mocinha que, tirando de sua cesta de costura um lenço recentemente por ela marcado, o ofereceu a Augusto, dizendo:

-Eu não admito uma só desculpa, não desejo ver a menor hesitação; quero que aceite este lenço.

Augusto olhou para a Sra. D. Ana, como para ler-lhe n'alma o que ela pensava daquilo.

-Pois rejeita um presente de minha neta? perguntou a amante avó.

A resposta de Augusto foi um beijo na prenda de amor.

-Agora, que já estamos bem, disse ele, vamos à minha lição.

-Não, não, respondeu a bela mestra, basta de marcar; não me saí bem do magistério, chorei diante do meu aprendiz, não falemos mais nisto.

-Então fui julgado incapaz de adiantamento?

-Ao contrário, pelo trabalho que me trouxe, vi que o senhor estava adiantado demais; porém, sou eu quem tem outros cuidados.

-Já tem cuidados?...

-Quem é que deles não carece?... O pai de família tem os filhos, o senhor os seus livros e eu, que sou criança, tenho as minhas bonecas. Quer vê-las?

-Com o maior prazer.

Um momento depois a sala estava invadida por uma enorme quantidade de bonecas, cada uma das quais tinha seus parentes, seus vestidos, jóias e um número extraordinário de bugiarias, como qualquer moça da moda as tem no seu toucador.

Ora, o tal bichinho chamado amor é capaz de amoldar seus escolhidos a todas as circunstâncias e de obrigá-los a fazer quanta parvoíce há neste mundo. O amor faz o velho criança, o sábio doido, o rei humilde cativo; faz mesmo, às vezes, com que o feio pareça bonito e o grão de areia um gigante. O amor seria capaz de obrigar um coxo a brincar o tempo-será, a um surdo o companheiro companhão e a um cego o procura quem te deu. O amor foi inventor das cabeleiras, dos dentes postiços que... mas, alto lá! que isto é bulir com muita gente; enfim, o amor está fazendo um estudante do quinto ano de Medicina passar um dia inteiro brincando com bonecas.

Com efeito, Augusto já sabe de cor e salteado todos os nomes dos membros daquela família; conhece os diversos graus de parentesco que existem entre eles, acalenta as bonecas pequenas, despe umas e veste outras, conversa com todas, examina o guarda-roupa, batiza, casa, em uma palavra, dobra-se aos prazeres de sua bela mestra, como uma varinha ao vento.

No entanto a Sra. D. Ana os observa cuidadosa; tem simpatizado muito Augusto, mas nem por isso quer entregar todo o futuro do objeto que mais ama no mundo ao só abrigo do nobre caráter e sérias qualidades que tem reconhecido no mancebo.

Como de costume, a tarde deve de ser empregada em passeios à borda do mar e pelo jardim. O maior inimigo do amor é a civilidade. Augusto o sentiu, tendo de oferecer seu braço à Sra. D. Ana; mas esta lhe fez cair a sopa no mel, rogando-lhe que o reservasse para a sua neta.

Filipe acompanhava sua avó e na viva conversação que entretinham, o nome de Augusto foi mil vezes pronunciado.

Uma vez Augusto e Carolina, que iam adiante, ficaram muito distantes do par que os seguia.

A mão da bela Moreninha tremia convulsamente no braço de Augusto e este apertava às vezes contra seu peito, como involuntariamente, essa delicada mão; alguns suspiros vinham também perturbá-los mais e havia dez minutos eles se não tinham dito uma palavra.

Em uma das ruas do jardim duas rolinhas mariscavam; mas, ao sentir passos, voaram e assentando-se não longe, em um arbusto, começaram a beijar-se com ternura; e esta cena se passava aos olhos de Augusto e Carolina!...

Igual pensamento, talvez brilhou em ambas aquelas almas, porque os olhares da menina e do moço se encontraram ao mesmo tempo e os olhos da virgem modestamente se abaixaram e em suas faces se acendeu um fogo, que era o do pejo. E o mancebo, apontando para as pombas, disse:

-Elas se amam!

E a menina murmurou apenas:

-São felizes!

-Pois acredita que em amor possa haver felicidade?

-Às vezes.

-Acaso, já tem a senhora amado?

-Eu?!... E o senhor?!

-Comecei a amar há poucos dias.

A virgem guardou silêncio e o mancebo, depois de alguns instantes, perguntou tremendo:

-E a senhora já amou também?

Novo silêncio; ela pareceu não ouvir, mas suspirou. Ele falou menos baixo:

-Já ama também?...

Ela abaixou ainda mais os olhos e com voz quase extinta disse:

-Não sei... talvez...

-E a quem?

-Eu não perguntei a quem o senhor amava.

-Quer que lhe diga?...

-Eu não pergunto.

-Posso eu fazê-lo?

-Não... Não lho impeço.

-É a senhora.

D. Carolina fez-se cor-de-rosa e só depois de alguns instantes pôde perguntar, forcejando um sorriso:

-Por quantos dias?

-Oh! Para sempre!... respondeu Augusto, apertando-lhe vivamente o braço.

Depois ainda continuou:

-E a senhora não me revela o nome feliz?...

-Eu não... não posso...

-Mas por que não pode?

-Porque não devo.

-E nunca o dirá?!

-Talvez um dia.

-E quando?...

-Quando estiver certa que ele não me ilude.

-Então... ele é volúvel?...

-Ostenta sê-lo...

-Oh!... Pelo céu!... Acabe de matar-me!... Basta o nome pronunciado bem em segredo, bem no meu ouvido, para que ninguém o possa ouvir, nem a brisa o leve... Pelo céu!...

-Senhor!...

-Um só nome que peço!...

-É impossível... Eu não posso!...

-Se eu perguntasse?...

-Oh!... Não!...

-Serei eu?...

A vigem tremeu toda e não pôde responder. Augusto lhe perguntou ainda, com fogo e ternura:

-Serei eu?...

A interessante Moreninha quis falar... Não pôde, mas, sem o pensar, levou o braço do mancebo até ao peito e lhe fez sentir como o seu coração palpitava.

-Serei eu?... perguntou uma terceira vez Augusto, com requintada ternura.

A jovenzinha murmurou uma palavra que pareceu mais um gemido que uma resposta, porém que fez transbordar a glória e entusiasmo na alma do seu amante. Ela tinha dito somente:

-Talvez.

Mau tempo

Tristes dias têm-se arrastado. Augusto está desesperado. Voltando da ilha de..., depois daquele belo dia da declaração de amor, achou na Corte seu pai e em poucos momentos teve de concluir, da severidade com que era tratado, que já alguém o havia prevenido das suas loucuras e dos muitos pontos que ultimamente tinha dado nas aulas. A mais bem merecida repreensão, e um discurso cheio de conselhos e admoestações, vieram por fim dar-lhe a certeza de que o seu bom velho estava ciente de tudo.

Para coroar a obra, contra o costume do maior número dos nossos agricultores, que, quando vêm à cidade, estão no caso do fogo viste lingüiça? e ainda bem não puseram os pés no Largo do Paço já têm os pés na Praia Grande (que por estes bons cinqüenta anos há de continuar a ser Praia Grande, apesar de a terem crismado Niterói), o pai de Augusto não falava em voltar para a roça; e, a julgar-se pelo sossego e vagar com que tratava os menos importantes negócios, parecia haver esquecido a moagem e a safra.

Chegou o sábado. O nosso Augusto, depois de muitos rodeios e cerimônias, pediu finalmente licença para ir passar o dia de domingo na ilha de... e obteve em resposta um não redondo; jurou que tinha dado sua palavra de honra de lá se achar nesse dia e o pai, para que o filho não cumprisse a palavra, nem faltasse à honra, julgou muito conveniente trancá-lo no seu quarto.

Mania antiga é essa de querer triunfar das paixões com fortes meios; erro palmar, principalmente no caso em que se acha o nosso estudante; amor é um menino doidinho e malcriado, que, quando alguém intenta refreá-lo, chora, escarapela, esperneia, escabuja, morde, belisca e incomoda mais que solto e livre; prudente é facilitar-lhe o que deseja, para que ele disso se desgoste; soltá-lo no prado, para que não corra; limpar-lhe o caminho, para que não passe: acabar com as dificuldades e oposições, para que ele durma e muitas vezes morra. O amor é um anzol que, quando se engole, agadanha-se logo no coração da gente, donde, se não é com jeito destravado, por mais força que se faça mais o maldito rasga, esburaca e se profunda. Portanto, muita indústria deve ter quem o quer pôr na rua, e para consegui-lo convém ir despedindo-o com bons modos, parlamentares oferecimentos e nunca bater-lhe com a porta na cara. Porém os homens, mal passam de certa idade, só se lembram do seu tempo para gritar contra o atual e esquecem completamente os ardores da mocidade. O resultado disso é o mesmo que tirará o pai de Augusto da energia e violência com que procura apagar a paixão do filho.

Já era tarde. Augusto ama deveras, e pela primeira vez em sua vida; e o amor, mais forte que seu espírito, exercia nele um poder absoluto e invencível. Ora, não há idéias mais livres que as do preso; e, pois, o nosso encarcerado estudante soltou as velas da barquinha de sua alma, que voou atrevida por esse mar imenso da imaginação: então, começou a criar mil sublimes quadros e em todos eles lá aparecia a encantadora Moreninha, toda cheia de encantos e graças; viu-a, com seu vestido branco, esperando-o em cima do rochedo; viu-a chorar, por ver que ele não chegava, e suas lágrimas queimavam-lhe o coração. Ouviu-a acusá-lo de inconstante e ingrato; daí a pouco pareceu-lhe que ela soluçava, escutou um grito de dor semelhante a esse que soltara no primeiro dia que ele tinha passado na ilha! Aqui, foi o nosso estudante às nuvens; saltou exasperado fora do leito em que se achava deitado, passeou a largos passos por seu quarto, acusou a crueldade dos pais, experimentou se podia arrombar a porta, fez mil planos de fuga, esbravejou, escabelou-se e, como nada disso lhe valesse, atirou com todos os seus livros para baixo da cama e deitou-se de novo, jurando que não havia de estudar dois meses. Carrancudo e teimoso, mandou voltar o almoço, o jantar e a ceia que lhe trouxeram, sem tocar num só prato; e sentindo que seu pai abria a porta do quarto, sem dúvida para vir consolá-lo e dar-lhe salutares conselhos, voltou o rosto para a parede e principiou a roncar como um endemoninhado.

-Já dormes, Augusto? perguntou o bom pai, abrindo as cortinas do leito.

A única resposta que obteve foi um ronco que mais assemelhou-se a um trovão.

O experimentado velho fingiu ter-se deixado enganar e, retirando-se, trancou a porta ao pobre estudante.

Uma noite de amargor foi, então, a que se passou para este; na solidão e silêncio das trevas, a alma do homem que padece é, mais que nunca, toda de sua dor; concentra-se, mergulha-se inteira em seu sofrimento, não concebe, não pensa, não vela e não se exalta se não por ele. Isto aconteceu a Augusto, de modo que, ao abrir-se na manhã seguinte a porta do quarto, o pai veio encontrá-lo ainda acordado, com os olhos em fogo e o rosto mais enrubescido que de ordinário.

Augusto quis dar dois passos e foi preciso que os braços paternais o sustivessem para livrá-lo de cair.

-Que fizeste, louco? perguntou o pai, cuidadoso.

-Nada, meu pai; passei uma noite em claro, mas... eu não sofro nada.

Oh! Ele queria dizer que sofria muito!

Imediatamente foi-se chamar um médico que, contra o costume da classe, fez-se esperar pouco.

Augusto sujeitou-se com brandura ao exame necessário e quando o médico lhe perguntou:

-O que sente?

Ele respondeu, com toda fria segurança do homem determinado:

-Eu amo.

-E mais nada?

-Oh! Sr. doutor, julga isso pouco?

E além destas palavras não quis pronunciar mais uma única sobre o seu estado. E, contudo, ele estava em violenta exacerbação. O médico deu por terminada a sua visita. Algumas aplicações se fizeram e um dos colegas de Augusto, que o tinha vindo procurar, fez-lhe o que chamou uma bela sangria de braço.

A enfermidade de Augusto não cedeu, porém, com tanta facilidade como a princípio supôs o médico; três dias se passaram sem conseguir-se a mais insignificante melhora; uma mudança apenas se operou: a exacerbação foi seguida de um abatimento e prostração de forças notável; sua paixão, que também se desenhava no ardor dos olhares, na viveza das expressões e na audácia dos pensamentos, tomou outro tipo: Augusto tornou-se pálido, sombrio e melancólico; horas inteiras se passavam sem que uma só palavra fosse apenas murmurada, por seus lábios, prolongadas insônias eram marcadas minuto a minuto por dolorosos gemidos, e seus olhos, amortecidos, como que obsequiavam a luz quando por acaso se entreabriam. Na visita do quarto dia o médico disse ao pai de Augusto:

-Não vamos bem...

Uma idéia terrível apareceu então no pensamento do sensível velho: a possibilidade de morrer seu filho, a flor de suas esperanças, e tal idéia derramou em seu coração todo esse fel, cujo amargor só pode sentir a alma de um pai; e entrou apressado e trêmulo no quarto do enfermo, e vendo-o prostrado no leito, como insensível, como meio morto, exclamou, com lágrimas nos olhos:

-O meu filho!... Meu filho!... Por que me queres matar?

Um brando favônio de vida passeou pelo rosto de Augusto; seus olhos se abriram, um leve sorriso de gratidão lhe alisou os lábios, também duas lágrimas ficaram penduradas em suas pálpebras e ele, tomando e beijando a mão paterna, murmurou com voz sumida e terna:

-Meu pai... Tão bom!...

Doces frases que retumbaram com mais doçura ainda no coração do velho.

-Querido louco!... disse ele: Tu me obrigas a fazer loucuras!

E saiu do quarto e logo depois de casa, mas, voltando passadas algumas horas, entrou de novo na câmara do doente; fez retirar todas as pessoas que aí se achavam e, ficando só com ele, deu-lhe, provavelmente, algum elixir tão admirável, que as melhoras começaram a aparecer como por encantamento, no mesmo instante. Que milagre não será capaz de fazer o amor dos pais?

Novidades do mesmo gênero perturbavam a paz e os prazeres da ilha de... D. Carolina também padecia. Os nossos amantes acabavam de chegar ao sentimental e, com seu sentimentalismo, estavam azedando a vida dos que lhes queriam bem. Os namorados são semelhantes às crianças: primeiro divertem-nos com suas momices, depois incomodam-nos choramingando.

A bela Moreninha tinha visto romper a aurora do domingo no rochedo da gruta, e, tendo debalde esperado o seu estudante até alto dia, voltou para casa arrufada. No almoço não houve prato que não acusasse de mal temperado: faltava-lhe o tempero do amor; o chá não se podia tomar, o dia estava frio de enregelar, toda a gente de sua casa a olhava com maus olhos; seu próprio irmão tinha um defeito imperdoável: era estudante... Pertencia a uma classe, cujos membros eram, sem exceção, sem exceção nenhuma, (bradava ela lindamente enraivecida) falsos, maus, mentirosos e até... feios. À tarde sentiu-se incomodada. Retirou-se, não ceou e não dormiu.

Tudo neste mundo é mais ou menos compensado; o amor não podia deixar de fazer parte da regra. Ele, que de um nadazinho tira motivos para o prazer de dias inteiros, que de uma flor já murcha engendra o mais vivo contentamento, que por um só cabelo faz escarcéus tais, que nem mesmo a sorte grande os causaria, que por uma cartinha de cinco linhas põe os lábios de um pobre amante em inflamação aguda com o estalar de tantos beijos, se não produzisse também agastados arrufos, às vezes algumas cólicas, outras amargores de boca, palpitações, ataques de hipocondria, pruído de canelas, etc., seria tão completa a felicidade cá embaixo, que a terra chegaria a lembrar-se de ser competidora do céu.

Um exemplo dessa regra está sendo a nossa cara menina. Coitadinha! Vai passando uma semana de ciúmes e amarguras. Acordando-se ao primeiro trinar do canário, ela busca o rochedo, e, com os olhos embebidos no mar, canta muitas vezes a balada de Aí, repetindo com fogo a estrofe que tanto lhe condiz, por principiar assim:

«Eu tenho quinze anos,

e sou morena e linda.»


E quando o sol começa a fazer-se quente, deixa o rochedo, para passar o dia inteiro no fundo do gabinete, ou ao lado de sua boa avó, que mal pode consolá-la, porque, conhecendo já a causa da tristeza da querida neta, teme vê-la fugir vermelha de pejo, se não fingir com finura que ignora o estado de seu coração.

O dia de sexta-feira trouxe ainda algumas novidades à ilha de... A Sra. D. Ana recebeu cartas que a tornaram talvez menos triste, mas sem dúvida muito pensativa. A presença da linda neta parecia alentar mais essas reflexões, que se prolongaram até a tarde do dia seguinte, em que um velho e particular amigo de sua família veio da Corte visitá-la e com a respeitável senhora ficou duas horas conferenciando a sós.

Esse homem despediu-se, enfim, da Sra. D. Ana, deixando-a cheia de prazer; e, no momento em que saltava dentro do seu batel, vendo a interessante Moreninha que tristemente passeava à borda do mar, saudou-a com esta simples palavra, apontando para o céu:

-Esperança!

D. Carolina levantou a cabeça e viu que já o batel cortava as ondas, mas, como para corresponder a tão animador cumprimento, ela, por sua vez, apontou também para o céu, e pondo a outra mão no lugar do coração disse:

-Esperarei!

A esmeralda e o camafeu

Dona Carolina passou uma noite cheia de pena e de cuidados, porém já menos ciumenta e despeitada; a boa avó livrou-a desses tormentos; na hora do chá, fazendo com habilidade e destreza cair a conversação sobre o estudante amado, disse:

-Aquele interessante moço, Carolina, parece pagar-nos bem a amizade que lhe temos, não entendes assim?...

-Minha avó... eu não sei.

-Dize sempre, pensarás acaso de maneira diversa?...

A menina hesitou um instante, e depois respondeu:

-Se ele pagasse bem, teria vindo domingo.

-Eis uma injustiça, Carolina. Desde sábado à noite que Augusto está na cama, prostrado por uma enfermidade cruel.

-Doente?! exclamou a linda Moreninha, extremamente comovida. Doente?... Em perigo?...

-Graças a Deus, há dois dias ficou livre dele; hoje já pôde chegar à janela, assim me mandou dizer Filipe.

-Oh! Pobre moço!... Se não fosse isso teria vindo ver-nos!...

E, pois, todos os antigos sentimentos de ciúme e temor da inconstância do amante se trocaram por ansiosas inquietações a respeito de sua moléstia.

No dia seguinte, ao amanhecer, a amorosa menina despertou e, buscando o toucador, há uma semana esquecido, dividiu seus cabelos nas duas costumadas belas tranças, que tanto gostava de fazer ondear pelas espáduas, vestiu o estimado vestido branco e correu para o rochedo.

-Eu me alinhei, pensava ela, porque, enfim... hoje é domingo e talvez... Como ontem já pôde chegar à janela, talvez consiga com algum esforço vir ver-me.

E quando o sol começou a refletir seus raios sobre o liso espelho do mar, ela principiou também a cantar sua balada:

«Eu tenho quinze anos,

e sou morena e linda»


Mas, como por encanto, no instante mesmo em que ela dizia no seu canto:

«Lá vem sua piroga

cortando leve os mares»


um lindo batelão apareceu ao longe, voando com asa intumescida para a ilha.

Com força e comoção desusadas bateu o coração a D. Carolina, que calou-se para só empregar no batel que vinha atentas vistas, cheias de amor e de esperança. Ah! Era o batel suspirado.

Quando o ligeiro barquinho se aproximou suficientemente, a bela Moreninha distinguiu dentro dele Augusto, sentado junto de um respeitável ancião, a quem não pôde conhecer; então, ela vendo que chegavam à praia, fingiu não tê-los sentido e continuou sua balada:

«Enfim, abica à praia

enfim, salta apressado...»


Augusto, com efeito, saltava nesse momento fora do batel, e depois deu a mão a seu pai, para ajudá-lo a desembarcar; e D. Carolina, que ainda não mostrava dar fé deles, prosseguiu seu canto, até que, quando dizia:

«Quando há de ele correr

somente pra me ver...»


entiu que Augusto corria para ela. Prazer imenso inundava a alma da menina, para que possa ser descrito; como todos prevêem, a balada foi nessa estrofe interrompida e D. Carolina, aceitando o braço do estudante, desceu do rochedo e foi cumprimentar o pai dele.

Ambos os amantes compreenderam o que queria dizer a palidez de seus semblantes e os vestígios de um padecer de oito dias; guardaram silêncio; não tiveram uma palavra para pronunciar; tiveram só olhares para trocar e suspiros a verter. E para que mais?...

A Sra. D. Ana recebeu com sua costumada afabilidade o pai de Augusto e abraçou a este com ternura. Ao servir-se o almoço, ela lhe perguntou:

-Por que não veio o meu neto?

-Ficou para vir mais tarde, com os nossos dois amigos Leopoldo e Fabrício.

-Então teremos um excelente dia.

-Eu o espero.

Uma hora depois o pai de Augusto e a Sra. D. Ana conferenciavam a sós, e os dois namorados achavam-se, defronte um do outro, no vão de uma janela.

E eles continuavam no silêncio, mas olhavam-se com fogo.

Augusto parecia querer comunicar alguma coisa bem extraordinária à sua interessante amada, porém sempre estremecia ao entreabrir os lábios.

E D. Carolina, cônscia já de sua fraqueza, e como lembrando-se dos pesares que tinha sofrido, não sabia mais servir-se de seus sorrisos com a malícia do tempo da liberdade e mostrava-se esquecida de seu viver de alegrias e travessuras.

Alguma grande resolução obrigava o moço a estar silencioso, como tremendo pelo êxito dela?...

No fim de muito tempo eles haviam conseguido dizer-se:

-O mar está bem manso.

-O dia está sereno.

Felizmente para eles a Sra. D. Ana os convidou a entrar no gabinete. Augusto para aí se dirigiu tremendo, D. Carolina curiosa. Quando eles se sentaram, o ancião falou:

-Augusto, eu acabo de obter desta respeitável senhora a honra de te julgar digno de pretenderes a mão de sua linda neta, agora resta que alcances o sim da interessante pessoa que amas. Fala.

Tanto D. Carolina como o pobre estudante ficaram cor de nácar; houve bons cinco minutos de silêncio: o pai de Augusto instou para que ele falasse. E o bom do rapaz não fez mais que olhar para a moça, com ternura, abrir a boca e fechá-la de novo, sem dizer palavra.

A Sra. D. Ana tomou então a palavra e disse sorrindo-se:

-Enfim, é necessário que os ajudemos. Carolina, o Sr. Augusto te ama e te quer para sua esposa; tu que dizes?...

Nem palavra.

Foi preciso que se repetisse pela terceira vez a pergunta, para que a menina, sem levantar a cabeça, murmurasse apenas:

-Minha avó... eu não sei.

-Pois creio que ninguém melhor que tu o poderá saber. Desejas que eu responda em teu nome?...

A bela Moreninha pensou um momento... não pôde vencer-se, sorriu-se como se sorria dantes, e erguendo a cabeça, disse:

-Eu rogo que daqui a meia hora se vá receber a minha resposta na gruta do jardim.

-Quererás consultar a fonte? Pois bem, iremos.

D. Carolina saiu com ar meio acanhado e meio maligno. Passados alguns instantes a Sra. D. Ana, como quem estava certa do resultado da meia hora de reflexão, e já por tal podia gracejar com os noivos, disse a Augusto:

-O Sr. não quer refletir também no jardim?

O estudante não esperou segundo conselho e para logo dirigiu-se à gruta. D. Carolina estava sentada no banco de relva, e seu rosto, sem poder ocultar a comoção e o pejo que lhe produziu o objeto de que se tratava, tinha, contudo, retomado o antigo verniz do prazer e malícia. Vendo entrar o moço disse:

-Eu creio que ainda se não passou meia hora.

-Ah! Podia eu esperar tanto tempo?...

-Acaso veio perguntar-me alguma coisa?...

-Não, minha senhora, eu só venho ouvir a minha sentença.

-Então... pede-me para sua esposa?...

-A senhora o ouviu há pouco.

-Pois bem, Sr. Augusto, veja como verificou-se o prognóstico que fiz do seu futuro! Não se lembra que aqui mesmo lhe disse «que não longe estava o dia em que o Sr. havia de esquecer sua mulher»?

-Mas eu nunca fui casado... murmurou o estudante!...

-Oh! Isso é uma recomendação contra a sua constância!...

-E quem tem culpa de tudo, senhora?

-Muito a tempo ainda me lança em rosto a parte que tenho na sua infidelidade, pois, eu emendarei a mão agora. O senhor há de cumprir a palavra que deu há sete anos!

Augusto recuou dois passos.

-O senhor é um moço honrado, continuou a cruel Moreninha, e, portanto, cumprirá a palavra que deu, e só casará com sua desposada antiga.

-Oh!... Agora já é impossível!

-Ela deve ser uma bonita moça!... Teria razão de queixar-se contra mim, se eu roubasse um coração que lhe pertence... até por direito de antiguidade; ora eu, apesar de ser travessa, não sou má, e, portanto, o senhor só será esposo dessa menina.

-Jamais!

-Juro-lhe que há de sê-lo.

-E quem me poderá obrigar?

-Eu, pedindo.

-A senhora?

-E a honra, mandando.

-Para que, pois, animou o amor que pela senhora sinto?...

-Para satisfazer as minhas vaidades de moça, somente para isso. Eu o ouvi gabar-se de que nenhuma mulher seria capaz de conservá-lo em amoroso enleio por mais de três dias, e desejei vingar a injúria feita ao meu sexo. Trabalhei, confesso que trabalhei por prendê-lo; fiz talvez mais do que devia, só para ter a glória de perguntar-lhe uma vez, como agora o faço: «Então, senhor, quem venceu: o homem ou a mulher?...»

-Foi a beleza.

-Porém já passou o tempo do galanteio, e eu devo lembrar-lhe o dever que com a paixão esquece. Escute: na idade de treze anos o senhor amou uma linda e travessa menina, que contava apenas sete.

-Já a senhora em outra ocasião me disse isso mesmo.

-Junto ao leito de um moribundo jurou que havia de amá-la para sempre.

-Foi um juramento de criança.

-Embora, foi um juramento; trocou com ela aí mesmo prendas de amor, e quando a menina lhe apresentar a que recebeu e lhe pedir a que lhe ofereceu e o senhor aceitou?...

-Ah! Senhora!...

-Quando o velho moribundo, dando-lhe o breve de cor branca disse: tomai este breve, cuja cor exprime a candura da alma daquela menina; ele contém o vosso camafeu; se tendes bastante força para ser constante e amar para sempre aquele belo anjo, dai-lho, para que ela o guarde com desvelo. Por que deu o senhor o breve à menina?...

-Porque eu era um louco, uma criança?

-E nem ao menos se lembra de que o velho disse com voz inspirada: «Deus paga sempre a esmola que se dá ao pobre!... Lá no futuro vós o sentireis»? Não tem o senhor esperança de ver realizar-se essa bela profecia? não se lembra de ouvi-la? Pois ela soou bem docemente no meu coração quando às escondidas, a escutei repetida nesta gruta por seus lábios.

-Oh! mas por que Deus não me prendeu a essa menina nos laços indissolúveis, antes que eu visse o lindo anjo desta ilha?

-E como, senhor, posso eu acreditar nos seus protestos de ternura e constância, se já o vejo faltar à fé a uma outra?... Senhor! Senhor! O que foi que prometeu há sete anos passados?...

-Então eu não pensava no que fazia.

-E agora pensa no que quer fazer?

-Penso que sou um desgraçado, um louco!... Penso que é uma barbaridade inqualificável que, enquanto eu padeço, e sofro mil torturas, deixe a senhora brincar nos seus lábios o sorriso com que costuma encantar para matar. Penso...

-Acabe!

-Penso que devo fugir para sempre desta ilha fatal, deixar aquela cidade detestável, abandonar esta terra de minha pátria, onde não posso ser outra vez feliz!... Penso que a lembrança do meu passado faz a minha desgraça, que o presente me enlouquece e me mata, que o futuro... Oh! já não haverá futuro para mim! Adeus senhora!...

-Então, parte?...

-E para sempre.

D. Carolina deixou cair uma lágrima e falou ainda, mas já com voz fraca e trêmula:

-Sim, deve partir... vá... Talvez encontre aquela a quem jurou amor eterno... Ah! Senhor! Nunca lhe seja perjuro.

-Se eu encontrasse!...

-Então?... Que faria?...

-Atirar-me-ia a seus pés, abraçar-me-ia com eles e lhe diria: «Perdoai-me, perdoai-me, senhora, eu já não posso ser vosso esposo! tomai a prenda que me deste...»

E o infeliz amante arrancou debaixo da camisa um breve, que convulsivamente apertou na mão.

-O breve verde!... exclamou D. Carolina, o breve que contém a esmeralda!...

-Eu lhe diria, continuou Augusto: «recebei este breve que já não devo conservar, porque eu amo outra que não sois vós, que é mais bela e mais cruel do que vós!...»

A cena se estava tornando patética; ambos choravam e só passados alguns instantes a inexplicável Moreninha pôde falar e responder ao triste estudante.

-Oh! pois bem, disse; vá ter com sua desposada, repita-lhe o que acaba de dizer, e se ela ceder, se perdoar, volte que eu serei sua... esposa.

-Sim... eu corro... Mas, meu Deus, onde poderei achar essa moça a quem não tornei a ver, nem poderei conhecer?... Onde meu Deus?... Onde?...

E tornou a deixar correr o pranto, por um momento suspendido.

-Espere, tornou D. Carolina, escute, senhor. Houve um dia, quando a minha mãe era viva, em que eu também socorri um velho moribundo. Como o senhor e sua camarada, matei a fome de sua família e cobri a nudez de seus filhos; em sinal de reconhecimento também este velho me fez um presente: deu-me uma relíquia milagrosa que, asseverou-me ele, tem o poder uma vez na vida de quem a possui, de dar o que se deseja; eu cosi essa relíquia dentro de um breve; ainda não lhe pedi coisa alguma, mas trago-a sempre comigo; eu lha cedo... tome o breve, descosa-o, tire a relíquia e à mercê dela encontre sua antiga amada. Obtenha o seu perdão e me terá por esposa.

-Isto tudo me parece um sonho, respondeu Augusto, porém, dê-me, dê-me esse breve!

A menina, com efeito, entregou o breve ao estudante, que começou a descosê-lo precipitadamente. Aquela relíquia, que se dizia milagrosa, era sua última esperança; e, semelhante ao náufrago que no derradeiro extremo se agarra à mais leve tábua, ele se abraçava com ela. Só falta a derradeira capa do breve... ei-la que cede e se descose... salta uma pedra... e Augusto, entusiasmado e como delirante, cai aos pés de D. Carolina, exclamando:

-O meu camafeu!... O meu camafeu!...

A senhora D. Ana e o pai de Augusto entram nesse instante na gruta e encontram o feliz e fervoroso amante de joelhos e a dar mil beijos nos pés da linda menina, que também por sua parte chorava de prazer.

-Que loucura é esta? perguntou a senhora D. Ana.

-Achei minha mulher!... bradava Augusto; encontrei minha mulher!

-Que quer dizer isto, Carolina?...

-Ah! minha boa avó!... respondeu a travessa Moreninha ingenuamente: nós éramos conhecidos antigos.

Epílogo

A chegada de Filipe, Fabrício e Leopoldo veio dar ainda mais viveza ao prazer que reinava na gruta. O projeto de casamento de Augusto e D. Carolina não podia ser um mistério para eles, tendo sido como foi, elaborado por Filipe, de acordo com o pai do noivo, que fizera a proposta, e com o velho amigo, que ainda no dia antecedente viera concluir os ajustes com a senhora D. Ana; e, portanto, o tempo que se gastaria em explicações passou-se em abraços.

-Muito bem! Muito bem! disse por fim Filipe; quem pôs o fogo ao pé da pólvora fui eu, que obriguei Augusto a vir passar o dia de Sant'Ana conosco.

-Então estás arrependido?...

-Não, por certo, apesar de me roubares minha irmã. Finalmente para este tesouro sempre teria de haver um ladrão: ainda bem que foste tu que o ganhaste.

-Mas, meu maninho, ele perdeu ganhando...

-Como?...

-Estamos no dia 20 de agosto: um mês!

-É verdade! Um mês! exclamou Filipe.

-Um mês!... gritaram Fabrício e Leopoldo.

-Eu não entendo isto! disse a senhora D. Ana.

-Minha boa avó, acudiu a noiva, isto quer dizer que finalmente está presa a borboleta.

-Minha boa avó, exclamou Filipe, isto quer dizer que Augusto deve-me um romance.

-Já está pronto, respondeu o noivo.

-Como se intitula?

-A Moreninha.