O quinto era um menino... uma verdadeira criança:
não tinha nome, e posto que hoje todos lho conheçam,
não me convém a mim dizê-lo neste lugar, e tão
cedo.
- II -
Pago o quotidiano tributo à existência material;
satisfeitos os deveres de cada profissão, a palestra literária
nos reunia na faceira e tranqüila salinha do meu escritório...
Ali, -horas inteiras,- alheios às lutas do mundo,
conchegados nos lugares e nas afeições, levitas do mesmo culto,
filhos dos mesmos pais -a pobreza e o trabalho,- em derredor do altar do nosso
templo -a mesa do estudo... falávamos de Deus, de amor, de sonhos;
conversávamos música, pintura, poesia!...
Ali depúnhamos o fruto das lucubrações1 da véspera, e na singela festa das nossas crenças,
novas inspirações bebíamos para os trabalhos do seguinte
dia. Era um contínuo deslizar de ameníssimos momentos; era um
suave fugir das murmurações dos profanos; era enfim um
dulcíssimo viver nas regiões da fantasia!... E foi esse o
berço das
Primaveras, das
Tentativas, das
Crisálidas e das
Efêmeras, e foi dali que irradiaram os
nomes de Casimiro de Abreu, de Macedinho, de Gonçalves Braga, e com
esplêndido fulgor o de Machado de Assis!
A morte e o tempo derribaram o altar, e dispersaram os levitas. Do
templo só resta o chão em que se ergueu; e dos amigos só
ficaram dois... dois para guardar, como Vestais severas, o fogo sagrado das
tradições daqueles dias, e para resumir no profundo afeto que os
liga, o laço que tão fortemente estreitava os cinco.
E no instante em que este livro chegar às mãos do
primeiro leitor, as campas deles, -diz-mo o coração,- se
entreabrirão para receber o saudoso suspiro dos irmãos, e um raio
simpático da auréola do poeta!
- III -
Éramos, pois, cinco. Líamos e recitávamos.
Denunciávamos as novidades: zurzíamos as
profanações: confundíamos nossas lições:
-segredávamos nossos amores!
O quinto, -o menino,- depunha, como todos nós, sua
respectiva oferenda. Balbuciando apenas a literatura, -ainda novo para os seus
mistérios, ainda fraco para o seu peso, nem por isso lhe faltava
ousadia; antes sobrava-lhe sofreguidão de saber, ambição
de louros. Era vivo, era trêfego2, era
trabalhador.
Aprazia-me de ler-lhe no olhar móvel e ardente a febre da
imaginação; na constância das produções a
avidez do saber, e combinando no meu espírito estas
observações com a naturalidade, o colorido e a luz de
conhecimentos literários que ele, -sem querer sem dúvida,-
derramava em todos os ensaios poéticos que nos lia, dediquei-me a
estudá-lo de perto, e convenci-me, em pouco tempo, de que largos
destinos lhe prometia a musa da poesia... E por isso quando, lida alguma
composição do nosso jovem companheiro, diziam os outros:
bons versos! mas simplesmente -bons versos,- eu nunca deixava de acrescentar, cheio do que
afirmava: -belo prenúncio de um grande poeta!
- IV -
Correram os anos... e como se a seiva dos ramos perdidos se
houvesse concentrado no renovo que ficara, o renovo cresceu, cresceu e vigorou!
A profecia se foi todos os dias realizando de um modo brilhante.
Hoje a criança é homem; -o aprendiz jornalista e
poeta.
Não me enganara... Adivinhei-o! E se alguém
descobrir em mim vaidade quando me atribuo positivamente o privilégio e
a autoridade desta profecia, declaro desde já que a não declino,
que a quero para mim, que a não cedo a ninguém, porque... porque
dela me prezo, porque dela me orgulho, porque o profetizado é Machado de
Assis, -o bardo de Corina,- o poeta das
Crisálidas!
- V -
Até aqui o amigo: agora, leitor! o crítico.
Eu disse: -o poeta das
Crisálidas.
Poeta é o autor:
Crisálidas é o livro.
Crisálidas e poeta... dois lindos nomes... dois nomes
sonoros... mas um deles falso!
Como serpe entre rosas, -no meio de tanta consonância
deslizou-se uma contradição.
Crisálida é ninfa, é princípio de
transformação, aurora de existência, semente de
formosura... e os versos de Machado de Assis são gemas cintilantes, vida
espalmada, flores e sorrisos. Na mortalha informe e incolor do casulo a
graça está em problema, o movimento em risco: os versos de
Machado de Assis só guardaram de
ninfa a beleza e o dom da aeredade!3 São fulgidas borboletas que
adejam sobre todas as flores da alma, revelando a quem as contempla a
perfeição da criatura e o gênio do criador. Não
são, pois, crisálidas; se o fossem não seria o autor
poeta, e Machado de Assis, leitor, é poeta!
Fala-vos o coração de quem vo-lo diz? Não:
protesta unicamente a consciência, e juro-o por minha fé de homem
de letras!
- VI -
A que escola pertence o autor deste livro?
À mística de Lamartine, à cética de
Byron, à filosófica de Hugo, à sensualista de
Ovídio, à patriótica de Mickiewicz, à americana de
Gonçalves Dias? A nenhuma.
Qual o sistema métrico que adotou? Nenhum.
Qual a musa que lhe preside as criações?... A
mitológica de Homero, a mista de Camões, a católica do
Dante, a libertina de Parny? Nenhuma.
A escola de Machado de Assis é o sentimento; -seu sistema a
inspiração: sua musa a liberdade. Tríplice liberdade:
liberdade na concepção; liberdade na forma; liberdade na
roupagem. Tríplice vantagem: -originalidade, naturalidade,
variedade!
Sua alma é um cadinho onde se apuram eflúvios
derramados pela natureza. Produz versos como a harpa eólia produzia
sons: -canta e suspira como a garganta do vale em noites de verão; pinta
e descreve, como a face espelhada da lagoa o Céu dos nossos
sertões. E não lhe pergunteis porque: não saberia
responder-vos. Se insistísseis... parodiar-vos-ia a epígrafe da
sua -Sinhá!-, o versículo do Cântico
dos Cânticos, e no tom da maior ingenuidade, dir-vos-ia:
-a minha poesia... é como o óleo
derramado!
E com razão... por que Machado de Assis é a lira, a
natureza o plectro. E da ânfora de sua alma ele mesmo ignora quando
transbordam as gotas perfumadas!
- VII -
Eis aqui, pois, como Machado de Assis é poeta.
Um Deus benigno, -o mesmo que lhe deu por pátria este solo
sem igual,- deu-lhe também o condão de
refletir a pomposa natureza que o rodeia. Fez
mais... mediu por ela esse condão.
Se tivera nascido à sombra do pólo, entre os gelos
do norte, seus cânticos pálidos e frios traduziriam em silvos os
êxtases do poeta; -mas filho deste novo Éden, cercado de infinitas
maravilhas, as notas que ele desprende são afinadas pelas grandiosas
harmonias que proclamam.
É assim duas vezes
instrumento... e nesta doce
correspondência entre a criatura e o criador, a
Musa ales, o sagrado mensageiro que une a
terra e o Céu é... a inspiração!... É ela
que ferve, e derrama da ânfora o óleo perfumado. É ela que
marca o compasso a ritmo, e a escola ao trovador. É ela que lhe diz:
canta, chora, ama, sorri... É ela enfim que lhe segreda o tema da
canção, e caprichosa, ora chama-se luz, mel, aroma, graça,
virtude, formosura, ora se chama Stella, Visão, Erro, Sinhá,
Corina!
- VIII -
Livres, sentidos, inspirados, os versos do autor das
Crisálidas são e devem ser
eloqüentes, harmoniosos e exatos. São -porque ninguém se
negará a dizê-lo lendo-os. Devem ser -porque o sentimento e a
inspiração constituem a verdadeira fonte de toda a
eloqüência e de toda a harmonia no mundo moral, e porque a
exatidão é o mais legítimo fruto do consórcio
destas duas condições.
É um erro atribuir exclusivamente à arte a boa
medição do verso. É erro igual ao do que recusa ao
ignorante de música, ao diletante, a possibilidade de cantar com justeza
e expressão. Um verso mal medido é um verso dissonante; é
um verso que destaca dentre seus companheiros como a nota desafinada ressalta
da torrente de uma escala. Num e noutro caso a inteligência atilada pelo
gosto, e o ouvido apurado pela lição -arrancam sem socorro da
arte o joio que nascera no meio do trigo, e embora a ela recorram para a
perfeição da nova planta, nem por isso deixa esta de passar-lhe
pela joeira.
- IX -
Para o poeta de sentimento a inspiração brota das
belezas da natureza, como se elevam os vapores da superfície da terra;
mais do vale do que da montanha; mais daqui do que dali. A natureza
também tem altos e baixos para inspiração. O
crepúsculo, e mesmo o dilúculo, é mais inspirativo que a
luz meridiana: -o majestoso silêncio da floresta mais do que o
frenético bulício da cidade: -o vagido mais do que as cãs.
A poesia que traduz a inspiração, e o verso que
fotografa a poesia devem portanto ressentir-se destas diferenças. Por
isso não há livro de bom poeta que não comprove esta
verdade. Não é o talento que afrouxa ou dorme como Homero:
é a inspiração que varia. Nas menos inspiradas subsiste
ainda o engenho, e o engenho é muito.
No livro que vamos folhear, talvez julgueis comigo que poucas
composições se aproximam da altura em que o poeta colocou a
Visio e os alexandrinos
a Corina. Como não havia de ser assim?
Machado de Assis
refletiu a natureza, e a natureza só
criou uma Corina!
- X -
Entre a poesia-arte e a poesia-sentimento,-
dá-se, sobre muitas, uma grande diferença: -a
erudição.
Como o arrebique que, ocultando os vestígios do tempo
revela na face remoçada o poder do artista, mas nunca a mocidade, -a
erudição derrama sobre os cantos da lira um verdadeiro fluido
galvanizado. A clâmide romana em que se envolve o poeta lhe dissimula -o
vácuo do coração, e o coturno grego, que por suado
esforço conseguiu calçar, lhe tolhe, apesar de elegante e rico, a
naturalidade dos movimentos.
Com demasia de vestidos não é possível correr
bem... e a poesia deve correr, correr naturalmente como a infância, como
o arroio, como a brisa, e até mesmo como o tufão e como a
lava!
O luxo exagerado da roupagem denotava ante a sabedoria antiga
-leviandade de juízo: ante a crítica moderna ainda denota na
poesia penúria de fantasia. A simplicidade dos modelos Gregos e
Hebraicos, que nos legou a literatura dos primeiros tempos desde então
proscreveu para o bom gosto, a pretensiosa lição dos
pórticos. A facúndia acadêmica sempre emudeceu e atemorizou
as almas ingênuas, e nas doces expansões destas, e não nas
doutas preleções daquela, colhe a poesia os seus melhores
tesouros, e os seus mais caros triunfos.
No gênero de poesia das
Crisálidas, (único sem
dúvida de que falo aqui,) é tão evidente esta verdade,
tão clara a primazia conferida pelo gosto literário ao improviso
sobre a arte, ao sentimento sobre a erudição que basta recordar
quais os nomes dos poetas brasileiros ou lusos, que, no meio de tantas e
tão variadas publicações, se tornaram e permanecem
exclusivamente populares. E para que não vos falte, leitor, um exemplo
de notória atualidade comparai Tomás Ribeiro a Teófilo
Braga, e dizei-me -se o brilhante talento do segundo poderá jamais
disputar a palma da poesia à divina singeleza do primeiro.
Machado de Assis é o nosso Tomás Ribeiro, mais
inspirado, talvez, e mais ardente4; e como
além de poeta é jornalista guarda a erudição para o
jornal... digo mal: não guarda... O cantor de Corina quando escreve
versos não levanta a pena do papel, e por isso a história nunca
depara lugar entre o bico5 de uma e a superfície do outro.
- XI -
Seja, porém, qual for vossa opinião sobre tudo
quanto acabo de conversar convosco: seja qual for vosso juízo sobre o
modo porque recomendei o livro e o autor, negai-me embora vosso assentimento,
mas concedei-me dois únicos direitos. O primeiro é o de fazer-vos
crer que estas páginas não são mais do que a dupla e
sincera manifestação dos sentimentos do amigo e do
crítico. O segundo é o de asseverar-vos, ainda uma vez, que o
livro que ides percorrer é flor mimosa de nossa literatura e que o poeta
há de ser, -sem dúvida alguma,- uma das glórias
literárias deste grande Império.
Na esplêndida cruzada do futuro, são as
Crisálidas o seu primeiro feito
d'armas. Como Bayard a Franciso I, a Musa da Poesia armou-o cavalheiro depois
de uma vitória!
Povero mio core! Ecco una separazione di
piú nella mia scigurata vita!
Silvio Pellico
Guarda estes versos que escrevi chorando
como um alívio à minha soledade,
como um dever do meu amor; e quando
houver em ti um eco de saudade,
beija estes versos que escrevi chorando.
Único em meio das paixões vulgares,
fui a teus pés queimar minha alma ansiosa,
como se queima o óleo ante os altares;
tive a paixão indômita e fogosa,
única em meio das paixões vulgares.
Cheio de amor, vazio de esperança,
dei para ti os meus primeiros passos;
minha ilusão fez-me, talvez, criança;
e eu pretendi dormir aos teus abraços,
cheio de amor, vazio de esperança.
Refugiado à sombra do mistério
pude cantar meu hino doloroso;
e o mundo ouviu o som doce ou funéreo
sem conhecer o coração ansioso
refugiado à sombra do mistério.
Mas eu que posso contra a sorte esquiva?
vejo que em teus olhares de princesa
transluz uma alma ardente e compassiva
capaz de reanimar minha incerteza;
mas eu que posso contra a sorte esquiva?
Como um réu indefeso e abandonado,
fatalidade, curvo-me ao teu gesto;
e se a perseguição me tem cansado,
embora, escutarei o teu aresto
como um réu indefeso e abandonado.
Embora fujas aos meus olhos tristes,
minha alma irá saudosa, enamorada,
acercar-se de ti lá onde existes;
ouvirás minha lira apaixonada,
embora fujas aos meus olhos tristes.
Talvez um dia meu amor se extinga,
como fogo de Vesta mal cuidado
que sem o zelo da Vestal não vinga:
Na ausência e no silêncio condenado
talvez um dia meu amor se extinga.
Então não busques reavivar a chama;
evoca apenas a lembrança casta
do fundo amor daquele que não ama;
esta consolação apenas basta;
então não busques reavivar a chama.
Guarda estes versos que escrevi chorando
como um alívio à minha soledade,
como um dever do meu amor; e quando
houver em ti um eco de saudade,
beija estes versos que escrevi chorando.
- VI -
O amor tem asas, mas ele também pode
dá-las.
Homero
Em vão! Contrário a amor é nulo o
esforço humano;
é nulo o vasto espaço, é nulo o vasto
oceano.
Solta do chão, abrindo as asas luminosas,
minha alma se ergue e voa às regiões
venturosas,
onde ao teu brando olhar, ó formosa Corina,
reveste a natureza a púrpura divina!
Lá, como quando volta a primavera em flor,
tudo sorri de luz, tudo sorri de amor;
ao influxo celeste e doce da beleza,
pulsa, canta, irradia e vive a natureza;
mais lânguida e mais bela a tarde pensativa
desce do monte ao vale; e a viração lasciva
vai despertar à noite a melodia estranha
que falam entre si os olmos da montanha;
a flor tem mais perfume e a noite mais poesia;
o mar tem novos sons e mais viva ardentia;
a onda enamorada arfa e beija as areias,
novo sangue circula, ó terra, em tuas veias!
O esplendor da beleza é raio criador:
Derrama a tudo a luz, derrama a tudo o amor.
Mas vê. Se o que te cerca é uma festa de
vida,
eu, tão longe de ti, sinto a dor mal sofrida
da saudade que punge e do amor que lacera,
e palpita e soluça e sangra e desespera.
Sinto em torno de mim a muda natureza
respirando, como eu, a saudade e a tristeza;
a saudade do bem e a tristeza do mal;
tristeza sem irmã, saudade sem igual.
É deste ermo que eu vou, alma desventurada,
murmurar junto a ti a estrofe imaculada
do amor que não perdeu, co'a última
esperança,
nem o intenso fervor, nem a intensa lembrança.
Sabes se te eu amei, sabes se te amo ainda,
do meu sombrio céu alva estrela bem-vinda!
como divaga a abelha inquieta e sequiosa
do cálice do lírio ao cálice da rosa,
divaguei de alma em alma em busca deste amor;
gota de mel divino, era divina a flor
que o devia conter. Eras tu.
No delírio
de te amar -olvidei as lutas e o martírio;
eras tu. Eu só quis, numa ventura calma,
sentir e ver o amor através de uma alma;
de outras belezas vãs não valeu o esplendor,
a beleza eras tu: -tinhas a alma e o amor.
Pelicano do amor, dilacerei meu peito,
e com meu próprio sangue os filhos meus aleito;
meus filhos: o desejo, a quimera, a esperança;
por eles reparti minha alma. Na provança
ela não fraqueou, antes surgiu mais forte;
é que eu pus neste amor, neste último
transporte
tudo o que vivifica a minha juventude:
O culto da verdade e o culto da virtude,
a vênia do passado e a ambição do
futuro,
o que há de grande e belo, o que há de nobre e
puro.
Deste profundo amor, doce e amada Corina,
acorda-te a lembrança um eco de
aflição?
Minha alma pena e chora à dor que a desatina:
sente tua alma acaso a mesma comoção?
Em vão! Contrário a amor é nulo o
esforço humano,
é nulo o vasto espaço, é nulo o vasto
oceano!
Vou, sequioso espírito,
cobrando novo alento,
na asa veloz do vento
correr de mar em mar;
posso, fugindo ao cárcere,
que à terra me tem preso,
em novo ardor aceso,
voar, voar, voar!
Então, se à hora lânguida
da tarde que declina,
do arbusto da colina
beijando a folha e a flor,
a brisa melancólica
levar-te entre perfumes
uns tímidos queixumes
ecos de mágoa e dor;
então, se o arroio tímido
que arrasta-se e murmura
à sombra da espessura
dos verdes salgueirais,
mandar-te entre os murmúrios
que solta nos seus giros,
uns como que suspiros
de amor, uns ternos ais;
então, se no silêncio
da noite adormecida,
sentires -mal dormida-
em sonho ou em visão,
um beijo em tuas pálpebras,
um nome aos teus ouvidos,
e ao som de uns ais partidos
pulsar teu coração;
da mágoa que consome
o meu amor venceu;
não tremas -é teu nome,
não fujas -que sou eu!-
Fim dos
Versos a Corina
Última folha
Tout passe,
Tout fuit.
V. Hugo
Musa, desce do alto da montanha
onde aspiraste o aroma da poesia,
e deixa ao eco dos sagrados ermos
a última harmonia.
Dos teus cabelos de ouro, que beijavam
5
na amena tarde as virações perdidas,
deixa cair ao chão as alvas rosas
e as alvas margaridas.
Vês? Não é noite, não, este ar
sombrio
que nos esconde o céu. Inda no poente
10
não quebra os raios pálidos e frios
o sol resplandecente.
Vês? Lá ao fundo o vale árido e seco
abre-se, como um leito mortuário;
espera-te o silêncio da planície,
15
como um frio sudário.
Desce. Virá um dia em que mais bela,
mais alegre, mais cheia de harmonias,
voltes a procurar a voz cadente
dos teus primeiros dias.
20
Então coroarás a ingênua fronte
das flores da manhã, -e ao monte agreste,
como a noiva fantástica dos ermos,
irás, musa celeste!
Então, nas horas solenes
25
em que o místico himeneu
une em abraço divino
verde a terra, azul o céu;
quando, já finda a tormenta
que a natureza enlutou,
30
bafeja a brisa suave
cedros que o vento abalou;
e o rio, a árvore e o campo,
a areia, a face do mar,
parecem, como um concerto,
35
palpitar, sorrir, orar;
então sim, alma de poeta,
nos teus sonhos cantarás
a glória da natureza,
a ventura, o amor e a paz!
40
Ah! mas então será mais alto ainda;
lá onde a alma do vate
possa escutar os anjos,
e onde não chegue o vão rumor dos homens;
lá onde, abrindo as asas ambiciosas,
45
possa adejar no espaço luminoso,
viver de luz mais viva e de ar mais puro,
fartar-se do infinito!
Musa, desce do alto da montanha
onde aspiraste o aroma da poesia,
50
e deixa ao eco dos sagrados ermos
a última harmonia!
FIM
Posfácio
Carta ao Dr. Caetano Filgueiras
Meu amigo. Agora que o leitor frio e severo pôde comparar o
meu pobre livro com a tua crítica benévola e amiga, deixa-me
dizer-te rapidamente duas palavras.
Recordaste os nossos amigos, poetas na adolescência, hoje idos
para sempre dos nossos olhos e da glória que os esperava. Tão
piedosa evocação será o paládio do meu livro, como
o é a tua carta de recomendação.
Vai longe esse tempo. Guardo a lembrança dele, tão
viva como a saudade que ainda sinto, mas já sem aquelas ilusões
que o tornavam tão doce ao nosso espírito. O tempo não
corre em vão para os que desde o berço foram condenados ao duelo
infausto entre a aspiração e a realidade. Cada ano foi uma lufada
que desprendeu da árvore da mocidade, não só uma alma
querida, como uma ilusão consoladora.
A tua pena encontrou expressões de verdade e de sentimento
para descrever as nossas confabulações de poetas, tão
serenas e tão íntimas. Tiveste o condão de transportar-me
a essas práticas da adolescência poética; lendo a tua carta
pareceu-me ouvir aqueles que hoje repousam nos seus túmulos, e ouvindo
dentro de mim um ruído de aplauso sincero às tuas
expressões, afigurava-se-me que eram eles que te aplaudiam, como no
outro tempo,
na tua pequena e faceira salinha.
Essa recordação bastava para felicitar o meu livro.
Mas onde não vai a amizade e a crítica benevolente? Foste
além: -traduziste para o papel as tuas impressões que eu,- mesmo
despido desta modéstia oficial dos preâmbulos e dos
epílogos, -não posso deixar de aceitar como parciais e filhas do
coração. Bem sabes como o coração pode levar a
injustiças involuntárias, apesar de todo o empenho em manter uma
imparcialidade perfeita.
Não, o meu livro não vai aparecer como o resultado de
uma vocação superior. Confesso o que me falta que é para
ter direito de reclamar o pouco que possuo. O meu livro é esse pouco que
tu caracterizaste tão bem atribuindo os meus versos a um desejo secreto
de expansão; não curo de escolas ou teorias; no culto das musas
não sou um sacerdote, sou um fiel obscuro da vasta multidão dos
fiéis. Tal sou eu, tal deve ser apreciado o meu livro; nem mais, nem
menos.
Foi assim que eu cultivei a poesia. Se cometi um erro, tenho
cúmplices, tu e tantos outros, mortos, e ainda vivos. Animaram-me, e bem
sabes o que vale uma animação para os infantes da poesia. Muitas
vezes é a sua perdição. Sê-lo-ia para mim? O
público que responda.
Não incluí neste volume todos os meus versos.
Faltou-me o tempo para coligir e corrigir muitos deles, filhos das primeiras
incertezas. Vão porém todos, ou quase todos os versos de recente
data. Se um escrúpulo de não acumular muita coisa sem valor me
não detivesse, este primeiro volume sairia menos magro do que é;
entre os dois inconvenientes preferi o segundo.
Como sabes, publicando os meus versos cedo às
solicitações de alguns amigos, a cuja frente te puseste. Devo
declará-lo, para que não recaia sobre mim exclusivamente a
responsabilidade do livro. Denuncio os cúmplices para que sofram a
sentença.
Não te bastou animar-me a realizar esta
publicação; a tua lealdade quis que tomasses parte no
cometimento, e com a tua própria firma selaste a tua confissão.
Agradeço-te o ato e o modo por que o praticaste. E se a tua bela carta
não puder salvar o meu livro de um insucesso fatal, nem por isso
deixarei de estender-te amigável e fraternalmente a mão.